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GÊNEROS E TIPO DE TEXTO Prof a Dr a Lucília do Carmo Garcez Durante muito tempo a noção de gênero se restringia às obras de natureza literária e se circunscrevia a três formas básicas: o épico, o lírico e o dramático. Com as reflexões teóricas, desenvolvidas principalmente por Bakhtin, compreendeu-se que a língua é uma forma de ação social e histórica, e que todas as práticas sociais comunicativas se realizam por meio de formas verbais relativamente estáveis: os gêneros. Assim, sempre que ocorre uma comunicação verbal oral ou escrita, ela se enquadra em um gênero. Essas formas verbais são construções sócio-históricas que se estabelecem naturalmente pela coletividade, ou seja, não são criações individuais ou voluntárias. Constituem eventos discursivos maleáveis, dinâmicos que se delineiam e se estruturam conforme a situação e os objetivos específicos do momento, e são realizados em práticas comunicativas concretas. Os gêneros surgem, desaparecem e misturam-se, constituindo uma lista infinita de possibilidades discursivas. Não há gêneros puros, pois eles se organizam de forma híbrida. Um artigo de opinião pode ser também uma resenha crítica, por exemplo. Caracterizam-se principalmente por seus aspectos sócio-comunicativos e funcionais. Assim, suas propriedades funcionais em relação a seus objetivos, seu estilo, sua composição, o suporte ou canal em que são veiculados, o domínio discursivo ou instância social em que se realizam determinam sua constituição. Um artigo de opinião sobre um filme, publicado no caderno de artes do jornal, pode ser classificado como uma resenha, por exemplo. Vamos imaginar que um jornalista queira escrever para um jornal um texto sobre uma experiência estética que viveu com um bom espetáculo teatral. Para decidir qual gênero utilizar, antes de começar a escrever, o autor tem de estabelecer: Qual o objetivo do texto? Quem serão os leitores? Como será estruturado? Quais as informações que vão compor o texto? Deve decidir também aspectos relativos ao tipo textual predominante. Deve posicionar-se quanto a contar acontecimentos (narrar). Exemplo: Ontem eu fui ao teatro e assisti à peça... apresentar uma reflexão teórica sobre o fato (dissertar). Exemplo: Ir ao teatro e viver a experiência estética proporcionada pela peça... convencer o seu leitor de seu ponto de vista (argumentar e persuadir). Exemplo: É imperdível o espetáculo apresentado pelo grupo de teatro.... apresentar um resumo da peça (descrever). Exemplo: Há dois personagens no palco. O cenário é uma sala de estar de uma casa de aristocratas. Há objetos de valor e o ambiente é luxuoso. O diálogo é cheio de agressividade. Simultaneamente a essas decisões preliminares, tem de decidir também que ponto de vista adotar: quer se colocar de alguma forma no texto? Exemplo: Eu fui, Nós fomos,... Ou prefere se distanciar? Exemplo: Ir ao teatro é uma experiência surpreendente...Quem vai assistir ao espetáculo... tem a oportunidade de ... Outra decisão correlacionada às anteriores diz respeito ao nível de linguagem. Quer um texto mais subjetivo, coloquial, informal e facilitado, ou quer utilizar uma linguagem formal, objetiva, distanciada? Essa decisão vai influir: na estrutura da frase, mais simples ou mais complexa; na escolha do vocabulário; na forma como o autor se dirige ao leitor, citando-o ou não, no texto. Essas decisões estão relacionadas ao objetivo da comunicação e, portanto, sua opção relativa ao gênero depende de suas escolhas e pode ser um artigo de opinião, um depoimento pessoal, uma crônica, uma crítica, uma resenha, uma reportagem, entre outros. Sempre que produzimos uma forma qualquer de comunicação verbal estamos utilizando um dos gêneros disponíveis na nossa cultura. Cada gênero já traz em si algumas escolhas prévias em relação a estruturas básicas de linguagem que são utilizadas pelo redator com certa flexibilidade. Os falantes de uma língua assimilam esses formatos porque convivem com eles nas práticas sociais. Sabem, quase naturalmente, qual é a forma de uma carta, quais são as maneiras de começar uma palestra, as diversas possibilidades de participação em uma conversa, a melhor maneira de contar uma anedota, como relatar um acontecimento... Ao utilizar um gênero numa comunicação verbal oral ou escrita empregamos tipologias variadas de texto. Um gênero é composto por sequências tipológicas diversas, sendo que, geralmente, há um tipo de texto predominante. Enquanto os gêneros são infinitos, os tipos textuais constituem uma lista restrita. Assim, em um romance encontramos prioritariamente sequências narrativas, mas há também sequências descritivas, dialógicas, dissertativas, expositivas e argumentativas que se sucedem e se entrelaçam compondo o enredo. Podem mesmo ocorrer sequências injuntivas, como é o caso de Machado de Assis, que se dirige ao leitor orientando o percurso da leitura: "Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capítulo até ao fim, sem susto nem vexame." Dom Casmurro, cap. 57. "A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo." Dom Casmurro, cap. 119. Os tipos textuais de definem pela natureza linguística intrínseca de sua composição. As escolhas lexicais, os aspectos sintáticos, o emprego de tempos verbais, as relações lógicas estabelecidas definem o tipo textual. No tipo textual narrativo predominam verbos no pretérito passado, há estruturas circunstanciais que indicam acontecimentos, ou seja, ações de agentes no tempo e no espaço. Exemplo: Ontem eu fui ao teatro e assisti a uma peça de Nelson Rodrigues. Os atores se apresentaram de forma magnífica. Há descrições narrativas quando os fatos são apresentados no presente, simultaneamente ao acontecimento, como é o caso da narrativa de um jogo de futebol. Exemplo: O jogador passa pela esquerda. O artilheiro chuta na direção do gol. O goleiro abraça a bola. O tipo textual descritivo se compõe prioritariamente com verbos estáticos no presente ou no imperfeito e complementos circunstanciais. Exemplo: O cenário é deslumbrante. Há luxuosos objetos que revelam a época em que se situa a trama. A sala de estar se compõe de móveis de estilo. Há muitas flores. Ou O cenário era deslumbrante. Havia luxuosos objetos que revelavam a época em que se situava a trama. A sala de estar se compunha de móveis de estilo. Havia muitas flores. A dissertação pode tender à simples exposição de ideias, de informações, de definições e de conceitos. Exemplo: As peças de Nelson Rodrigues tratam de denunciar toda a hipocrisia que paira sobre uma sociedade vítima da repressão sexual. É o seu teatro que abre as portas para a modernidade na dramaturgia brasileira. O tipo dissertativo pode tender também à argumentação (tipo dissertativo-argumentativo), quando organiza as ideias no sentido de persuadir o leitor, de convencê-lo. Os enunciados (argumentos) atribuem qualidades e informações em relação ao objeto ou fenômeno de que se fala no sentido de reforçar uma posição, um ponto de vista. Os argumentos podem ser exemplos, qualidades, depoimentos, citações, fatos, evidências, pequenas narrativas, dados estatísticos entre outros recursos de convencimento. Exemplo: É impossível desconhecer que Nelson Rodrigues é o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos. Foi revolucionário, renovador e ousado em relação ao teatro tradicional. Suas dezessete peças são sucessivamente reeditadas. Sua obra é frequentemente encenada naatualidade. Seus textos são os mais estudados nos cursos de Letras. Os outros tipos textuais podem carregar traços de argumentação, pois numa simples descrição de personagem, por exemplo, o que se deseja é convencer o leitor das características selecionadas para definir aquele personagem. No texto injuntivo há também traços argumentativos, pois há a intenção de convencer o leitor a desempenhar aquela ação de acordo com as instruções. O tipo textual injuntivo está centrado no leitor ou no ouvinte. É composto de verbos no imperativo ou outras formas que incitam à ação, como, por exemplo: é necessário, deve-se, é preciso. É predominante em textos didáticos, manuais, guias, receitas e outros gêneros que transmitem instruções de como realizar alguma ação. Exemplo: Para chegar ao teatro João Caetano pegue o metrô até a Estação Carioca, siga pela Rua da Carioca até a Praça Tiradentes. Esses tipos textuais são utilizados, combinados, entrelaçados e organizados para compor cada um dos gêneros. Geralmente há um tipo textual predominante que contribui para permitir que o texto seja classificado como exemplar de um determinado gênero. Para produzir cada tipo de texto e cada gênero algumas habilidades específicas de linguagem são necessárias, e muitas delas se desenvolvem durante o período de escolarização por meio de atividades de leitura, de análise e de produção de textos. Como já vimos, a lista de gêneros é aberta e pode ser infinita. Observe o quadro abaixo, em que estão listados alguns dos gêneros mais conhecidos. SITUAÇÕES DISCURSIVAS ou DOMÍNIO DISCURSIVO TIPO TEXTUAL PREDOMINANTE HABILIDADES DE LINGUAGEM DOMINANTES GÊNEROS ORAIS OU ESCRITOS LITERATURA POÉTICA EXPRESSÃO POÉTICA VERSO Elaboração da linguagem como forma de expressão da interpretação pessoal do mundo. Poesia Letra de música LITERATURA FICCIONAL NARRAÇÃO Imitação da ação pela criação de enredo, personagens, situações, tempo, cenários, de forma verossímil. conto maravilhoso conto de fadas fábula lenda narrativa de aventura narrativa de ficção científica narrativa de enigma narrativa mítica anedota biografia romanceada romance romance histórico, fantástico, de suspense, de terror, de formação, de amor novela conto paródia CONVIVÊNCIA SOCIAL VÁRIOS Habilidades interacionais. conversa informal telefonema carta pessoal bilhete e-mail telegrama entrevista chats DOCUMENTAÇÃO E MEMORIZAÇÃO DE AÇÕES NARRAÇÃO Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo. relatos de experiências vividas relatos de viagem diário íntimo testemunho autobiografia curriculum vitae ata notícia reportagem crônica social crônica esportiva relato histórico perfil biográfico LEVANTAMENTO E DISCUSSÃO DE PROBLEMAS ARGUMENTAÇÃO PERSUASIVA Sustentação, refutação e negociação de tomada de posição. Aviso Convite sinais de orientação texto publicitário comercial texto publicitário institucional cartazes slogans campanhas – folders cartilhas – folhetos DISCUSSÃO DE PROBLEMAS SOCIAIS CONTROVERSOS DISSERTAÇÃO ARGUMENTATIVA Sustentação, refutação e negociação de tomada de posição textos de opinião diálogo argumentativo carta de leitor carta de reclamação carta de solicitação deliberação informal debate regrado editorial discurso de defesa requerimento ensaio resenha crítica ESTABELECIMENTO, CONSTRUÇÃO E TRANSMISSÃO DE REALIDADES EXPOSIÇÃO INJUNÇÃO Registro e apresentação textual de fatos e saberes da realidade Contratos Declarações Documentos de registro pessoal Atestados Certidões Estatutos Regimentos Códigos Diplomas Certificados TRANSMISSÃO E CONSTRUÇÃO DE SABERES DISSERTAÇÃO EXPOSITIVA Apresentação textual de diferentes formas dos saberes aula texto expositivo conferência artigo enciclopédico texto explicativo tomada de notas resumos resenhas relatório científico registro de experiências científicas INSTRUÇÕES E PRESCRIÇÕES INJUNÇÃO DESCRIÇÃO DE AÇÕES Orientação de comportamentos instruções de uso instruções de montagem bula manual de procedimentos receita regulamento - lei regras de jogo placas de orientação Há muitos outros domínios mais específicos, como o religioso, o do serviço público e da comunicação oficial, o jurídico, o político, o esportivo, o jornalístico, o escolar entre outros. Vários tipos textuais Domínio de estruturas e de formatos específicos. Há muitos gêneros específicos de cada um dos diversos domínios discursivos, como sermão, oração, ofício, requerimento, discurso político, projeto de lei, narrativa esportiva, editorial, anúncio classificado, redação escolar. Adaptação de quadro retirado de Schneuwly Bernard e Dolz, J. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 2010. Podemos considerar que há hipergêneros baseados na situação e no domínio discursivo, como é o caso da correspondência oficial, que se multiplica em vários subgêneros (ofício, memorando, ata, parecer, requerimento etc.); e da redação escolar, que pode se realizar em diversos gêneros mais específicos. Há hipergêneros também quanto à estrutura formal, como é do caso da carta, que pode se realizar com vários objetivos diferentes: carta familiar, carta comercial, carta de amor, carta de leitor etc. Muitos dos gêneros são limítrofes e pertencem a mais de uma classificação. Uma aula, por exemplo, pode ter natureza instrucional, expositiva, argumentativa ou interativa. Pode se confundir com palestra ou com entrevista, como é o caso das arguições empreendidas pelo professor com os alunos. Um artigo de opinião pode também ser considerado uma crítica literária, se seu objeto for um romance e estiver publicado em um veículo dedicado à literatura. Uma redação escolar pode se aproximar de um artigo de opinião e de um editorial. Muitas vezes os gêneros se definem pela situação em que se realizam, pela instância discursiva a que estão vinculados. Assim, não é importante, e provavelmente muitas vezes nem seja possível, uma classificação rigorosa de um texto como pertencente exclusivamente a um gênero específico. No universo escolar, que é um ambiente de aprendizagem, alguns gêneros podem ser estudados e praticados apenas com esse objetivo, pois estão distantes do objetivo comunicacional e da situação original em que ocorrem na vida real. Os professores devem trabalhar com exemplos que permitem uma simplificação de categorias classificatórias para que os alunos tenham uma aproximação didática, de forma antecipada, a cada um dos gêneros mais importantes que circulam nas práticas sociais. É muito importante esclarecer qual é o seu objetivo, qual o seu funcionamento pragmático, em que prática comunicativa ocorre, quais são as suas características essenciais, de que sequências tipológicas é formado, quais as habilidades de linguagem que exige. Sempre que possível, o professor deve aproveitar as situações reais da escola para exercitar gêneros específicos, tais como: carta ao diretor fazendo alguma reivindicação, carta de congratulações para um colega, abaixo-assinadosolicitando alguma providência, artigos e resenhas para o jornal escolar, entre muitos outros. BIBLIOGRAFIA Bronckart, J. P. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999. Dionisio, Angela Paiva, Machado, Anna Rachel, Bezerrra, Maria Auxiliadora. Gêneros Textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. Schneuwly Bernard e Dolz, J. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 2010.
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