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FELIPE SILVEIRA ANDREANI A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A EXISTÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DIANTE DE SUA NÃO REALIZAÇÃO Bacharelado em Direito Centro Universitário de Araras, Dr. Edmundo Ulson – UNAR Faculdade de Direito 2017 FELIPE SILVEIRA ANDREANI A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A EXISTÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DIANTE DE SUA NÃO REALIZAÇÃO Monografia apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Araras, Dr. Edmundo Ulson - UNAR, como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Ms. Tabajara Zuliani dos Santos. Araras/SP – 2017 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Ms. Tabajara Zuliani dos Santos ______________________________________ Prof. Esp. Rodrigo Aparecido Tiago ______________________________________ Prof. Ms. Davi Pereira Remédio Araras/SP, setembro de 2017. - TERMO DE APROVAÇÃO - Felipe Silveira Andreani A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A EXISTÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE NULIDADE DIANTE DE SUA NÃO REALIZAÇÃO Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito, na Faculdade de Direito do Centro Universitário de Araras, Dr. Edmundo Ulson - UNAR, com a nota __________ pela seguinte banca examinadora: ________________________________________________ Orientador Prof. Ms. Tabajara Zuliani dos Santos ________________________________________________ Membro Prof. Esp. Rodrigo Aparecido Tiago ________________________________________________ Membro Prof. Ms. Davi Pereira Remédio Araras/SP, setembro de 2017. Dedico este trabalho a todos os meus professores, os quais não convêm citar nominalmente para não atribuir ordem de importância em minha formação. Dedico também à minha família, em especial meus pais e minha irmã que tanto me apoiaram durante a graduação. Não posso deixar de dedicar o presente à minha namorada e provável futura esposa, Jéssica Mota Reis, pois, se não fosse pelo Direito não teríamos nos conhecido, e por isso sou muito grato a Deus, por ter iluminado minhas escolhas para que culminassem em minha atual situação. Por derradeiro, dedico a todos os meus amigos da Vara do Juizado da Comarca de Leme, aos amigos de escritório no qual exerço trabalho atualmente, bem como aos demais amigos e colegas da graduação que tanto contribuíram com meu crescimento pessoal. Agradeço, primeiramente, a Deus por ter me proporcionado a chance de cursar o curso de Direito e ter me mostrado o caminho a ser seguido. Agradeço, também, aos professores que fizeram parte de minha graduação, tanto os ainda presentes no corpo docente quanto aqueles que por outros motivos já não possuem vínculo com o Centro Universitário. Agradeço à minha família pela paciência, apoio, contribuição, respeito e por todo o incentivo. Agradeço, por fim, e não menos importante, à minha namorada e provável futura esposa, se Deus assim permitir, que me apoiou por mais da metade desta jornada que fora a graduação, e por ter sido paciente em relação à minha dedicação aos estudos. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 10 CAPÍTULO 1 – DO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS PENAS E DAS RESTRIÇÕES DE LIBERDADE INDIVIDUAL .......................................................... 13 1.1 – A aplicação da pena privativa de liberdade na Idade Média ............................. 15 1.2 – A aplicação da pena privativa de liberdade na Idade Moderna ....................... 16 1.3 – Dos sistemas prisionais .................................................................................... 17 CAPÍTULO 2 – O SISTEMA PROGRESSIVO BRASILEIRO E AS PRISÕES ADOTADAS ............................................................................................................ 24 2.1 – Das prisões em espécie e suas particularidades ............................................. 25 2.1.1 – Da prisão em flagrante delito ......................................................................... 27 2.1.1.1 – Flagrante próprio e flagrante impróprio ..................................................... 28 2.1.1.2 – Flagrante presumido ou ficto ...................................................................... 32 2.1.1.3 – Flagrante diferido e a ação controlada ....................................................... 34 CAPÍTULO 3 – O INSTITUTO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ............................. 36 3.1 – Implementação do instituto no Brasil ................................................................ 39 3.2 – A apreciação da prisão em flagrante e o andamento da audiência ................ 43 3.3 – Possíveis nulidades enfrentadas pela não realização da audiência ................. 48 3.3.1 – Princípios inerentes ao instituto da nulidade no processo penal ................... 49 3.3.2 – Nulidade absoluta, relativa, inexistência e mera irregularidade ..................... 52 3.3.3 – Nulidade ou validade dos atos na falta da realização da audiência .............. 55 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 63 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 65 ANEXOS ................................................................................................................. 68 LISTA E SIGLAS E ABREVIATURAS ADEPOL Associação dos Delegados de Polícia do Brasil. Art/art. Artigo. CADH Convenção Americana sobre Direitos Humanos. CF Constituição Federal. CNJ Conselho Nacional de Justiça. CP Código Penal. CPP Código de Processo Penal. DIPO Departamento de Inquéritos Policiais. HC Habeas Corpus. LEP Lei de Execução Penal MP Ministério Público. MPF Ministério Público Federal. n. Número. ONU Organização das Nações Unidas p. Página. PI Piauí. STJ Superior Tribunal de Justiça. STF Supremo Tribunal Federal. RESUMO A presente pesquisa visa analisar os aspectos da falta da realização da audiência de custódia. Para tanto, buscará abordar o desenvolvimento histórico das penas e das restrições de liberdade individual, abrangendo os sistemas de aplicação da pena privativa de liberdade, em especial em relevantes momentos históricos como a idade média e a idade moderna, traçando diretrizes em relação ao sistema adotado no Brasil. Em seguida, será explanado acerca das modalidades de prisões previstas no ordenamento jurídico brasileiro, com enfoque nas prisões em flagrante delito e suas espécies, tendo em vista que esta classe prisional é o objeto da audiência de custódia. Por derradeiro, a problemática levantada será dirimida analisando a falta da realização da audiência de custódia, do ponto de vista das nulidades, traçando conclusões, de modo mais imparcial e coerente possível, com base nalegislação brasileira, jurisprudências e relevantes opiniões de operadores do direito. PALAVRAS CHAVE: Audiência de Custódia – Liberdade – Nulidades Processuais – Prisão em Flagrante Delito – Direito Penal. 10 INTRODUÇÃO O Direito Penal moderno, como forma repressiva do controle interno e externo das condutas humanas, evoluiu conforme as necessidades da sociedade. Para Capez (2012, p.18), Direito Penal é: [...] é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação. A ciência penal, por sua vez, tem por escopo explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas, de forma sistemática, estabelecendo critérios objetivos para sua imposição e evitando, com isso, o arbítrio e o casuísmo que decorreriam da ausência de padrões e da subjetividade ilimitada na sua aplicação. Mais ainda, busca a justiça igualitária como meta maior, adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais sensíveis que os regem, não permitindo a descrição como infrações penais de condutas inofensivas ou de manifestações livres a que todos têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre a norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana. Não menos importante se tem o instituto das restrições da liberdade individual que, ao longo da história, mostrou-se como uma das alternativas mais utilizadas para punir infrações que violassem a paz na vida em sociedade. Em virtude das citadas infrações, o sistema penal se desenvolveu conforme a cultura, necessidade e período histórico em que se pautava a organização das sociedades. Foram utilizadas em diversas épocas as penas corporais, as de caráter vexatório, de isolamento, de morte e, por fim, a restrição à liberdade individual. Para que o Estado não cometesse excessos, por mera discricionariedade, as sociedades organizadas em Estados de Direito criaram normas específicas para regerem os procedimentos de condenação e, por conseguinte, a aplicação da sanção penal. Contudo, a restrição da liberdade individual nem sempre fora a forma predominantemente utilizada para punir os infratores. Ao decorrer dos períodos históricos o conceito da prisão e sua destinação sofreram transformações e novas regulamentações legais. 11 Nas palavras de Bizatto (2005, p.15): A Prisão é tida pelo ordenamento jurídico pátrio, como a exceção, sendo a regra geral se constitui na liberdade do indivíduo, tal qual consagrado no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, embora o direito à liberdade seja garantia constitucionalmente assegurada de todo o cidadão, excepcionalmente a liberdade de ir e vir pode ser restringida, no cumprimento da pena privativa de liberdade ou, também, durante a investigação criminal. De outra banda, como o próprio ser humano e o sistema social em que vive, o conjunto normativo adotado por um Estado pode ser falho, uma vez que, nem sempre é cumprido com todas as observâncias legais. Erros podem acontecer, e devido a isso o sistema legal penal evoluiu e implementou o conceito de nulidades, com o intuito de reparar o erro judicial, além de buscar o máximo aproveitamento dos atos processuais já praticados. Na presente pesquisa serão tratadas as modalidades de prisão adotadas no ordenamento jurídico brasileiro, as possíveis nulidades trazidas pela legislação, para que assim se alcance uma problemática atual, a audiência de custódia. De acordo com informação disposta no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça (2016), o novo instituto fora criado em fevereiro de 2015 em parceria do próprio CNJ com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), cujo objetivo era garantir maior agilidade na apreciação da prisão realizada pela autoridade competente e diminuir casos de constrangimento ilegal, e, consequentemente causando impacto direto na população carcerária. Para elucidação do tema, necessário se faz o estudo do desenvolvimento histórico das prisões, assim como conceituar o objeto de apreciação da audiência de custódia, ou seja, a análise da prisão em flagrante delito, sua conversão em prisão preventiva ou a concessão da liberdade ao preso, seja por relaxamento, seja na modalidade provisória. Diante do novo instituto, que, embora ainda não tenha previsão legal interna, sua aplicação tem se mostrado cada vez mais constante nos Estados brasileiros, de modo que sua realização ou sua falta passaram a gerar novas discussões nos Tribunais Superiores. A não realização da audiência de custódia é passível de gerar nulidade insanável no processo penal brasileiro? Tal instituto tem se mostrado viável para as receitas dos Estados? Como o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária têm enfrentado essa nova problemática? 12 A análise embora não tão profunda acerca do tema buscará elucidar o máximo possível acerca dos temas que sustentam o instituto das prisões no ordenamento jurídico brasileiro. Essas indagações, os pontos de vista doutrinários e jurisprudenciais, as características, conceitos e demais elementos necessários para compreensão do novíssimo instituto serão discutidos na presente pesquisa, observando todos os pontos necessários para esclarecer o tema de forma concisa e imparcial. 13 CAPÍTULO 1 – DO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS PENAS E DAS RESTRIÇÕES DE LIBERDADE INDIVIDUAL Desde o surgimento das sociedades humanas mais simples, fora necessário estabelecer meios para regular o convívio pacífico entre seus membros, de modo que, no caso de violações às regras, sanções fossem aplicadas ou, ainda, para coibir a prática de novas condutas. Nos primórdios, possivelmente, não existiam sanções de caráter prisional como punição aos infratores das sociedades organizadas. Dentre os meios adotados para punir os infratores destaca-se, no sistema moderno, as privações do direito à liberdade, direito tutelado até os dias de hoje, inerente ao indivíduo e que é tutelado como preceito fundamental por nossa legislação atual. Bem verdade é que, nos primórdios, a privação da liberdade não era utilizada como sanção penal, mas sim com a finalidade de aguardar o julgamento pela prática ilícita, que culminava em regra em sanções mais gravosas que a restrição da liberdade individual. De acordo com Bitencourt (2001, p. 27), até o final do século XVIII a prisão foi utilizada com tal caráter contentor, resguardando a integridade física do infrator até sua provável execução pública. Naquela época as penas adotadas eram, em suma, a pena de morte, mutilações, açoites físicos ou humilhações públicas. Quaisquer destas formas de sanção eram aplicadas com fim de desabonar publicamente o infrator, para que a sociedade o rejeitasse como ser humano a ponto de sentir seu desprezo antes de morrer, ou de perder parte de seu corpo. As formas mais comuns eram a decapitação e o enforcamento em praça pública. Assim, surgiu a conhecida Lei de Talião, que inclusive serviu como base para instituição do Código de Hamurabi, de acordo com os ensinamentos de Silva (1983, p. 15). Quanto ao citado Código, Costa (1982, p. 23) explica que: O Código de Hamurabi protege a propriedade, a família, o trabalho e a vida humana (...). O autor de roubo por arrombamento deveria ser morto e enterrado em frente ao local do fato (...).As penas eram cruéis: jogar no fogo (roubo em um incêndio), cravar em uma estaca (homicídio praticado contra o cônjuge), mutilações corporais, cortar a língua, cortar o seio, cortar a orelha, cortar as mãos, arrancar os olhos e tirar os dentes. 14 Observa-se, do citado trecho que tal Legislação era extrema, com principal intuito de coibir qualquer prática delitiva, em especial pelo medo da punição severa. Veja-se, a título de exemplo, as palavras do próprio Código: 1º - Se alguém acusa um outro, lhe imputa um sortilégio, mas não pode dar a prova disso, aquele que acusou, deverá ser morto. 2º - Se alguém avança uma imputação de sortilégio contra um outro e não a pode provar e aquele contra o qual a imputação de sortilégio foi feita, vai ao rio, salta no rio, se o rio o traga, aquele que acusou deverá receber em posse à sua casa. Mas, se o rio o demonstra inocente e ele fica ileso, aquele que avançou a imputação deverá ser morto, aquele que saltou no rio deverá receber em posse a casa do seu acusador. 3º - Se alguém em um processo se apresenta como testemunha de acusação e, não prova o que disse, se o processo importa perda de vida, ele deverá ser morto. 4º - Se alguém se apresenta como testemunha por grão e dinheiro, deverá suportar a pena cominada no processo. Em breve análise ao texto do Código de Hamurabi, é possível depreender a preocupação extrema em coibir a prática de atos considerados desonrosos ou ilegais. Explanados os conceitos que baseavam o direito penal na antiguidade, retoma-se o enfoque no estudo dos sistemas prisionais. Bitencourt (2001, p. 28) assevere que a restrição da liberdade individual na forma de prisão era uma espécie de “sala de espera” para a agonia vindoura, tendo em vista que o momento seguinte a ser experimentado pelo infrator seria o momento cruel em que sua vida seria ceifada. Quem ali permanecesse teria em mente que sua vida corria grande e iminente risco. Segundo a mesma doutrina (2001, p. 28) as civilizações antigas do oriente médio, como Egito e Babilônia, nos transmitiram grande parte do conceito de prisão, que, neste caso consistia em lugar de custódia e tortura. De acordo com o que ensina Guzman (1983, p.75), relevante foi o conceito de Platão que, em seu nono livro de “As Leis”, sugeria a criação de três espécies de prisão: uma na praça do mercado, a sofonisterium e a afastada da cidade. A primeira espécie seria exclusivamente destinada à custódia dos infratores, a segunda, ainda dentro do perímetro urbano, serviria para “corrigir” o infrator, para que não voltasse a cometer delitos. Por fim, a terceira, aquela afastada da civilização, teria como fim o amedrontamento do enclausurado, num ambiente criado especificamente para isso, sendo o mais sombrio e deserto possível. 15 Nitidamente a lição de Bitencourt (2001, p. 29) assevera que Platão diferenciava os estabelecimentos prisionais de forma estratégica. Criou ele a figura da prisão como custódia e da prisão como pena definitiva, com predominância da prisão como custódia, uma vez que, como já fora mencionado, a sanção penal aplicada com maior frequência era a execução. Na mesma doutrina (2001, p. 30), na Grécia eram comuns as prisões daqueles cidadãos devedores. O devedor era retido e se tornava escravo do credor até que cumprisse com sua obrigação contraída. Como não existiam estabelecimentos prisionais específicos para a destinação dos prisioneiros, eram escolhidos pelos governantes os piores locais à sua disposição como: ruínas ou calabouços de castelos, torres, edifícios abandonados, etc. 1.1 – A aplicação da pena privativa de liberdade na Idade Média Mais tarde na linha histórica das prisões, chega-se à Idade Média, período compreendido entre os séculos V e XV. Bitencourt (2001, p. 31) descreve que neste período os conceitos de dignidade, honra e respeito eram distorcidos. As sociedades possuíam formas de distração violentas e sanguinárias. Comumente, conforme a doutrina supra (2001, p. 31), a violência era apresentada como espetáculo ao povo. Inúmeras sofriam amputações de membros, tinham seus olhos arrancados, línguas cortadas, eram queimadas vivas ou devoradas por animais. Fora estabelecido um verdadeiro “Código de Crueldade” aprovado pelo sistema de sociedade da época, demonstrando um elevado desrespeito ao direito à vida e à liberdade do indivíduo. Nas palavras de Caldeira (2009, p. 263) duas espécies de prisões foram criadas naquela época: a estatal e a eclesiástica. A prisão do Estado tinha como fim a custódia dos inimigos do reino, dos traidores e dos adversários políticos do governante em poder, sendo usada de forma transitória até a execução ou ainda em caráter perpétuo, ressalvando as ocasiões em que era concedido o perdão real. A prisão eclesiástica, concernentemente ao constatado por Caldeira (2009, p. 264), como seu próprio nome sugere, era destinada a um seleto grupo de pessoas, ou seja, os religiosos. Os clérigos e frades que se rebelavam contra o sistema religioso da época “ganhavam uma chance” de redenção, uma forma de fraternidade 16 do Estado para com a Igreja, que, por sinal, tinha elevada influência nos assuntos de governo na Idade Média. Nesta espécie de prisão não eram utilizadas as torturas físicas, mas sim a meditação e penitência através de oração, para que assim alcançassem o perdão de Deus e do Rei, afinal o Rei era considerado como o escolhido de Deus para governar. Talvez este conceito de prisão fosse o que mais se aproximou ao sistema penitenciário moderno, em razão de seu caráter de ressocialização. Segundo Shecaira e Corrêa Junior (2002, p. 30) na Idade média a pena aplicada tinha como fim tirar a paz do infrator, fazendo-o sentir insegurança, implantando o sentimento de vulnerabilidade. A mesma doutrina demonstra a evolução das prisões após a invasão bárbara na Europa, no final do século XV. Na mesma época foram criados centros para correções de menores, e inovação em aplicar penas pecuniárias, entretanto as penas corporais ainda eram predominantes. 1.2 – A aplicação da pena privativa de liberdade como alternativa na Idade Moderna No período histórico seguinte, durante os séculos XVI e XVII, o índice de pobreza aumentou drasticamente, afligindo todo continente europeu. Conforme a lição de Bitencourt (2001, p. 37), diante de tal quadro socioeconômico, houve um aumento considerável no número de crimes, uma vez que os pobres precisavam sobreviver de alguma forma. Várias formas de sanções foram experimentadas pelos Estados, restando sempre falhas em coibir novas práticas delitivas, seja pelo próprio infrator punido, seja por outros que não se sentiam coibidos a cessar com a vida voltada à criminalidade. As penas de morte e corporais se demonstraram ineficazes diante do alto número de criminosos que pouco se importavam com o futuro. A história chegou num ponto onde os criminosos igualavam a população “de bem”. Os infratores não tinham opções, ou delinquiam o morriam de fome, por isso garantir o presente se tornou prioridade para muitos. Na metade do século XVI, conforme observado na lição de Bitencourt (2001, p. 37), uma mudança foi necessária no sistema de aplicação de sanções penais, diante da crise dos feudos, guerras e movimentos religiosos. Nesse compasso, surge na Inglaterra um sistema prisional organizado com finalidade de correção dos presos 17 por meio do trabalho e disciplina. O objetivo desse novo sistema era desencorajar novos infratores, tendo em vista que passariam encarcerados por um período razoável de tempo. Acreditava-se que a rigidez e o trabalho eram capazes de corrigir o caráter do infrator,reformando- o como indivíduo. O ponto crucial dessa forma de sanção penal era tornar o enclausurado independente financeiramente, reinserindo-o na economia e mercado locais, o que implicaria diretamente em sua não reincidência em atos infracionais. Historicamente, analisando a lição de Melossi e Pavarini (2006, p. 36), o trabalho na prisão se demonstrou eficaz. No período histórico em questão, a atividade predominante era o ramo têxtil, e, devido à alta contribuição do trabalho de prisioneiros, que mais tarde partiram para o citado mercado, na Inglaterra surgiram locais de destaque no ramo, denominadas houses of correction (casas de correção) ou bridwells. Os condenados por delitos mais leves eram destinados às prisões têxteis, entretanto, os condenados por delitos mais graves eram encaminhados para um segundo e novo tipo de prisão-pena, as galés. Nelas os prisioneiros eram acorrentados a um banco e eram obrigados a remar sob ameaça de açoite com chicote. Melossi e Pavarini (2006, p. 37), dizem que o novo sistema carcerário se mostrou um sucesso e rapidamente se espalhou por toda Europa, mesmo com a resistência dos governantes que ainda acreditavam nas penas de morte e corporais. Tal momento marcou para sempre o sistema prisional, e deu origem à ressocialização do preso de forma mais concreta. Nesse diapasão, o homem passou a ser o centro do Direito Penal, provocando um estudo mais aprofundado do caráter das sanções aplicadas e dos reflexos da aplicação perante a vida em sociedade. Foram estes ideais e sistemas que deram origem ao sistema penitenciário como é conhecido nos dias de hoje. 1.3 – Dos sistemas prisionais A origem correta dos sistemas prisionais modernos não pode ser afirmada com exatidão. Não há dúvida que o histórico das prisões ao longo das eras contribuiu para que se obtivesse um sistema complexo e permeado por normas 18 disciplinares e, ao menos em regra, com a possibilidade de ressocialização. Bittencourt, em sua obra (2001, p. 75) afirma que os sistemas prisionais foram criados nos Estados Unidos, não negando, porém, a influência do Cristianismo. Destaca também o ilustre doutrinador (2001, p. 75) que tais influências não ensejaram apenas na criação dos estabelecimentos físicos como forma de custódia, mas também na futura conversão da custódia temporária em cumprimento de pena que privasse a liberdade de locomoção. Considerando a evolução histórica já explanada, necessário se faz pormenorizar os conceitos dos sistemas penitenciários pensilvânico e auburniano, bem como a origem do sistema progressivo. Em primeira análise tem-se o sistema pensilvânico. Assevera Barnes apud Melossi e Pavarini (2006, p. 187) que o sistema pensilvânico surgiu, de forma estimada, após o ano 1.829, no estado da Pensilvânia, e tinha como base a característica de isolamento celular, ou seja, sem nenhuma espécie de contato entre os reclusos por relevantes períodos de tempo, cumulada com a obrigação absoluta do silêncio, meditação e oração. De acordo com a lição supra (2006, p. 187), tal sistema reduziu de forma significativa os gastos com vigilância, assim como impediu que organizações de tipo industrial adentrassem nas prisões na época. Corrobora com tal entendimento a doutrina de Bitencourt (2001, p. 76), na qual destaca-se o surgimento do interesse do governo em recuperar os infratores, ao contrário do antigo caráter meramente punitivo da restrição da liberdade ou da tortura física vistos anteriormente. A recuperação se dava pela aplicação da religiosidade na rotina dos reclusos, algo criticado pelos marxistas, uma vez que era imposta uma ideologia sobre a crença ou escolha individual, o que, na visão do citado movimento, em vez de recuperar servia apenas para sacramentar a linha de pensamento da classe dominante da época. Nas palavras do próprio Marx, “A religião é o ópio do povo”. Bitencourt (2001, p. 77) demonstram que as religiões tiveram papéis fundamentais na história da humanidade, com papel social fundamental, mas que também teve influência negativa em alguns períodos históricos, como a inquisição, e diversos outros, não se podendo eximir totalmente a visão marxista da má influência em impor-se uma doutrina em detrimento das convicções pessoais dos reclusos. 19 Quando o condenado demonstrasse algum sinal de arrependimento, as autoridades entendiam que ele havia encontrado o caminho para “a salvação de sua alma”, e que este seria o motivo de sua soltura no futuro, dada a reabilitação pela adoção da religião e a reeducação. Desta forma, apesar da intenção de recuperação, o sistema pensilvânico não se mostrou tão eficaz. Melossi e Pavarini (2006, p. 188) afirmam que esse sistema era apenas uma ferramenta de dominação utilizada para controlar a opinião popular. Mesmo sem a tortura física, o isolamento celular era uma verdadeira tortura psicológica, com efeitos invisíveis aos olhos da sociedade, mas permanentes na mente do recluso. Não raros eram os casos de debilidade dos condenados, o que, portanto, estava muito longe de uma reabilitação do preso. Dadas as informações do sistema pensilvânico, a seguir será exposto o estudo do sistema auburniano. Bitencourt evidencia que (2001, p. 86) uma das principais razões, se não a principal, para a criação e início da aplicação do sistema auburniano foi a correção das falhas e limitações do antigo sistema celular. O isolamento celular, como já dito, em vez de recuperar o recluso o enlouquecia ou levava à morte precoce. Afirma a mesma doutrina (2001, p.86), que em 1.796 o governador de Nova York, John Jay, enviou uma comissão para o estado da Pensilvânia para avaliar e estudar o falho sistema, dado que ainda se investia e apostava na recuperação por este, já que não havia outro meio de reclusão mais eficaz. Buscava-se, pela iniciativa do governador, evitar as mortes e as consequências catastróficas do sistema adotado até então. Assim, é possível afirmar, na linha da doutrina de Melossi e Pavarini (2006, p. 191), que o sistema auburniano tinha como base o: [...] solitary confinement durante a noite e o common work durante o dia. O princípio do solitary confinement manteve, numa certa medida, uma influência não desprezível sobre as modalidades de reclusão, perdurando, ainda, a obrigação mais do que absoluta ao silêncio (às vezes, o sistema de Auburn aparece indicado como silent-system) no intuito de evitar contatos entre os internos e de obrigá-los a uma meditação forçada; foram também valorizadas positivamente as funções atribuídas à disciplina e á educação em geral. Em essência, a originalidade do novo sistema consistia na introdução de um tipo de trabalho de estrutura análoga àquela então dominante na fábrica. Chega-se a esse resultado gradativamente. Num primeiro momento, [prossegue o autor] permitiu-se ao capitalista privado assumir, sob a forma 20 de concessão, a própria instituição carcerária, com a possibilidade de transformá-la, às suas expensas, em fábrica. Num segundo momento, aderiu-se a um esquema de tipo contratual, no qual a organização institucional era gerida pela autoridade administrativa, permanecendo sob o controle do empresário tanto a direção do trabalho do trabalho quanto a venda da produção. Essa última etapa assinalou o momento da completa industrialização carcerária. As peculiaridades desse tipo de organização não se limitavam apenas ao setor econômico, compreendendo também, mais especificamente, fenômenos como a educação, a disciplina e as modalidades no tratamento enquanto tal, efeitos, todos eles, da presença do “trabalho produtivo” no cumprimento da pena. Depreende-se de tal lição que o objetivodo sistema auburniano era a introdução do trabalho no sistema carcerário, como forma de disciplina, de forma conjunta com a meditação solitária, que almejava evitar contatos entre os reclusos. Conforme Bitencourt (2001, p. 87), o sistema auburniano estabeleceu uma nova organização carcerária, dividida em três categorias de reclusos. A primeira contava com presos mais velhos e por aqueles com conduta criminosa reiterada (reincidentes). Para estes era aplicado o isolamento contínuo. A segunda era reservada para condenados a crimes graves, desde que não reincidentes. Nesta categoria era aplicado isolamento três vezes por semana, além de ser concedida a permissão para trabalhar. E a última era reservada para condenados considerados passíveis de reabilitação. O isolamento era aplicado apenas durante a noite, sendo livre o trabalho diurno. Na lição da doutrina supra (2001, p. 88), o trabalho era realizado de forma comum e coletiva, e a comunicação entre os presos era proibida, a regra, aliás, era o silêncio absoluto. A única forma de comunicação permitida era com os guardas, com a devida permissão e sempre em voz baixa, pois acreditava-se que quanto mais próximo do silêncio permanecesse o preso, mais capacidade de respeitar regras e leis ele adquiriria. Trabalhar também tinha o intuito de ensinar um ofício para o recluso, garantindo sua independência financeira a autossuficiência quando fosse liberado. Outra característica marcante do sistema auburniano era a disciplina. De acordo com as palavras de Farias Junior apud Sá (1996, p. 94), o regime disciplinar era próximo ao de rotina militar. Para apoiar a afirmação, elenca a rotina de um recluso do sistema auburniano, conforme segue: a) o condenado ingressava no estabelecimento, tomava banho, recebia uniforme, e após o corte de barba e do cabelo era conduzido à cela, com isolamento durante a noite; b) acordava às 5:30 horas, ao som da alvorada; c) o condenado limpava a cela e fazia sua higiene; d) alimentava-se e ia 21 para as oficinas, onde trabalhava até tarde, podendo permanecer até às 20 horas no mais absoluto silêncio, só se ouvia o barulho das ferramentas e dos movimentos dos condenados; e) regime de total silêncio de dia e de noite; f) após o jantar o condenado era recolhido; g) as refeições eram feitas no mais completo mutismo, em salões comuns; h) a quebra do silêncio era motivo de castigo corporal. O chicote era o instrumento usado para quem rompia com o mesmo; i) aos domingos e feriados o condenado podia passear em lugar apropriado, com a obrigação de se conservar incomunicável. O isolamento constante era prejudicial, e, em contrapartida, a permissão para trabalhar aumentava as chances de o condenado retornar para a vida em sociedade e conviver harmonicamente. O trabalho era, portanto, forma de tratamento capaz de reabilitar uma pessoa desvirtuada pelo crime. Salienta Bitencourt (2001, p. 89) que, infelizmente, a sociedade não reagiu de forma positiva com a inovação proposta por John Jay, pois os condenados ocupavam as vagas de empregos da região, e “o cidadão de bem” ficava sem emprego, além do forte preconceito de não querer ter como companheiro de ofício um ex-condenado, o que fez a população se posicionar contra a implantação do sistema auburniano. O ponto negativo do sistema auburniano, conforme a doutrina supra (2001, p. 89), era a discricionariedade dada aos guardas para manter a disciplina. Não havia previsão legal para o regime disciplinar, ficando a critério das autoridades locais mantê-la, o que, na maioria dos casos, se concretiza por meio de castigos cruéis. Bem verdade é que na conversão dos sistemas penitenciários, seja a citada supra, seja quaisquer outras modificações ao longo da história, foram enfrentadas diversas dificuldades. A falta de legislação, no caso do sistema auburniano, era o maior problema. A reabilitação do preso dava lugar ao oportunismo das autoridades, que agiam de forma pessoal ou ainda com intenções de manipulação eleitoral. Por derradeiro, necessário se faz explanar sobre a origem do sistema progressivo, sistema este cuja essência é aplicada em nosso ordenamento jurídico até os dias de hoje. Nas palavras de Bitencourt (2001, p. 96), em meados do século XIX, a pena privativa de liberdade adquiriu, de forma definitiva, a característica de reabilitação do condenado, passando a ser parte essencial de todo sistema penal de um Estado de Direito. Diante da consolidação dos Estados Democráticos de Direito, tais condições 22 de reabilitação precisavam essencialmente de regulamentação. A pena privativa de liberdade foi necessariamente criada no momento em que foram abandonados os sistemas anteriores e adotado o sistema progressivo, segundo o ilustre doutrinador supracitado (2001, p.96), especialmente na Europa, entre o final do século XIX e início do século XX. Sobre o citado sistema, discorre Foucalt (1987, p. 206): Sob a forma, por exemplo, dos três setores: o de prova para a generalidade dos detentos, o setor de punição e o setor de recompensa para os que estão no caminho da melhora. Ou sob a forma das quatro fases: período de intimidação (privação de trabalho e de qualquer relação interior ou exterior); período de trabalho (isolamento mais trabalho que depois da fase de ociosidade forçada seria acolhido como um benefício); regime de moralização ("conferências" mais ou menos frequentes com os diretores e os visitantes oficiais); período de trabalho em comum. Se o princípio da pena é sem dúvida uma decisão de justiça, sua gestão, sua qualidade e seus rigores devem pertencer a um mecanismo autônomo que controla os efeitos da punição no próprio interior do aparelho que os produz. Todo um regime de punições e de recompensas que não e simplesmente uma maneira de fazer respeitar o regulamento da prisão, mas de tornar efetiva a ação da prisão sobre os detentos. Assim, cada um dos três setores tinha função essencial no sistema adotado. O primeiro (em algumas oportunidades dividido em duas seções) tratava da “prova” dos detentos, isto é, o recluso iria provar seu valor por meio do trabalho desempenhado e conversão à moralidade. Os outros dois, basicamente, implicavam nos resultados obtidos no setor de “prova”. Ou o preso recebia a recompensa pelo bom desempenho e disciplina, e progredia rumo à liberdade, ou era submetido à castigos, o que, em tese, faria o recluso repensar suas ações e não repetir seus erros carcerários. Na mesma linha, Bitencourt (2001, p. 97) ensina que a base do sistema progressivo é a distribuição do tempo a cumprir de pena em períodos pré-fixados, de acordo com o merecimento e quantidade de pena cumprida, garantindo determinados privilégios ao condenado que o fizer sem descumprir com a ordem e a disciplina. Tais aspectos, de um ponto de vista sociológico, possibilitam um tratamento reformador, e não apenas punitivo pela aplicação da pena privativa de liberdade. A inovação do sistema progressivo foi a possibilidade de o condenado se reintegrar na sociedade antes mesmo do término do tempo a cumprir de pena, regra esta criada para estimular o bom comportamento carcerário. Dentre os sistemas progressivos é possível citar com destaque, consoante a 23 lição de Bitencourt (2001, p. 98), os sistemas progressivos inglês e o irlandês. O primeiro era, conforme a mesma doutrina (2001, p. 99), dividido em três períodos: período de prova com isolamento diurno e noturno; trabalho comum sob silêncio e disciplina; liberdade condicional, concedida como prêmio pelo empenho na recuperação. Por fim, no irlandês, consoante com as palavras de Rusche e Kirchheimer (2004, p. 189), a grande novidade era aremoção do condenado após superar os dois primeiros períodos de reclusão celular, para uma espécie de colônia agrícola, onde iria trabalhar até conseguir a almejada liberdade condicional. Elucidados, portanto, os fatores históricos que contribuíram para o sistema penitenciário moderno e para a implantação definitiva da pena privativa de liberdade como sanção basilar de um sistema penal. A seguir, observar-se-á o funcionamento e as espécies de prisões no ordenamento jurídico brasileiro, para assim, com suficiente base, se torne capaz a pormenorização do tema em pauta, a audiência de custódia com objetivo de avaliar a prisão em flagrante delito. 24 CAPÍTULO 2 – O SISTEMA PROGRESSIVO BRASILEIRO E AS PRISÕES ADOTADAS O Brasil, como Estado Democrático de Direito, estabelece a soberania interna por meio de diversas regras, dentre elas a legislação penal material, a processual e as regras especiais, como, por exemplo, a execução das penas impostas pelo judiciário ao proferir sentença ou acórdão, dos quais não houver mais possibilidade de ingresso de recursos. De acordo com a doutrina de Capez (2012, p.18), o Direito Penal tem como missão: [...] proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas pela intimidação coletiva, mais conhecida como prevenção geral e exercida mediante a difusão do temor aos possíveis infratores do risco da sanção penal, mas sobretudo pela celebração de compromissos éticos entre o Estado e o indivíduo, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela convicção da sua necessidade e justiça. Para garantia, portanto, do convívio harmônico em sociedade, o Direito Penal foi estabelecido com a fixação de regras. Tais regras regulamentam a aplicação da pena em suas três espécies: pena privativa de liberdade, pena restritiva de direitos, bem como a pena de multa. Ainda, nas palavras de Capez (2012, p. 25): O Direito Penal é muito mais do que um instrumento opressivo em defesa do aparelho estatal. Exerce uma função de ordenação dos contatos sociais, estimulando práticas positivas e refreando as perniciosas e, por essa razão, não pode ser fruto de uma elucubração abstrata ou da necessidade de atender a momentâneos apelos demagógicos, mas, ao contrário, refletir, com método e ciência, o justo anseio social. Com base nessas premissas, deve-se estabelecer uma limitação à eleição de bens jurídicos por parte do legislador, ou seja, não é todo e qualquer interesse que pode ser selecionado para ser defendido pelo Direito Penal, mas tão somente aquele reconhecido e valorado pelo Direito, de acordo com seus princípios reitores. O Direito Penal, portanto, tem papel essencial no equilíbrio da relação entre Estado e povo, visto que, além de coibir a prática de infrações, também limita a atuação do Estado à previsão legal, haja vista que a Administração Pública é regida pelo Princípio da Legalidade, isto é, lhe é permitido agir apenas em razão de Lei. Desta feita, observados superficialmente alguns aspectos do Direito Penal em um Estado Democrático Direito, necessário se faz aprofundar o estudo das prisões reguladas pela legislação penal brasileira. 25 2.1 – Das prisões em espécie e suas particularidades No que diz respeito às prisões no ordenamento jurídico brasileiro, é possível constatar a existência de duas formas de sua concretização. A primeira espécie trata-se do efetivo cumprimento da pena privativa de liberdade imposta por sentença penal condenatória transitada em julgada, ou seja, irrecorrível. Tal forma de prisão exterioriza a natureza propriamente dita do sistema penal brasileiro, uma vez que, no Brasil, não são permitidas penas corporais ou de torturas psicológicas. Essa modalidade de prisão tem sua regulamentação no texto da parte geral do Código Penal, precisamente entre os artigos 32 e 42, assim como é regulada pela Lei nº 7.210/84, a Lei de Execuções Penais (LEP). Na disposição do artigo 33, do Código Penal: Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi- aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 1º - Considera-se: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado. De acordo com a leitura do dispositivo legal, observa-se a existência de regimes diferenciados para cumprimento da pena privativa de liberdade, no Brasil, com redução gradativa do grau de privação da liberdade individual. O texto legal elenca três possibilidades de regime: fechado, semiaberto e aberto. O fechado trata-se de reclusão total, a completa restrição da liberdade individual, assegurada, como se verá a seguir, para criminosos de maior periculosidade ou com histórico de vida voltada ao crime (reincidentes). O semiaberto é destinado ao preso que demonstre condições de menor restrição, proporcionando a oportunidade de trabalho. Por fim, o aberto é o regime cumprido a fiscalização de rotina, por órgão próprio, ou na falta dele, em regime domiciliar, tratando-se, em suma, de um regime de autodisciplina. Quanto à fixação dos regimes, veja-se o disposto no §2º, do art. 33 do CP: 26 § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi- aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. § 3º - A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 4º O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. (Incluído pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) Em síntese, o texto legal fixa as regras para fixação do regime de pena, elencando limites de quantum de pena e a situação de primariedade como base para fixação do regime prisional. A diferenciação de regimes se dá pelo sistema adotado no Brasil, qual seja, o sistema progressivo. Em razão do sistema progressivo é estabelecido que, para que o condenado chegue à liberdade, o cumprimento da pena deve ter gravidade gradativa, como, por exemplo, a obrigatoriedade do cumprimento da pena em regime fechado antes de progredir para o semiaberto, e do cumprimento necessário no semiaberto antes de iniciar o cumprimento do restante da pena no aberto. A segunda modalidade de prisão, a qual se dará ênfase no presente trabalho, é a prisão processual, sendo a espécie flagrante o objeto de análise do novíssimo instituto da audiência de custódia. A prisão processual é decretada diante da necessidade cautelar de manter a restrição da liberdade do indivíduo.Nas palavras de Reis e Gonçalves (2013, p. 448): No Código de Processo Penal são previstas duas formas de prisão processual: a prisão em flagrante e a preventiva. Aliás, após o advento da Lei n. 12.403/2011, a prisão decorrente do flagrante passou a ter brevíssima duração, pois o delegado enviará ao juiz cópia do auto em até 24 horas após a prisão, e este, imediatamente, deverá convertê-la em preventiva ou conceder liberdade provisória. A terceira modalidade de prisão cautelar é a prisão temporária, regulamentada em lei especial — Lei n. 7.960/89. Na redação originária do Código de Processo Penal existiam outras duas formas de prisão processual com regras próprias: prisão por sentença condenatória recorrível e prisão por pronúncia. Tais modalidades de prisão, todavia, deixaram de existir em decorrência das Leis n. 11.689/2008 e 11.719/2008. A própria redação do art. 283 do CPP, alterada pela Lei n. 12.403/2011, prevê que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no 27 curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. Reis e Gonçalves (2013, p. 448) explanam também quanto à observância do princípio da presunção da inocência, em consonância com a reclusão cautelar: O princípio constitucional da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, da CF), não impede a decretação da prisão processual, uma vez que a própria Constituição, em seu art. 5º, LXI, prevê a possibilidade de prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada do juiz competente. A prisão processual, entretanto, é medida excepcional, que só deve ser decretada ou mantida quando houver efetiva necessidade (grande periculosidade do réu, evidência de que irá fugir do país etc.). Além disso, o tempo que o indiciado ou réu permanecer cautelarmente na prisão será descontado de sua pena em caso de futura condenação (detração penal). Pois bem. A prisão processual é necessária para garantir a tramitação do processo penal, de acordo com as situações elencadas pela legislação processual penal, especificamente pelos arts. 282 a 318. Para melhor estudo da modalidade processual da prisão, cada uma das subespécies será pormenorizada, conforme segue, prisão em flagrante delito, prisão temporária e prisão preventiva. 2.1.1 – Da prisão em flagrante delito Com previsão expressa no texto Constitucional, a prisão em flagrante é uma das mais comentadas. Conforme o texto do art. 5º, LXI, da CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; A situação de flagrante, pois, tem regulamentação mais detalhada no Código de Processo Penal, que elenca as diversas modalidades em que se entende como situação de flagrante delito, passíveis de prisão. Observa-se, nesse sentido, as palavras de Reis e Gonçalves (2013, p. 449) quanto ao conceito de flagrante: 28 Em princípio, a palavra “flagrante” indica que o autor do delito foi visto praticando ato executório da infração penal e, por isso, acabou preso por quem o flagrou e levado até a autoridade policial. Ocorre que o legislador, querendo dar maior alcance ao conceito de flagrância, estabeleceu, no art. 302 do Código de Processo Penal, quatro hipóteses em que referido tipo de prisão é possível, sendo que, em algumas delas, o criminoso até já deixou o local do crime. Para Avena (2014, p. 857) o flagrante é: [...] é forma de prisão autorizada expressamente pela Constituição Federal (art. 5.º, XI). Rege-se pela causalidade, pois o flagrado é surpreendido no decorrer da prática da infração ou momentos depois. Inicialmente, funciona como ato administrativo, dispensando autorização judicial. Portanto, apenas se converte em ato judicial no momento em que ocorre a sua comunicação ao Poder Judiciário, a fim de que seja analisada a legalidade da detenção e adotadas as providências determinadas no art. 310 do CPP. O flagrante, portanto, trata de situação recente, que evidencia a prática de um crime, tornando mais fácil a caracterização da autoria e materialidade delitiva. O art. 302, do Código de Processo Penal, considera em flagrante delito o agente que: está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Desta feita, passar-se-á, na presente pesquisa, à análise de cada um dos casos em específico. 2.1.1.1 – Flagrante próprio e flagrante impróprio Das hipóteses supracitadas, se enquadram como flagrante propriamente dito as duas primeiras, ou seja, quando o agente é surpreendido cometendo a infração penal ou quando acabou de executá-la. Nesta situação, por exemplo, estaria em situação de flagrante a pessoa que é surpreendida efetuando disparos de arma de fogo contra outra, visto que estaria no decurso dos atos executórios, buscando sua consumação. Também é considerado, tomando a mesma situação como exemplo, se o agente for surpreendido assim que acabar de efetuar os disparos. Nesta hipótese os atos executórios já foram encerrados, e o delito, independente de qual seja o resultado ou tipo que caracterizar-se, estará consumado. Nesta linha, conforme a doutrina de Avena (2014, p. 862), o flagrante próprio: [...] caracteriza-se quando o agente está cometendo a infração penal ou 29 acabou de cometê-la. Na hipótese do inciso I, havendo a interferência de terceiros no momento em que o agente está praticando o fato típico, é comum a figura da tentativa, o que não ocorre no caso do inciso II, contemplando hipótese na qual o delito já foi consumado. Observe-se que, neste último caso, a expressão “acaba de cometê-la” deve ser interpretada de forma total-mente restritiva, contemplando a hipótese do indivíduo que, imediatamente após a consumação da infração, vale dizer, sem o decurso de qualquer intervalo temporal, é surpreendido no cenário da prática delituosa. De outro lado, o fato de coautor ou partícipe estar em situação flagrancial não gera a obrigatoriedade da prisão. Para que todos os envolvidos na atividade delitiva sejam recolhidos ao cárcere é necessário que todos estejam sob a ótica do flagrante. Vale destacar que nos delitos de mera conduta só é possível o flagrante quando consumado o delito, já que impossíveis em sua modalidade tentada. A doutrina de Reis e Gonçalves (2013, p. 450), para fins elucidativos, exemplifica a seguinte situação: [...] em um dia João incentiva Paulo a matar Antonio. Dias depois, Paulo é preso matando a vítima. O envolvimento de João é punível, mas sua participação ocorreu dias antes e ele não pode ser preso em flagrante. Ao contrário, se o partícipe estivesse no próprio local do crime incentivando o assassino a desferir as facadas mortais na vítima e ambos fossem flagrados nesse momento, a prisão em flagrante envolveria o autor do crime e o partícipe. No crime de participação em suicídio, a consumação se dá no momento em que a vítimarealiza o ato suicida e morre ou sofre lesão grave (art. 122 do CP). A conduta de incentivar o suicídio é atípica se a vítima não chega a cometer o ato suicida ou se o realiza e sofre apenas lesões leves. Assim, não é válida a prisão em flagrante daquele que incentiva a vítima a pular do prédio, caso esta não o faça. Vale lembrar que alguns crimes são classificados como permanentes, ou seja, a consumação delitiva é constante. Nessas situações o agente estará sempre em situação de flagrante, visto que o iter criminis não alcança seu final como na regra geral. Nestes delitos, portanto, o flagrante é possível a qualquer tempo. A situação flagrancial própria, de outro lado, não se limita ao ato de deparar- se com o agente executando o crime ou consumando-o. Também é cabível o flagrante daquele agente que acabou de cometer a infração penal. Essa modalidade não se confunde com as hipóteses dos incisos III e IV do art. 302 da Lei Processual Penal. Para que configure efetivamente a modalidade prevista no inciso II do citado artigo, o agente deve ser surpreendido quando, imediatamente, consumou o delito, confundindo-se na maioria dos casos com a primeira hipótese explanada, dado que, em grande parte dos delitos a consumação ocorre em fração pequena de tempo após o início dos atos executórios. 30 Em todo caso, é necessário que o agente ainda se encontre no local onde o delito se consumou para o flagrante ocorra na modalidade própria. As considerações da doutrina de Reis e Gonçalves (2013, p. 450) nos ensinam que: [...] Considerando que nas modalidades flagranciais dos incisos III e IV do art. 302 do CPP o agente é preso após deixar o local do crime, resta para esta modalidade do inciso II a hipótese em que o sujeito é encontrado ainda no local dos fatos, imediatamente após encerrar os atos de execução do delito. É o que ocorre quando vizinhos acionam a polícia por ouvir disparos dentro de uma residência e os policiais, lá chegando, encontram a vítima morta e o homicida ao lado. É evidente, todavia, a necessidade de indícios veementes de que a pessoa encontrada no local é a autora do delito, já que pode se tratar de pessoa que chegou à casa após o assassinato e a fuga do criminoso. A prisão será possível, por exemplo, se a pessoa que estava ao lado da vítima morta estiver na posse da arma usada no crime, ou se os vizinhos disserem aos policiais que ninguém saiu ou entrou da residência após o crime ou até mesmo se a pessoa confessar ter sido a autora dos disparos. Na prática, é muito comum esta modalidade de prisão em flagrante quando ladrões são presos no exato instante em que saem do estabelecimento comercial onde praticavam o roubo. Sendo assim, seja o agente surpreendido durante os atos executórios, seja surpreendido imediatamente após a conclusão da execução delitiva estará ele materialmente em situação flagrancial própria. Lado outro, a legislação prevê circunstância flagrancial com lapso temporal um pouco mais avançado que o supra explanado. A modalidade imprópria do flagrante. O que difere a presente modalidade de flagrante da própria é o momento da perseguição, mas não necessariamente imediata. O agente primordialmente tem de haver deixado o local do crime. O termo “logo após” pressupõe crime consumado, e, por isso, a autoridade policial, a vítima ou eventual terceiro que tenha o conhecimento da autoria delitiva poderá efetuar a perseguição, e, por conseguinte, dar voz de prisão ao delinquente. Para corroborar tal premissa, a lição de Avena (2014, p. 862) preceitua que o flagrante impróprio: [...] ocorre na hipótese em que o agente, muito embora não tenha sido surpreendido cometendo a infração ou acabando de cometê-la, é perseguido, logo após esses atos, de forma ininterrupta pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, sendo, ao final, localizado e preso. Como se vê, para a validade dessa prisão não importa se o sujeito ativo da infração havia apenas iniciado os atos de execução e foi interrompido por circunstâncias alheias à sua vontade, ou, ao contrário, se já havia consumado o seu intento. De qualquer forma, a caracterização do flagrante 31 impróprio exige que a perseguição do agente tenha sido empreendida logo após a consumação ou a prática dos atos executórios interrompidos. Não havendo uma definição preestabelecida em lei quanto ao que seja “logo após”, compreende-se como tal a perseguição que se inicia ato contínuo à execução do delito. Em outras palavras, a situação, por si só, faz-se presumir que o indivíduo é o autor do crime. Ainda, em consonância com o tema, observa-se a explanação de Reis e Gonçalves (2013, p. 451): [...] Premissa dessa modalidade de prisão em flagrante é que o agente já tenha deixado o local do crime, após a realização de atos executórios, e que seja perseguido. A lei esclarece que tal perseguição pode se dar por parte da autoridade (policiais civis ou militares), do ofendido (vítima) ou de qualquer outra pessoa — o que, aliás, tornaria desnecessária a menção aos demais. Não é necessário que a perseguição tenha se iniciado de imediato, muito embora seja evidente a possibilidade de flagrante em tal caso. A perseguição é imediata quando alguém se põe no encalço do agente logo que ele inicia sua fuga do local do delito. A Lei também define a situação de perseguição capaz de ensejar flagrante. O art. 290, §1º, do CPP determina que, estará em efetiva perseguição o agente que: Art. 290. [...] § 1º - Entender-se-á que o executor vai em perseguição do réu, quando: a) tendo-o avistado, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista; b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço. Considerando que a perseguição é essencial ao flagrante, a prisão em flagrante não é possível, por exemplo, nos casos em que o ofendido descobre tardiamente ter sido vítima de crime contra seu patrimônio, após chegar de viagem e constatar a falta de objetos em sua residência. Assim, não há exigência legal para configurar o flagrante que o delito seja consumado, pois o agente pode ter desistido voluntariamente, ou ainda ter sido interrompido por outrem, fugindo imediatamente após executar ações delitivas. Consolidando o entendimento do flagrante impróprio, no que diz respeito à perseguição do agente, destaca-se a respeitosa decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRISÃO EM FLAGRANTE EM 02.12.08. FLAGRANTE IMPRÓPRIO. CARACTERIZAÇÃO. PACIENTE LOCALIZADO LOGO APÓS OS FATOS. DELATADO PELOS DEMAIS SUSPEITOS PERSEGUIDOS ININTERRUPTAMENTE. PRESO EM ATO CONTÍNUO. 32 PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA. 1. Muito embora o paciente não tenha sido apreendido em pleno desenvolvimento dos atos executórios do crime de roubo, nem tampouco no local da infração, foi perseguido, logo após ao fato, sendo localizado e preso poucas horas após o delito, trata-se, portanto, do flagrante impróprio, previsto no art. 302, III do CPP. 2. Ordem denegada, em consonância com o parecer ministerial. (STJ - HC: 126980 GO 2009/0013900-7, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 06/08/2009, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 08/09/2009) Nesse diapasão, para configuração do flagrante impróprio é essencial que haja perseguição do agente o mais depressa possível, ou como o próprio texto legal preceitua, logo após ter cometido a infração, independentemente de quanto tempo leve até que o infrator seja contido pela autoridade policial no fluxo da perseguição.2.1.1.2 – Flagrante presumido ou ficto Outra modalidade flagrancial é o chamado flagrante presumido. Não se tem a certeza absoluta da autoria delitiva, mas há indícios de sua autoria, além da materialidade ainda encontrar-se fortemente presente no ato da abordagem do agente. O texto do art. 302, IV, do Código de Processo Penal disciplina que, é considerado flagrante quem é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser abordado o autor da infração. Não há, assim, a perseguição do agente, mas sim a sua localização por outros meios. Na doutrina de Reis e Gonçalves (2013, p. 452): [...] Nessa modalidade, o sujeito não é perseguido, mas localizado, ainda que casualmente, na posse das coisas mencionadas na lei, de modo que a situação fática leve à conclusão de que ele é autor do delito. É o que ocorre, por exemplo, quando alguém rouba um carro e, algumas horas depois, é parado em uma blitz de rotina da polícia que constata a ocorrência do roubo e, por isso, leva o condutor do veículo até a vítima que o reconhece, ou, ainda, quando o furtador de uma bolsa feminina é flagrado por policiais em uma praça, vasculhando o interior da bolsa minutos após o furto. Note-se que, no último exemplo, o furto considera-se consumado porque a bolsa já havia sido tirada da esfera de vigilância da vítima sem a ocorrência de perseguição imediata. Daí a conclusão de que a prisão em flagrante não significa necessariamente que o furto esteja apenas tentado. O critério do tempo estabelecido pelo legislador é analisado de acordo com o bom senso do julgador, pois cada caso deve ser analisado de forma individual. Em alguns crimes o prazo para prisão em flagrante era mais reduzido, em regra, para 33 delitos menos graves, ao contrário de um crime de homicídio, por exemplo, cuja matéria já foi decidida pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme segue: [...] não há falar em nulidade da prisão em questão, pois, apesar das peculiaridades do caso, restou configurada a hipótese prevista no art. 302, IV, do CPP, que trata do flagrante presumido. A expressão ‘logo depois’ admite interpretação elástica, havendo maior margem na apreciação do elemento cronológico, quando o agente é encontrado em circunstâncias suspeitas, aptas, diante de indícios, a autorizar a presunção de ser ele autor de delito, estendendo o prazo a várias horas, inclusive ao repouso noturno até o dia seguinte, se for o caso” (STJ — RHC 7.622 — 6ª Turma — Rel. Min. Fernando Gonçalves — DJU 08.09.1998 — p. 118-119), [...] tem-se como legítimo o flagrante, atendida a flexibilidade cronológica da expressão ‘logo depois’, de homicida que estava sendo procurado e foi encontrado treze horas após o crime, ainda com o veículo e arma por ele utilizados (art. 302, IV, do CPP). Ocorrendo as hipóteses que autorizam a prisão preventiva e a legitimidade do flagrante, improcede o pedido de liberdade provisória” (STJ — RHC 1.798/RN — 6ª Turma — Rel. Min. José Cândido de Carvalho Filho — DJ 16.03.1992 — p. 3.107). A doutrina de Reis e Gonçalves (2013, p. 453), classifica ainda o flagrante de outras quatro formas, o flagrante provocado, o esperado, o forjado e o retardado. Dentre estas, apenas o esperado é considerado legal pelo Judiciário Brasileiro e passível de ensejar prisão. No flagrante provocado ou preparado o indivíduo é propenso à atividade criminosa, mas em regra nunca é surpreendido em situação que enseje sua prisão. Para combater isso, por exemplo, a autoridade policial, de forma disfarçada, convence o criminoso a praticar novo delito, ficando no aguardo dos executórios e então efetua a prisão. Nesse contexto, o flagrante jamais ocorreria se não houvesse a provocação de terceiro. O flagrante esperado, ao contrário do anterior, é lícito e aceito no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse caso a autoridade policial recebe notícia, em geral anônima, de que determinado delito irá ocorrer em data e local estimado, e, para efetuar a prisão em flagrante delito, aguarda o momento oportuno. Há apenas à espera da autoridade para efetuar a prisão no momento certo. Quanto ao flagrante forjado, além de não estar o agente em flagrante legal, o cometimento do crime em si é uma farsa preparada por outrem, seja autoridade policial ou não. Descoberta a fraude, o denunciante responde pelo crime de denunciação caluniosa, e, se funcionário público, poderá responder até por prática de abuso de poder. 34 2.1.1.3 – Flagrante diferido e a ação controlada Por derradeiro, encerrando a explanação quanto às espécies de flagrantes, tem-se o flagrante retardado, situação vastamente discutida, em razão de seu conflito evidente com o crime de prevaricação. De acordo com os ensinamentos de Reis e Gonçalves (2013, p. 455): Este instituto foi criado pelo art. 2º, II, da Lei n. 9.034/95, para permitir à polícia retardar a prisão em flagrante de crimes praticados por organizações criminosas, desde que as atividades dos agentes sejam mantidas sob observação e acompanhamento, a fim de que a prisão se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação da prova e fornecimento de informações. A mesma providência passou a ser prevista no art. 53, II, da Lei n. 11.343/2006 (Lei Antidrogas), que permite a “não atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível”. Desta feita, o flagrante retardado trata-se do atraso para efetuar a prisão, mantendo o acompanhamento da atividade criminosa, com o intuito de obterem-se provas mais sólidas para o inquérito policial, em regra utilizado nos crimes de tráfico de drogas e outros com envolvimento em organizações criminosas. Importante, outrossim, aponta que a Lei 9.034/95 fora revogada pela promulgação da Lei nº 12.850/2013, cujo texto explana sobre as organizações criminosas e os meios de investigações pertinentes. Assim, em decorrência de tal explanação, e finalizando o estudo das espécies de flagrante, se mostra necessário discutir sobre a ação controlada da autoridade policial. Como conceito de tal ação, tem-se o texto exato do art. 8º da Lei nº 12.850/2013, que determina: Art. 8º. Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações. Em suma, a ação controlada consiste na atividade policial que, em situação de necessária intervenção, retarda sua atividade com intuito de obter maior eficácia no resultado da diligência, seja para possibilitar a prisão de maior quantidade de envolvidos, seja para maior efetividade para a produção de provas. O §1º do artigo de lei supra determina como essencial a comunicação prévia 35 ao juízo competente, para que não se caracterize crime de prevaricação pela autoridade policial, além de eventual responsabilidade administrativa. Por derradeiro, o art.9º do mesmo texto de lei diz que: Art. 9º Se a ação controlada envolver transposição de fronteiras, o retardamento da intervenção policial ou administrativa somente poderá ocorrer com a cooperação das autoridades dos países que figurem como provável itinerário ou destino do investigado, de modo a reduzir os riscos de fuga e extravio do produto, objeto, instrumento ou proveito do crime. Desta forma, além da legalidadeda ação controlada em âmbito nacional, o legislador preocupou-se em proteger a diligência que se estendesse além das fronteiras do país, desde que haja cooperação entre as autoridades de jurisdição externa. Dadas as espécies de flagrante, aceitas e não aceitas no ordenamento jurídico brasileiro, o estudo de outro instituto se faz necessário antes de adentrar-se no cume da presente pesquisa, qual seja, a audiência de custódia, realizada para verificação mais célere da legalidade da prisão em flagrante realizada, bem como da decisão, em tempo hábil, quanto ao relaxamento do flagrante ilegal, à concessão da liberdade provisória ou, ainda, a decretação de prisão preventiva. 36 CAPÍTULO 3 – O INSTITUTO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA Consagrados os conceitos de prisões no ordenamento jurídico brasileiro, passa-se ao estudo do instituto central da presente pesquisa, a audiência de custódia. Em primeira análise, vislumbra-se que a audiência de custódia tem previsão no texto do Pacto Internacional sobre Direitos Civil e Políticos, especificamente em seu art. 9º, item 3: Artigo 9º (...) 3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. A audiência de custódia também tem previsão implícita na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que mais tarde ficou conhecida como "Pacto de San Jose da Costa Rica". O artigo 7º, item 5 da referida convenção disciplina o que segue: Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal (...) 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...) Mais tarde, ambos tratados internacionais foram internalizados no Brasil pelo Decreto 678/92. Pois bem. A audiência de custódia consiste no direito do indivíduo que se encontrar preso, em decorrência de flagrante, de ter sua prisão analisada pessoalmente por autoridade judicial, em tempo razoável. O objetivo de tal audiência, portanto, é, dentro prazo mais curto possível, analisar possível desrespeito aos direitos fundamentais do preso em flagrante, assim como a legalidade de sua prisão, e, em decorrência disso tomar as medidas cabíveis, ou seja, o relaxamento da prisão ilegal, a decretação da prisão preventiva, a concessão da liberdade provisória ou ainda aplicação de medida cautelar diversa da prisão. 37 Embora a previsão legal não esteja contida internamente na legislação pátria de forma expressa, vale ressaltar o entendimento do STF (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009), cujo teor determina que os tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil for signatário incorporam-se em nosso ordenamento jurídico com status de norma jurídica supralegal, assim como da Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o texto do §3º, do art. 5º, da CF, que prevê a validade dos tratados como equivalentes a verdadeiras Emendas Constitucionais. De acordo com a doutrina de Andrade e Alflen (2016, p. 14): O ato jurídico popularmente conhecido como audiência de custódia consiste na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, após a realização de um contraditório entre acusação e defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, além de verificar questões relativas à pessoa do conduzido, em relação a maus-tratos e tortura. Sobre esse aspecto, a audiência de custódia assegura a integridade física e os direitos humanos dos presos, consolidando ainda o direito de acesso à justiça do preso, com a ampla defesa garantida em momento crucial de persecução penal. Trata-se, portanto, de uma garantia do cidadão contra o Estado, condizente com a presunção de inocência. Na lição de Paiva (2015, p. 29) a respeito do tema, o instituto da audiência de custódia: “surge justamente neste contexto de conter o poder punitivo, de potencializar a função do processo penal – e da jurisdição – como instrumento de proteção dos direitos humanos e dos princípios processuais”. Sem dúvida, um dos princípios que pautam o direito estabelecido na CADH é o da presunção da inocência, também conhecido atualmente como não culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Nas palavras de Andrade e Alflen (2016, p.16): O direito à presunção de inocência constitui o princípio inspirador e dirigente por excelência, pois os excessos em sua aplicação cotidiana levam ao questionamento sobre a eventual redução desse princípio à categoria de mito, apesar de a presunção de inocência constituir uma salvaguarda processual dirigida às autoridades para que os inocentes sejam tratados como tal e devam, em princípio, aguardar seu julgamento em liberdade. Nasce, portanto, o direito da análise da prisão em flagrante diante da fragilidade estrutural do sistema carcerário da América Latina, em especial o brasileiro. Outro direito fundamental visado pela Audiência de Custódia é o direito à ampla defesa e contraditório. A Carta Magna consagra, em seu art. 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são 38 assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. De igual forma, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, garante o contraditório e a ampla defesa em seu art. 8º. No cerne da Audiência de Custódia, de acordo com a lição de Andrade e Alflen (2016, p. 19): [...] o ato jurídico que garante a audiência de custódia possibilita ao conduzido seu primeiro contato com o poder judiciário, além da possibilidade real e efetiva de realizar o contraditório, quando ouvido em audiência, relatando os fatos conforme seu ponto de vista, ou mesmo negando-se a falar, sem que o silêncio ali mantido traga qualquer prejuízo em sua soltura ou mesmo na manutenção da prisão, quando for o caso. Mesmo com a apresentação do preso à autoridade policial, o direito ao silêncio lhe é facultado, o que não pode ser usado com o intuito de prejudicá-lo, quanto mais de afastar a necessidade da realização da audiência. O instituto tem como objetivo a garantia do contato pessoal do indivíduo preso com o juiz em 24 horas após sua prisão em flagrante. A legislação brasileira prevê tal prazo para o encaminhamento do auto de prisão em flagrante ao juiz, para que analise a legalidade e a necessidade da manutenção da prisão cautelar. Com essa análise, ainda que superficialmente, é possível afirmar que a apresentação pessoal do preso é capaz de gerar na pessoa do magistrado uma verificação mais humana da situação. É inegável que o volume de expediente forense no Brasil ultrapassa em muito a quantidade de servidores e auxiliares da Justiça, o que ocasiona possíveis e prováveis erros na apreciação do direito de cada ação judicial. Por esse motivo, o contato entre juiz e pessoa presa tem ocorrido meses após a sua efetiva prisão, e, em regra, apenas no dia da realização de audiência de instrução e julgamento. Destaca-se, outrossim, que a Audiência de Custódia caracteriza mecanismo de prevenção e de combate à tortura, objetivando a humanização e a garantia de efetivo controle judicial das prisões provisórias. Obviamente,
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