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Drogas Antiúlcera Prof. Ezio T. Iff Uma das mais importantes funções do estômago está ligada à digestão das proteínas. Este processo é efetuado por uma enzima denominada pepsina, que hidrolisa as ligações peptídicas que compõem estes constituintes alimentares. A produção desta enzima depende da atividade secretora das chamadas “células principais”, que são um dos tipos de células presentes nas glândulas gástricas. Na realidade, essa enzima é produzida e armazenada na forma de um precursor inativo (ou seja, uma pró-enzima ou zimogênio), denominado pepsinogênio, o que constitui uma estratégia fisiológica importante, uma vez que a estocagem da enzima, na sua forma ativa, resultaria na lise de constituintes proteicos da própria célula. O processo de ativação desta pró-enzima ocorre na luz do estômago, e consiste numa reação de hidrólise, através da qual é removido um peptídio inibidor, presente no pepsinogênio, originando a pepsina ativa. Este processo de ativação se inicia pela ação do ácido clorídrico (HCl) presente no estômago e continua, de forma autocatalítica, pela ação das próprias moléculas de pepsina ativa que vão se formando. Além da sua importância no processo de ativação do pepsinogênio, o HCl gástrico tem a capacidade de provocar a desnaturação das proteínas, contribuindo para a digestão das mesmas. Sua presença assegura um valor de pH fortemente ácido (que pode chegar abaixo de 2,0), adequado à atividade enzimática da pepsina. Ainda mais, este elevado nível de acidez possibilita a destruição de grande parte dos microrganismos presentes no alimento, contribuindo para a prevenção de infecções. Embora o interior do conteúdo gástrico seja fortemente ácido, o pH na superfície das células mucosas é próximo da neutralidade. Isto se deve ao fato da mucosa estar recoberta por uma camada de muco impregnado de bicarbonato de sódio, que a protege contra a ação potencialmente lesiva do HCl. Este efeito citoprotetor é resultado da ação das “células epiteliais superficiais” das glândulas gástricas, que são as responsáveis pela secreção do muco e do bicarbonato. Fig. 1 – Representação esquemática do processo de secreção do HCl gástrico. Explicações no texto. A secreção do HCl gástrico, representada na Fig.1 é feita pelas chamadas “célulasparietais” das glândulas gástricas, sendo regulada pela ação de vários fatores neuro- humorais. Depende da atuação de uma “bomba de prótons”, que secreta H+ para a luz do estômago em troca de K+, que é captado pela célula. Os protons são originários do ácido carbônico (H2CO3) formado na reação de hidratação do gás carbônico, catalisada pela anidrase carbônica. A energia necessária ao transporte ativo do H+ é liberada a partir do ATP, como resultado de ação da enzima H+K+ATPase. Em paralelo à secreção do H+ para a luz do estômago, há passagem de ion bicarbonato da célula para o sangue, elevando temporariamente o pH do mesmo (fenômeno denominado “maré alcalina”). A passagem do HCO3 − para o sangue ocorre juntamente com a entrada de Cl− na célula, o qual é secretado para a luz do estômago juntamente com o ion K+. A atividade da H+K+ATPase pode ser estimulada por aumento das concentrações intracelulares de AMP cíclico (via cAMP-dependente) ou de Ca++ (via Ca++-dependente). A histamina, produzida pelas células do tipo enterocromafim, interage com receptores do tipo H2 presentes na célula parietal, ativando a adenilato ciclase e, desta forma, aumentando os níveis celulares de AMP cíclico. A gastrina e a acetilcolina (ACh) estimulam a produção de HCl através de via Ca++-dependente. No caso da acetilcolina e da gastrina, este efeito estimulante depende, em parte, da ação que elas exercem sobre as células enterocromafins, provocando liberação da histamina. Certas prostaglandinas, como a PGE2 e a PGI2 podem, através da interação com receptores do tipo EP3, inibir a adenilato ciclase, reduzindo a biossíntese de AMP cíclico e, por conseguinte, inibindo a secreção de HCl. Ainda mais, estas substâncias são capazes de atuar sobre as células epiteliais superficiais, promovendo um aumento da secreção de muco e bicarbonato. Estas prostaglandinas são formadas a partir do ácido araquidônico, por ação de uma enzima denominada cicloxigenase, e desempenham um importante papel na citoproteção fisiológica da mucosa gástrica. O conhecimento dos processos envolvidos na secreção gástrica tem possibilitado o emprego de várias drogas no tratamento de lesões da mucosa gástrica, que podem variar desde uma simples irritação local até o aparecimento de úlceras que podem vir a romper-se, provocando o extravasamento do conteúdo gástrico para a cavidade peritonial, com grave risco para a vida do animal. As medidas terapêuticas usadas nestes casos visam reduzir o efeito agressor do HCl sobre o estômago, por meio do emprego de drogas capazes de exercer um ou mais dos efeitos abaixo: a) Inibição do processo de secreção do HCl b) Redução da acidez gástrica, através de reação de neutralização do HCl formado c) Proteção da mucosa gástrica contra a ação agressora do HCl Em muitos casos, a ocorrência de úlceras gástricas está relacionada à presença de bactérias do gênero Helicobacter, que se instalam na mucosa. Nestas situações é necessário que, além das medidas definidas acima, seja feita a administração de drogas capazes de atuar contra essas bactérias. Essas drogas serão objeto de discussão quando tratarmos dos quimioterápicos antimicrobianos. As lesões que ocorrem no tubo digestivo, em consequência da ação lesiva do HCl incluem ainda duas situações clinicamente importantes: a esofagite de refluxo (ou refluxo esofagiano) e a úlcera duodenal. As bases do tratamento desses estados patológicos são, em essência, as mesmas usadas nas úlceras gástricas, as quais serão discutidas a seguir. Antihistamínicos H2 As drogas deste grupo são antagonistas competitivos da histamina, dotados de afinidade pelos receptores H2, que estão envolvidos no processo de secreção do HCl acima discutido. Elas são capazes de inibir a secreção de deste ácido induzida pela histamina e de reduzir significativamente a secreção induzida pela gastrina ou pela acetilcolina, alem de diminuir a secreção basal fisiológica do HCl. Estas drogas são usadas com freqüência no tratamento da úlcera gástrica e situações relacionadas, sendo potentes inibidores da secreção do HCl, embora incapazes de atingir uma inibição total. A cimetidina foi a primeira droga deste grupo a ser usada clinicamente. Ela pode exercer um efeito inibidor sobre algumas isoenzimas microssomais, o que explica o fato de potencializar os efeitos de várias drogas cuja inativação depende dessas isoenzimas; esta propriedade é menos evidente em outras drogas do grupo, como a ranitidina, a famotidina e a nizatidina. Inibidores da Bomba de Protons As drogas deste grupo incluem o omeprazol, o pantoprazol e outras drogas. Elas são capazes de provocar uma inibição quase total da secreção do HCl gástrico. Na realidade, são pró-drogas cuja atividade resulta de sua conversão em produtos ativos (sulfenamidas) capazes de ligar-se à H+K+APTase, inibindo-a irreversivelmente. O efeito inibidor dessas drogas pode ser constatado, em grau significativo, mesmo quando as suas concentrações plasmáticas encontram- se acentuadamente reduzidas. A formação dos produtos ativos ocorre na intimidade da célula parietal, em presença do pH ácido. Assim sendo, o uso de procedimentos capazes de elevar o pH do estômago pode reduzir a formação dos produtos ativos, reduzindo o efeito das drogas.Por este motivo, os inibidores da bomba de prótons devem ser administrados antes do emprego de outros agentes antiúlcera. Análogos Sintéticos de Prostaglandinas Como foi visto, algumas prostaglandinas endógenas são capazes de inibir a secreção do HCl pelas células parietais e de estimular a produção de muco e bicarbonato pelas células epiteliais superficiais. Contudo, a meia-vida extremamente curta dessas substâncias torna-as inadequadas ao uso terapêutico, o que conduziu à busca de análogos sintéticos clinicamente úteis como agentes antiúlcera. O misoprostol, um análogo da PGE1, é uma droga deste grupo usada com esse objetivo. A sua atividade farmacológica depende do ácido resultante da sua metabolização no organismo. Quanto à eficiência clínica, o misoprostol não apresenta vantagens nítidas quando comparado aos antihistamínicos H2 e aos inibidores da bomba de prótons, tendo seu emprego mais direcionado ao tratamento de lesões gástricas decorrentes do uso de antinflamatórios não- esteroidais. Pode produzir aborto como conseqüência de sua capacidade de provocar regressão do corpo lúteo e de sua atividade ocitócica. Antagonistas Muscarínicos Os antagonistas muscarínicos estão incluídos entre as primeiras drogas empregadas com o objetivo de reduzir a secreção do HCl gástrico, apresentando baixa eficiência, o que pode ser atribuído a um efeito inibidor sobre a produção do muco protetor. Em função de sua atividade antimuscarínica são capazes de inibir a secreção de outras glândulas exócrinas, além de provocarem outros efeitos, como a redução da motilidade intestinal e a atonia de bexiga. Por ser um inibidor de ação mais seletiva sobre receptores M1, a pirenzepina tem sido ocasionalmente empregada como droga antiúlcera, embora sua eficiência seja inferior a dos antihistaminicos H2 e dos inibidores da bomba de prótons. Protetores de Mucosa O advento de potentes inibidores da secreção de HCl gástrico fez decrescer o uso de drogas presumivelmente capazes de proteger a mucosa gástrica, algumas das quais ainda são usadas por humanos para automedicação. Esta classe de agentes inclui compostos de bismuto, como o subsalicilato por exemplo, que ao lado de um efeito protetor, é capaz de atuar contra espécies de Helicobacter. Um agente clinicamente importante deste grupo é o sucralfato, que será discutido a seguir. O sucralfato é uma substância formada pela união do hidróxido de alumínio com o octossulfato de sucrose, que se dissociam no interior do estômago. O octassulfato de sucrose liberado sofre uma polimerização, dando origem a um produto de consistência viscosa, que se liga a proteínas presentes na lesão, exercendo um efeito protetor e, desta forma, facilitando a cicatrização. O sucralfato exerce uma ação inibidora sobre a pepsina e adsorve ácidos biliares. Existem evidências de que ele seja capaz de estimular a biossíntese local de PGI2 e PGE2, o que seria uma das causas da sua eficácia. Antiácidos gástricos São drogas de natureza básica, usadas para elevar o pH do conteúdo gástrico. Na realidade, o seu emprego visa apenas reduzir a acidez do estômago, uma vez que valores de pH mais elevados estimulariam a secreção da gastrina e, por conseguinte, o aumento de produção do HCl, um fenômeno descrito como “rebote ácido”. Atualmente, em função da existência de drogas inibidoras da secreção do HCl, os antiácidos gástricos são empregados essencialmente como terapia auxiliar da úlcera gástrica. Algumas destas substâncias são “antiácidos sistêmicos”, ou seja, capazes de provocar uma elevação significativa do pH sanguíneo. Um exemplo é o bicarbonato de sódio, presente em muitos produtos comerciais usados pela população leiga, mas não incluído nos protocolos antiúlcera estabelecidos por profissionais de saúde. Ele reage rapidamente com o HCl gástrico, liberando CO2 em volumes capazes de provocar distensão do estômago, o que pode eventualmente agravar lesões existentes na parede do órgão. Alguns compostos de magnésio, de cálcio ou de alumínio são “antiácidos não-sistêmicos. O hidróxido de alumínio é um dos mais usados, sendo também empregados o hidróxido de magnésio e o carbonato de cálcio. São administradas pela via oral e podem provocar efeitos sobre o trânsito gastrointestinal. Por serem pouco absorvidos, os compostos de magnésio podem permanecer no intestino, atuando como catárticos osmóticos. Por outro lado, os compostos de cálcio são capazes de exercer um efeito constipante, devido ao fato de formarem precipitados no interior do tubo digestivo. * * * * *
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