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3 Artigo A Arquitetura, sobre a beleza e o tempo na arte Renascentista

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Para Olgária Matos
Plutarco, em “Vida de Péricles” (1958, p. 390), ao descrever as vicissitudes da
prodigiosa empresa arquitetônica e urbanística de remodelação da acrópole
de Atenas, exprime a ventura e a magnificência do feito como um cancela-
mento do tempo consumado pela beleza. “Nas obras de Péricles”, expõe o
autor, “floresce como que uma juventude perene; essas se conservam à visão
indenes ao tempo, quase possuem infuso um ar sempre fresco e uma alma
que não conhece velhice”.
Pronunciadas há mais de cinco séculos do empreendimento, tais palavras
ganham tom e intensidade singulares. A fórmula, todavia, não era inédita. Para
aquém da sistematização helenística da “doutrina das ordens arquitetônicas”,
da analogia entre a beleza dos corpos e a dos templos perquirida pelos arqui-
tetos na Grécia clássica, a exaltação da eterna juventude dos corpos belos, “flor
que não murcha”, arraigava-se em pleno no mais longevo solo do mito. Jean-
Pierre Vernant tem estudado o sentido estético, prioritário, com que os anti-
gos dirigiram seus olhares para o corpo do herói morto em combate. Último
fulgor da juventude, no momento mesmo em que vêm apagadas todas as
manifestações vitais – o vigor, o poder, a força –, na beleza do corpo resplende
a “presença divina”, fundamental à experiência religiosa mítica. Como pon-
dera o filósofo, o antropomorfismo dos deuses não significa que fossem con-
cebidos “à imagem do corpo humano”; para os gregos, pelo contrário,
A arquitetura, o corpo e o espelho
sobre a beleza e o tempo na arte
do Renascimento e em nossos dias*
Mário Henrique Simão D’Agostino
*Este estudo teve ori-
gem na pesquisa Os lu-
gares da cidade, sob coor-
denação da professora
Lucrecia D’Alessio Fer-
rara da FAU-USP.
Tempo Social – USP114
A arquitetura, o corpo e o espelho
[...] em todos os seus aspectos ativos, em todas as componentes do seu dinamismo
físico e psíquico, o corpo do homem remete ao modelo divino como nascente
inexaurível de energia vital, cujo fulgor, quando brilha por um instante sobre um
mortal, a ilumina com um fugaz reflexo de um pouco daquele esplendor que
emana constantemente do corpo dos deuses1.
Corpos de extraordinária beleza, templos esplêndidos, os gregos os
custodiaram no sólido duradouro – aere perennius, marmore perennius. Primigênio,
o kouros arcaico; estátua fúnebre que não consiste propriamente em uma
imagem do jovem guerreiro, mas em um duplo do morto. Perpetuado na
pedra, nesse monumento que mantém sempre acesa a sua fama eterna, ele
não pode ser admirado senão como um corpo sem vida, uma forma inerte,
uma “ausência na presença”2. Sob o alvor da Grécia clássica, adstritos ao valor
da imagem como representação (e não mais, cabe reiterar, um duplo do ser –
divino ou mortal), os escultores almejam seres vivos, insuflando vida, por
assim dizer, em suas estátuas. E malgrado o desterro das artes imitativas
propugnado por Platão, também ele, em diferentes circunstâncias, evocará o
lume, fascínio e plenitude ínsitos na visão do belo. “A Beleza” – lê-se no
Fedro – “pudemos vê-la em todo seu esplendor [...]. Aqui, temo-la surpreen-
dido, resplandecendo em sua mais luminosa clareza, pelo mais clarividente
dos nossos sentidos” (Platão, 1991, pp. 866-867 [250b-d]).
No Banquete, o liame entre o belo e a imortalidade faz-se preeminente.
Cabe, por ora, assinalar um tópos que, sobretudo a partir desse diálogo, será
recorrente nas indagações sobre a arte e o tempo. Se o amor da Beleza, fala o
filósofo pela voz de Diotima, é desejo do bom, “não apenas de tê-lo, mas de
tê-lo sempre”, se o objeto do amor é a “posse constante do bom”, então ele
não é propriamente amor da beleza mas “da geração e da parturição no belo”.
Ação que lhe permite possuir constantemente o bom, só assim ele alcança o
bem maior da imortalidade, pois “é desse modo que tudo o que é mortal se
conserva [...]. É por esse meio, Sócrates, que o mortal participa da imortalida-
de” (Platão, 1966, pp. 162-164 [205a-206e e 208b-c]; 1991, pp. 587-588).
Geração nos corpos, geração na alma, sutil jogo de espelhamentos. Os pais
se vêem no semblante dos filhos, perpetuam-se neles, no outro de si como
um si mesmo. Têm-se assim em um elo de reciprocidades, já anunciado na
correspondência de olhares entre os amantes: “no seu amante, como em um
espelho, é a si mesmo que ama [...], tendo nele um contra-amor que é uma
imagem refletida do amor” (Platão, 1991, pp. 869-870 [255d])3. Em um e
outro, o “mesmo” não significa o igual como idêntico a si. Ver-se no outro,
ter-se no e pelo outro, jamais implica igualá-lo absolutamente a si. Na arte
erótica platônica, a simetria não anula a alteridade. Especulações similares
1. Vernant (2000, p. 13),
“Mortali e imortali: il cor-
po divino”.
2. Cf. Vernant (2001), es-
pecificamente item 1,
“Eídõlon: dal doppio
all’immagine”.
3. Cf. Vernant, “Uno, due,
tre: Eros”, em que o au-
tor comenta: “a relação
amorosa constitui para
cada indivíduo, no lance
que o conduz para um
outro de si, a experiên-
cia da própria incomple-
tude, enquanto atesta a
sua impossibilidade de li-
mitar-se a si mesmo, de
contentar-se com aquilo
que é, de possuir a pró-
pria particularidade, a
própria unidade indivi-
dual, sem buscar desdo-
brar-se no outro e por
meio do outro, objeto do
desejo amoroso” (2000,
p. 139).
115abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
convêm aos rebentos da alma. Na inteligência e demais virtudes, cujos pro-
genitores “são todos os poetas criadores e todos aqueles artesãos que se diz
serem inventivos”, persegue-se por igual o imperecível. “Todo homem pre-
feriria ter filhos de tal índole a tê-los humanos, se dirige os seus olhos a
Homero, a Hesíodo ou aos demais bons poetas e contempla com inveja que
descendência têm deixado de si mesmos, que lhes propiciam imortal fama e
recordação, sendo eles mesmos o que são” (Platão, 1966, p. 170 [209d-e];
1991, p. 588)4. Pela educação, artes, política, ciência, filosofia, enfim, os ho-
mens progridem nos diferentes estádios da ascese à Beleza em si.
Entre “filhos mais belos e mais imortais”, junto a Hesíodo e Homero as
gerações vindouras reúnem arquitetos e suas criações. Filhos de venerável
estirpe, corpos de eterna juventude... Essas duas imagens constituem o áxis
em torno do qual orbitam idéias superlativas para a moderna concepção de
arte (e arquitetura) inaugurada no Renascimento.
A beleza e o mármore
Que coisa é a beleza? Não é luz nem noite. É crepúsculo, um parto
do verdadeiro e do não verdadeiro. Uma coisa intermediária.
GOETHE
Em seu tratado De re aedificatoria, Leon Battista Alberti ([1452] 1989) con-
cebe a beleza como uma correspondência tal entre as partes e o todo que nada
pode ser acrescentado, subtraído ou alterado sem comprometer a unidade do
conjunto5. Na visão do belo assim acolhida (temo-la na letra de Filarete,
Francesco Di Giorgio, Leonardo, Palladio e tantos mais) rutila a imagem da
perfeição. O arquiteto admira nas grandes obras “uma excelência ou perfei-
ção de natureza que estimula o espírito e é subitamente advertida”; como ele,
seus sucessores aditam o epíteto “divina”. Por igual inferência, o Renasci-
mento comparte com os antiqui o desejo de salvaguardar a beleza da caduci-
dade das coisas, reconhecendo na imitação (mímesis) sua principal arma. Do
recurso ao expediente Vitrúvio (1997) fornecia o testemunho. No Livro IV
do De architectura, ao advertir os contemporâneos contra os abusos de orna-
mentação, descrevendo detalhadamente a origem lígnea de cada elemento
do templo dórico, ultima:
Desses elementos, e da obra de carpintaria, os artífices com as suas esculturas
(scalpturis) nas lapídeas e marmóreas edificações dos sacros templos têm imitado as
disposições, e têm ajuizado que se devesse seguir tais invenções (Vitrúvio, 1997,
Livro IV, 2, 2-3, p. 377).
4. Sobre o “amor criativo”
e a inexistência nadou-
trina platônica das idéias
de “um posto para uma
estética autônoma, uma
ciência da arte” (Cassirer,
1998, pp. 46-47).
5. Cf. Alberti ([1452]
1989, livro VI, cap. 2, p.
235; livro IX, cap. 5, p.
453). Sobre a difusão no
Renascimento da con-
cepção albertiana de be-
leza (concinnitas), ver Pa-
nofsky (1985c).
Tempo Social – USP116
A arquitetura, o corpo e o espelho
Como o estatuário que esculpi na pedra a beleza dos corpos, o arquiteto,
“transpondo” em material mais duradouro as disposições dos primeiros tem-
plos, não almeja um simulacro ou engano dos olhos, pretende fazer justiça à
realidade sagrada e atemporal da beleza. Se se deve falar em simulacro, ele não
reside propriamente na contrafação em pedra de algo que ela não é – o
madeiro, o corpo belo –, mas na ilusão de, pelo espelho lapídeo, o artista
salvar definitivamente a beleza sensível do transitório das coisas deste mundo.
“Tudo tem sua vez e hora...” Ainda assim, desde Palamedes, mítico inventor
das letras e das senhas (e, por elas, da voz post-mortem da epístola testamental),
a “arte de duplicar”, com seus diferentes gêneros de cópia, sempre foi e será
um ardil contra a extinção no tempo.
Na tradução do De architectura feita por Cesare Cesariano (1521), à cita-
ção acima acompanha o comentário:
Questa ratione há in si uma Philosophica consideratione: cum sai tute le cose del
mundo se tegano: vel si protegano luna per laltra: ideo ob hanc causam habemus
sempiternum esse mundum (Cesariano, [1521] 1981, Liber Quartus, C. XLVIIIv).
Há tempos essa interpretação era compartilhada pelos arquitetos do Re-
nascimento. Antonio Averlino, dito Il Filarete, dedica ao tema um bom nú-
mero de páginas do primeiro livro de seu tratado. Após a clássica assimilatio
entre arquitetura e corpo humano, tronco das precisões da proporção, o au-
tor exorta o interlocutor a identificar literalmente o edifício com um ho-
mem vivo. Tal como o homem, observa Filarete, o edifício necessita de ali-
mento para viver; caso contrário, adoece e morre. O enfermo debilita-se e
emagrece, o edifício doente apodrece e rui. Sem os devidos cuidados e a
contínua manutenção, o corpo vivo, a pouco e pouco, falece.
Que isto seja verdadeiro – conclui o arquiteto – considere Roma, onde se vê
aqueles edifícios que com maior razão deveriam ser eternos, e porque não tive-
ram alimento, ou seja, não foram mantidos, estão arruinados (Filarete, [c.1460]
1972, Livro I, p. 30).
Segue uma longa lista de indagações sobre os grandes edifícios do passado
então desaparecidos (palácio maior, campidoglio, palácio de Nero, palácio e
teatro de Otaviano, entre outros), na qual o arquiteto invoca reiteradamente a
fórmula interrogativa dove è (onde está?). Como notou Liliana Grassi, tal
recurso retórico remete ao motivo bíblico do Ubi sunt, relacionado à temáti-
ca da caducidade das coisas, do tempo, da morte; entretanto, no contexto em
que Filarete o emprega, o propósito não é despertar pessimismo e desilusão
117abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
diante do mundo, e sim o oposto, zelo pelos “valores da eternidade e da fama,
ambos perseguidos com um correto modo de construir”6. Aquelas obras
admiráveis, guardadas na memória graças aos escritores, sobreviveriam caso
não caíssem no descuido. De fama eterna, jazem irremediavelmente ausentes.
Mas a ilação não se transmuta em desolação: venerando o antigo, o arquiteto
alenta obras perenes, obras com uma vida tão longa quanto a sua fama.
Não era nova a imagem das ruínas como um “corpo morto”. Que se recor-
de a Ruinarum descriptio urbis Romae (1452), de Poggio Bracciolini, na qual os
monumentos decrépitos são comparados ao esqueleto despojado de suas car-
nes. Aqui, como alhures, recobram ânimo as palavras indignadas de Petrarca
perante as ruínas de Roma, evocadoras de um “passado de grandeza” e um
presente “deplorável”7. Nas ilustrações de seu Triumphus temporis, feitas em
fins do Quattrocento e no Cinquecento, a imagem alada do deus Chrónos-Krónos,
devorador dos próprios filhos – uma invenção do Renascimento que aí figu-
ra pela primeira vez –, guia o cortejo, armada com sua foice funesta, em meio
à arquitetura em ruínas (cf. Panofsky, 1985b, pp. 104-105). Mas a aguçada
sensibilidade com respeito à ação do tempo e à distância que separa o presen-
te da Antigüidade não sega a perspectiva: “Quem duvida que Roma poderia
levantar-se de novo, bastando para isso conhecer-se a si mesma?”8
Edifícios admiráveis, dignos de fama... Como bem advertiam Vitrúvio e
Alberti, para abraçar a fama obras duradouras não bastam9. Filarete ([c.1460]
1972, Livro I, p. 30):
Se dos grandes homens fica a fama, no caso do edifício temos quase um efeito
similar: ao seu modo, um pelo outro rende a nós longa fama deles, tal como pelos
escritos temos notícia de muitos homens dignos de grande fama devido às gran-
des coisas que fizeram, isto é, os grandes edifícios que empreenderam; a fama do
edifício se deve à sua magnitude e beleza, assim como do homem, pelas grandes e
belas coisas que tem feito, permanece a fama.
Sempiterna a beleza dos edifícios, eterna a fama! A citação é notável, seja
por reenviar-nos ao commento de Cesare Cesariano, seja pela vertigem a que
submete o leitor com o jogo de intercâmbios entre os termos edificio (edifí-
cio), lettere (escritos) e grandi signori (grandes homens). Em síntese, as pedras do
edifício são similares às da escrita: guardam viva a fama dos homens que o
erigiram – comitentes e arquitetos; ainda mais, conservam-na mesmo quando
desconhecemos quem foram os edificadores. Um pelo outro deliba de igual
éter: espelho da beleza e lápide que fala aos pósteros a grandeza dos seus.
É esse o fascínio que as obras antigas exerceram sobre os primeiros
humanistas. Registros vivos de um passado de glória, dos grandes aconteci-
6. Nota de Grassi em Fi-
larete ([c.1460] 1972, li-
vro I, p. 31); ver também
“Introduzione”, pp. XX-
XXI e XXXVI-VII.
7. Ver Panofsky (1981) [a
carta de Petrarca (1997,
II) foi originalmente ci-
tada por Mommsen];
Garin (1975, cap. IV e V).
A recorrência à imagem
chega até Rafael, que na
Carta a Leão X lamenta
sobre “o cadáver desta
nobre cidade, um tempo
rainha do mundo, hoje
espoliada e destroçada as-
sim miseravelmente”; ver
Choay (1995, p. 43).
8. Petrarca (1997, II; ver
infra o significado da “imi-
tação dos antigos” propos-
ta pelo escritor), apud Pa-
nofsky (1981, p. 39).
9. Cf. Alberti ([1452]
1989), livro II, Proem.;
Vitruvio (1997), Livro
III, Proem., 3, e, sobretu-
do, Livro VI, Proem., 5.
Tempo Social – USP118
A arquitetura, o corpo e o espelho
mentos relatados nos escritos, e, sobretudo, de um modo de vida exemplar (a
virtù antiga), suscitam, nos alvores do Renascimento, um interesse “quase não
visual” (Krautheimer) pelas obras em si. São fundamentalmente um extraor-
dinário livro de pedras. Nicolau V pontua Roma com escritos fixados sobre
os monumentos, conferindo à cidade a alcunha de “o Livro Sagrado dos
pobres” (Biblia pauperum). A prevalência da literatura na aproximação às obras
pretéritas não furta das últimas, porém, a primazia sobre a primeira. Manuel
Chrysolaras justifica em pormenor a superioridade dos vestigia sobre as litterae.
Na Comparação da antiga e da nova Roma (1411), o autor ressalta o quanto as
contribuições de Heródoto e outros historiadores não se equiparam às dos
monumentos: sobre a capacidade de informação acerca do passado, seus rele-
vos e esculturas, registrando as guerras e os prisioneiros, os festivais, altares e
ofertas votivas, “mostram como as coisas eram nos tempos passados e quais as
diferenças entre os povos”, permitindo ver os trajes que usavam, o tipo de
armas e toda sorte de detalhes. Sobretudo, a prevalência dos monumentos
deve-se a que “nos garantem o testemunho de tudo o que aconteceu como
se fosse no presente” (cf. Loewen, 1999, pp.52-57; Smith, 1992, p. 159).
No proêmio ao De re aedificatoria, Alberti repete, ao seu estilo, o argumen-
to de Chrysolaras:
Não é necessário dizer quanto crédito a arquitetura conferiu aos Latinos e a seu
império; diremos apenas que as tumbas e, aqui e ali, tudo o mais visível do passado
esplendor bastam para fazer-nos reputar verdadeiras muitas notícias dos historia-
dores antigos, que de outro modo pareceriam por certo menos confiáveis. [...]
Não existiu um só entre os maiores e mais sábios príncipes que não considerasse
a arquitetura um dos meios mais importantes para dar lustro ao próprio nome
para os pósteros (Alberti, [1452] 1989, pp. 8-9).
O monumento captura no duradouro o transitório, aprisiona no perma-
nente o fugaz. O que a escrita articula para a voz, ele maquina para os olhos.
Mas o poder mnemônico da arquitetura é majoritariamente superior ao das
letras. Por uma parte, assevera-se a sua “melhor visualização dos fatos” em
comparação à literatura. Por outra, sua superioridade deve-se ao modo pecu-
liar de presentificação, vale dizer, sua condição de “testemunho”. A perma-
nência dos monumentos, desde sempre, faz de sua presença algo de irrepro-
dutível. Únicos, como as tumbas.
O tema do triunfo da fama sobre a morte por meio de obras e ações
memoráveis é recorrente entre os humanistas. Na tumba de Leonardo Bruni,
trabalho de Bernardo Rosselino na igreja de Santa Croce, a efígie fúnebre do
secretário florentino não traz as mãos unidas sobre o corpo, como na tradição
119abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
medieval, mas as tem sobre sua Historia fiorentina, em conformidade com os
sarcófagos antigos e paleocristãos nos quais “o emblema do livro significa a
imortalização pela cultura”10. Os mecenas e os príncipes do Renascimento,
sabe-se, ostentarão suas insígnias e seus emblemas junto às obras por eles co-
missionadas, sobretudo os templos, símbolos da renovatio imperii. O mesmo
Alberti dará materialidade à mais extremada expressão desses novos valores. Na
igreja de San Francesco, em Rímini, concebe o frontispício como um arco
triunfal tripartido, cujos arcos laterais portam os sarcófagos de Sigismondo
Malatesta e de sua esposa Isotta, em evidente alusão ao triunfo sobre a morte.
Na lateral do templo, outra seqüência de arcos, contendo sarcófagos com ins-
crições all’antica destinados aos homens ilustres, cortesãos e humanistas da cida-
de, finda por converter todo o edifício em um “grandioso panteão de heróis”11.
Longevos os monumentos, sempre acesa a fama. Excelsas as belezas, mais
intenso o lustro. Por ironia, a superioridade da arte edificatória sobre a escrita
segreda também sua desventura: obra única, irreprodutível, e assim, fadada – tal
a astúcia do tempo.
Não são uniformes os meios de reprodução peculiares a cada gênero artís-
tico. A cópia indefinida de um poema não macula o estilo e o conteúdo do
original; com a arquitetura e demais arti del disegno é diferente12. Sedutor, aqui,
interperlar o passado pela lente da Era da Máquina; que se olhe, por ora, o
significado clássico. Os antigos são contumazes: é um engano considerar as
belas obras como um “produto de cópia”. Os copiadores (e os falsificadores)
de sempre denigrem a arte com o simiesco (e a simulação) – maior a habilidade,
menor o mérito artístico; ignora-se assim o seu arcano: imitar, não copiar. Mas o
que imita o artista? Somente o estulto crê que o escritor imita cegamente um
único modelo, assevera Cícero na abertura do livro segundo do De inventione
(Cicerone, 1998, II, 5-6). Colhendo, “dentre os insignes escritores, dignos de
recordação”, aquilo que neles se tem como o melhor, o orador age de um
modo similar ao famoso Zêuxis. Convidado pelos habitantes de Crotona a
pintar uma imagem de Helena para o templo de Juno, Zêuxis solicitou que se
colocassem à sua disposição as mais formosas virgens da cidade, dentre as
quais escolheu cinco. Então, “transferindo na muda imagem da deusa” a bele-
za dos exemplares viventes, excedeu em perfeição a tudo o jamais visto.
[Zêuxis] – conclui Cícero – não julgava poder encontrar em um só corpo tudo
aquilo que buscava para representar a beleza, pois a natureza não dá a perfeição
absoluta a uma só criatura. Assim, quase temendo não ter o que doar às outras se
a uma só concedesse tudo, [a natureza] oferece a cada uma diferentes qualidades,
não sem acrescer alguma imperfeição (Cicerone, 1998, I, 3-4, p. 199; cf. Sabbatino,
1997, pp. 15-16).
10. Cf. Chastel, “A ‘he-
roicização’ em sentido
humanista tem por resul-
tado uma comemoração
que já não é a da santida-
de cristã, nem a exaltação
de puros méritos terres-
tres e ‘pagãos’, mas o elo-
gio da personalidade es-
piritual que depende
igualmente do aspecto
profano e religioso da vi-
da” (1982, pp. 64-65).
11. A expressão é de Rud-
dolf Wittkower (1988, p.
45); no projeto original
o reclamo à imortalidade
era ainda maior. Nos ar-
cos do frontispício fica-
vam sarcófagos dos fami-
liares de Malatesta e no
centro do templo, sob a
proteção da cúpula, o seu.
As sugestões de deifica-
ção e glorificação pessoal,
quase se sobrepondo à
destinação religiosa do
edifício, não foram bem
recebidas sequer pelos
humanistas e artistas da
época; cf. Chastel (1982,
p. 354).
12. Apenas a escultura as-
semelha-se à escrita. As
cópias obtidas com o
“esvaziado” (molde em
gesso feito diretamente
sobre a obra original)
aproximam-se da “neu-
tralidade” das cópias de
um escrito, e não se iden-
tificam, de todo, com “fal-
sificações”. Entretanto,
embora a técnica fosse
conhecida desde a Anti-
Tempo Social – USP120
A arquitetura, o corpo e o espelho
Cônsonos pintor e orador, no De pictura (1435) Leon Battista Alberti
narra o episódio de Zêuxis como paradigma do meticuloso estudo da natu-
reza a que se empenha o artista, “com olhos e mente”, para bem discernir a
“idéia das belezas”, reputando néscios os que “tentam granjear fama por si
próprios”13. Cícero recomenda colher, entre latinos e gregos, soluções que,
segundo o reto juízo, têm alcançado máxima excelência e beleza. Não se
trata de simples colcha de retalhos, adverte reiteradas vezes o escritor; a uni-
dade entre as partes, outrora “partículas errantes”, supõe uma ordem de coe-
rência a ser alcançada, um rearranjo integral que venha a iluminar a perfeita
disposição do todo. Esse argumento deu aval, no entanto, ao procedimento
oposto: se a imitação prima pela ordem do todo, então a preceptística de
Cícero fornece o melhor modelo. Contra o radicalismo dos ciceronianos
ortodoxos e a degeneração em fórmulas repetitivas e sem élan, autores como
Horácio e Sêneca, reiterando, sob nova luz, a comparação entre Zêuxis e a
oratória, apressaram-se em salvar a imitatio.
Com diligência, professa Horácio, o poeta compõe os seus versos seme-
lhante a uma abelha matinal, a sorver néctar de muitas flores para dele verter
o mel (Carmina, IV, 2, 27-32; cf. Sabattino, 1997, p. 30). Na Carta a Lucílio de
número 84, Sêneca volta à imagem, precisando o desenho: tal como as abe-
lhas, “errando de flor em flor a delibar as aptas ao mel”, o bem discernir
aquilo que colhemos de muitas leituras, reunindo o que é comum e distin-
guindo os pares (“porque as coisas bem distintas se conservam melhor”), não
exime o escritor de “fundir em um único sabor as diversas libações”. A exce-
lência da obra reside propriamente na capacidade de alcançar entre as partes
e o todo uma consonância integral, uma unidade que, rigorosamente falando,
não se manifesta apenas no arranjo do conjunto, mas cinge cada parte com seu
timbre peculiar: “de tal modo que, se aparecer qual a fonte em que bebemos,
também aparecerá que o nosso escrito tem a sua originalidade independente
das fontes” (Sêneca, 2001, Livro XI, 84, 3-6, pp. 603-605)14.
Tal a magnificência da imitatio (e, convém frisar, seu arcano): perpetua a
memória dos maiores aotê-los como modelos, mas nunca se rebaixa à cópia
servil. O distintivo que dá vida à imitação, Sêneca o compara com o tipo de
aparência que existe entre familiares:
Ainda, se na tua obra vier a transparecer o autor que admiras e que está impresso
profundamente na tua alma, desejaria que a similitude fosse aquela de um filho,
não a de um retrato: o retrato é uma coisa morta (Sêneca, idem, 8-9, p. 607).
Nas primeiras luzes do Renascimento, Petrarca revive esse significado
maior da imitação antiga, dedicando-lhe palavras admiráveis:
güidade, só se difunde no
Barroco e, sobretudo, no
século XVIII. Até o final
do Renascimento nada
se compara à incumbên-
cia que Francisco I, rei
da França, encarrega a
Primaticcio em 1540.
Ajudado pelo jovem Vig-
nola, o arquiteto super-
visiona a realização de
moldes das “estátuas mais
famosas que se via em
Roma”, enviando-os à
residência real de Fontai-
nebleau. Segundo as pa-
lavras de Vasari, Fontai-
nebleau converteu-se
“quase em uma nova Ro-
ma”; cf. Haskel e Penny
(1981).
13. Cf. Alberti ([14362]
1989, livro III, § 56, p.
132). O autor, porém, não
menciona pinturas ou es-
culturas como modelo, li-
mitando a imitação dos
antigos a ekphrasis – em
particular, a inventio – na
composição da história,
para a qual “a companhia
dos poetas e oradores traz
aos pintores muito bene-
fício”; cf. livro II, § 53, e
III, § 53, pp. 107 e 128-
129; ver também Sabat-
tino (1997, pp. 21-23).
14. Sigo mais de perto
a tradução de Sabattino
(1997, p. 30).
121abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
Aquele que imita deve cuidar para que o seu escrito seja semelhante, não idêntico
[ao imitado], e que a semelhança não seja como a de um retrato e seu modelo, na
qual quanto maior a aparência mais se elogia o artista, mas, propriamente, como a
de um filho e seu pai. Neste caso, embora costume haver uma grande diferença de
traços individuais, uma certa sombra e, como dizem nossos pintores, um ar per-
ceptível sobretudo no rosto e nos olhos gera essa semelhança que nos recorda o
pai enquanto vemos o filho, e isso de tal modo que, se ele fosse submetido à
medição, comprovar-se-ia que todas as partes eram distintas; alguma qualidade aí
oculta tem tal propriedade. Por isso, temos de tomar cuidado para que, quando
uma coisa seja parecida, não o sejam muitas, e que o parecido fique oculto de tal
forma que só a pesquisa silenciosa da mente possa captá-lo, que ele seja inteligível
mais que descritível. Deveríamos, portanto, recorrer a outra faculdade e tom in-
terno do homem, evitando as suas palavras. Pois um tipo de semelhança está
oculto e outro patente; um faz poetas, o outro símios (Petrarca, 1997, XXIII, 19,
78-94, p. 206)15.
Limiar entre sombra e luz, visível e invisível, diáfano e inefável, recordo e
surpresa... São esses os limites em que se perfila a imitação, ou a beleza. Nessa
divisa, Petrarca concebe o seu programa humanístico. Só aí a aeternitas do belo
inscreve-se plenamente no fluir contínuo da vida. Não uma efígie muda e
vazia dos olhos, refratária à ação do tempo por ceifar do mármore todo veio
de vitalidade; mas uma beleza impregnante, de um silêncio loquaz, a nos dei-
xar atônitos e, por assim dizer, sem ar. Uma beleza que não paralisa o presente
com a feição lapídea do passado, mas o fecunda. Na latência da vida, em suma,
o artista busca energia para o seu ofício. Misterioso jogo de espelhos no qual o
semblante dos antecessores refulge na exuberância de novos, sem roubar-lhes o
lume. Se a arte mantém viva a fama dos antigos, assim o faz não tanto pelo poder
de perpetuidade avistado no espelho da pedra, pela infinita reprodução da cópia
ou perenidade do monumento – todos sujeitos às astúcias do tempo –, mas por
semear na unicidade do vivente a presença do outro.
Embora Filarete não explore as implicações da analogia entre arquitetura
e literatura, foi ele quem melhor expressou, no âmbito da arte edificatória, os
expedientes da imitação definidos por Petrarca – e, fato curioso, assim o fez
seguindo um caminho inverso ao do literato. A este fascinava a possibilidade
da semelhança no seio da diferença; ao arquiteto a manifestação da diferença
até nos mais veementes zelos por semelhança. No rosto retratado por dois
pintores, observa Filarete, a fidelidade ao modelo não apaga “lo stile di ciasche-
duno” (Filarete, [c.1460] 1972, I, 5-20, p. 28). Não há outra imagem mais
reveladora do espírito do tratado. A assimilatio vitruviana entre arquitetura e
corpo humano, radicalizada pela identificação do edifício com um “corpo
15. Cf. Gombrich (1985,
p. 249); o autor externa:
“Não conheço outra
descrição tão notável do
caráter misterioso e es-
quivo da aparência fisio-
nômica” (p. 250). Petrar-
ca escreve a carta em
1366 (ver ainda: “Cabe
seguir o conselho de Sê-
neca, e antes o de Horá-
cio, para que escrevamos
como as abelhas fazem o
mel, sem colher as flores
mas transformando-as em
mel, de modo a fundir
em um a multiplicidade
e variedade, sendo este um
diverso e melhor”; XXIII,
19, 94-97, p. 206).
Tempo Social – USP122
A arquitetura, o corpo e o espelho
vivo”, desperta o autor para a absoluta singularidade que cinge a existência
de toda construção. “Jamais viste nenhum edifício que totalmente fosse um
como outro, nem em similitude, nem em forma, nem em beleza” (Idem, I, 10-
15, p. 16). Singulares como os viventes, têm na variedade e dessemelhança
entre os homens um exemplo a seguir16. Imitar a maniera antica, portanto,
equivale a operar preceitos artísticos cujo valor reside exatamente em suas
infinitas possibilidades expressivas.
Restaurando (ou “inventando”) o léxico das cinco ordens – etrusca, dórica,
jônica, coríntia e compósita – e a sintaxe das comodulações, a imitação dos
antigos rediviva pelos arquitetos tardou a absorver plenamente a riqueza se-
mântica da mímesis. I quattro libri dell’architettura, de Andrea Palladio, publicado
em 1570, alude mais claramente à preceptística clássica. No último dos quatro
o autor recomenda o estudo das inventioni dos edifícios antigos, para, “no mo-
mento e lugar apropriados”, delas se servir o arquiteto com variedade e coe-
rência, “& quanto simil variatione sia laudabile, e gratiosa” (Palladio, [1570] 1980,
Livro IV, p. 4). Colhida do Ars poetica de Horácio e de outros retóricos ilustres,
a orientação repõe a sentença: imitar, não copiar17. Sobre quem devolveu à
arquitetura a belleza e venustà dos antigos Palladio é explícito:
A arquitetura dos tempos de nossos pais, saída daquelas trevas nas quais ficou
longamente como sepulta, começou a deixar-se rever na luz do Mundo. [...]
Bramante foi o primeiro a iluminar a boa e bela arquitetura, que dos Antigos até
aquele tempo tinha permanecido oculta [...] (Idem, IV, p. 64, cap. XVII “Del tempio
di Bramante”).
A confiar no testemunho, só na obra de Bramante os arquitetos consen-
tem que o moderno assimilou o “modo” dos antigos ou, poderíamos dizer, a
latente e inefável presença do modelo (“pai”) na cópia (“filho”), referida por
Petrarca como o lusco-fusco do belo. No primeiro Renascimento, porém,
mais do que os exempla a arte exalta a imitação da natureza18. Como mostrou
Panofsky (1985c), esse “naturalismo” – visto como a lição maior dos antigos –
consistiu o principal obstáculo para o influxo da interpretação metafísica da
beleza no orbe da arte.
Se a visão do belo, ao suscitar a suspensão do tempo naquilo que é por
natureza efêmero, justifica o “desejo de petrificar” dos artistas, pelo rever-
so, incrementa, devido à insensatez dessa coincidentia oppositorum, as des-
confianças de que a beleza não passa de ilusão e engodo. Embora o objeto
admirado se revele a todos sempre como o esplendor da perfeição, os
juízos sobre o belo divergem de pessoa para pessoa, parecendo subverter
toda medida. Caso exista realmente uma ordo universal, como escapar das
16.“De onde procedeu
[tal variedade] é um dos
segredos que não se sabe,
mas creio que Deus as-
sim o fez por mais bele-
za, isto é, que tantas ge-
rações de homens que
são, foram ou serão não
se assemelhem uns e ou-
tros totalmente em toda
particularidade” (Filare-
te, [c.1460] 1972, I, 10-
15, p. 25).
17. Cf. Rensselaer (1982,
pp. 35-44) [Poussin sin-
tetiza o cânone em pin-
tura: “A novidade na
Pintura”, pondera o ar-
tista, “não consiste prin-
cipalmente em um tema
nunca visto, mas na boa
e nova disposição e ex-
pressão, e assim o tema,
de comum e velho, se
converte em singular e
novo.”]
18. Sobre a “imitação da
natureza” e a “imitação
dos antigos” na tradição
clássica, do Renascimen-
to às Luzes, ver Warnke
(1996, pp. 343-368).
123abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
quimeras, da espécie de torpor onírico que envolve a arbitrariedade dos
juízos, alcançado o estado de vigília? Segundo a convicção dos artistas, as
oscilações de juízo são postas à prova e depuradas com o rigoroso estudo
e observação da natureza. Vislumbrando outro caminho, os neoplatônicos
voltam-se para o sentido que a beleza desperta nos espectadores – admira-
ção, arrebatamento, prazer, aut similia.
O amor do belo
Pela poesia e através dela, pela música e através dela a alma entrevê os esplendores além da tumba; e
quando um belo poema enche os olhos de lágrimas, essas lágrimas não são a prova de um excesso de
gozo, mas o testemunho de uma melancolia irritada, de uma postulação dos nervos, de uma natureza
exilada no imperfeito e que queria possuir imediatamente nesta terra mesma um paraíso revelado.
CHARLES BAUDELAIRE
A pulsação vital experimentada na arte, a brisa matinal que inspira, feito
rebento a encher de viço a perfeição delibada dos pretéritos, esteve no foco
de Horácio e Sêneca em notórios escritos a favor do ajuste entre imitatio e
varietas. Mas foi sobretudo Plotino, na tarda-antigüidade, quem cuidou de
não disjungir beleza e vida.
Também neste mundo [...] a beleza está ínsita mais na luz que resplende sobre a
simetria do que na simetria em si. É isto que a torna fascinante. Por que o esplen-
dor da beleza refulge ao máximo grau em um semblante vivo, enquanto em um
semblante morto não se vêem mais que os vestígios, embora a carne e a simetria
daquele vulto não são ainda desfeitas? E entre as estátuas, por que resultam mais
belas as que melhor exprimem a vida do que outras de maior simetria? E um
homem feio, se está vivo, não é talvez mais belo do que um homem, embora belo,
representado em uma estátua?19
Essa luz, esse “acréscimo” à beleza é a Graça, aí residindo a verdadeira
fonte do amor. “Toda forma, de per si, é só isso que é. Torna-se porém desejá-
vel quando o Bem a colore, dando-lhe em certo modo a graça e instilando
Amor em quantos a desejam”20.
No Renascimento, Marsílio Ficino repõe e dá novo vigor às idéias em
tela. Em seu comentário ao Banquete de Platão (1469), o neoplatônico
toma de Orfeu os nomes dados às três Graças ancilares de Vênus, definin-
do os atributos da beleza como Esplendor, Verdor e Letícia. O segundo,
explica, versa sobre “figura e cor”, pois a beleza “floresce sobretudo no
verdor (viriditatem) da juventude” (Ficino, [1469] 1989, Discurso V, 2, p.
90). Pico della Mirandola, em outro comentário a uma canzone d’amore de
19. Plotino, Eneida, VI 7,
22, 24-32, apud Hadot
(1999, pp. 38-39).
20. Idem, VI 7, 22, 5-7 [na
trad. italiana de R. Ra-
dice (2002) a symmetría
grega corresponde à mais
abrangente “harmonia”;
seguimos, porém, a tradu-
ção de Hadot (1999, pp.
38-40), em que o autor
comenta: “se amamos é
porque algo de indefiní-
vel se acrescenta à bele-
za: um movimento, uma
vida, uma aura que a tor-
na desejável e sem os
quais a beleza permane-
ce fria e inerte. [...] No
amor se tem um ‘a mais’,
existe nele qualquer coi-
sa de injustificado. E isso
que nas coisas corres-
ponde a esse a mais é a
graça, é a Vida no seu
mistério mais profun-
do”]. Sobre a concepção
de arte plotiniana não
como “imitação da na-
tureza” mas como “ex-
pressão da essência”, cf.
Grabar (2001, especifica-
mente pp. 43-44).
Tempo Social – USP124
A arquitetura, o corpo e o espelho
Girolamo Benivieri (1486), referenciado no ficiniano, volta à tríade, expon-
do em pormenor o pensamento: ser verde significa “permanecer e durar no
seu ser íntegro e sem transitoriedade alguma”; o homem alcança a pleni-
tude e perfeição do seu ser na juventude, porém, com o correr dos anos,
“sempre perdendo mais e mais o seu vigor e integridade, vem a anular-se
em tudo”. A beleza máxime dos corpos juvenis, objeto de amor e venera-
ção para todos, espelha verdadeiramente a perfeição harmônica persegui-
da pelos artistas. “Toda coisa composta, enquanto dura no seu ser”, obser-
va o autor, “[nela] igualmente dura aquela devida proporção que une as
suas partes, e Vênus não é outra coisa que esta proporção”. Harmonia das
partes entre si e com o todo não se esgota na conformação física, antes
refulge nos “gestos”, na “vivacidade” e na “graça” (Ficino, idem, V, 6, p. 101).
Do esplendor da beleza emana vida. Mas ao contemplarmos a imagem
corpórea da perfeição já nos endereçamos à realidade superior de seu
modelo, a uma segunda Vênus, melhor, primeira. “Onde está a primeira e
verdadeira Vênus, isto é no mundo ideal, ali se encontra também o verda-
deiro verdor, por ser toda natureza inteligível, intransmutável da integri-
dade do seu ser, e em tudo avessa à senilidade” (Pico Della Mirandola,
[1486] 1994, Livro II, pp. 54-55).
Admirando a imagem de um ser perfeito, duradouro, alheio à transito-
riedade, o homem nela reconhece a semelhança com o celestial. A juven-
tude eterna, a natureza divina da imagem lhe encanta e desperta amor. Não
um corpo efêmero, vencido pela matéria, mas um ser que participa do divi-
no e herda dele a sua forma. Subtraindo o corpo, reconhecendo na imagem
uma pálida semelhança com a suprema perfeição de Deus, o homem com-
preende igualmente a ascese da alma. Quando deparamos com um desco-
nhecido, comenta Ficino, “subitamente nos agrada ou não, sem que saiba-
mos a causa desta impressão; porque a alma, impedida com o governo dos
corpos, não vê as formas que por natureza estão dentro dela”. É essa se-
melhança com a Idéia o que suscita o sentido da perfeição. “A composição
do homem na matéria do mundo”, ultima o filósofo, “[por estar a matéria]
muitíssimo distante do artífice divino, mostra-se indigna daquela figura
perfeita. Na matéria melhor disposta aparece mais semelhante, na outra,
menos. [...] neste acordo consiste a beleza, e nesta aprovação o amor”
(Ficino, [1469] 1989, V, 5, pp. 98-99).
Em diversos momentos, Ficino expõe as contradições do naturalismo
em voga na arte. Primeiro, a teoria das proporções harmônicas, reveren-
ciada como princípio único, exclui esteses igualmente legítimas. “Se a
disposição das partes só existe nas coisas compostas” – pondera – “nenhu-
ma coisa simples seria bela” (Ficino, idem, V, 3, p. 93); cores puras, um único
125abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
som, as luzes etc. comportam fruição em si mesmos. Ainda, na complexão da
obra de arte, a coordenação das partes selecionadas da natureza, acirrando a
componente subjetiva na “escolha correta”, exacerba por igual o proble-
ma da origem da idéia do belo. Em última instância, de onde vem o sen-
tido de conjunto? “[Reunindo numa única figura] a beleza absoluta do
gênero humano, que se encontra dispersa em muitos corpos [...] tu [Sócrates]
sabes bem que não a possuis graças propriamente aos corpos mas ao espí-
rito” (Idem, VI, 18, p. 181)21.
Para o filósofo, a arquitetura felicita o melhor exemplo de operação guia-
da pela idéia22. Alberti havia sido contumaz quanto à prévia concepção
(praecogitare, praedefinire, praescribere) da obra a ser edificada, mediante delinea-
mentos (lineamenta)e maquetes (modelo) (cf. Alberti, [1452] 1989, Proem., pp.
5 e 8.; I, 1, pp. 11-12). Com Cesare Cesariano, o modelo se alça a arquétipo
platônico; respaldado na autoridade de Vitrúvio, o comentador vincula as
species dispositionis, isto é, as formas de representação gráfica do arquiteto
(icnografia, ortografia e cenografia), que “em grego são denominadas idéai”, à
sua ambiciosa concepção do desenho como a capacidade de “ver como num
espelho o exemplar da coisa que pretendemos figurar ou operar” (cf. Cesariano,
[1521] 1981, Liber Primus, C. XIIIv)23.
Enquanto forjada na matéria, a perfeição e a excelência da beleza sujei-
tam-se, de modo inexorável, à caducidade e ao desvanecimento. Na breve
vida em que vem à luz exibe, porém, com clareza, sua descendência superior.
Resplandecente, “provoca, do verbo kállos, que quer dizer provoco”, o espec-
tador com a sua graça, assim despertando a rememoração da Idéia. No espe-
lho da matéria, a imagem refletida perde a nitidez do modelo, mas não deixa
de reenviar a ele. Nesse contexto, a mímesis clássica recobra integralmente o
seu matiz metafísico.
Como no jogo de espelhamentos platônico, também em Ficino ([1469]
1989, V, 4, p. 96) o círculo fecha-se quando no semblante amado o amante
reconhece os traços do pai.
O nosso espírito, criado com a condição de estar cercado pelo corpo terreno, [...]
serve durante muito tempo ao proveito do corpo. [...] Daqui resulta que o espíri-
to não reconhece a luz do rosto divino que sempre resplandece nele, até que,
sendo o corpo já adulto e estando desperta a razão, contemple com seu pensa-
mento o rosto de Deus que reluz na máquina do mundo e que é evidente a seus
olhos. Por esta consideração é induzido a contemplar aquele rosto de Deus que
resplandece em seu interior. E posto que o rosto do pai é grato aos filhos, é
necessário que o rosto de Deus Pai seja gratíssimo aos espíritos.
21. O tema foi ampla e
aprofundadamente abor-
dado por Panofsky (1985c,
p. 45-66); cf. também
Sabbatino (1997, p. 216).
Ainda Rafael mantém si-
lêncio sobre o problema
da origem da idéia de
belo, pronunciando um
peremptório “no lo so” na
carta a Castiglione de
1516.
22. Cf. Ficino ([1469]
1989, V, 5, p. 100): “Pri-
meiro o arquiteto conce-
be em seu espírito a ra-
zão e, por assim dizer, a
idéia do edifício; depois,
na medida de suas for-
ças, constrói a casa tal
como a concebeu”.
23. Tafuri pondera que
“a passagem relativa às
‘idéias’assimiladas às ‘espé-
cies de disposição’ pode
ser lida como uma toma-
da neoplatônica que an-
tecipa grande parte da li-
teratura teórica do manei-
rismo sobre o tema da
‘Idea’ ou do ‘disegno’
(pensamos particularmen-
te em Lomazzo, Zuccari
e Scamozzi)” (1978, p.
444). Ver também Alberti,
De statua, e o próprio De
re aedificatoria.
Tempo Social – USP126
A arquitetura, o corpo e o espelho
No Cinquecento, essa concepção desfruta de larga aceitação. A divulgadíssima
Iconologia de Cesare Ripa (1593), redigida no final do século, concebe a
bellezza feminile como uma mulher nua, tendo a cabeça adornada por uma
guirlanda de lírios – hieróglifo da beleza segundo Pierio Valeriano – e
ligustros (alfenas), numa mão um dardo – símbolo da chaga de amor que,
crescendo lentamente, finda irremediável – e noutra um espelho voltado
para fora, “sem espelhar-se nele”. A chave para a compreensão do estranho
gesto com que porta o seu atributo natural está no fato de “a própria beleza
feminil ser um espelho, no qual vendo cada um a si mesmo em melhor
perfeição, pelo amor da espécie se incita a amar-se naquela coisa, onde se
viu mais perfeito, e depois a desejar-se e a fruir-se” (Ripa, [1593] 1992,
Parte Prima, pp. 39-40)24.
Pela beleza dos corpos e pela beleza da alma, os olhos se voltam para o
alto. Enquanto aderem às coisas desse mundo, deixam inadvertido, por muito
tempo, o verdadeiro semblante da Beleza, mas disso não decorre que tal
atividade seja subalterna ou menor. O pensamento de Ficino respalda, em
boa medida, a “dignificação das artes” promovida pelo Renascimento. Como
o Sócrates pintor, amando e gerando a beleza em suas obras, os artistas depu-
ram-na das imperfeições da matéria, dão-lhe realidade em manifestações mais
excelsas; reconhecem, enfim, sua procedência divina. Esse aprendizado ga-
rante a maturidade na intelecção da beleza25. Natural ao mundo corpóreo e
sujeito à ação do tempo, o desejo de engendrar beleza – o amor pela vida –
ao fim e ao cabo conduz a uma única fonte. Duas as Vênus, dois os Amores,
fala Ficino ([1469] 1989, II, 7, p. 40), ambos “honestos e merecedores de
elogio, pois um e outro seguem a imagem divina”26.
Desse ponto de vista, o contraste entre a beleza e o tempo enleva outra
perspectiva, diversa do “triunfo sobre a morte” do primeiro humanismo.
Por certo, a natureza não perde a dignidade recém conquistada, mas sua
excelência e equilíbrio, além de acenar caminho à “imortalidade através
da fama”, culmina por endereçar os olhos a uma esfera superior. Ticiano,
que legou uma das mais encantadoras obras sobre a Venus duplex de Ficino,
não foi menos sensível ao tema do poder do tempo sobre a beleza sensível,
retratado em pinturas onde uma jovem se vê na imagem do espelho27. No
curso do Quinhentos e avançado o século seguinte, a permanência do
motivo paulatinamente se desliga do espírito amável e jovial com que os
artistas do Renascimento cultuaram a beleza. O Velho alado, com “dentes
de ferro”, a portar consigo a grande foice e esse seu novo atributo, nele
espelha um só semblante. Efígie gorgônea dos cristãos, exibe sempre a sen-
tença: vanitas vanitatum, et omnia vanitas (“vaidade das vaidades, tudo é vaida-
de”; Eclesiastes 1,2).
24. No De Amore, a re-
flexão gira em torno da
imagem que o amante
porta consigo (conforme
a fórmula de Xenofonte;
Simpósio, 21-22). “O que
ama”, expõe Ficino
([1469] 1989, II, 8, p. 45),
“esculpi a figura do ama-
do em seu espírito. E as-
sim o espírito do aman-
te se converte em um es-
pelho no qual brilha a
imagem do amado. Ao se
reconhecer no amante, o
amado é empurrado a
amar-lhe”. Raptado pela
beleza do amado, admi-
rando-o em todos os
momentos, o amante cus-
todia a vida do outro, e
vice-versa. Somente pela
“vida daquele que con-
serva o que ele havia per-
dido por negligência”
pode o amante reencon-
trar a si mesmo. Um não
existe sem o outro, assim
inscrevendo-o na reali-
dade do seu ser (idem, pp.
41-46). “Ao amar-te me
reencontro em ti que pen-
sas em mim, e me recu-
pero em ti que conser-
vas o que havia perdido
por minha própria negli-
gência. E o mesmo fazes
tu em mim”(Idem, p. 43).
Ficino, em tom brinca-
lhão, dizia que por amor
havia se transformado na
forma jovem do amigo
Pico della Mirandola; cf.
Kristeller (1988, pp. 297
e 303); Chastel (1982, pp.
290-298; 1954).
25. A maturidade na frui-
ção da beleza coordena-
se ao mote augusteo do
127abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
A beleza vã
E chora [Helena] quando colhe no espelho as rugas senis, e dentro de si indaga
como puderam raptá-la duas vezes. Oh, Tempo devorador,
e tu, invejosa Velhice, queres tudo destruir e pouco a pouco consomes toda coisa
fazendo-a morrer, rosa dos dentes da idade, de morte lenta.
OVÍDIO
Quando o papa Pio II Piccolomini expediu, em 1462, a bula sobre o
urgente programa de conservação e manutenção dos edifícios e vestigia anti-
gos – associados, desde sempre, ao corpo decrépito –, reuniu entre os juízos
dois no mais das vezes conflitantes: os monumentos são um exemplo de exce-
lência a ser seguido, e, por outro ângulo, “permitem perceber melhor a fragili-
dade das coisas humanas” (Choay, 1995, p. 40). Testemunhos da precariedade
das ações e da imprevisibilidade do porvir, as ruínas parecem deslustrar as am-
bições de fama imortal. A essa ilação conduzia o motivo bíblico do Ubi sunt?,
evocado por Isaías (33, 18) e São Paulo (ICoríntios 1, 20). Sem engano,
argüi-se, em vão deixa-se aos pósteros um feito de glória, um legado mate-
rial. Nada perdura, todos os bens terrenos são transitórios, inconstantes. Ao
final, toda a ilusão dos bens granjeados em vida se anula.
Se tais receios e ceticismos jamais desapareceram ao longo do Renasci-
mento – impregnam o Momus de Leon Battista Alberti, contraface de seu De
re aedificatoria, ou o fascínio pelas ruínas no Hypnerotomachia poliphili, de Fran-
cesco Colonna, para citar dois exemplos de vulto –, somente no Maneirismo
e no Barroco reconquistam posto de comando, sob o ímpeto da Contra-
Reforma. Constatando a intensa expressão patética das ruínas na arte do Seis-
centos – e, em particular, na obra de Joachim du Bellay (Le premier livre des
antiquitez de Rome contenant une génerale description de sa grandeur, et comme une
déploration de sa ruine) –, Jan Bialostocki (1973, pp. 192-194) conclui: “As ruínas
de Roma converteram-se finalmente em um motivo didático: o contemplá-las
põe de manifesto a vanidade de todas as coisas terrenas e faz compreender à
consciência que a única possibilidade de redenção se acha em Deus”28.
Sob idêntico páthos, a beleza reduz-se a um bem diminuto, fugaz, uma
“felicidade breve”. Fulgor a se esvair, símbolo da vida que se consome, porta
sempre consigo um sentimento de perda, uma mácula. E aqui, uma vez mais,
repõe-se o veredicto bíblico: por sobre o carpe diem (viva o momento) o
Verbo, os cuidados da fé, o desapego às coisas materiais como verdadeiro
caminho para a “felicidade eterna”. Tal o significado da miríade de pinturas
sobre natureza morta, todas a refletir uma flor que murcha, flor colhida do
Livro de Job (14, 2):
festina lente, ou seja, “len-
tamente rápido”. Só com
a maturidade o arrojo e
a presteza de ação, pró-
prios dos jovens, reali-
zam-se em plenitude,
pois não se perdem na
ansiedade, moderando-se
pela ponderação e pru-
dência no agir. “Um ho-
mem que pudesse jactar-
se da própria vitalidade e
da própria cautela simul-
taneamente”, observa Ed-
gar Wind (1985, pp. 123-
124), “era chamado um
puer senex, ou paedogeron,
isto é ‘jovem velho’”.
26. Como mostrou Wind
(1985, pp. 59-65; 109-
111), nesse ponto Pico
della Mirandola afasta-se
radicalmente do pensa-
mento de Ficino. A con-
cepção da beleza como
discordia concors exclui
identificá-la como atri-
buto de Deus: “Em Deus
não existe beleza porque
a beleza inclui em si qual-
quer imperfeição, ou seja,
o ser composto de algum
modo. [...] Depois Dele
começa a beleza porque
começa a contrarieda-
de”. Plotino e Ficino,
pelo contrário, conce-
bem a beleza verdadeira
como “simples e privada
de partes”.
27. Cf. Panofsky (1992,
pp. 90-95). Sobre o “es-
pelho do tempo”, ver
Cesare Ripa, Shakespea-
re, Bernini, entre outros;
ver também Panofsky
(1985b, pp. 106-107); o
estudo do autor sobre a
Tempo Social – USP128
A arquitetura, o corpo e o espelho
Que como flor sai e é pisado, e foge como a sombra, e jamais permanece num
mesmo estado;
e de Isaías (XL, 6-8):
Soou uma voz de quem me dizia: clama. E eu disse: Que hei de clamar? Toda a
carne é feno, e toda a sua glória é como a flor do campo. Secou o feno, caiu a flor,
porque o hálito do Senhor assoprou nele. Verdadeiramente o povo é feno: Secou-
se o feno, e caiu a flor; mas a palavra de Nosso Senhor permanece para sempre.
Inúmeras as obras sobre a felicidade breve e a eterna, sobre a caducidade
das coisas terrenas e o verdadeiro caminho a ser trilhado. Santiago Sebastián
destaca, porém, uma pintura de Valdés Leal, artista maior da Espanha do sé-
culo XVII, emblemática dos novos ventos. Intitulada Jeroglífico de la vanidad, a
tela reúne, junto às flores que murcham, símbolos da vangloria (um crânio
laureado), da fugacidade do terreno (um putto que sopra bolhas de sabão), das
dignidades efêmeras (coroas reais, um cetro e uma mitra) e das riquezas ilu-
sórias (jóias e moedas); todos eles situados na parte inferior do quadro, em
torno a livros amontoados sob uma esfera armilar, símbolos da atenção dos
homens pelas coisas mundanas, contrapõem-se à imagem do Cristo crucifi-
cado e do Juízo Final, no alto e ao fundo, descortinada pelo anjo mensageiro.
Entre os livros, Leon Battista Alberti e Sebastiano Serlio29. As ruínas cedem
lugar às ambições do Renascimento, todas vãs.
Verdor que fenece, flor que murcha; imagens da transitoriedade dos bens
terrenos. Todavia, como as jóias com que se adorna, a beleza assume feições
mais abstrusas. Sua sedução e encanto, entorpecentes como a própria rique-
za, parecem redundar em quimeras. De símbolo genérico do bem que se
esvai, particulariza-se no de um bem ilusório, um engano. Em contraste com
os valores morais e de fé, o fascínio da beleza física revela-se uma espécie de
prazer “em si”, “sem fim”. Motivo por que, ladeada pela Luxúria, convém aos
que perseguem o prazer pelo prazer. O espelho do tempo há de desvelar, não
um bem efêmero, mas uma fraude.
Entre os oito emblemas da luxúria que Andrea Alciato apresenta em
seu Emblematum liber, de 1531, o terceiro versa sobre O túmulo da meretriz,
qual seja, Lais, famosa prostituta de Corinto que não suportou a passagem
do tempo:
– Que tumba é esta? De quem esta urna?
– De Lais de Efira.
– Ah! Não enrubesceu a Parca ao arruinar tanta beleza?
pintura Amor sagrado e
amor profano permanece
referencial (1985a, pp.
189-237).
28. Sobre Alberti e sua
concepção da vida como
insania, stultitia, ver Garin
(1992, pp. 183-192); sobre
o ambíguo significado das
ruínas e da Antigüidade
no “Hypnerotomachia
poliphili”, cf. Bruschi
(1978, pp. 154-157).
29. Ver Sebastián (1989,
pp. 95-100; 1995, pp.
329-335). Sobre o poder
como vanitas, ver o be-
líssimo “Vanitas” de Praz
(2002, pp. 197-211).
129abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
– Não mais havia beleza, a tinha segado a idade. A cauta velha já havia consagrado
o espelho a Vênus.
– O que significa o cordeiro esculpido que a leoa tem aprisionado com as garras
na parte posterior?
– Nada, apenas como ela agarra seus amantes: o homem é um cordeiro do reba-
nho, o amante é agarrado pelas nádegas (Alciato, [1531] 1993, “Emblema LXXII”,
pp. 108-110)30.
Três décadas antes, Cesare Ripa combinava, sem qualquer desconforto, a
mencionada imagem platônica da “Bellezza feminile” ([1593] 1992, pp. 39-40),
e um dragão como sinal de desconfiança. “O dragão”, adverte, “mostra que,
onde está a beleza, não se deve confiar, pois ali também está o veneno das pai-
xões e da inveja”. Na imagem da “Fraude” o autor destila todo o seu malefício:
Mulher com duas faces, uma de bela jovem, outra de velha feia, será nua até os
seios e vestida com linho amarelo até o meio da canela, terá os pés similares aos de
águia, e cauda de escorpião visível entre as pernas; na mão direita terá dois cora-
ções, e uma máscara na esquerda. Com as duas faces demonstra enganáveis cores
e intenções, o linho significa traição, engano e mutação fraudulenta. Os dois cora-
ções significam as duas aparências do querer e não querer uma mesma coisa. A
máscara denota que a fraude faz aparecer as coisas de outro modo daquele que são.
A cauda de escorpião e os pés de águia significam o veneno oculto, que fomenta
continuamente, como ave de caça, para rapinar outros, ou os bens ou a honra
(Ripa, idem, pp 150-151)31.
Acima de tudo, repudia-se a lascívia, o desejo incontinente excitado pelos
corpos belos, o impulso irrefreável, a obsessão. São desmedidos os poderes e
os enganos da beleza. Presença arrebatadora, como tantas vezes reiterado no
Renascimento, é capaz de animar naquele que a contempla uma dependên-
cia “doentia” por si mesma. Com poder de Pigmaleão, para retomar a ima-
gem de Gombrich, Leonardo da Vinci observa, no Paragone, o enigmático
dom dos pintores de suscitar paixões incontroláveis por suas belezas, como
sucedeua um comprador “perdidamente enamorado” por uma pintura que
havia feito, e que lhe pediu para suprimir os atributos sacros “para poder
beijá-la sem causar estranheza. Por fim, a consciência do comprador prevale-
ceu sobre os seus suspiros e luxúrias, mas foi obrigado a retirar o quadro de
casa” (Gombrich, 1995, pp. 100-101). Contra análogo argumento, Andrea
Fulvio levanta-se, em 1527, desacreditando a antiga história de que o papa
Gregório, o Grande havia ordenado que as mais singelas estátuas do paganis-
mo fossem lançadas no Tiver para que, “cativados por sua beleza”, os fiéis não
30. Cf. também os em-
blemas CXXIV (Sobre a
felicidade passageira),
CLXXXVIII (Que mais
vale inteligência do que
beleza) e CXCV (Con-
vém que se divulgue a
boa fama de uma mulher,
não sua beleza).
31. Panofsky (1985a, p.
209) trouxe à luz a in-
terpretação proposta por
Ripa para as duas Vênus
de Ticiano, vistas como
“Felicità breve” e “Feli-
cità eterna”, objetando:
“sem dúvida, o quadro
de Ticiano não é um do-
cumento de moralismo
neomedieval, mas de hu-
manismo neoplatônico”;
ver também sua análise do
quadro de Bronzino O
descobrimento da luxúria, re-
lacionado à imagem da
fraude supracitada (1985b,
pp. 110-115).
Tempo Social – USP130
A arquitetura, o corpo e o espelho
se afastassem da nova religião (Haskell e Penny, 1981, p. 31). Mas se a política
de repressão religiosa da beleza nua mostrou-se tolerante com as esculturas
antigas do Belvedere, com os artistas modernos, por outra parte, foi inflexível.
No carnaval de 1496, atendendo ao “Rogo delle vanità” de Savonarola e ao
clamor de fra’ Ieronimo, Baccio della Porta, futuro fra’ Bartolomeo de San
Marco, Lorenzo di Credi “e muitos outros” lançaram às chamas inúmeros
desenhos, pinturas e estátuas de nus – “tante pitture e scolture ignude molte di
mano di Maestri eccellenti, e parimenti libri, liuti e canzonieri che fu danno grandíssimo”,
lastima Vasari –, consumidos no simbólico fogo de uma pequena cabana de
estipe e outros lenhos, que, “segundo o costume antigo”, era feita nas praças
e incendiada na noite de terça-feira “con balle amorosi”, nas quais, de mãos
dadas, homens e mulheres giravam em baladas32. Contra os perigos da beleza
vã – pagã – o melhor antídoto é fechar os olhos.
Chaga que, “crescendo lentamente, finda irremediável”, o vulto envolvente
da beleza comuta-se, por fim, nos traços próprios da morte. O elo entre
amantes, que na tradição platônica despertava para a consciência da incomple-
tude do ser e do “modo como os mortais alcançam a imortalidade” (Platão) –
isto é, pela geração no corpo e na alma – eclipsa-se sob o torpor de uma
beleza nefasta, que cega suas presas mantendo-as absortas integralmente com
a plenitude alucinante de sua presença. Veneno dos olhos instilado, convém
frisar, pela balia di amor, pelo furor erótico. As manifestações de amor extremo,
de admiração sem fim, culminam nas expressões patéticas do sublime – ar-
ruinamento da riqueza e da saúde, mortificação etc.33.
Aderente aos corpos, colossal nas estátuas, com abnegação os pastores do
Senhor repeliram os apelos da beleza, “pagãos”. Sem dúvida, desde as figura-
ções primevas do mito perscrutam-se os seus ardis e liames com a morte.
Como expõe Jean-Pierre Vernant, os gregos individualizam duas formas de
desejo partícipes do jogo erótico: “hímeros, o desejo dirigido a um parceiro
presente, ou que está para ser satisfeito, e póthos, o desejo nos confrontos de
um ausente, ou o desejo que sofre por não poder se apagar: o pranto, a
nostalgia”34. A obsessão do belo liga-se sobretudo ao segundo. Portando sem-
pre consigo a imagem vívida do amado, com precisão tal que poderia pintar
seu semblante sem a necessidade de vê-lo (Xenofonte), o seu desejo assimila-
se à angústia própria do luto, no qual o elo com o ente querido não se desliga
nem se completa, portando o fantasma do morto – vívida imagem – como
uma “ausência na presença” (retrato simétrico do apego apaixonado do amante
pela pintura de Leonardo). Consorte da obsessão, a paúra diante da perda
absorve todo desejo no póthos. A miragem da morte – que, cedo ou tarde, há
de recair sobre todos – assume a tácita condição de um “luto” permanente,
no qual o amante se vota à pessoa amada, um constante pressentimento da
32. Vasar i (1993, pp.
590-591); Chastel (1988,
p. 257), “Gli «ignudi» di
Michelangelo”. Sobre os
ritos dionisíacos e apo-
líneos vinculados à edi-
ficação e incêndio de
uma cabana rústica, ver
Rykwert (2002, pp. 155-
206), “Os ritos”, e De-
tienne (1988).
33. Por ironia, apagando
toda conotação pagã, no
amplexo da Morte e da
Beleza a Contra-Refor-
ma igualmente reconhe-
ce o símbolo da compai-
xão, os martírios da Fé.
Insinua-se aqui, entre os
desejos e devoções dos
séculos XVI e XVII,
aquela “beleza medúsea”
que os românticos cul-
tuarão com incontinen-
te fervor; cf. Praz (1999,
pp. 38-46).
34. Vernant (2000, pp.
120-121), “Figure fem-
minile della morte in
Grecia”: “Jogo de ausên-
cia na presença, obsessão
de um ausente que ocu-
pa todo o vosso horizon-
te e que, porém, não se
conseguirá nunca alcan-
çar, porque pertence ao
reino do além. É esta a
experiência que o vivo
faz, no luto, do liame com
um defunto, desapareci-
do no além; e tal é tam-
bém, no enamorado, a
experiência do desejo
naquele tanto de incom-
pletude que esse compor-
ta, na impossibilidade de
ter tudo para si, de pos-
suir completamente e
131abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
ausência. Belezas fatais, como a de Helena, tão somente manipulam os pode-
res peculiares a toda beleza, sempre a se perfilar entre a plenitude e o efêmero,
a presença e a ausência, a possessão e a perda, em suma, entre a vida e a morte.
Abranda-se no Barroco o fogo das perseguições a vanitas corpórea. A con-
cepção clássica da symmetría como harmonia divina, há tempos assimilada ao
corpo de Adão modelado na argila pelo Criador, recupera interesse, sobretu-
do com os estudos da arquitetura e das proporções do templo de Salomão
feitos pelos jesuítas Juan Bautista Villalpando e Hieronymus Pradus, cujo tra-
tado, amálgama de Vitrúvio e dos escritos bíblicos, veio a público em Roma
entre 1596 e 1604. No entanto, esse período também forjou as primeiras armas
para a dessacralização da beleza empreendida no Iluminismo, e, a ela relaciona-
da, a concepção da arte como expressão do Zeitgeist (espírito da época), sempre
atinente a um momento histórico determinado e a nos propiciar como que um
espelho de seu tempo35. Nessa senda desviamos-nos das divisas aqui persegui-
das, rumo à aventura moderna. Mas isso não é de todo verdadeiro.
À guisa de conclusão
A beleza é perigosa.
PAULO LEMINSKI
Disseminam na atualidade formas que buscam atar os edifícios ao tempo.
Efeitos de pátina, pseudo-antigüidades de toda sorte (molduras e colunas,
mobiliários), uma profusão de elementos decorativos all’antica alastra-se por
superfícies as mais diversas – estabelecimentos comerciais, instituições finan-
ceiras, bares e restaurantes, prédios residenciais, casas. Que tempo dão-nos a
ver? Votados a expor marcas do tempo, não denunciam antes o sentido inver-
so? Artificiais, epidérmicos, cenográficos. Tempo acumulado ou tempo que
se persegue? E que distância guarda da frenética corrida contra o tempo dos
nossos dias, emblemática nos prodígios da cirurgia plástica (vale dizer, nestes
rostos onde jamais se fixam sinais de envelhecimento)? Belezas refratárias ao
“sentido do tempo” ou, deveras, sua outra face, reversa?
No início do século XX, o historiador Aloïs Riegl identificou como
traço do homem moderno o seu fascínio pelas “marcas do tempo”. Por certo,
desde o Renascimento o edifício é visto da perspectiva histórica, vale dizer,
seu valor histórico reside propriamente nesse olhar, vislumbre de sua distân-
cia com relação ao presente e da possibilidade de seus lógoi serem revivescidosou não na atualidade. Ao demarcar, quer uma alteridade radical com o passa-
do, quer uma afinidade (pautada na permanência ou poder de atualização de
algumas de suas virtudes), a história constitui a identidade do presente. Mas
para sempre o seu part-
ner sexual. Póthos fúne-
bre e póthos erótico cor-
respondem exatamente;
a figura da mulher ama-
da, cuja imagem obsessio-
na e foge, interfere com
aquela da morte.” Sobre
beleza e morte em Hele-
na, ver Bettini e Brillante
(2002, pp. 84-85).
35. Cf. Gombrich (1991),
“Padre de la historia del
arte: lectura de las leccio-
nes sobre estética de G.
W. F. Hegel (1770-
1831)”; Rykwert (2002),
especificamente capítu-
los 3 e 5.
Tempo Social – USP132
A arquitetura, o corpo e o espelho
aos valores histórico e artístico do monumento Riegl reúne o valor de antigo,
aquele no qual o objeto está “quase completamente sublimado a um simples
mal menor”. Tal valor, esclarece, “não adere à obra no seu estado de formação
originário, mas à idéia do tempo transcorrido desde que ela foi iniciada, o
qual se revela sensivelmente nos traços de antigo” (Riegl, 1995, p. 174). Ma-
nifesto nos sinais de desgaste, de esmaecimento, o tempo apresenta-se aí como
totalmente abstrato, esvaziado de qualquer conteúdo histórico singular.
Afastando-se da atração que a ruína exerceu sobre todo o Setecentos, e, de
modo geral, da poética do sublime, o conceito riegliano não repõe as grandes
divisas que marcam a discussão sobre a memória na modernidade. Não se
trata de contrapor à perspectiva histórica do Renascimento, ou a ratio ilumi-
nista, algo de mais autêntico, florescido no terreno das emoções e afetos, do
singularmente expressivo. Nada aqui remete à “rebelião romântica”, às dis-
tinções entre história oficial e memória afetiva, ou, poder-se-ia acrescentar,
entre memória voluntária e involuntária. Pelo contrário, para Riegl, uma e
mesma disposição de espírito espelha-se nas esteses do histórico e do antigo.
No valor de antigo, “o monumento permanece só um substrato perceptível
e necessário para criar em seu contemplador aquele estado de ânimo que no
homem moderno produz a concepção do natural curso circular do advir e
do transcorrer, do emergir do individual pelo geral e da necessidade natural,
para este último, de voltar a imergir pouco a pouco no geral” (Riegl, 1995, p.
177). Somente o homem moderno pode experimentar tal sentimento diante
da ruína ou do antigo em geral, somente ele, esclarece Riegl, vivencia um
tempo sem amarras. “Chama-se histórico tudo o que passou e que hoje não
existe mais. [...] tudo o que depois tem lugar é condicionado por isso que
existiu antes, e não poderia ser verificado – assim como adveio em realidade –
sem o anel precedente. O nó de toda a concepção histórica moderna é exa-
tamente a idéia de desenvolvimento” (Idem, ibidem). O valor histórico consigna-
se a um conteúdo, impõe a aferição da relevância histórica do edifício; o valor
de antigo, por sua vez, não requer conhecimento algum, apenas um aspecto
antigo – daí o seu “culto moderno” imperar entre as massas: “a pretensão de
validade geral esse novo valor tem em comum com os valores do sentimento
religioso” (Idem, pp. 177-178).
Sob o epíteto de progresso, a profissão de fé no desenvolvimento foi o
lema maior dos séculos XIX e XX – ao menos até a Segunda Guerra Mun-
dial, sabe-se. Transcorrido quase meio século do tom esperançoso das palavras
de Riegl, o culto subjugou-se ao “anjo da história”, e seus escombros. Mas por
que razão o horror diante dos avatares do progresso não corroborou o menos-
cabo do próprio culto? Ainda, se o fascínio pelos sinais de um tempo passado
não mais se coaduna à fé no progresso ou na inevitabilidade histórica do pre-
133abril 2003
Mário Henrique Simão D’Agostino
sente, tampouco se iguala, como seria de esperar, ao sintoma de nostalgia (póthos
fúnebre). Arredio ao presente, o nostálgico mesmo que se iluda sobre o passado
tem nele sempre um endereço certo, utópico ou não. O melhor equivalente
para esse culto abstrato, não orientado a um lugar preciso, é a melancolia. “A
tristeza”, escreve Freud,
[...] é geralmente a reação à perda de um ser amado ou de uma abstração equiva-
lente: a pátria, a liberdade, o ideal [...]. Mas em que consiste o trabalho executado
pela tristeza? [...] O exame da realidade mostrou que o objeto amado já não
existe e exige que a libido abandone todas as relações com o mesmo [...]. Apli-
quemos agora à melancolia os conhecimentos que adquirimos do estudo da tris-
teza. Em uma série de casos, constitui, evidentemente, uma reação à perda de um
objeto amado [...], mas não conseguimos distinguir claramente o que o sujeito
perdeu e devemos admitir que também a ele é impossível concebê-lo claramente
(apud Matos, 1993, p. 165).
Sede de tempo, sedução por um tempo indefinido, desligado da história,
do recordo, dos sentimentos; um tempo desconhecido, que adere às coisas na
condição de apagá-las e apagar-se imediatamente. Ídolo sem rosto a nos obce-
car tem por contrapartida a perda. Mas que outra forma do tempo se impõe
com maior força na nossa sociedade senão exatamente o quantum abstrato? A
indefinição de traços, o vulto nebuloso que obsessiona o homem moderno
parece estar nas antípodas da matemática riegliana.
Da “vitória sobre o tempo”, e do vago sentimento de perda que a assiste,
Martin Heidegger tem nos deixado pungentes palavras:
Todas as distâncias no tempo e no espaço se encurtam. Aonde se podia chegar
somente depois de semanas e meses de viagem o homem agora alcança em uma
noite de vôo. [...] Mas essa pressa de suprimir toda distância não realiza uma vizi-
nhança; a vizinhança não consiste de fato na medida da distância reduzida. Isso que,
em termos de medida, está menos distante de nós graças à imagem cinematográ-
fica ou à voz do rádio pode permanecer distante. Isso que, em termos de distância,
é para nós imensamente remoto pode ser-nos vizinho. Uma pequena distância
não é ainda vizinhança. Uma grande distância não é ainda distância (1976, pp.
109-110).
Para tornar-se familiar, não permanecer distante, é necessário um outro
tempo... Inevitável aqui a comparação com triunfo análogo. Se o cancelamen-
to do tempo não assegura verdadeira vizinhança, a sua supressão em rostos
que “jamais envelhecem” propicia de fato guarida à beleza? Custodiar nessa
Tempo Social – USP134
A arquitetura, o corpo e o espelho
tez imune às marcas do tempo o semblante pétreo da “sempiterna juventu-
de” significa realmente possuí-la? Afinal, onde reside a beleza: na simetria, na
graça dos gestos, no “ar” do rosto e dos olhos? Resplende mais no fulgor ou
no lusco-fusco? Basta a si mesma ou nasce no entreolhar-se do semblante
com o seu espelho? Perguntas todas que nos constrangem a uma última, mais
inquietante: a ambição de apagar o tempo, abreviando-se em um vulto me-
nos frágil, mas não tão duradouro quanto o mármore, não finda por dilatar o
sentimento de impotência diante da morte? Os venerados traços de joviali-
dade confiam a máscara de Gorgó. No entremeio dos velamentos e horizon-
tes postos ao presente, resta indagar o sentido da beleza na vida (e seu duplo).
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Mário Henrique Simão D’Agostino
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Resumo
A revivescência do ideal antigo de “fama eterna” e “perpetuidade” da arte propicia na Renas-
cença novos enquadramentos conceituais do princípio clássico da mímesis. Asseverando a proe-
minência da arquitetura sobre as demais artes, diversos escritos renascentistas vinculam a con-
secução

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