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19 Habilidades Seções de estudo Capítulo 2 Brinquedo, jogos, brincadeira e criança Seção 1: A importância do brinquedo para a vivência lúdica Seção 2: Características do jogo infantil Seção 3: O brincar: brinquedos, jogos e brincadeiras Seção 4: Brinquedo e arte: a criação de brinquedos Conceber a importância da brincadeira e do brinquedo para a criança na infância. Assim como compreender como o corpo, a música e os suportes materiais e imateriais são importantes para o desenvolvimento dos jogos e brincadeiras infantis. Esse capítulo também tem a intenção de possibilitar o conhecimento para criar brinquedos por meio de sucatas, ampliando, dessa forma, o repertório lúdico a partir da confecção de brinquedos alternativos. VEIT, Maria Cristina Schweitzer. Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço. 1ª ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2014 20 Capítulo 2 Seção 1 A importância do brinquedo para a vivência lúdica O surgimento do brinquedo pode ser estudado a partir das etapas iniciais da humanidade, quando as forças produtivas ainda se encontravam em um nível primitivo. Elkonin (1998) realizou um estudo dos jogos protagonizados e revela como o brinquedo está relacionado com a origem histórica dos períodos da infância e dos conteúdos do psiquismo em cada um desses períodos. Para os estudos desse autor, na sociedade primitiva as ferramentas podiam incluir diretamente as crianças, sem preparação específica, sem necessidade de aprender a manejar as ferramentas por meio de exercícios especiais. “As crianças entravam na vida dos mais velhos, aprendiam o manejo das ferramentas e todas as relações, participando diretamente no trabalho deles.” (ELKONIN, 1998, p. 79) Com a especialização dos instrumentos das atividades laborais, em um grau superior de desenvolvimento, a inclusão da criança na esfera do trabalho dos adultos já exigia uma preparação, sob uma forma de aprendizagem do manejo das ferramentas. Essa aprendizagem, para crianças, ocorria por meio do manejo com exemplares de ferramentas em tamanhos reduzidos. Os exercícios tinham o acompanhamento do adulto, uma vez que viam uma relação direta entre as práticas e o trabalho verdadeiro. Após o período de aprendizagem, as crianças eram integradas ao trabalho do adulto. Com o desenvolvimento da produção, os equipamentos de trabalho ficaram cada vez mais desenvolvidos, além disso, o aparecimento da indústria doméstica e com ela a divisão do trabalho, tornou ainda mais difícil incluir a criança no trabalho produtivo. O exercício com ferramentas não é mais viável, uma vez que não é possível criar equipamentos de tamanho reduzido, pois perdem a funcionalidade e a possibilidade de exercitar o manejo como forma de aprendizagem. Ocorrem neste momento histórico duas mudanças no caráter da educação e no processo de formação da criança para ser membro de uma sociedade. A primeira relacionada ao exercício e treinamento, para conferir faculdades gerais para manusear os instrumentos, como coordenação visomotora, movimentos amplos e precisos etc. Esses objetos são desprovidos de funções iniciais e podem ser considerados, segundo Elkonin (1998), como brinquedos. A segunda refere-se ao aparecimento do brinquedo simbólico, as crianças reproduzem e reconstituem com eles as esferas da vida e da produção a que aspiram. 21 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço Assim, pode-se formular a tese mais importante para a teoria do jogo protagonizado, esse jogo nasce no decorrer do desenvolvimento histórico da sociedade como resultado da mudança de ligar da criança no sistema de relações sociais. Por conseguinte, é de origem e natureza sociais. O seu nascimento está relacionado com condições sociais muito concretas da vida da criança na sociedade e não com a ação de energia instintiva, interna, de nenhuma espécie. (ELKONIN, 1998, p. 80). A complexidade das ferramentas provoca um afastamento da inserção da criança no mundo produtivo da sociedade, a infância prolonga-se e ocorre também um progressivo aumento do período de aprendizagem das novas ferramentas de trabalho. Dessa forma, os estudos indicam que a relação de ludicidade com a infância está presente na relação da criança com os jogos, brinquedos e brincadeiras, essa relação nasce socialmente e não de forma inata e biológica. Kishimoto (1997, p. 23) apresenta uma distinção interessante entre brincadeira, brinquedo e jogos: o brinquedo entendido como objeto, suporte da brincadeira, supõe relação íntima com a criança, seu nível de desenvolvimento e indeterminação quanto ao uso, ou seja, a ausência de um sistema de regras que organize sua utilização. Uma boneca permite à criança desde a manipulação até a brincadeira como “mamãe e filhinha”. O brinquedo estimula a representação, a expressão de imagens que evocam aspectos da realidade. Ao contrário, jogos, como xadrez, construção, exigem, de modo explícito ou implícito, o desempenho de habilidades definidas pela estrutura do próprio objeto e suas regras. Brougère (2000, p. 83) defende que o brinquedo é mais do que um instrumento de brincadeira. Ele traz para a criança, não só um meio de brincar, mas também imagens, representações, universos imaginários. “Ele estrutura o conteúdo da brincadeira sem, no entanto, limitar a criança.” A história do brinquedo revela as relações da sociedade quanto à produção deste objeto, como a relação familiar de cuidados com a criança. Benjamin (2002) trata da história cultural do brinquedo, que antes do século XVIII não eram confeccionados por fabricantes especializados, naquele momento histórico as oficinas de entalhadores de madeira e de fundidores de estanho produziam artesanalmente como um produto secundário. Foi no decorrer deste século que ocorreu, inicialmente, uma fabricação especializada. Primeiramente, em Nuremberg, na Alemanha, eram produzidos na indústria doméstica da região, brinquedos e objetos de decoração em porte pequeno, uma 22 Capítulo 2 vez que a produção de obras de arte volumosas já não havia mais encomendas, por parte da Igreja. A fabricação de objetos menores encantava crianças e adultos, surge, assim, o predomínio do brinquedo alemão no mercado mundial. No século XIX, os brinquedos se tornaram maiores, perdendo o elemento discreto, artesanal e minúsculo. É revelado neste aspecto que, antes quando os brinquedos tinham volumes menores era necessária a presença da mãe de forma mais íntima, isto é, sua presença perto da criança era imprescindível, enquanto que, os brinquedos com os volumes maiores a ausência da mãe era permitida. Uma emancipação do brinquedo põe a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só as crianças, como também aos pais. (BENJAMIN, 2002, p. 91). Com a produção em massa de brinquedos, ocorre um distanciamento, desse produto, como peça de produção que ligava pai e filhos, assim como distancia a criança dos materiais mais heterogêneos, os quais permitiam que um pedaço de madeira se transformasse em um carrinho, ou uma espada. Quando o fabricante ou o adulto constrói um brinquedo, introduz nele imagens e significados que variam de acordo com a cultura. Kishimoto (2000, p. 19) ressalta: “Cada cultura tem maneiras de ver a criança, vista como homem em miniatura, revela uma visão negativa: a criança é um ser inacabado, sem nada específico e original, sem valor positivo.” Rousseau, no livro Emílio, cria um contraponto com essa visão e defende a ideia de uma criança com natureza própria que deve ser potencializada em sua totalidade. O adulto, quando cria brinquedos para o comércio em massa, tira da criança a possibilidade de criar e interpreta do seu modoa sensibilidade infantil. Para Benjamin (2002), é preciso superar o equívoco básico, pois se acreditava que a brincadeira da criança é determinada pelo conteúdo do brinquedo, visto que o que ocorre é o contrário. Conhecemos muito bem alguns instrumentos arcaicos de brincar, que desprezam toda a máscara imaginária (possivelmente vinculados, na época, a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa, autênticos brinquedos, “tanto mais autênticos quanto menos o parecem aos adultos”. Pois quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar, quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva. (BENJAMIN, 2004, p. 94) 23 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço O brinquedo é um fornecedor de imagens e dá à brincadeira a representação que possibilita a imagem manipulável. Dessa forma, o brinquedo é o objeto que traduz na brincadeira um universo real ou imaginário. Para Vygotsky (1998, p. 27), o brinquedo exerce uma influência decisiva no desenvolvimento infantil, pois é no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de agir unicamente numa esfera visual externa. “A criança vê um objeto, mas age de maneira diferente em relação àquilo que vê. Assim, é alcançada uma condição em que a criança começa a agir independentemente daquilo que vê.” Segundo Brougère (2000, p. 15), Com seu valor expressivo, o brinquedo estimula a brincadeira ao abrir possibilidades de ações coerentes com a representação: pelo fato de representar um bebê desperta atos de carinho, de troca de roupa, de dar banho e o conjunto de atos ligados à maternagem. O brinquedo tem uma função social de impregnação de cultura o que é possível de observar por meio da boneca, que traduz o interesse crescente da sociedade pela criança pequena e pela maternidade. Como suporte da brincadeira, o brinquedo possibilita uma atividade que permite à criança a apropriação dos papeis e códigos sociais da cultura em que está inserida. O papel socializador do brinquedo e da brincadeira permite acesso à criança se integrar à sociedade que a cerca. A criança, por meio da brincadeira com a boneca, revela significações impregnadas da cultura a qual está inserida. Mas a criança não apenas manipula imagem ou significações exteriores, ela transforma-as e dá novas significações. Uma boneca formatada pela indústria, por parâmetros de luxo, pode se transformar no decorrer da brincadeira, conforme a vivência cultural da criança é tomar novas significações de acordo com a realidade em que a criança está inserida, assim, torna-se uma faxineira, uma dona de casa etc. A criança incorpora os papéis sociais da sociedade que pertence e os transforma como um processo dinâmico. As situações imaginárias são o que dão sentido ao brinquedo, Vygotsky (1998, p. 125) faz uma indagação: o que restaria se o brinquedo fosse estruturado de tal maneira que não houvesse situações imaginárias? Restariam as regras. Frisa o autor que não são as regras previamente estruturadas, mas as que têm origem na própria situação imaginária. Como um jogo de representação, se a criança está representando o papel de mãe, ela obedece às regras do papel de mãe, 24 Capítulo 2 seus gestos estão obedecendo ao comportamento maternal que conhece em sua cultura. Para Gilles Brougère, (2000, p. 49), a impregnação cultural por meio do brinquedo passa pela brincadeira e não se deve entender como uma simples impregnação dos conteúdos simbólicos do brinquedo. Trata-se de um processo dinâmico de inserção cultural, sendo, ao mesmo tempo, imersão em conteúdos preexistentes e apropriação ativa. Para Bontempo (2000, p. 61), a criança quando brinca com um brinquedo não vê o objeto como ele é, mas lhe confere um novo significado, a autora ainda cita um exemplo de quando a criança monta em uma vassoura e finge estar cavalgando em um cavalo, ela está conferindo um novo significado ao objeto. A autora coloca as contribuições de Vygotsky, considerando que o mais importante não é a similaridade do objeto com a coisa imaginada, mas o gesto. No brinquedo, o significado que a criança confere ao objeto torna-se mais importante que o próprio objeto. No brinquedo o significado torna-se o ponto central e os objetos são deslocados de uma posição dominante para uma posição subordinada. (VYGOTSKY, 1998, p. 129) O brinquedo é representado como um objeto ou um pedaço da cultura, colocado à disposição e ao alcance da criança. A manipulação desse objeto, o brinquedo, leva a criança a brincar, a agir, representar e imaginar. Manipulação, posse, consumo... o brinquedo introduz a criança nas operações associadas ao objeto. A apropriação se inscreve num contexto social: o brinquedo pode ser mediador de uma relação com outra ou com uma atividade solitária, mas sempre sobre o fundo da integração a uma cultural específica. Além disso, é suporte de representações, introduzindo a criança num universo de sentidos e não somente de ações. (BONTEMPO, 2000 p. 68). Segundo Negrini (1994), o desenvolvimento cultural se superpõe aos processos de crescimento, maturação e desenvolvimento orgânico da criança, formando, assim, um todo. Com forte conteúdo simbólico, por meio do brinquedo, a criança entra em contato com um discurso cultural da sociedade em que está inserida, assim, mais uma vez o brinquedo tem um fator importante para a socialização. Existe, por meio do brinquedo, a possibilidade de transmissão de esquemas sociais, de representações culturais e de comportamentos significativos que são apropriados pela criança. 25 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço Para Brougère (2000, p. 62), os brinquedos podem ser definidos de duas maneiras: 1. Em relação à brincadeira: o brinquedo é aquilo que é utilizado como suporte numa brincadeira; pode ser um objeto manufaturado, um objeto fabricado por aquele que brinca, uma sucata, efêmera, tendo valor apenas para o tempo da brincadeira, um objeto adaptado. Tudo nesse sentido pode se tornar um brinquedo e o sentido de objeto lúdico só lhe é dado por aquele que brinca enquanto a brincadeira perdura. 2. Em relação a uma representação social: o brinquedo é um objeto industrial ou artesanal, reconhecido como tal pelo consumidor em potencial, em função de traços intrínsecos (aspecto, função) e do lugar que lhe é destinado no sistema social de distribuição dos objetos. Quer seja ou não utilizado numa brincadeira, ele conserva seu caráter brinquedo, e pela mesma razão é destinado à criança. A manipulação de brinquedos permite dois aspectos importantes para a socialização da criança; a manipulação dos códigos culturais e códigos sociais, permitindo a criança exprimir uma relação individual com esse código. Outro aspecto importante ainda é sobre o brinquedo educativo e sua relevância para situações de ensino-aprendizagem. Kishimoto, (2000) apresenta o brinquedo educativo ou jogo educativo que se materializa no quebra-cabeça, pode ensinar diversos aspectos, como formas, cores, números etc., brinquedos de tabuleiro que exigem a compreensão de números e das operações matemáticas, nos brinquedos de encaixe, que trabalham noções de sequências, de tamanho e forma. Segundo esta autora, o brinquedo educativo, data dos tempos do Renascimento, mas é com a expansão da educação infantil neste século que toma forma como um recurso que ensina. A criança pré-escolar aprende de forma intuitiva, envolvendo processos interativos, cognitivos e afetivos. Dessa forma, toda vez que o adulto cria uma intencionalidade para estimular, promover e potencializar a situação de aprendizagem por meio do brinquedo, surge a dimensão educativa. Mas as condições para a expressão do jogo devem sermantidas, assim, a introdução das propriedades do lúdico cria condições para potencializar a apropriação de novos conhecimentos. 26 Capítulo 2 Kishimoto (2000, p. 37) discorre sobre o brinquedo e alerta que quando esse assume o aspecto lúdico e educativo, merece algumas considerações, são elas: 1. Função lúdica: o brinquedo propicia diversão, prazer e até desprazer, quando escolhido voluntariamente; 2. Função educativa: o brinquedo ensina qualquer coisa que complete o indivíduo em seu saber, seus conhecimentos e sua apreensão do mundo. A autora ainda alerta sobre a incompatibilidade aparente de aliar o brincar, por meio do brinquedo, a um processo educativo o qual, em geral, busca resultados. Por exemplo, um brinquedo de encaixe, que tem a intencionalidade de proporcionar o aprendizado da diferenciação de cores é colocado a disposição da criança, mas se essa brinca de empilhá-lo, está contemplado o aspecto lúdico, mas a habilidade de diferenciação de cores não está em questão pela criança. Dessa forma, fica evidente que o brincar tem uma natureza livre, que conta com uma motivação interna, típica do lúdico, e o trabalho pedagógico com o brinquedo educativo deve levar em consideração esse aspecto no planejamento do processo. O equilíbrio das duas funções é para Kishimoto (2000) a aspiração do jogo educativo, uma vez que se no jogo predomina a função lúdica, não há mais ensino, do contrário se no jogo predomina a função educativa não há mais prazer, somente ensino. Seção 2 Características do jogo infantil Vários estudos já foram realizados sobre o desenvolvimento de jogos e diferentes autores nos trazem concepções e definições que compõem o universo teórico sobre os jogos. É interessante perceber como o valor cultural para as diversas concepções contextualiza o jogo, a partir dos parâmetros biológicos, sociais, culturais e históricos. Os jogos podem apresentar significados distintos, principalmente pela abrangência, que é possível denominá-lo, desde o gesto da criança movimentando objetos até jogos mais complexos, os quais envolvem atividades de raciocínio abstrato. Nos estudos realizados por Negrini (1997), o autor indica que a palavra jogo se origina do vocábulo latino iocus, o qual significa diversão, brincadeira. O universo de definições pode ter um teor de aprofundamento, conforme as questões 27 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço intrínsecas ligadas ao jogo, que a pesquisa teórica tenha alcançado. Os autores que realizam estudos sobre jogos o fazem em diferentes perspectivas e segundo a linha de raciocínio teórica a que seguem. A intenção de reunir alguns autores e seus respectivos estudos e conclusões sobre o jogo decorrem do objetivo de alargar os conhecimentos sobre a importância dos jogos e da brincadeira, como atividades lúdicas que potencializam o desenvolvimento humano. Os estudiosos enumeram diversas definições, indicando as funções e as características. À medida que são apresentadas, já posicionam toda uma gama de possibilidades que os jogos oferecem como elemento cultural rico para a sociedade. Elkonin, (1998) descreve os estudos de Petróvski e relata que o conceito jogos diverge entre diversos povos. Para os antigos gregos, jogos significavam o que entendemos hoje como traquinagens de crianças, já para os judeus, jogo correspondia a gracejos e risos. Para os romanos, ludo significava alegria e festa. Kliada é a palavra em sânscrito para brincadeira e alegria. Por fim, a palavra jogo começou a significar, em todas as línguas, um grupo numeroso de ações humanas que não requerem trabalho árduo e proporcionam alegria e satisfação. Esse mesmo autor, Elkonin (1998, p. 415), trata em seus estudos do jogo protagonizado, e descreve: O jogo apresenta-se como atividade em que se formam as premissas para a transição dos atos mentais para uma nova etapa, superior, de atos mentais respaldados pela fala. O desenvolvimento funcional das ações lúdicas converte-se em desenvolvimento ontogenético, criando uma zona de evolução imediata dos atos mentais. Huizinga (2001, p. 3) define aspectos do jogo que ultrapassam os limites das atividades puramente físicas ou biológicas. “É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa em jogo que transcende a necessidade imediata da vida e confere um sentido à ação.” Esse autor define características próprias do jogo em geral, são elas: • O jogo é uma atividade voluntária, todo jogo imprime o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. • O jogo não é nem vida corrente nem vida real, é ao contrário, uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Dessa forma, o jogo ocupa a esfera de ser “desinteressado”, como não pertence à vida comum, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e desejos. 28 Capítulo 2 • A terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É jogado até ao fim dentro de certos limites de tempo e de espaço. Percorre um determinado caminho e sentido. A liberdade deve ser o direcionador da proposta de jogo, essa liberdade possibilita que o jogo ocupe outra esfera fora da vida cotidiana, impregnada de tarefas para a satisfação de necessidade com produtos esperados. Como atividade voluntária, seu único aspecto limitador é seu espaço e tempo, que decorre de um percurso e caminho com começo e fim. Outra característica importante do jogo, para Huizinga (2001, p. 13), é a de se fixar como fenômeno cultural. O jogo é transmitido entre gerações, torna-se tradição. Os elementos de repetição e de alternância constituem como que o fio e a tessitura do objeto. O espaço também é um aspecto importante no jogo. “todo jogo se processa, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea” Os espaços ocupados têm a função de terrenos dos jogos, como arenas, templo, palco etc., lugares sagrados, cujo espaço são mundos temporários dentro do mundo habitual e em seu interior se respeitam determinadas regras. Ainda o mesmo autor elenca outra característica que considera ainda mais positiva: ele cria ordem e é ordem, exige uma ordem suprema, a menor desobediência a ela,“estraga o jogo”. O jogo é capaz de fascinar e, de certo modo, lança um feitiço sobre o jogador. Nos estudos realizados por Kishimoto (2000, p. 16), o jogo pode ser visto como: 1. O resultado de um sistema linguístico que funciona dentro de um contexto social; 2. Um sistema de regras; 3. Um objeto. Como resultado de um sistema linguístico, dependendo do contexto social, o jogo assume a imagem e o sentido que cada sociedade lhe atribui, dessa forma, para cada lugar e época, os jogos assumem diferentes significados. Cada sociedade constrói uma imagem do jogo conforme seus valores e crenças, o modo de vida dos indivíduos que compõem a sociedade se expressa no jogo. Por exemplo, o arco e a flecha para uma sociedade pode ser um brinquedo e para outra é um instrumento de caça. Como sistema de regras, um jogo pode ser identificado a partir de sua sequência de regras e sua estrutura, que define a modalidade. Por exemplo, o jogo de cartas é definido para cada modalidade conforme suas regras. Quando alguém 29 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço joga está executando as regras do jogo e ao mesmo tempo participando de uma atividade lúdica. O jogo, segundo Kishimoto (2000), materializa-se como objeto, por exemplo, o xadrez materializa-se no tabuleiro e nas peças, as quais podem ser de diversos materiais, no pião que pode ser confeccionado com madeira, plástico etc. É importante pontuar que determinados autores imprimem características específicas para jogos, delimitando-os quanto à idade. No caso da primeirainfância, o jogo é denominado de jogo infantil e segue traços e características intrínsecos a essa faixa etária. Christie, apud Kishimoto (2000, p. 25), rediscute as características do jogo infantil e elabora critérios para identificar seus traços, são eles: • A não literalidade: A realidade interna predomina sobre a externa, o ursinho se transforma em filhinho, o sentido habitual é substituído pelo novo, criado e imaginado na fantasia do brincar. • Efeito positivo: prazer e alegria são características do jogo infantil. Brincar promove sensações de satisfação e traz efeitos positivos aos aspectos corporais, morais e sociais da criança. • Flexibilidade: quando brinca, a criança fica mais disposta a combinações e variações de ideias e de comportamentos. Busca novas alternativas de ações e torna-se mais flexível • Prioridade do processo de brincar: enquanto brinca, sua atenção está concentrada na atividade em si e não em seus resultados. O jogo educativo desvirtua essa característica quando dá prioridade ao produto. • Livre escolha: deve ser escolhido livre e espontaneamente pela criança. • Controle interno: no jogo infantil quem determina os acontecimentos são os próprios jogadores e não o professor, caso contrário, não será um jogo e sim uma direção e um ensino. A questão do simbolismo no jogo infantil é outro aspecto que merece relevância para os estudos da área. Segundo Negrini (1997, p. 46), o simbolismo emerge da necessidade do ser humano exteriorizar- se, ou seja, de representar os modelos com os quais se depara. O mundo simbólico é mais uma tentativa da representação da realidade do que a imaginação em ação. A criança representa o mundo que a cerca, ou seja, a realidade, e a simboliza pelos gestos. 30 Capítulo 2 Para Fromberg (apud KISHIMOTO, 2000, p. 27), O jogo infantil inclui as características: simbolismo: representa a realidade e atitudes; significação: permite relacionar ou expressar experiências; atividade: a criança faz coisas; voluntário ou intrinsecamente motivado: incorporar motivos e interesses; regrado: sujeito a regras implícitas ou explícitas, e episódico: metas desenvolvidas espontaneamente. Quando a criança dispõe de significados apropriados aos esquemas os quais ela constrói as interações com o contexto em que está inserida, ela torna-se co-autora de cultura lúdica. Para Brougère (1998), cultura lúdica se constitui em substância, isto é, ela só existe potencialmente, pois se trata do conjunto de elementos que uma criança pode valer para seus jogos. Esses elementos variam de uma sociedade para outra, e também variam conforme o momento histórico de uma mesma sociedade. O simbolismo será uma representação pelos significados que a criança incorporou, isto é, um conjunto de elementos que utilizará nos jogos. Nos diversos estudos realizados pelos estudiosos sobre o jogo, muitos aspectos são equivalentes e outros são complementares, Kishimoto (2000, p. 27) realiza uma síntese sobre seus estudos de diferentes autores do tema e enumera os elementos que a interligam à grande família dos jogos: 1. Liberdade de ação do jogador ou o caráter voluntário, de motivação interna e episódica da ação lúdica; prazer (ou desprazer), futilidade; 2. Regras (implícitas ou explícitas); 3. Relevância do processo de brincar (o caráter improdutivo), incerteza de resultados; 4. Não literalidade, reflexão de segundo grau, representação da realidade, imaginação, 5. Contextualização no tempo e no espaço. Ao considerar esses aspectos tratados até então, o educador deve orientar sua prática para possibilitar o jogo como um elemento lúdico, que tem em sua essência a liberdade de ação por parte da criança, com um motivador interno, sem a necessidade de alcançar um produto final. Mergulhado na representação da imaginação fora do contexto literal da realidade e contextualizado com o tempo e espaço. 31 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço Seção 3 O brincar: brinquedos, jogos e brincadeiras A brinquedoteca é um espaço fértil para as interações e brincadeiras entre as crianças, mas por que é importante a brincadeira para a infância? Inicialmente, é importante considerar que a infância é uma construção histórica, dessa forma, o ser criança deve ser compreendido não apenas em suas características naturais, mas como um ser em interação com a sociedade e sujeito a condições históricas. A brincadeira também deve ser compreendida sob esta ótica, dessa forma, está sujeita aos componentes históricos e sociais. A fragmentação dos tempos de vida em infância, fase adulta e velhice é uma construção histórica, e a brincadeira pode ser estudada desde o surgimento das forças produtivas nas sociedades primitivas. Se a brincadeira requer tempo livre, ao trabalhador, na sociedade de produção, não importa esse tempo livre sem resultados produtivos. De uma forma sutil, a sociedade impõe um distanciamento do tempo de brincar, tempo ocioso, para desfrutar o não trabalho, na medida em que o indivíduo cresce e assume responsabilidades com um conjunto de afazeres de uma comunidade/sociedade. A sociedade relaciona o lúdico com identificação maior para a infância, uma vez que essa não está ainda inserida no mundo de produção, por não apresentar o perfil para a produção. A própria escola também incorpora essa relação de idade e tempo, na medida em que a faixa etária avança, diminui o tempo dedicado ao brincar. Brincar pode ser entendido como a imaginação em ação, isto é, a imaginação exteriorizada através do brinquedo, do jogo e da brincadeira, é a primeira forma que a criança encontra para ultrapassar a dimensão perceptiva motora. A cultura tem influência no modo de vida dos indivíduos de uma sociedade, orientando o fazer e, consequentemente, o brincar. Dessa forma, a cultura torna- se parte da natureza humana e pode ampliar ou restringir as possibilidades e potencialidades do indivíduo. No início do século XIX ocorreu uma mudança de perspectiva sobre o conceito da criança e da brincadeira. Antes a brincadeira era considerada apenas como distração, assim como o conceito dominante de criança também não dava o menor valor a um comportamento espontâneo com origem da própria criança. 32 Capítulo 2 Com as influências de Rousseau, houve mudanças na imagem que a sociedade tinha da criança e de sua natureza, tornou-se uma visão mais positiva, assim, valorizaram-se as atividades espontâneas da criança. A exaltação da naturalidade foi, segundo Brougère (2000, p. 91), o que colocou a brincadeira no centro da educação da criança pequena. Essa exaltação da naturalidade impôs uma ruptura com o racionalismo das luzes. “a brincadeira é boa porque a natureza é pura, representada pela criança, é boa”. A valorização da brincadeira, segundo essa perspectiva, apoia-se na supressão da dimensão social da educação da criança, dessa forma, dar lugar à brincadeira é dar ênfase à educação natural. A brincadeira como meio educativo não pode se apoiar em fundamentos de alegação natural e não social. É preciso, também, ir além de uma análise da brincadeira como elemento natural apoiado a pesquisas com animais, pois o que é essencial na brincadeira infantil, que é a dimensão simbólica, está ausente na brincadeira animal. Os estudos de Brougère (2000, p.97) tratam da brincadeira como atividade humana, supondo um contexto social e cultural, que rompe com a perspectiva de uma brincadeira natural. “A brincadeira é um processo de relações interindividuais, portanto, de cultura”. A brincadeira humana diferente da brincadeira de animais supõe sempre um contexto social e cultural. Os comportamentos da criança estão impregnados por sua imersão no contexto social na qual está inserida. O estudioso aqui citado, Brougère, deixa claro em seus estudosque não existe na criança uma brincadeira natural, a brincadeira é um processo de relações interindividuais, resultado da inserção cultural. De certa maneira, a brincadeira é, nesta visão, um aprendizado, a criança aprende a brincar. Desde pequena a criança é iniciada na brincadeira pela pessoa que cuida, mãe, cuidador etc. A criança se envolve na brincadeira do adulto e aprende a brincar. Assim como o brinquedo muda de sentido e toma, por meio da imaginação, outras possibilidades de realidade, a brincadeira também é uma mutação de sentido da realidade, os objetos e até brinquedos tornam-se outros. É um espaço à margem da vida comum, que obedece às regras criadas pelas circunstâncias. Os objetos, no caso, podem ser diferentes do que aparentam. Entretanto, os comportamentos são idênticos aos da vida cotidiana. (BROUGÈRE, 2000 p. 100). 33 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço A criança quando brinca, segundo Vygotsky (1998), sob o ponto de vista do desenvolvimento, cria uma situação imaginária e pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento abstrato. Assim, para esse autor, é por meio do jogo que os processos mentais elementares se transformam em processos mentais superiores. Kishimoto (2000, p. 38) elenca três tipos de brincadeiras, são elas: brincadeiras tradicionais, brincadeiras de faz-de-conta, brincadeiras de construção. A brincadeira tradicional infantil, considerada como parte da cultura popular, guarda a produção espiritual de um povo em certo período histórico. A cultura não oficial, desenvolvida especialmente de forma oral, não fica cristalizada. Está em constante transformação, incorporando criações anônimas das gerações que vão se sucedendo. Muitas brincadeiras preservam sua estrutura inicial, outras se modificam, recebendo novos conteúdos. Enquanto manifestação livre e espontânea da cultura popular, a brincadeira tradicional tem a função de perpetuar a cultura infantil, desenvolver e formar a convivência social e permitir o prazer de brincar. A brincadeira de faz-de-conta, também conhecida como simbólica, de representação de papéis ou sociodramática, é a que deixa mais evidente a presença da situação imaginária. Ela surge com o aparecimento da representação da linguagem, em torno de 2/3 anos, quando a criança começa a alterar o significado dos objetos, dos eventos, a expressar seus sonhos e fantasias e a assumir papéis presentes no contexto social. É importante registrar que o conteúdo do imaginário provém de experiências anteriores, adquiridas pelas crianças em diferentes contextos. Os jogos de construção possuem grande importância por enriquecer a experiência sensorial, estimular a criatividade e desenvolver habilidades da criança. Construindo, transformando e destruindo, a criança expressa seu imaginário, seus problemas, permitindo aos terapeutas o diagnóstico das dificuldades de adaptação, bem como a educadores o estímulo da imaginação infantil e o desenvolvimento afetivo e intelectual. O repertório de brincadeiras que a criança tem contato e possibilidades de interação é um fator importante para o desenvolvimento de suas potencialidades, cada modalidade apresentada anteriormente tem um lugar e sua importância para a infância. A brincadeira tradicional foi transmitida de geração em geração, e até hoje as crianças brincam de amarelinha como os povos gregos e do oriente brincavam, esse artefato social é um elemento integrador entre diferentes culturas e gerações. A passagem de uma brincadeira por gerações perpetua a presença do lúdico na sociedade. 34 Capítulo 2 O conteúdo que provém do mundo social na brincadeira de faz-de-conta é o conteúdo simbólico que recebe influências do currículo e dos professores. Dessa forma, é importante ressaltar, segundo Kishimoto (2000), os conteúdos vinculados às brincadeiras infantis, os materiais dispostos, as oportunidades e possibilidades de interações sociais, assim como o tempo e o espaço disponíveis, são fatores que dependem da proposta educativa do educador. Os jogos de construção têm relação com os jogos de faz-de-conta, pois as construções se transformam em temas de brincadeiras, o que a criança empilha e constrói pode se transformar em cenários para brincadeiras simbólicas. Seção 4 Brinquedo e arte: a criação de brinquedos A seleção de brinquedos para a brinquedoteca deve levar em conta todos os aspectos intrínsecos, como materiais, sua funcionalidade, a possibilidade de utilização, entre outros. O universo de brinquedos que a sociedade produz comercialmente é cada vez maior, por questões econômicas e sociais algumas crianças têm brinquedos em excesso, sem ter lugar para guardá-los, enquanto outras não têm acesso a brinquedos. A brinquedoteca deve ser um lugar facilitador de acesso a brinquedos a todas as crianças, independente de classe social. O acesso ao brincar é um direito da criança, e as maneiras para garantir esse direito podem ser diversas. Locais com brinquedoteca estruturadas e com materiais e brinquedos com alto valor comercial são raras e, muitas vezes, restritas ao público financiador deste espaço. A criação de brinquedos por meio de sucatas pode ser um caminho tanto econômico como educativo, uma vez que a confecção envolve a criação, imaginação, planejamento e execução. Santos (1995) alerta que não é todo material descartável que pode se transformar em brinquedo para as crianças é preciso inicialmente distinguir sucata de lixo. Cuidados com a limpeza, ordenação e disposição dos materiais de apoio para a confecção dos brinquedos a partir da sucata, merecem todo o cuidado para facilitar o processo de criação dos brinquedos, assim como a sua utilização. A autora ainda sugere a criação de uma sucatoteca, com um lugar específico para armazenar um conjunto de materiais descartáveis, que já passaram por limpeza apropriada, e após a limpeza são selecionados, tanto quantitativa quanto 35 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço qualitativamente. Os materiais de apoio como tesouras, colas, tintas, papeis variados etc., também necessitam de seleção e ordenação. A indústria de brinquedos está cada dia mais com fortes apelos das mídias, com valorização de personagens construídos em outras culturas, que impregnam a cultura do país de origem e disseminam a cultura do consumo em massa. Um posicionamento contra o consumo exagerado é um fator que agrega as funções de uma brinquedoteca, uma vez que, como lugar de brinquedos, não deve cumprir papel de promotora e divulgadora de brinquedos construídos para o consumo inconsequente. A valorização de brinquedos construídos a partir de objetos recicláveis tem tomado maior força, dado as circunstâncias ambientais que configuram as prerrogativas das ações de indústrias e sociedade em geral, para a preservação da natureza. Não cabe aqui condenar os brinquedos industrializados, pois muitos têm seu lugar garantido em uma brinquedoteca, cabe, sim, uma valorização aos brinquedos artesanais e construídos em oficinas com pais, educadores e crianças. Essa valorização faz-se necessária para contrapor uma força extraordinária dos brinquedos produzidos em larga escala, os quais têm uma breve vida útil e tomam espaço nas mídias de consumo. Muitos espaços públicos podem ser aproveitados e estruturados a partir de um projeto consciente, que visualize a criação e manutenção de uma brinquedoteca, a partir de brinquedos construídos com materiais recicláveis. A formação e o interesse do educador que apresenta uma proposta de criação de brinquedoteca será o diferencial para a utilização ou não de brinquedos artesanais. O alto valor de brinquedos prontos industrializados e frágeis, diante da rotatividade de circulação de crianças, pode impossibilitar a manutenção deuma brinquedoteca. 36 Capítulo 2 ANEXO Ideias para a confecção de brinquedos a partir de sucatas Atualmente, existem vários sites e blogs que compartilham idéias, sugerimos alguns: http://www.revistaartesanato.com.br/reciclagem http://www.rsojoserosas.seed.pr.gov.br http://www.facavocemesmo.org/aviao-de-brinquedo-com-material-reciclado http://dikinhasdasil.blogspot.com.br/2012/07/brinquedos-com-materiais- reciclaveis.html. http://grupoaoq.com.br/corujazul/reciclagem/robo-com-caixinhas-de-papel Seguem alguns exemplos de fotos de brinquedos a partir de materiais e de sucatas: 37 Brinquedoteca: formação de brinquedista e organização do espaço
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