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Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 43 EDUCAÇÃO, SAÚDE E SOCIEDADE EDUCATION, HEALTH AND SOCIETY Fátima M. Namen1, João Galan Jr.2, Rodrigo Derossi Cabreira3 1 Professora Doutora Universidade Veiga de Almeida, UFF / Pós-doutor: Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ. 2 Professor Doutor – Mestrado em Odontologia – Universidade Veiga de Almeida. 3 Cirurgião-Dentista. Correspondência: Fátima M. Namen (fnamen@click21.com.br) Resumo _________________________________________________________________________________ Vários impasses surgem com os avanços tecnológicos, científicos e com acelerada mudança na sociedade dita pós-moderna. A proposta do presente trabalho é uma reflexão crítica de questões que interferem no modelo de ensino da área de saúde, criticado por ser intervencionista e produto de nossa história social; e desvelar o cenário e desafios do nosso desconhecimento enquanto educadores no processo de transformação profissional na área de saúde. A metodologia consistiu de pesquisa bibliográfica, de natureza exploratória e descritiva, fundamentando teoricamente, justificando os limites e contribuições das questões levantadas. Dentro do cenário educacional e social, buscamos compreender o novo profissional desta área, cujas competências deverão incluir o estabelecimento de metas, de organização, de decisões e responsabilidade pelo próprio trabalho. O grande desafio deste cenário está na compreensão da realidade fora do mundo acadêmico e organização disciplinar do conhecimento. O papel do sujeito na educação, a representação social, a interdisciplinaridade, complexidade humana e institucional fazem parte de um grande inventário sobre as questões que interferem na formação de um profissional para a saúde neste novo contexto. A Universidade, tanto pública como privada, deverá construir um sujeito compromissado, gerador de mudanças e capaz de enfrentar desafios na área de saúde. Sérias reflexões a respeito da inserção da pesquisa no processo educacional são necessárias. O processo tecnológico vem ocorrendo sem considerar a vida humana. Assim, nos novos conteúdos, é necessário inserir aspectos antropológicos e culturais que representem a compreensão dos comportamentos em relação à saúde. Descritores: Educação; Meio Social; Recursos Humanos em Saúde. Abstract _________________________________________________________________________________ Technological and scientific advances as well as fast changes in so-called post-modern society have resulted in several impasses. This present work is meant to be a critical reflection upon issues that affect the health teaching model as criticized for being interventionist and a product of our social history; and to reveal the scenario and challenges out of our lack of knowledge while educators within the process of professional transformation in the health area. This study consisted of a bibliographical research, of exploratory and descriptive nature, basing theoretically limits and contributions of the addressed issues. Within the educational and societal scenarios, we attempted to understand the new professional of this area, whose competences should account for the establishment of goals, organization, decision-making and responsibility for his own work. The great challenge of this scenario is the understanding of the reality out of the academic world and a disciplined organization of knowledge. The individual’s role in education, the social representation, the inter-disciplinarity, and the human and institutional complexity are part of a great inventory of issues that interfere in an individual’s professional formation for health in this new context.The University, either public or private, should form a committed individual, who can generate changes and face the challenges in the health area. Serious reflections regarding the insertion of the research in the education process in the new context are necessary. Therefore, the new course contents must cover anthropological and cultural aspects that represent the understanding of behaviors in relation to health. Key words: Education; Social environment; Health Manpower. Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 44 Contexto histórico e social na saúde e educação Pensar na sociedade brasileira é pensar numa sociedade cuja história é marcada pela dependência, manutenção de privilégios de minorias e de exclusão. Apesar dos avanços, chegamos ao fim do século XX sem a reversão total desse quadro1. Na verdade, o crescimento econômico verificado não tem se traduzido em bem–estar social para o conjunto da população, ainda no século XXI, sem perspectivas otimistas. É claro que vivemos um mundo em transformação e nossa sociedade também participa e é influenciada por isso. Mas o que há de novo? Quais os elementos novos que oferecem certa especificidade a este momento particular de mudanças? Alguns autores apontam para uma nova transição, a da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento2. E para entendermos essa passagem faz-se necessária a contextualização histórica da sociedade, analisando as exigências de mudanças que estas sofreram para se adequarem às novas demandas da sociedade moderna3. “O que caracteriza o mundo do trabalho no fim do século XX, é que este se tornou realmente global” 4. Tais palavras refletem algumas grandes transformações que vêm ocorrendo no espaço da cultura e do trabalho. Com relação a esse último, a transição de um modelo “fordista” de organização do trabalho para um novo modelo denominado de “flexibilização produtiva”, acoplado à dinamização do mercado mundial amplamente favorecida pelas tecnologias eletrônicas, coloca novas formas e novos significados ao trabalho5. A visão produtivista de mundo, segundo a qual tudo em nossa cultura deve ser transformado em riqueza, a dificuldade de conviver com a diferença, a tendência etnocitária ou “a destruição sistemática de modos de vida” e pensamento das culturas diferentes6, tudo isso significa individualismo como ideologia, que afirma, também no campo cultural, o indivíduo como unidade social relevante, sintetizando bem as características comuns à sociedade industrial e à indústria cultural. O modelo mecanicista típico da era industrial, via as pessoas como mão-de–obra, logo, a essência da gestão estava baseada no controle2. Agora, na emergência da sociedade do conhecimento, a mudança é radical. As pessoas passam a ser vistas como mentes, como cérebros. E mente e cérebro não se controla. Portanto, estamos falando de uma transição de um modelo baseado no controle para um novo modelo, baseado no comprometimento, que traz a idéia de compromisso, engajamento, envolvimento, forte adesão ou vinculação a alguma idéia ou coisa7. Segundo Freire, compromisso e responsabilidade estão intimamente relacionados: O compromisso próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade de cujas “águas” os homens verdadeiramente comprometidos ficam “molhados”, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experienciá-lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros8. Esse comprometimento, dentre outros fatores, contribuiu para enormes avanços técnicos e científicos que ocorreram na sociedade e na medicina contemporâneas; porém ambasencontram-se hoje diante de vários impasses. Pois, paralelamente ao acelerado e cumulativo processo de especialização e tecnificação da prática e do saber médicos, a cada momento surgem novos problemas de saúde, muitos dos quais decorrentes do nosso próprio modo de vida9. Estas mediações, uma vez apropriadas pelo Estado, ganham evidentes contornos políticos. Perdem, portanto, o caráter que têm de aparência meramente técnica para se transformarem em instrumentos de inclusão ou exclusão das populações sobre as quais recaem. Assim, no campo da medicina, instituiu- se como dominante um modelo de intervenção sobre o corpo humano que também é produto desta história social e conceptual. Este modelo faz divisão entre corpo e mente, levando a medicina a tratar o corpo como uma máquina que poderia ser analisada em termos de suas peças10. A doença passou a ser vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos. E aí residiria uma das mais sérias deficiências da medicina moderna, que ao concentrar-se em partes cada vez menores do corpo, reduziria a saúde a um funcionamento mecânico, perdendo freqüentemente de vista o paciente (cliente) como um ser humano total. Em relação à prática médica e às formas de produção de serviços, a VIII Conferência Nacional de Saúde, marco do Namen FM, Galan Jr. J, Cabreira RD Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 45 movimento sanitário e da política reformadora do setor no país, apresentou sua definição ampliada de saúde; passando a saúde – ou sua ausência- a ser entendida como o resultado das relações estabelecidas no processo social de produção. Uma concepção ampliada de saúde passaria então por pensar a recriação da vida sobre novas bases, onde a instituição da sociedade pudesse atender o mais plenamente à coletividade10, com educadores e governantes construindo e preservando os espaços coletivos para debates e reflexões críticas, sobretudo porque os desafios são muitos e as áreas de desconhecimento também são freqüentes11. Desafios como ampliação da clínica, articulação entre indivíduos e coletivo, bem como as construções da integralidade da atenção, do trabalho em equipes matriciais, por exemplo, estão postos simultaneamente para as escolas e, para o sistema de saúde. Assim, deverão ser enfrentados conjuntamente no processo de transformação da formação profissional e das práticas de saúde12. Nesse contexto a educação aparece como estratégia fundamental de mudança no e do sistema13. Numa perspectiva histórica, a sociologia da educação aponta para uma prática educativa nas sociedades primitivas que se constituía numa função inerente aos seus processos sociais. No entanto, essa forma de realizar a educação sofreu gradual transformação, a qual implica uma sociedade dividida em classes, evoluindo a educação em direção a métodos disciplinares, didatizando-se a realidade e constituindo, assim, um espaço específico ou parcial da vivência do real14. O modelo típico da Revolução Industrial está ultrapassado, visto que se baseia na obediência cega e na padronização em oposição à criatividade. No processo democrático, a ordem e a autoridade não são vivenciadas como oposto da criatividade; na verdade, elas passam a representar uma necessidade de organização do processo pedagógico15. Quando se fala de qualidade educativa da população, busca-se lançar o desafio de formação do sujeito histórico capaz de desenhar o roteiro do seu destino e de nele participar ativamente16. Por isso observa-se nas escolas a tendência à adoção de métodos pedagógicos capazes de formar alunos com qualidades mais adequadas às atuais necessidades do mundo do trabalho15 . A questão colocada agora, no Brasil e no Ocidente, é aquela já questionada anteriormente por pensadores como Paulo Freire17: a busca de uma educação libertadora, emancipatória, crítica e que nos leve a novos patamares de civilização18, considerando a importância da educação na existência do ser humano, suas relações com a área da saúde, onde os conhecimentos de ambas as áreas se interagem, se inter-relacionam e se articulam19. Há de se esperar que a escola ensine aos alunos todos os conteúdos socialmente valorizados e culturalmente acumulados, garantindo-lhes a apropriação de conhecimentos necessários à tomada de consciência da história do seu país e dos problemas existentes11. Deverá haver então, discussões sobre os conteúdos adotados na Universidade, sua seleção e organização; acompanhados de mudança de mentalidade dos docentes, buscando coerência entre o para que ensinar e o que ensinar aos discentes. O profissional de saúde formado deverá articular a reflexão com o agir, podendo ele incidir num conjunto de estratégias domesticadoras destinadas àqueles grupos que, pelas suas condições de exclusão, revelam-se potencialmente reivindicativos e ou “problemáticos para a sociedade”. Ou consistir num processo14 em que esses mesmos grupos resgatem o poder sobre os seus próprios corpos, apropriando-se do saber sobre os seus processos de saúde-doença e desmistificando as suas causas como condição para a transformação das suas condições de vida. Esse profissional deve ser responsável pelo próprio trabalho; deve administrar-se por objetivos; deve partilhar da responsabilidade de resolver e estabelecer metas e objetivos da organização; e deve participar das decisões da empresa/instituição15. Universidade como agente de mudança social Hoje, o grande desafio da Universidade está em sua relação com o mundo fora dela20. A universidade no Brasil, até o século XVIII estava sob o controle do governo português, que impedia sua criação, pois temia que as instituições se tornassem “focos ou instrumentos de libertação dos colonos”21. Somente com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, as escolas superiores começaram a estruturar-se com o objetivo de organizar a defesa da Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 46 Colônia. As instituições de ensino superior tornaram-se valorizadas somente no final do século XIX, com a difusão das idéias positivistas e cientificistas que reforçaram a crença na ciência como fonte de progresso e de avanços. Com a reforma de Francisco Campo, em 1931, foi promovido nas universidades à vinculação entre ensino e a produção científica, assumindo a pesquisa as características do modelo universitário dos EUA: produtividade, eficiência e eficácia. Após o Golpe Militar de 1964, ressalta-se que a universidade passa a ter papel central de produção de conhecimento e da capacitação de técnicos aptos a produzir tecnologia para o desenvolvimento do setor produtivo/empresarial do país. A partir da década de 80, a globalização do capitalismo e sua repercussão nos Estados nacionais levaram à passagem do modelo de Estado intervencionista e de bem-estar para o modelo neoliberal, atuando como regulador do mercado e promotor da competitividade, influenciando de forma substantiva a determinação dos objetivos e dos fins da formação21. Sobre os recursos humanos em saúde, procuramos estabelecer dois balizamentos iniciais: o movimento da Reforma Sanitária e o processo de contra-hegemonia da Universidade. O primeiro é um "conjunto articulado de princípios e proposições políticas, elaborado peloprocesso de democratização da saúde que tomou corpo na sociedade brasileira nas lutas de resistência contra o autoritarismo" 22. Muito se escreveu sobre a Reforma Sanitária, mas vale ressaltar aqui a importância desse mo- vimento que, embora tenha atingido em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde, o seu momento crucial de sistematização e difusão, suas origens remontam à década de 50, quando o debate sobre o "desenvolvimento" propõe a reordenação do sistema de saúde como um dos requisitos. Àquela época, as Universidades brasileiras, formadas basicamente por conglomerados de escolas isoladas, segundo o modelo francês, não tiveram um papel proemi- nente na discussão da questão Saúde. Mas já em 1968 dois fatos aproximam a discussão acadêmica da realidade social do país: primeiro, a franca deterioração das condições de saúde da população brasileira à época do "milagre econômico"; segundo, a implantação de uma reforma universitária que, apesar do seu caráter autoritário, abriu espaços acadêmicos para o ensino da Saúde Coletiva e para a expansão dos cursos de pós-graduação. A partir daí, a Universidade passou a contribuir com o estudo, a investigação e, por que não dizer, com a denúncia das condições de vida, relacionando a saúde com o modelo de desenvolvimento econômico. Neste contexto, enquanto o Estado politizava a saúde para o controle das tensões sociais acumuladas, a sociedade civil e setores da universidade avançavam na discussão das políticas e do planejamento em saúde22. Apesar dos avanços e recuos da Reforma Sanitária como processo, das dificuldades de ampliação de sua base de sustentação política, podemos constatar que esse movimento repõe para a Universidade novos objetos de reflexão e de pesquisa, e provavelmente formas diferenciadas de inserção, porém aproximando-a definitivamente dos problemas e demandas sociais da realidade social em crise). Os grandes pilares, ou fundamentos teóricos para mudança, estão sendo discutidos em grandes fóruns mundiais e já mostram suficiente clareza de orientação. A Declaração de Paris, realizada em 1998, por exemplo, enfatiza a Universidade como espaço que: propicie aprendizado permanente, contribua para a consolidação da cidadania democrática, reforce suas funções críticas e progressistas, utilize sua capacidade intelectual e prestígio para defender ativamente valores humanistas, contribua para o tratamento dos problemas que afetam o bem-estar das comunidades onde atua e fomente a inovação e a transdisciplinaridade18. Na reedição da Declaração de Paris em 2003, com o nome de Paris + 5, o Ministro da Educação do Brasil reafirmou a visão de que a Universidade é a instituição mais preparada para reorientar o futuro da humanidade18. Assim, as universidades não podem mais ficar voltadas para si mesmas. Devem estar abertas aos anseios e demandas de seus beneficiários, devem ser flexíveis e penetrar nas reais necessidades da sociedade 23. A Universidade e a formação de recursos humanos na área de saúde O profissional adequado à realidade deverá estar mais preparado para lidar com as mudanças enfrentadas pelo setor saúde. Além disso, existe uma pressão social significativa no sentido de que as universidades busquem maior relevância social, tanto no campo da produção Namen FM, Galan Jr. J, Cabreira RD Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 47 de conhecimentos como no campo da formação profissional. O caráter técnico-científico, em detrimento do social, claramente assumido pelo paradigma flexneriano, influenciou a formação médica no Brasil até a década de 70 24, quando, diante da crise econômica e social dos países da América Latina e da crítica aos modelos dominantes, surge uma nova fase para as discussões sobre as responsabilidades da universidade ante a realidade social. Os Relatórios Flexner e Relatório Gies, publicados nos Estados Unidos, respectivamente em 1910 e 1926, normatizaram o ensino médico-odontológico18. A concepção mecanicista, com redução da doença à dimensão biológica, levou à maior ênfase no processo curativo-reparador, o que gerou uma prática de alto custo, baixa cobertura, com pouco impacto epidemiológico e desigualdades no acesso. Este paradigma, aplicado aos currículos e disciplinas do meio biomédico, após as sucessivas reformas de natureza flexneriana/giesiana, levou à ênfase ao domínio cognitivo e instrumental. O paradigma cartesiano disjuntivo18, permitiu a separação do todo em partes e as demais dissociações daí decorrentes. Um dos problemas mais visíveis do paradigma disjuntivo, quando aplicado ao mundo do trabalho e aos sistemas de saúde, é a separação, por oposição, das esferas público- estatal e privada como pólos que se repelem. Assim, geram uma ruptura, na organização objetiva do sistema e nas estruturas mais profundas onde as práticas sociais são representadas. O pensamento cartesiano típico tem como característica uma estrutura rígida de concepção de mundo, com negação da diversidade, o uso de repertório de certezas preestabelecidas e irrefletidas, produzindo uma postura intransitiva. O profissional, que passou em média, de quatro a seis anos (recém-formado) em contato com informações puramente tecnicistas e sofisticadas, se vê abruptamente frente a uma realidade problemática, que via de regra, foi pouco discutida com poucos recursos materiais, humanos, financeiros e desconhecida pelas modernas soluções científicas 25. Estas tensões dizem respeito à fratura existente entre os problemas do mundo real e a organização disciplinar do conhecimento que orienta a formação profissional tradicional, bem como situa a importância que a formação possa incluir na nova abordagem da relação teoria- prática em um contexto em que reconhecidamente assumimos a natureza complexa e incerta dos problemas com que se defrontam os profissionais de saúde26. A realidade dos fatos impõe uma agenda de mudanças na formação e no trabalho dos profissionais da área de saúde18. As necessárias mudanças devem começar na formação profissional e na visão de mundo, que é reproduzida dentro das academias. O público e o privado, representação social, o papel do sujeito, a condição humana e trabalho: aspectos essenciais Muito além da dialética, “usa-se as esferas pública e privada para refletir sobre os processos cognitivos que envolvem efeitos e condições essencialmente sociais”27. Ainda que um cartesiano insistente esteja por toda parte dando a entender que todo fenômeno cognitivo é individual e privado, existem processos cognitivos que são internos ou privados, mas ocorrem como produto dos espaços públicos. A omissão desses conhecimentos produz efeitos inevitáveis na formação de alunos que futuramente irão intervir na própria formação do sujeito, ou que no mínimo estarão se relacionando com o ser humano. O sujeito não é uma consciência, uma experiência, não é a fonte do sentido, mas ele é constituído por uma verdade e não a fonte da verdade. O sujeito tem consistência, podem-se determinar seus componentes. O sujeito não é uma substância, um ser, uma alma, nem uma coisa pensante, porque ele depende de um processo que começa e acaba tantas vezes decorrente do ensino, por isso o sujeito não é uma origem. Em particular, não é por haver sujeito que há verdade, mas pelo contrario, porque há verdade, há sujeito 28. Outro aspecto desse contexto é a construção simbólica da realidade, que compreendem as representações sociais, que são formas de saber socialque compreeendem duas faces, bastante interligadas: o lado figurativo, e o lado simbólico; daí a importância desta área no aprendizado do aluno e na questão da criatividade. Os trabalhos de Piaget, de 1964 a 1968, constituem uma fonte importante nessa discussão, sua teoria sobre a gênese das representações e sua relação com o Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 48 simbólico se fundamentam na noção de decentração, que expressa o processo através do qual o sujeito propriamente humano emerge. Entre outros conceitos, as teorias de Piaget redefiniram o sujeito numa perspectiva do sujeito individual como alguém capaz de um agir autônomo e criativo sobre o mundo27. O ato representacional supera a divisão rígida entre os universos interno e externo29. A representação envolve um elemento ativo de construção e reconstrução: o sujeito aparece como autor dessas construções psíquicas e detém o poder de transformá-lo na medida em que elas se desenvolvem. O caráter referencial da representação é o fato de que é sempre uma referência de alguém para alguma coisa. O viés desses elementos nos interessam e devem estar presentes em relação ao ensino de projetos tão criativos, como por exemplo o ensino à distância, o uso de novas tecnologias na aprendizagem, pois não leva só em consideração a aula, o professor e o saber, mas inclui o aluno como um sujeito, visto em sua totalidade . E retomando a questão das esferas púbica e privada, quando esses sujeitos privados se reúnem e põem em movimento rituais de reconhecimento e saber, de asserções, demandas e papéis sociais, percebe- se como é difícil esse processo ocorrer fora da esfera pública, pois esses eventos necessitam da presença de outros, condição básica para o sujeito; daí podemos ver a dimensão subjetiva da ação pública. Os sujeitos sociais podem argumentar e contradizer uns aos outros e em grande medida eles expressam divergência sobre as questões fundamentais de sua vida social incluindo o mundo universitário. O sujeito caracteriza-se pela ação, portador de determinações e capaz de propor objetivos. Este sujeito, na relação de conhecimento, interage com o outro, o que conhece em oposição no que é conhecido27. Daí o pensamento, a percepção, a intuição desse indivíduo real. Essa discussão gira sobre o sujeito, a representação social, o público e o privado, porque a educação e o aprendizado, fazem parte dessa formação. A esfera pública aparece como um espaço em que uma comunidade, como um todo, pode desenvolver e sustentar um conhecimento sobre si mesma. Portanto não se trata de excluir a Universidade privada da definição da esfera pública, podemos apenas inferir através dos resultados de vários trabalhos sobre o comportamento do sujeito na Instituição privada, se o que diferencia é exatamente “compromissos” diversos das representações sobre a esfera pública, enquanto representações constitutivas da mesma27. É importante chamar atenção para o desequilíbrio entre a vida pública e privada27, onde o silêncio substituiu o diálogo e a observação substituiu a participação como a única forma na qual podemos experimentar a vida pública. Assim temos como resultado uma vida fora de foco. Questionamos se esta problemática não está inserida nas Universidades do mundo pós-moderno. Defende-se a necessidade da existência das esferas pública e privada como esferas distintas e ao mesmo tempo, o reconhecimento de sua conexão essencial é uma questão crucial para a sociedade moderna. Porque não sustenta possibilidade de democracia e cidadania – quando sujeitos políticos na ação e no discurso, participam daquela esfera da vida que é comum a todos. O trabalho e seu produto, especialmente advindo da educação sistematizada, empresta certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano30. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria condição para a lembrança, ou seja, para a história. Isso nos lembra a célebre frase de Paulo Freire17, de que “o sujeito é aquele que faz a história com as próprias mãos”. Questionamos até que ponto o espaço público cria essa condição e essa preservação. E a Universidade privada? A condição humana interfere nessas questões, condição esta que compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Arendt30, comenta: “Os homens são seres condicionados, tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Podemos imaginar o contato do sujeito com a educação escolar, quase como um espelho, o quanto repercute na condição de sua própria existência. Ainda ressalta que tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. “O problema é que as formas de cognição humana aplicável às coisas dotadas de qualidades, de nada nos valem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós?” Namen FM, Galan Jr. J, Cabreira RD Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 49 Com estes conceitos não podemos discutir de forma simplista, a relação ensino- aprendizado, que possui tanta complexidade humana e institucional. Essas questões estão sendo levantadas, pois não há como discutir o trabalho do homem sem falar sobre sua “condição humana”. Pós-modernismo, complexidade, interdisciplinaridade, liquidez humana e o real. Implicações na educação. Em relação ao pós-modernismo, podemos nos lançar ao pensamento de Bauman31, que faz uma diferença entre pós- modernidade e pós modernismo. O estudioso sociólogo chama de pós-modernismo uma visão de mundo, mas não necessariamente da condição pós-moderna. Concordamos com o sinônimo criado por Bauman que acaba por definir pós-modernidade, onde ele mesmo diz que tenta esclarecer uma confusão semântica. Embora os pensamentos do autor pareçam pessimistas, interpretamos como realista sua posição quando se refere a pós-modernidade como uma modernidade sem ilusões. A ligação que queremos fazer com o conteúdo desse texto é que num mundo absolutamente “líquido” e temporário, há uma maior dificuldade para o jovem ingressar na vida profissional e solidificá- la, entre outros fatores, por falta de reconhecer- se no mundo externo. Mas na verdade Bauman31 tem uma postura otimista ao definir o que é ser um pós modernista: significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores entre outras coisas, ele descarta a idéia de um regulamento ou normativa da comunidade humana e assume que todo tipo de vida humana se equivale, que todas as sociedades são igualmente boas ou más. O que torna mais complexo e misterioso na pós-modernidade é que os riscos são de uma outra ordem, não se podendo sentir ou tocar muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, as suas conseqüências. Em nossas considerações, temos dito demasiadamente que os processos questionadores dependem do real. Utilizamos frases corriqueiras como: “é necessário que o aluno entre em contato com o real”; “é necessário que o professor compreenda a realidade”. Esta espécie de “chavão”, é completamenteaplicável ao assunto em questão, mas o que passamos agora a discutir é que o real tem uma grande complexidade, que merece um estudo por parte dos pedagogos para orientar melhor seus discentes. A filosofia atualmente estuda o real de forma mais detalhada. O estudo do “duplo real”, defende a idéia de que não há nada no real, por mais infinito e incognoscível que ele seja, que possa contribuir para sua própria inteligibilidade: se é obrigado a buscar seu princípio em outro lugar, a tentar encontrar fora do real um segredo desse próprio real. É uma matéria ao mesmo tempo ampla demais e escassa demais: demasiado amplo para ser percorrida, demasiado escassa para ser compreendida32. A teoria do real é o resultado de um olhar sobre as coisas: olhar ao mesmo tempo criativo e interpretativo, que pretende a sua maneira e segundo seus meios próprios dar conta de um objeto ou de um conjunto de objetos dados. O homem é incapaz de suportar a realidade. A filosofia ocidental inventa certezas metafísicas e religiosas pela incapacidade humana de tolerar a crueza e unicidade do real. A noção de crueldade, não significa sadismo ou masoquismo, significa afirmar o que é, mesmo que isto seja enunciar a verdade desconfortável do real: única e inapelável32. Fazendo um viés com conhecimento, o autor quis dizer que o conhecimento constitui para o homem uma espécie de fatalidade, uma espécie de maldição. Sendo ao mesmo tempo inevitável (impossível ignorar inteiramente o que se sabe e inadmissível igualmente admiti-lo inteiramente). O conhecimento condena o homem, isto é, o ser que se aventurou no conhecimento de uma verdade à qual é incapaz de fazer frente, a uma sorte contraditória e trágica – trágica no sentido em que o compreende na aliança do “necessário e do impossível”. Rosset,32 ainda faz uma conexão que já discutimos em parágrafos anteriores que se chama a condição humana, residindo precisamente nisto: ser munida de saber, mas ao mesmo tempo ser desprovida dos recursos psicológicos suficientes para fazer face a seu próprio saber, ser dotada de um acréscimo de conhecimento ou de um “olho a mais”, que faz indistintamente seu privilégio e sua ruína – em suma, saber mas não poder fazer nada32. O princípio da incerteza passa necessariamente pelo questionamento: o que é Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 50 a verdade? Todo fato, por mais simples e evidente que seja, no momento de seu acontecimento, torna-se incerto e vago, desde que este uma vez passada, encontra-se convocado ao tribunal de justiça, ou da memória coletiva32. Observamos que o distanciamento dos discentes da realidade social de nosso país é a própria observação de Rosset32 em relação a verdade: a adoração de uma verdade é, assim, sempre acompanhada de uma indiferença com relação ao conteúdo dessa mesma verdade. E ao invés de assumir a nossa ignorância, preferimos muitas vezes trocar a liberdade pela ilusão de que existe alguém que pensa por nós e sabe o que não conseguimos saber. Esta é muitas das vezes a relação do discente com seu mito, professor. Ele também observa que esta crença por procuração diz muito da natureza da credulidade humana: lembrando que esta não resulta de uma propensão natural a crer, mas, muito ao contrário, de uma total e intolerável incapacidade pessoal de crer no que quer que seja. Com relação à discussão da ferramenta da sociabilidade dentro e fora de contextos, “nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante”31. Ora, os nossos currículos além de estarem desatualizados, na maioria das Universidades, sistematizam disciplinas de apenas “um semestre” (com menos de 6 meses) , em geral em torno de 4 meses. Isso nega direitos aos vínculos e ligações, espaciais ou temporais, coincidindo com a racionalidade moderna dos consumidores. Incoerentemente a sistematização de disciplinas de informática, que demanda novos conhecimentos, inclusive dos professores, requerem vínculos; é exatamente o oposto de qualquer consumo de satisfação instantânea. Mas, por um outro lado33, a vida consumista favorece a leveza e a velocidade e também a novidade e a variedade que elas promovem e facilitam. Hoje, computadores e softwares são prestigiados e consumidos pelo aluno e muitas vezes subestimados pelo ensino, podendo ser várias as razões pelas quais os alunos não são educados para consumir corretamente e extrair dessas ferramentas todo valor que elas podem oferecer. Mas também quanto mais atenção humana e esforço de aprendizado forem absorvidos pela variedade virtual de proximidade, menos tempo se dedicará à aquisição e ao exercício das habilidades que o outro tipo de proximidade, não virtual, exige.33 Essa crítica apresenta um desafio incômodo para algo que os educadores talvez não tenham um consenso desde os primórdios da educação infantil. O discurso exige uma valorização da proximidade, do não virtual, porque de outra forma há uma relutância em geral na dita sociedade líquida de uma proximidade apenas virtual, praticada sem zelo. Aumenta os encantos da proximidade virtual no mundo, pois “estar conectado” é menos custoso do que “estar engajado”. Talvez esta seja uma questão em aberto, saber fazer e ensinar como contribuir mais a rede eletrônica e seus implementos. Com relação à capacidade econômica e à questão do consumo, de computadores, programas, etc, observa que a capacidade de utilização do consumidor é menor que a utilidade do objeto consumido. De fato, o objeto do consumo usado “repetidamente” e defasado impede a busca pelo novo. Quando essa questão é extrapolada, torna-se exagerado e o oposto do que o dito acima. É a crítica que Bauman faz ao desprazer que o consumidor sente quando a aparência do objeto consumido vai se desvanecendo, sem que os atributos do objeto tenham sido explorados ou sequer aprendidos e compreendidos. Na questão dessa fluidez humana na sociedade (pós-moderna), “Pobre daqueles que, permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos na sociedade de consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes – famintos definhando em meio à opulência do banquete consumista”33. Estamos apenas levantando o problema a respeito das novas “linguagens”, mas não se trata de desprezar os livros tradicionais e o discurso. É interessante ressaltar numa recente publicação de uma entrevista de Foucault, de 1976, intitulada “A palavra nua” (inédita até o ano de 2004) publicada por Claude Bonnefoy34 no Le monde: “Hoje, o problema que me preocupa, e que na realidade, não para de me preocupar há dez anos é o seguinte: em uma cultura como a nossa, em uma sociedade como a nossa, o que significa a existência das palavras, da escrita e do discurso”35? Os discursos não são apenas uma espécie de película transparente através da qual e graças à Namen FM, Galan Jr. J, Cabreira RD Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 51 qual enxergamos as coisas, eles não são simplesmente o espelho do que pensamos. O discurso possui uma consistência própria, sua espessura, sua densidade, seu funcionamento. Os lingüistas descobriramque a linguagem é muito importante porque ela obedece às leis, mas eles insistiram, sobretudo na estrutura da linguagem, ou seja, na estrutura do discurso possível. Com sua sensibilidade Foucault revela: “ quando escrevo sinto uma impressão de veludo. A idéia de uma escrita aveludada é como um tema familiar, no limite do afeto e do perceptivo”35. Certamente o ensino e as técnicas de aprendizagem com ferramentas utilizando software de computador terão que passar por esse crivo, especialmente porque são ferramentas que não só podem colaborar com o ensino como também ajudam a sistematizar as questões no campo da saúde. Isso implica em não subestimar o ensino à distância, muito menos deixar de modernizar-se com novos softwares que surgem no mercado. Mas em primeiro lugar, seguindo a característica reconstrutiva, questionar o assunto e sistematizá-lo, isso sim é o que aproxima mais a educação, podendo-se combinar melhor qualidade formal com qualidade política. Entre conhecimento e educação, há uma relação necessária, insuficiente e controversa16. Na inter-relação professor-aluno e as máquinas (computador) não só estes interferem na realidade como esta realidade interfere nesses sujeitos. Tanto o ensino à distância quanto o ensino presencial, mesmo na forma de multimídia, implica na discussão de complexidade, que por definição, não é redutível à simplicidade, objetivo primeiro de qualquer análise. Toda análise depura a realidade em termo de buscar seus traços mais relevantes, imaginando que, por baixo dela existem componentes mais simples e que neles estaria a explicação. A complexidade tem caráter dúbio: “complexidade é ao mesmo tempo maldição e bênção – bênção, pois é companheira inevitável e mesmo pré-requisito do progresso, e maldição, pois é ao mesmo tempo algo negativo em si mesmo e que impede a realização tranqüila de ulterior progresso”36. Complexidade também marca o limite do conhecimento científico como utopia, bem como o relativismo, o pós-modernismo e interdisciplinaridade. Rumando para aspectos mais abrangentes, há grande dificuldade de articular a colaboração entre áreas como Filosofia, Biologia, Patologia, Literatura, ou seja, a interdisciplinaridade; palavra já tão banalizada no mundo acadêmico e nas diferentes especializações cientifica. Nesse sentido as formas dominantes de interdisciplinaridade existentes hoje produzirão, na melhor das hipóteses, “conhecimentos novos“ que não surpreendem nenhum profissional – e menos ainda patrocinadores e doadores para a pesquisa. O coração da questão que poderíamos debater, nas esferas pública e privada, é um estilo de colaboração intelectual que cumpra as promessas que a palavra interdisciplinaridade implica. Segundo o referido documento, um trabalho abarcando diversas disciplinas acadêmicas, cujos efeitos ninguém pudesse prever e cujos resultados potenciais, como eles concluíram no encontro, não poderiam ter sido produzidos isoladamente. Os estudiosos desta área comentam sobre a “invenção” de um novo formato de trabalho interdisciplinar, não mais conduzido por polidez acadêmica e curiosidade aleatória. Um grau excessivo (prático-teórico) de fixação em objetivos gera a estagnação de qualquer trabalho intelectual36 ? No século XIX a palavra “especialista”, “cientista”, “perito”, “profissional”, foi um sinal de que a divisão do trabalho intelectual havia se expandido muito (O homem multifacetado apontado por Rescher)37. Em épocas anteriores, o curso universitário básico para todos era constituído de sete artes liberais, que ia da retórica à astronomia. Mas a especialização acabou triunfando também no século XX e surge um abismo entre Ciências Naturais e as Humanas - “as famosas duas culturas” - seguidas pela separação entre a química e a física, a sociologia e a psicologia, assim por diante31. E como o aluno tende a reproduzir na vida profissional aquilo que vivencia na Universidade, no Brasil há uma tendência nessas Instituições de formar super especialistas, logo o profissional, aliando com suas inclinações pessoais, na maioria das vezes não verifica a real aplicabilidade da dita especialização, e muitas vezes usa esse conhecimento. Fala-se muito, hoje em dia, em sociedade do conhecimento. Mas a indagação principal é se a sociedade do conhecimento é um fato? É uma ideologia? Ou uma utopia? Segundo Rouanet38, é um pouco dessas três coisas. Podemos também redefinir se Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 52 informação e conhecimento são sinônimos, o que implica em estabelecer uma nova definição sobre a sociedade de conhecimento como sociedade de informação. Kurz39 mostra como efetivamente vivemos numa sociedade na qual somos bombardeados por meras informações que funcionam como sinais, diante dos quais reagimos de modo compatível com o programa que nos condiciona. Ele observou que a informação pura e simplesmente dispensa o trabalho reflexivo que transformaria os conteúdos, devidamente processados pelo nosso aparelho psíquico em verdadeiro conhecimento. CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante desse quadro, indagamos se não é equivocada a imagem do processo tecnológico sem considerar o valor da vida humana, pois a sociedade moderna impôs a alienação da soberania política para governabilidade. Assim sendo, como destacou Siqueira, 1998, o estado se construiu separado da sociedade dos homens e legitima-se num imenso aparato de gerenciamento administrativo. Um aspecto absolutamente necessário diante de todo esse discurso é indagar o quanto as Universidades públicas e privadas ajudam a construir o sujeito de maneira a preservar suas delicadas diferenças. Porque estas são as bases para o encontro de semelhanças27. O corpo docente deveria estar compromissado em saber ensinar e fazendo com que gradativamente seus discentes possam demarcar e preservar seus espaços. É preciso saber se na Universidade brasileira, tanto pública quanto privada, o sujeito é necessário e se fará com que eles sejam formados ou se as instituições permitirão somente alguns raros alunos tornarem-se sujeitos ao acaso. Será que a missão da instituição dita Universidade está clara, quando é ela quem norteia os valores, os objetivos, estratégias e táticas seguindo as políticas vigentes ? O estado capitalista neoliberal, quando se apropria de instrumentos científico e tecnológico na área da saúde tem o dever de avaliar o valor, o tipo e o tempo de retorno de um modelo de atuação médico sanitário. Concordamos com Minayo40, em que “a concepção biomédica reduz a doença e a saúde ao contorno biológico individual separando o sujeito de seu contexto integral de vida”. Levando, portanto, a medicina à tratar o corpo como uma máquina. Isto é produto da história social e conceitual. Se avaliarmos os corpos sociais e não somente os biológicos, a saúde coletiva passa por uma análise do processo saúde/doença. E por sua vez às relações estabelecidas na estrutura econômica e político ideológico da sociedade. A ausência desse equilíbrio, “gera desigualdade nos níveis de vida e falta de atenção às necessidades humanas particularizadas”10. As mudanças na saúde requerem transformações na vida das pessoas e conseqüentemente, na realidade de uma sociedade. Lembrando os dizeres de Costa e Fuiscela19: “Educação e saúde estão intimamente ligadas ao exercício da cidadania, luta por melhores condições de vida”. O processo de construção de mudanças não pode ter aindiferença de governantes e educadores e fica claro que esse desempenho é decisivo para alterar o quadro sombrio com relação à saúde brasileira. É necessário preservar os espaços coletivos para debates, pois os desafios são muitos e as áreas de desconhecimentos também são freqüentes. Portanto há necessidade de reflexões críticas tanto do estado quanto das Universidades. Nesse contexto, podemos pensar numa estratégia fundamental de mudança onde possa “humanizar o sistema à medida que fundamenta o estado de direito”13. A dita sociedade do conhecimento na atualidade não trouxe melhorias na saúde coletiva para o nosso país. Há uma unanimidade entre autores da correlação entre saúde e educação, e uma marcada interferência do ensino universitário de um modo geral. A Universidade terá que refletir seriamente na forma de inserir pesquisa aproximando-a dos problemas e demandas sociais da realidade em crise. As Universidades públicas passam por uma séria crise com relação ao investimento em pesquisa, concentrando essa qualificação em pouquíssimos estados brasileiros. Contraditoriamente a tudo que comentamos, a pesquisa qualitativa é pouco valorizada no mundo acadêmico, quando na verdade é ela que estuda o “recorte do real”, as demandas sociais e os sujeitos objetos dessa pesquisa. A sociedade do conhecimento requer um novo profissional, responsável pelo trabalho e em constante aperfeiçoamento, pois o mundo Namen FM, Galan Jr. J, Cabreira RD Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 53 “está mudando tão rapidamente que podemos ficar paralisados se não desafiarmos nossas crenças e paradigmas”41. O processo de formação do discente não pode mais ignorar as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais. É necessária uma maior visibilidade e importância da definição de políticas públicas para a real possibilidade de investimento e formação de recursos humanos. Deve-se diminuir a dicotomia existente entre o que é ensinado na Universidade e aquilo com que o profissional confronta na realidade. O mais notável dessa reticência filosófica em levar em consideração unicamente a realidade é que ela não provém de modo algum, contrariamente ao que se poderia prever, de uma angustia legítima ante a imensidade e portanto a impossibilidade de tal tarefa, mas sim de um sentimento exatamente oposto; concordamos com o pensamento de Rosset32 sobre a idéia de que “a realidade, mesmo supondo essa inteiramente conhecida e explorada, não entregará jamais as chaves de sua própria compreensão, por não conter em si mesma as regras de decodificação que permita decifrar sua natureza e seu sentido”. E é a inadequação do profissional tradicional a essa realidade, tanto nas esferas púbica quanto privada, que traz parte do problema da saúde no Brasil. No tocante ao público e privado, é interessante apontar o que é comum presenciarmos nas Universidades: a administração caseira de suas atividades, seus problemas e recursos organizacionais, que passam do interior do lar para a luz da esfera pública. Ambas as esferas não valorizam o significado dos dois termos e sua importância para a vida do indivíduo e cidadão, a ponto de torná-los quase irreconhecíveis. A Universidade privada tem que estar atenta a sua “natureza pública”. Esse aspecto de privação quando empregamos a palavra privatividade se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada através do moderno individualismo. Uma grande interferência no processo educacional é a chamada pós-modernidade, onde autores como Bauman33 sugerem uma metáfora da “liquidez”. Pensando em ideologia, essa efemeridade tira toda solidez para mudanças, mudanças estas que requerem um processo desconstrutivo e, no entanto a atualidade se defronta com mudanças rápidas e temporárias. Esse quadro atual traz, para o jovem recém formado, instabilidade e falta de identidade. O que se constata é que há “Uma ideologia que se recusa a fazer julgamentos e debater seriamente questões relativas a modos de vida, acreditando afinal que não há nada a ser debatido”33. Esta é a situação ilustrativa da Universidade onde há grandes projetos a serem realizados e debatidos, desde que a própria Universidade não tenha que promover nenhuma mudança em si mesma. O fenômeno da globalização na pós- modernidade, sem controle político ou ético, dissemina não só incertezas e ansiedades e ainda solapa as bases da nossa existência. Logo o processo da educação, saúde e sociedade estão interligadas ao que se chama de “mundo das dependências globais”. Ao considerarmos que na formação de indivíduos da área de saúde o contato com o real implica numa grande complexidade, as Universidades estão devendo aos cidadãos uma forma de vivenciar e não a imposição da aceitação do real. Pois a aceitação do real pressupõe uma inconsciência ou uma consciência que fosse capaz de conhecer o pior e de não ser mortalmente afetado por esse conhecimento e essa vivência. Essa teoria, segundo Rosset32, implica dizer que a realidade é fundamentalmente ambígua, para não dizer paradoxal: sendo ao mesmo tempo reconhecida por todo mundo e desconhecida de cada um em particular. Do ponto de vista educação, pensamos que a filosofia - sendo o estudo do real - não é compreendida pelo profissional da área de saúde, que não só ignora como não tem acesso a esses estudos para o entendimento mínimo da dimensão trágica e dolorosa do que se chama realidade. A atual educação na área de saúde e seu cientificismo não têm se preocupado com o saber filosófico. Dentro desse contexto, uma discussão proposta nas universidades, que não sai do discurso, é a interdisciplinaridade. Porque não fica definido para essas escolas o que é conhecimento, o que elas querem transmitir e qual a missão delas em relação à realidade do país. E nem mesmo fica claro o papel intelectual das diferentes áreas. Daí a dificuldade de colaboração entre áreas diversas, tornando assim a interdisciplinaridade virtual. Existe um “interesse polido”, porque na verdade há uma convicção de todos no sentido de que nada que os outros possam ter a dizer tem importância no trabalho do outro. Concluímos que não é produzido nenhum trabalho em conjunto que Educação, Saúde e Sociedade Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v.9, n.1, p.43-55, dez.2007 www.ccs.uel.br/espacoparasaude 54 seja criativo e que possa resultar em um “produto” de uma equipe. A interdisciplinaridade está longe de ser uma discussão semântica, interferindo, entre outros contextos, na “velha discussão” entre pesquisa qualitativa e quantitativa. Podemos refletir a pesquisa qualitativa em saúde, tal como define Minayo40: “A saúde enquanto questão humana e existencial é uma problemática compartilhada indistintamente por todos os segmentos sociais. Porém, as condições de trabalho qualificam de forma diferenciada a maneira pela quais as classes e seus segmentos pensam, sentem e agem a respeito dela. Isso implica que, para todos os grupos, ainda que de forma específica e peculiar, a saúde e a doença envolvem uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana e de atribuição de significados. Pois a saúde e a doença exprimem agora e sempre uma relação que perpassa o corpo individual e social, confrontando com as turbulências do ser humano enquanto ser total. Nessesentido a pesquisa qualitativa entra como objeto principal de discussão, e entendida como aquelas capazes de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às "estruturas sociais", sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas”. É necessário superar a relação autoritária normalmente presente nos programas de saúde, sem expectativa ou vontade própria. É preciso inserir aspectos de natureza cultural e antropológica que determinem os comportamentos com relação à saúde42. Pois só assim alcançaremos novos patamares, sejam de civilização, educação ou qualidade de vida. REFERÊNCIAS 1. Vasconcelos A, Vasconcelos GAN. Cidadania, exclusão e saúde bucal. Ação Coletiva 1999; 2(2):29-33. 2. Marini C. Gestão pública: o debate contemporâneo. Salvador: FLEM; 2003. 3. Azevedo LCS. Gestão do conhecimento. MBA - Gestão em saúde. Rio de Janeiro, Ed. 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