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Gringos para nós mesmos
Dom, 15/05/11 por Luciano Trigo http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2011/05/15/gringos-para-nos-mesmos/
Do papagaio Zé Carioca à arara Blu, fomos educados para enxergar o Rio com um olhar estrangeiro
Nas últimas semanas o longa-metragem de animação Rio se transformou num fenômeno de bilheteria em todo o mundo, encantando adultos e crianças (eu e minha filha inclusive) e trazendo benefícios indiretos para a cidade difíceis de quantificar, mas certamente imensos em termos de incentivo ao turismo. Dirigido por um brasileiro, Rio é um cartão postal em movimento e tecnologia 3D, uma declaração de amor que enche os cariocas de justificado orgulho.
Li que o tamanho dos biquínis das cenas de praia foi aumentado por determinação dos produtores norte-americanos. Tudo bem. A medida deve ter tido motivação mais econômica que moral: o filme custou U$ 90 milhões e foi lançado em quase 100 países. Nesse nível da indústria nada é deixado ao acaso. Cada detalhe é calculado para se obter o máximo de retorno – até o tamanho do biquíni que cobre a bunda que recebe uma bolada.
Não sei se foram os biquínis, mas algo me parecia fora do lugar quando saí do cinema e me deparei com uma cidade menos colorida, com uma paisagem urbana sem correção digital, com cariocas falando português sem sotaque ou legenda – e nenhuma arara azul à vista. A realidade estava desfocada. Um sentimento de estranheza me invadiu, e não foi pela falta dos óculos 3D. A sensação que tive foi a de ter visto no cinema o Rio de Janeiro com os olhos de um gringo – e de ter achado isso natural.
Pensei em como, garoto que devorava revistinhas do Tio Patinhas e assistia a desenhos dublados na televisão, devo ter sido influenciado pelos padrões – estéticos, narrativos, simbólicos, culturais – dos bens de consumo americanos que dominavam – que ainda dominam – o nosso universo audiovisual. Pensei em como isso se reproduz, décadas depois, nas novas gerações de crianças e adolescentes que continuam a ter seu olhar educado por lentes de fora, por formas de ver e dar sentido ao mundo que não são nativas. Pensei na minha filha de 6 anos que só fala na viagem a Orlando. Pensei no Zé Carioca.
Como Carmen Miranda, Zé Carioca (Joe Carioca no original) foi um fruto direto da Política de Boa Vizinhança implementada pelo presidente Roosevelt nas décadas de 30 e 40. Mais que um esforço diplomático de aproximação com seus vizinhos do sul num contexto de polarização política planetária, tratava-se, hoje se sabe, de uma estratégia de dominação ideológico-cultural a longo prazo sobre o continente. Havia o interesse declarado em garantir a hegemonia americana não apenas por meio de acordos comerciais, alianças políticas ou planos de cooperação, mas também por meio de uma intervenção cultural, na exportação sutil e sedutora de práticas e valores, desejos e sonhos, maneiras de viver e de consumir (ou de viver para consumir).
Foi então que aprendemos a beber Coca-Cola, chupar picolé e mascar chiclete, entre outros hábitos que importamos e hoje consideramos naturais. Da mesma forma, por força de uma dieta vigorosa de conteúdos audiovisuais americanos, aprendemos a nos enxergar com olhos estrangeiros e a vestir a imagem que projetavam em nós. Foi então, desconfio, que viramos um clichê.
Como a televisão ainda não existia e boa parte da população brasileira era analfabeta, o cinema foi o grande veículo desse processo de dominação. Distribuidoras americanas aqui instaladas ocuparam nosso mercado com filmes que nos empurravam aos lotes. Mas os verdadeiros produtos não eram os filmes, e sim os padrões de comportamento e os valores sociais e simbólicos que camuflavam interesses estratégicos de dominação econômica e cultural, a ponto de o idioma português, num determinado momento, passar a soar estranho na sala de cinema.
A indústria local, em condições extremamente desiguais de competição, era estimulada a imitar a matriz, em musicais que celebravam nossa alegria e nosso jeitinho. Exemplar nesse processo foi o longa-metragem de animação Alô, amigos! (no original, “Saludos, amigos!”), produzido por Walt Disney em 1942 com apoio do Office of the Coordinator Inter-American Affairs – OCIAA, órgão vinculado ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos e associado ao nosso DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda.
No episódio brasileiro de Alô, amigos! (outros se passavam no Chile, Argentina, Peru e Bolivia), os acordes malemolentes da Aquarela do Brasil introduzem o encontro entre o simpático e folgazão Joe (ou melhor, Zé) e o Pato Donald. À primeira vista, é o pato nervosinho quem “compra” a imagem da cidade vendida pelo papagaio, mas na verdade éramos nós que comprávamos uma imagem do Brasil que se perpetuaria como representativa do caráter nacional: somos loucos por praia, futebol e Carnaval, temos vocação para rir da adversidade e, apesar de preguiçosos, malandros, e trambiqueiros, no fundo somos gente boa. Entre as “preferências nacionais”, não faltou referência nem mesmo a cachaça.
A mensagem subliminar de Alô, amigos! era clara: estimular crianças brasileiras a serem amigas das crianças americanas – e prepará-las para serem lideradas por elas, quando crescessem, da mesma forma que o papagaio de Vila Xurupita aceitava com admiração servil a liderança do Pato Donald. Afinal de contas, os povos não-civilizados do Terceiro Mundo eram como crianças: indefesos, despreocupados, ingênuos, , necessitados da liderança dos Grande Irmão.
Setenta anos depois, o mundo está muito diferente, mas algumas coisas não mudaram. Por exemplo, para fazer seu filme Walt Disney trouxe ao Brasil uma equipe de 15 técnicos, que deviam elencar referências culturais, material folclórico, histórias populares, canções; Carlos Saldanha também trouxe uma equipe de seis pessoas, numa viagem intensiva de imersão. A arara azul Blu e seus coadjuvantes têm muito em comum com Joe Carioca, e seu nome é tão universal que nem precisou ser abrasileirado para consumo local. A causa que o filme defende – a denúncia ao contrabando de aves – é ecológica e politicamente correta, como convém a tempos de globalização de mercados.
Sendo uma produção americana dirigida por um brasileiro, Rio representa o país em dois sentidos: é um exemplo do nosso talento criativo único, personificado em Carlos Saldanha (aliás, significativamente formado e radicado nos Estados Unidos); mas é também uma representação – da nossa geografia, valores, costumes – feita para consumo global. Como tal, contribui para formar ou reforçar idéias, especialmente junto ao público infantil, sobre quem somos e como vivemos.
Nas entrelinhas do enredo simples, nos diálogos, no gestual dos personagens, na estrutura do roteiro, na trilha sonora brasileira com sotaque americano, Rio talvez deva parte de seu sucesso a reforçar o que é familiar: de um lado, adere a fórmulas recorrentes nas animações com “padrão Hollywood de qualidade” (com o qual é difícil para qualquer indústria nacional competir); de outro, repete clichês sobre a cidade mais antigos que o Zé Carioca, como os micos que fazem gracinhas para distrair e roubar turistas.
Nada disso diminui os méritos de Rio como entretenimento para toda a família: é um filme divertido e afetivo, feito com a convicção sincera de que nossa cidade é mesmo maravilhosa. Mas, ironicamente, é também um filme que achata a realidade plural em que vivemos, reduzindo as nossas diferenças a elementos exóticos, as nossas mazelas a temperos de um parque temático carnavalesco onde todos falam inglês, em tudo compatível com o modelo audiovisual que há décadas coloniza todo o planeta. Com a globalização, chegamos talvez à realização extrema da utopia pan-americana dos anos 40: Hollywood exporta o Brasil para o próprio Brasil. Rio não deixa de ser uma obra para gringos, e se faz tanto sucesso aqui é porque fomos educados a nos olharmos como se gringos fôssemos, a acharmos graça de nós mesmos como se nos olhássemos de fora.
Perfil
Luciano Trigo é escritor,jornalista, tradutor e editor de livros. E pai da Valentina. Autor de "O viajante imóvel", sobre Machado de Assis, "Engenho e memória", sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis. Foi editor dos suplementos "Idéias", no Jornal do Brasil, e "Prosa & Verso", no Globo, e colaborador de diversos jornais. Editou também as revistas "Leia Livros" e "Poesia Sempre". Foi editor da Nova Fronteira e da Odisséia Editorial.

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