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Liv Sovik "tropicália pós moderna"

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1 
Revista da Bahia (FUNCEB), No.26, maio 1998, p.60-67 
 
Ponha seu capacete: 
uma viagem à tropicália pós-moderna 
Liv Sovik* 
I. 
O pós-moderno parece com um ambiente virtual. Precisa colocar um capacete 
especial, pesado e cheio de fios, para enxergá-lo. Mesmo assim, só dá para ver o que 
está diante dos olhos, pois é como se a parte fora do alcance do visor não existisse. 
Quando se pensa na arquitetura pós-moderna, por exemplo, é difícil vinculá-la à 
questão da crescente velocidade de circulação da informação, pelo menos igualmente 
importante para a conceituação do pós-moderno. Pior: como num ambiente virtual, 
enquanto olhamos a crítica pós-moderna sabemos que ela só existe como construção, 
como ficção. Nisso, talvez não seja diferente de outras teorias. Mas a dificuldade se 
exacerba com escritores associados ao pós-moderno, como Jean Baudrillard, que 
escrevem textos que são mais crônicas do que teses; o próprio estilo questiona o status 
das afirmações que contêm. Ou como Fredric Jameson, que têm um texto elefantino 
em seu peso, que adjetiva todos os substantivos e qualifica as cláusulas, antes de 
pousar, provisoriamente, como afirmação. Ou outros ainda, como Jacques Derrida, 
cujo propósito explícito é de desestabilizar a própria construção das certezas. 
 
Até com essas dificuldades, o debate em torno do pós-moderno foi o fulcro da 
reformulação da crítica da cultura durante os anos 80 e início dos 90. Nos seus 
termos se discutia, entre outros temas, o impacto das novas tecnologias de 
comunicação sobre a cultura, a despolitização do discurso público pós-1968, a 
desauratização do fazer artístico e do artista e aspectos da indústria cultural que, hoje, 
se discutem mais sob a rubrica da globalização. O propósito geral era de entender a 
nova sensibilidade que se conformava, alguns dizem a partir dos anos 60 e outros 
desde o início dos 70. Grande parte da discussão girava em torno da definição do 
próprio termo “pós-moderno”, como se, desde o interior da realidade virtual, se 
pudesse pensar, “e agora, o que é isso?” 
 
Para os efeitos desta breve reflexão, tomar-se-á como definidoras do pós-moderno as 
idéias do fim da história e do progresso (leia-se, também, da fé nas vanguardas e nas 
utopias). Escreve Gianni Vattimo, 
O pós-moderno se caracteriza não só como novidade em relação ao 
moderno, mas também como dissolução da categoria do novo, como 
experiência do ‘fim da história’, mais do que se apresenta como um 
estádio diverso, mais avançado ou mais atrasado, não importa, da 
própria história. (1987:10) 
 
Ele vincula o pós-moderno à “sociedade de consumo [e à] renovação contínua (dos 
hábitos, utensílios e construções)” (1987:12). O termo chave para entender “o fim da 
modernidade”, como ele resume a tendência, é de Heidegger: Verwindung é a 
superação que não suprime certezas passadas, diferente da superação crítica, 
 
*
 Professora adjunto, Faculdade de Comunicação/UFBA. Autora de tese 
de doutorado defendida na Escola de Comunicações e Artes da 
Universidade de São Paulo em 1994, intitulada, Vaca Profana: teoria 
pós-moderna e tropicália, sobre a qual se baseia esse artigo. 
2 
vanguardista e moderna que conduz ao novo. Com o fim da história e do progresso, as 
metanarrativas explicativas como o marxismo ou o desenvolvimentismo se revelam 
inadequadas, pois não há possibilidade de uma nova síntese, seja pela revolução, seja 
pelo progresso acumulado. Quanto à experiência de verdade, ela é “horizonte e pano 
de fundo no qual discretamente nos movemos” (p.17). 
 
A situação é atribuída a diversos fatores: à velocidade da inovação tecnológica, pela 
qual o novo logo se torna usual e não há mudança de fundo; à compressão espaço-
temporal gerada pela aceleração dos fluxos de informação; à superabundância de 
imagens, colocando em posição de minoria os elementos da vida cotidiana que não 
são representações; e à sociedade de consumo, com a obsolescência quase imediata 
dos novos produtos. Uma preocupação constante, embora pouco explícita, é com o 
significado político do pós-moderno. É a face cultural do neoliberalismo? ou uma 
saudável crítica à hierarquia imposta pela razão instrumental? Alguns, em tom quase 
sério, não chamam o quadro pós-moderno, mas pós-comunista: a origem se 
encontraria na queda do Muro de Berlin. 
 
Quase todos, quando procuram entender onde desemboca o fim das utopias, voltam o 
olhar sobre questões de identidade cultural e da alteridade que é seu contraponto. 
Parece que formam um par a percepção do bloqueio das possibilidades iluministas e a 
da importância do processo de agregação por identificação. São mencionadas, em 
geral, dois extremos do último: a identificação nacionalista e xenófoba, em evidência 
nos Balcãs, e a nova dinâmica política que emerge nos anos 50 e sobretudo 60 com a 
presença crescente de movimentos de negros e outros grupos étnicos discriminados, 
mulheres, homossexuais, ambientalistas. 
 
As explicações das precondições do pós-moderno refletem circunstâncias acintosas 
nos países do hemisfério norte. Mas não dão conta da percepção, no período do auge 
da discussão pós-moderna no Brasil, de que a qualidade pós-moderna - avant-la-
lettre, radical ou postiça - da cultura brasileira merecia estudo e explicação. Desde a 
perspectiva do debate teórico, a importância do tropicalismo ser pós-moderno deriva 
da possibilidade de entender, a partir de circunstâncias diferentes do contexto de 
referência usual, o quadro político-cultural no qual surgem a nova sensibilidade e 
estética. Quanto ao tropicalismo, a importância de ser identificada como pós-
moderna reside nas novas compreensões da cultura brasileira que venha a permitir. 
 
II. 
Para entender se o tropicalismo foi pós-moderno, é preciso verificar sua relação com 
as idéias do progresso e da História. Isso só é possível se lembrarmos do seu contexto 
histórico e musical, definido pelo golpe militar de 1964, de um lado, e, do outro, pela 
presença do iê-iê-iê, com seus significados potenciais de dependência cultural, e da 
música de protesto, de resistência reivindicatória. 
 
Segundo Roberto Schwarz (1992), a politicização do consumo cultural dos estudantes 
e profissionais liberais aconteceu a partir da interrupção do seu contato político com 
as classes populares. Essa intelligentzia teria dedicado aos produtos culturais a ânsia 
represada pela ação política; a frustração das expectativas geradas durante o governo 
Kubitschek seria responsável pela violência das reações nos festivais de música 
popular organizados por canais de televisão. 
 
3 
Quando a tropicália surgiu como manifesto artístico alternativo, a música de protesto 
dominava a cena. Alguns elementos chaves que formam seu discurso encontraram um 
novo tipo de resposta no tropicalismo. Ambas as vertentes musicais se preocupam (1) 
com a questão dos gostos populares e da identidade nacional, isto é, com a relação da 
cultura com a política, e (2) com a necessidade de tomar posição frente à indústria 
cultural e seus produtos mais americanizados. Colocando a questão de forma muito 
esquemática, a inclusão do cafona aponta para a impossibilidade de instrumentalizar a 
música para os interesses populares, pois o próprio povo tem “mau gosto”, sente 
prazeres incompreensíveis pela razão imperante. Assim, a tropicália descarta a utopia 
procurada a partir da cultura popular e da resistência de um povo crescentemente 
consciente e revolucionária. Em segundo lugar, ao incorporar elementos do rock, a 
tropicália acaba declarando que a música não serve para denunciar o imperialismo 
cultural norte-americano. Mais tarde, Caetano Veloso explicou como interpreta o 
feito. Afirma que a cultura musical brasileira é forte o suficiente para reelaborar 
elementos da cultura norte-americana, que resistepela qualidade do que é produzido 
aqui. 
 
A tropicália deixa de lado as utopias da racionalização da ação do povo, incorporando 
não só a bossa nova, mas o rock e a influência estrangeira, e supera as correntes 
músicais existentes sem perder as certezas passadas, num processo de Verwindung. 
Em suma, pela definição do pós-moderno esboçada a partir do fim das utopias e da 
vivência da superação não vanguardista, a tropicália pode, sim, ser chamada de pós-
moderna. 
 
III. 
Vejamos o que ela tem a dizer sobre identidade e alteridade. O discurso da identidade 
brasileira tem duas faces. Primeiro, o Brasil tem seu Outro no Ocidente (ou, nos 
termos atuais, no Norte). Um trecho muito citado de Cinema: Trajetória no 
Subdesenvolvimento, de Paulo Emílio Sales Gomes, é das colocações mais sucintas 
das relações culturais externas e as dificuldades de elaborar uma identidade brasileira 
de afirmações categóricas: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas 
destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa 
construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser 
outro” (1996: 90). Esse vai-e-vem entre o estrangeiro e o brasileiro tem momentos 
em que se procura isolar um do outro. Na época da tropicália o discurso identitário 
predominante era parecido com o da música de protesto. Deixa entender que - pelo 
menos isso! - fosse possível saber o que não é brasileiro. Bossa nova é, por exemplo, 
por um triz; jazz e rock não são. 
 
No discurso de identidade brasileira, o Outro externo é privilegiado, sobretudo como 
referência para a produção cultural, mas existe também um Outro interno: a maioria 
pobre, discriminado. Os conflitos que sua marginalização causam são neutralizados 
na história oficial das relações entre classes (“o povo é pacífico e hospitaleiro”) e 
sobretudo raças (com a “democracia racial”). No discurso oficial sobre a identidade 
nacional, o Eu dominante é entendido como o Outro do Ocidente, enquanto o Outro 
interno é esquecido. 
 
A música de protesto relembra a existência do Outro interno, a população pobre, 
rural, urbana, sertaneja ou negra. A tropicália também o reconhece (veja a capa do 
disco Tropicália). Mas com a incorporação explícita de maus gostos populares e com 
4 
a mistura de estilos e referências culturais, da macumba à industrialização, dos “Três 
Caravelas” do descobrimento à vida solitária na grande cidade, a tropicália chama à 
reexaminação do que é o popular. Além disso, o povo é entendido como público 
consumidor, em lugar de fonte última de cultura e público-alvo de uma arte didática. 
 
A tropicália não se refere só ao repertório de representações do Outro (o pobre, o 
rural, etc.) que comparte com a música de protesto. Em cena, Caetano Veloso jogava 
com múltiplas identidades de gênero: o masculino, o feminino, o feminino-no-
masculino. É um jogo de significados que nega a possibilidade de uma verdade 
simples, objetiva, racionalista. Esse novo jogo corresponde a uma dinâmica cultural 
da qual se tinha pouca consciência na época. 
 
A sociedade de consumo se instala a partir da época do desenvolvimentismo. O álibi 
da sociedade de consumo no hemisfério norte, a igualdade de todos diante do produto, 
era insustentável no Brasil desde o início, mas através da crescente indústria cultural, 
o consumismo consegue atingir a população urbana de classe média, o mesmo público 
da música popular em questão. Desestabiliza valores familiares, religiosas e de 
trabalho, enquanto idealiza o bem-estar físico-psicosocial. Baseada na penúria 
estrutural e o excesso - e não a abundância, a sociedade de consumo tem o efeito da 
violência, segundo Jurandir Freire Costa, em “Sobre a Geração AI-5: Violência e 
Narcisismo” (1984), pois coloca o consumidor frente a desejos irrealizáveis. A 
reação à implantação do consumismo, em diversas partes do mundo, tem sido a busca 
de uma identidade mais polivalente, mais flexível. A importância da androginia em 
músicos populares, objetos dos desejos e de identificação do público, é de encenar 
fantasias de liberdade que são possibilitadas pelo enfraquecimento das amarras de 
família, trabalho e religião, enquanto a experiência dessa liberdade é frustrada pela 
estrutura da sociedade de consumo. 
 
IV. 
Na discussão do pós-moderno são vários os pontos que a tropicália ajuda a definir ou, 
pelo menos, a debater a partir de novas evidências. 
 
1. As pré-condições do pós-moderno não se encontram, necessariamente, no avanço 
tecnológico enquanto tal, na penetração da informática ou na inundação do espaço 
social pelas imagens dos meios de comunicação. A consciência do Brasil ser moderno 
e arcaico ao mesmo tempo e que essa condição é duradoura, que a modernização não 
avança rumo ao seu triunfo, parece equivaler à percepção do progresso tecnológico 
ser rotineiro mas ineficaz em mudar os fundamentos da existência social, na descrição 
de Vattimo. Ambos são igualmente sinais do fim de um utopismo baseado no 
progresso tecno-científico. 
 
2. Dentro dessa convivência do moderno com o arcaico e num quadro de frustração de 
utopismos políticos, a tropicália reagiu claramente contra os autoritarismos do regime 
militar e da esquerda, que instrumentalizava a cultura para fins políticos. Como pano 
de fundo, havia a implantação da sociedade de consumo, que tem seus próprios 
mecanismos autoritários. Assim, o pós-moderno brasileiro enfatiza a importância do 
autoritarismo como condição em que se formula uma estética pós-moderna. 
 
3. A importância do Outro foi resgatada por vários críticos pós-modernos como 
grande ganho da pós-modernidade, na medida em que leva à inclusão, pelo menos 
5 
teoricamente, dos excluídos. A tropicália reafirma que, por natureza, o Outro não está 
disponível para ser instrumentalizado, acionado pela razão política. Pela forma em 
que a tropicália valorizou o Outro como simultaneamente familiar e inefável, ela 
questionou a legitimidade de um narrativa histórica racional, ocidental, onisciente e, 
de quebra, seu poder “civilizatório”. Que o narrador seja um regime militar, a 
esquerda da resistência cultural dogmática, ou o conjunto de discursos sobre bons 
costumes: ele se legitima pela razão. 
 
Em suma, a tropicália vista a partir da crítica pós-moderna faz ressaltar que uma 
estética pós-moderna surge quando a vitória do capitalismo é certa. No meio de um 
consenso da intelligentzia contra o autoritarismo de direita, anuncia outro contra o de 
esquerda. No pêndulo que balança entre a instrumentalização da cultura e seu 
desfrutar, a tropicália dos anos 60 lembra que o Outro excluído do sistema não pode 
ser colocado a serviço de idéias sobre seu próprio bem-estar, apresentando uma 
superação não-vanguardista, um Verwindung de percepção do fim de esperanças 
utópicas. Na medida em que é anti-autoritária, é alegre e dá lugar a um rico jogo de 
sentidos. 
 
E hoje? O regime militar e a censura não existem mais e a esquerda autoritária tem 
influência minúscula. A globalização acabou com a discussão de um Outro brasileiro 
que fosse de uma vez sujeito histórico e culturalmente autêntico. Mesmo assim, a 
tropicália continua em pauta, não só porque se festeja seu trigésimo aniversário, mas 
por haver conseguido formular uma resposta a pressões que são entendidas como 
precursores das que existem hoje. É a definição do que mudou, entre 1968 e 1998, 
que preocupa atualmente. 
 
Encontra-se aqui mais uma afinidade da tropicália com o pós-moderno. Ambos são 
formas para o debate, veículos para discussões de questões recorrentes. Cito alguns 
dos temas elencados no início deste texto: a despolitização do discurso público pós-
1968, a desauratização do fazer artístico e do artista (ou sua re-auratização como 
pensador na mídia, no caso de Caetano Veloso?) e a globalização.Na definição do 
real sentido da tropicália parece residir a compreensão do que se passa hoje, nas 
relações político-culturais internas à sociedade brasileira. Mas o problema é que, com 
o acúmulo de interpretações, a tropicália está parecendo com um ambiente virtual... 
 
REFERÊNCIAS 
Costa, Jurandir Freire. “Sobre a ‘Geração AI-5’: violência e narcisismo”. Violência e Psicanálise. 
Rio de Janeiro, Graal, 1984. 
Gomes, Paulo Emílio Sales. Cinema: Trajetória do Subdesenvolvimento. (Coleção Leitura). São 
Paulo, Paz e Terra, 1996. 
Schwarz, Roberto. “Cultura e Política, 1964-1969”. O Pai de Família e Outros Estudos (2a.ed.). São 
Paulo, Paz e Terra, 1992. 
Vattimo, Gianni. O Fim da Modernidade. Lisboa, Ed. Presença, 1987.

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