Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CRIMINALIDADES, MORALIDADES, DIREITOS E MERCADOS NO BRASIL Aula 8 – Sujeição Criminal Olá pessoal, Nesta aula estudaremos o conceito de Sujeição Criminal desenvolvido pelo Professor Titular de Sociologia da UFRJ Michel Misse, por meio do artigo com indicação de leitura obrigatória ao fim desta página: “MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”, Revista Lua Nova, n.79, 2010”. O vídeo ao lado é uma palestra proferida pelo professor Michel Misse em que o conceito de sujeição criminal é analisado, identificando-o como uma inovação quanto à teoria interacionista do desvio e do estigma. A partir da sujeição criminal, essa palestra trata dos diversos temas que são trabalhados nesta segunda parte do curso aplicado ao caso brasileiro (temas das aulas 8 a 10), tais como o conceito de mercadorias políticas, as dobras do legal/ilegal e do moral/imoral, os processos de criminação, incriminação e criminalização e o encarceramento no Brasil. Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: • Analisar o conceito de sujeição criminal; e • Identificar as diferenças entre as ideias de rotulação e estigmatização. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE SUJEIÇÃO CRIMINAL: A sujeição criminal é desenvolvida a partir do estudo do continuum referencial de ações representadas como normais, boas ou más, proposto por Wilkins (1964). A partir dessa proposta, Michel Misse seleciona três designações abrangentes, persistentes e vinculadas entre si e a outros tipos sociais para saturar o significado que a sujeição criminal adquiriu nos tipos sociais historicamente datados da cidade do Rio de Janeiro: o malandro, o marginal e o vagabundo. Observa a metamorfose construída em períodos históricos em que cada um desses tipos sociais se sucedem no tempo, obtendo cada um significado correspondente à sujeição criminal imposta em sua época: O vagabundo, com o significado de vadio, é tão ou mais antigo que o malandro do início do século e o marginal só aparece muito depois. Mas o emprego atual do designativo vagabundo, no mundo do crime, é praticamente equivalente ao significado que o emprego do atributo malandro adquiriu a partir da década de setenta, acrescido, no entanto, das qualidades do marginal, enquanto o significado de malandro hoje ganhou uma idealização que não existia no início do século, produzida por contraposição ao marginal e ao bandido. (MISSE, 1999, pp.205-206). Misse avalia que ao longo do tempo esses tipos vão se metamorfoseando, sofrendo uma atenuação, ou seja, a construção social das condições que permitem definir a sujeição criminal é a mesma que permite definir a normalização dos cursos de ação. Desta forma, a figura do malandro vai sendo atenuada com o tempo e sendo idealizada como uma tradição positiva, assim como a própria sociedade como um todo vai absorvendo gírias e palavrões em seu cotidiano que vão em algum grau banalizando a “sujeição criminal” enquanto construção rígida de diferenciação entre vagabundos e trabalhadores, se fizermos uma leitura mais atual. A acumulação da sujeição criminal seria um dos fatores que contribuiria para a acumulação social da violência, uma vez que introduziria a “emergência de uma sociabilidade violenta”[1]. A sujeição criminal é definida como: “um processo social que incide sobre a identidade pública e muitas vezes íntima de um indivíduo. Para que haja sujeição criminal, é preciso que certos tipos de curso de ação, representados não apenas como desviantes, divergentes, problemáticos ou ilegais, mas interpretados principalmente como criminais, inclusive pelo agente, se reiterem na expectativa social a propósito desse agente; que esses tipos de curso de ação condensem significações de ruptura com representações de normas sociais de validez abrangente e, principalmente, rompam ou ameacem romper com um « núcleo forte » emocional dos agentes sociais, sobre o qual se concentram as representações sociais da normalidade, do crime e da violência. Em oposição ao « não fiz por mal » do negligente e do « fui levado a isso » do neutralizador, ele pode chegar, no limite, a assumir publicamente sua identidade como « mau ».” (MISSE, 1999, p. 213). Misse não está preocupado, em seu trabalho, em compreender a entrada e nem mesmo a “ adesão” ou a “opção” pelo crime, mas, na sua reiteração, pois esta torna-se passível de incorporação numa identidade social negativa e sua consequente acomodação a um tipo social. Desta forma, a sujeição criminal se insere tanto no âmbito individual quanto coletivo, se fixando e disseminando também às áreas em que o “vagabundo” reside. A favela, como problema social historicamente construído e combatido por boa parte dos governos ao longo do século XX, acaba por ser o reduto do malandro, do marginal e do vagabundo, sofrendo uma ampla incriminação preventiva[2] ao longo do tempo, que poderia explicar a forte sujeição criminal dos moradores que tentam se opor a essa construção através de signo do trabalho. A construção do trabalhador, em oposição ao vagabundo, passa a permear as relações de identificação fora e dentro das favelas, absolvendo ou condenando pessoas por seus “crimes” duramente punidos, mesmo sem julgamento, pelo Poder Judiciário. A representação da “favela-problema” foi um discurso criado historicamente e encarado principalmente do ponto de vista urbanístico que reproduzia a ideia de bairros marginais que precisavam ser removidos (VALLADARES, 2005). A perspectiva “problema” só começou a ser modificada após o crescimento dos movimentos sociais, com a criação da FAFEG (Federação das Favelas do Estado da Guanabara), da CODESCO (Companhia de Desenvolvimento de Comunidades), o apoio da Igreja através da Pastoral das Favelas, dentre inúmeros outros, que começaram a pregar a permanência da favela e a sua urbanização. Entretanto, com o aumento da violência ligada ao comércio ilegal de drogas, a sua sujeição criminal findou por ser reforçada, legitimando incursões policiais violentas de grande apelo público. É interessante a comparação entre duas matérias veiculadas pelo Jornal “O Globo” para que possamos compreender como a incriminação pode se traduzir em sujeição criminal a partir de notícias que adotam abertamente a posição do policial quanto ao “crime” ocorrido, e a postura do mesmo jornal quanto ao julgamento de um indivíduo de classe média alta, em um caso de grande clamor público: “Traficante morre em confronto com policiais no Andaraí: RIO – Um homem foi morto e outro ficou ferido durante confronto com policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Andaraí na noite desta quarta-feira. Segundo informações passadas pela assessoria de comunicação das UPP's, a dupla estava com drogas num beco da Rua Leopoldo, na localidade conhecida como Escadão, no Morro do Andaraí. Com a aproximação de dois policiais, os traficantes sacaram armas. Um soldado atirou e, com um único disparo, acertou os dois. Os traficantes foram levados para o Hospital do Andaraí, onde um deles morreu. Com a dupla de criminosos foram apreendidos maconha e cocaína, um revólver calibre 32 e a réplica de uma pistola. O caso está sendo registrado na 19ª DP (Tijuca)”.[3] Selecionamos este caso não por acaso, pois pudemos conversar com os familiares[4] e conhecer melhor a história dos dois jovens mortos pela polícia: Jean Marlon Alves Vieira (18 anos) e Edilson da Conceição (21 anos). O título afirma que um jovem traficante foi morto em confronto com a polícia, comprovando a materialidade do crime com as drogas encontradas e o revólver. Ora, trata-se de um caso evidente de sujeição criminal, pois há a incriminação e a sua aceitação como parte de seu processo de execução, uma vez que estariam em confronto com a polícia. Desta forma, mesmo sem julgamento, somente com a informação passada pela polícia, o jornal publicouem tom afirmativo que o jovem era traficante por portar drogas e foi morto em confronto com a polícia, mesmo que com um único tiro, o que já poderia demonstrar indícios de execução. Por que essa notícia foi publicada dessa forma? O que estaria implícito nessa matéria? Agora vamos analisar o caso noticiado de um julgamento de grande clamor público e que teve seu fim, após 9 anos, em 22/02/2013: “Após nove anos, Gil Rugai ouve hoje se é culpado ou inocente pela morte do pai e da madrasta: São Paulo – Depois de cinco dias, chega ao fim nesta sexta-feira (22) o júri popular que decidirá se o estudante Gil Rugai, 29, é culpado ou inocente pelos assassinatos do pai, Luiz Carlos Rugai, e da madrasta, Alessandra de Fátima Troitino, ocorridos há quase nove anos, em São Paulo. A leitura da sentença judicial teve a divulgação autorizada pelo juiz do caso, Adilson Simoni, e será transmitida em tempo real pelos meios de comunicação. A previsão é que a decisão saia por volta das 19 h. Gil é acusado de duplo homicídio”. [5] Observamos nessa matéria que não há nenhuma afirmação quanto à incriminação de Rugai, que é tratado como “acusado”, conforme o devido processo legal, havendo apenas a menção ao tempo transcorrido de nove anos para a sentença, o que evidencia em algum grau uma crítica à morosidade do sistema judiciário brasileiro. Neste caso, observamos a incriminação do sujeito, porém não a sua sujeição criminal. O que faz com que o jornal “O Globo” trate ambos os casos de forma tão distinta? Por que no primeiro caso a sujeição criminal é tão forte, divulgando-se somente a versão da polícia, em um caso em que ficou posteriormente evidenciada a execução sumária dos jovens? Por que no segundo caso trata-se o incriminado como acusado e nem mesmo se afirma que ele será condenado ou absolvido, mas ouvirá se é “culpado ou inocente”? No caso do favelado, as únicas categorias existentes são vagabundo e trabalhador. É próprio da sujeição criminal a retificação do crime no sujeito e a subsunção do sujeito em um tipo social (traficante, no caso). Portanto, se o jovem não estava trabalhando, era vagabundo e, por isso, traficante. Já no caso do estudante de classe média alta, Gil Rugai, essas categorias não se aplicam, pois ele era estudante (segundo muitos dos jornais o descrevem) e, mesmo que não fosse, nunca seria encarado como vagabundo. Por isso, a única forma de encarar o seu julgamento seria através das categorias culpa e inocência, remetendo às bases católicas que fundamentam o processo de socialização na classe média brasileira, de sorte a essa categoria ser reconhecida pelos leitores. No primeiro caso, há a morte de dois jovens sem qualquer julgamento e a pronta publicação dessas mortes como justiça feita, sem que se apure efetivamente o que ocorreu, tomando a versão policial como verdadeira.. No segundo caso, há um assassino e o receio em se publicar qualquer matéria que induza a sua culpabilidade. Parece-nos que fica bem evidente a diferenciação entre casos em que há incriminação com e sem sujeição criminal. Uma interpretação possível para essa diferença de tratamento resultaria do fato de que se atribui à cultura do lícito determinada representação que emula saberes republicanos ocidentais e a nossa identidade católica. Já ao ilícito, o informal, o amoral, à favela, atribui-se a identificação pelo trabalho, emulando tradições protestantes, em que o trabalho é a identidade do ser humano. Na ausência do trabalho, o vagabundo paga com a vida por seus pecados. Compreendemos, portanto, que a sujeição criminal a que se submetem os favelados, não somente por parte da força policial, mas também pelos meios de comunicação que representam importante parcela da opinião pública, é uma dimensão importante, mas que nem sempre é reconhecida pelas políticas públicas em sua formulação. Observações: [1] Sobre a emergência de uma sociabilidade violenta, ver Machado da Silva (1995). [2] Segundo Misse: “Não há sujeição criminal sem incriminação, mas pode haver incriminação sem sujeição criminal. O que distingue radicalmente a incriminação de um indivíduo de sua sujeição criminal é representado socialmente, grosso modo, pela distinção entre « bandidos » e não-bandidos. O significado de « bandido », embora remeta a « integrante de um bando », ganhou autonomia individualizante, passou a ser aplicada ao agente cuja sujeição criminal já está em curso ou que se considera consolidada. Na representação jurídica, a « reincidência » poderia aparecer como um indicador dessa distinção, e geralmente o é, mas não é suficiente. Pode haver reincidência criminal e não haver sujeição criminal, como pode haver sujeição criminal sem reincidência judicialmente registrada. De um modo geral, a diferença é construída pela ênfase maior que se dá ao sujeito, no caso da sujeição criminal, com a expectativa social de que o agente é, de algum modo, subjetivamente ligado à transgressão; e pela ênfase maior na transgressão que no sujeito, no caso da mera incriminação, com a expectativa social de que aquela transgressão não é subjetivamente ligada ao agente (ao seu caráter, às suas origens e ao seu meio social, à sua biografia, etc). O mesmo processo ocorre na assimilação da sujeição criminal pelo agente, isto é, no seu « assujeitamento » ao atributo social e pode servir, através das auto-justificações (ou na sua recusa) que são oferecidas pelo agente, para escrutinar uma tipologia da sujeição criminal”. (MISSE, 1999, pp. 214-215). [3] Fonte: Jornal “O Globo”, 25/07/2012. Matéria: Traficante morre em confronto com policiais no Andaraí. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/traficante-morre-em-confronto-com-policiais-no-andarai-5590789. [4] Esse caso é melhor trabalhado em nossa tese de doutoramento: GANEM MISSE, Daniel. Políticas Sociais em Territórios Pacificados. UFF, 2013. [5] Fonte: Jornal “O Globo”, 22/02/2013. Matéria: Após nove anos, Gil Rugai ouve hoje se é culpado ou inocente pela morte do pai e da madrasta. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/02/sentenca-do-julgamento-de-gil-rugai- deve-sair-nesta-sexta-feira-22.html.
Compartilhar