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Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2004 Capítulo I 1 Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 1. O Início da Especulação Científica Considera-se que a ciência teve pelo menos dois nascimentos, na Grécia e na China. No caso da Grécia, o início da ciência é atribuído aos pensadores da cidade de Mileto (Ásia Menor, atual Turquia), no sec. VI a.C. No caso da China, um estágio semelhante existiu mais ou menos na mesma época, especialmente no estado de Chhi, na atual região do Shandong. Concentrando-nos na tradição ocidental, por que, afinal, atribui-se o início da ciência aos pensadores de Mileto1? Certamente muito já havia sido feito nas civilizações da Mesopotâmia, do Egito e do Mediterrâneo (Minóica e Micênica). Destaquemos os avanços feitos em tecnologia, medicina e astronomia. Com relação à tecnologia, em 3000 a.C, já havia a metalurgia, a tecelagem e a cerâmica, assim como o uso da roda em veículos de transporte (adaptado da roda do ceramista). A agricultura, com suas técnicas de irrigação, domesticação de animais, preparação e preservação de alimentos, foi essencial para o surgimento de cidades. Além disso, a escrita surgiu em torno de 3500 a.C. Tais desenvolvimentos técnicos implicam uma ciência? À medida que não envolvem uma teorização consciente, não. No entanto, tais desenvolvimentos certamente envolvem uma grande capacidade de observação e de aprendizado, que são essenciais na ciência. A medicina nos antigos Egito e Mesopotâmia era dominada por magia e superstição, mas diversos diagnósticos e tratamentos já eram oferecidos, incluindo a cirurgia, no Egito (voltaremos a esse assunto na seção II.1). Com relação à astronomia e à matemática, boa parte do esforço astronômico se dirigia à elaboração de calendários, o melhor dos quais era o egípcio. No entanto, foi na Babilônia que a matemática e a astronomia mais avançaram. Os babilônios introduziram um sistema numérico com “valor posicional”, como o nosso atual, só que na base 60 ao invés de na base 10. Já o sistema egípcio era como o romano, sendo inferior para certas operações, como as envolvendo frações. Os babilônios registravam sistematicamente os acontecimentos celestes, como os aparecimentos e desaparecimentos do planeta Vênus, eclipses solares e lunares, além de fenômenos meteorológicos. Com isso, eram capazes de fazer algumas previsões astronômicas, baseadas em regularidades aritméticas (e não modelos geométricos do cosmo), como as de eclipses lunares (os solares são mais difíceis de prever). Com este pano de fundo, o que os milésios como Tales, Anaximandro e Anaxímenes, além dos outros chamados “filósofos pré-socráticos”, trouxeram de novo? Em primeiro lugar, a separação entre a natureza e o sobrenatural. As explicações dos milésios não faziam referência a deuses ou forças naturais. Se na mitologia grega os terremotos tinham sua origem no deus dos mares (Poseidon), para Tales a explicação não envolvia deuses. Para ele, a terra boiava na água do oceano, e os terremotos teriam sua origem em grandes ondas e tremores marítimos. A segunda novidade dos gregos era a prática do debate. Os pensadores pré- socráticos discutiam criticamente as idéias de seus colegas e antecessores, muitas vezes em frente a uma platéia. Uma conseqüência disso é que diferentes explicações para um mesmo fenômeno natural passavam a competir entre si. O esforço para encontrar a melhor explicação 1 Seguimos aqui a problemática colocada por LLOYD, G.E.R. (1970), Early Greek Science: Thales to Aristotle, Norton, Nova Iorque. As seções 4-7 deste capítulo também se baseiam neste livro. TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 2 levava a uma reflexão a respeito dos pressupostos, das evidências e dos argumentos a favor e contra teorias opostas. Por que estas novidades surgiram numa cidade-estado grega no séc. VI a.C., e não em outro lugar ou em outra época? Uma contribuição decisiva foi dada pela organização política de cidades-estado como Mileto, Atenas e Corinto, onde os cidadãos participavam ativamente na escolha de membros do governo e na elaboração de leis. 2. Exemplo de Ciência: Psiconeuroimunologia O que é ciência? Tomemos um exemplo. Em 1974, o psicólogo Robert Ader (Universidade de Rochester, EUA) estava fazendo uma pesquisa corriqueira de condicionamento com ratos. Tratava-se de um estudo em que o rato aprendia a ter aversão ao gosto de uma solução com sacarina, porque logo após beber a gostosa solução ele recebia uma injeção de “ciclofosfamida”, que lhe provocava indisposição gastrointestinal. No estudo comprovou-se o fato esperado de que os ratos que bebiam uma dose menor de solução doce recuperavam-se da aversão mais rapidamente (digamos em três dias) do que aqueles que na primeira sessão beberam mais solução de sacarina (e que demoravam digamos sete dias). Note-se que ambos os ratos recebiam a mesma dose da substância que lhes fazia mal: por que então demoravam tempos diferentes para se recuperar da aversão? Porque o cérebro dos ratos associava o mal-estar à intensidade do gosto da sacarina, assim como nos experimentos pioneiros do russo Ivan Pavlov (1895) com o reflexo condicionado em cães. Ader estava fazendo o que o filósofo-da-ciência Thomas Kuhn2 chamou de “ciência normal”: solucionando pequenas charadas dentro do “paradigma” mais amplo inaugurado por Pavlov e pela psicologia comportamentalista (behaviorista). No entanto, uma coisa estranha começou a acontecer com os ratos de Ader: eles começaram a morrer numa taxa maior do que a esperada! Chamou seu colega imunologista Nicholas Cohen, que constatou que os ratos mortos estavam com seus sistemas imunes deprimidos, ficando assim mais suscetíveis às doenças usuais do laboratório. Sem que Ader soubesse, a droga que ele usara, a ciclofosfamida, também é um imunodepressor. Porém, tal depressão normalmente não se prolongaria pelos quinze dias em que a administração de sacarina era mantida nos ratos; ou seja, uma mera dose de ciclofosfamida não aumentaria muito a taxa de mortalidade dos ratos. O que estava acontecendo? Perceberam que o que estava acontecendo era que o sistema imune dos ratos (através de seu cérebro) passou a associar o gosto da sacarina à depressão imunológica! Toda vez que o rato tomava a solução de sacarina, o sistema imune deprimia, e isso por um período de tempo bem maior do que o tempo em que a aversão psíquica se mantinha. Com este resultado obtido de maneira acidental, ocorreu uma pequena “revolução científica”, para usar outro termo de Kuhn. Apesar da resistência de revistas importantes em publicar tais resultados, aos poucos outros cientistas começaram a repetir os experimentos, obtendo os mesmos resultados, e a área da “psiconeuroimunologia” (“neuroimunomodulação") nasceria, suplantando o dogma anterior de que o sistema neurológico e imunológico seriam basicamente independentes3. 2 KUHN, T.S. (1962), The Structure of Scientific Revolutions, U. Chicago Press. 2a ed. ampliada: 1970. A Estrutura das Revoluções Científicas, trad. B.V. Boeira & N. Boeira, Perspectiva, São Paulo, 2001 (numeração dos capítulos está uma abaixo do original). 3 Ver por exemplo: ADER, R. (2000), “On the Development of Psychoneuroimmunology”, European Journal of Pharmacology 405, pp. 167-76, ou o relato de DESOWITZ, R.S. ([1987] 1989), O Espinho na Estrela do Mar – Como funciona o sistema imunitário, Edições 70, Lisboa, pp. 187-93. TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 3 Para finalizar esta história, vale mencionar que em pouco tempo Ader descobriu, para sua surpresa, que os mesmos resultados já haviam sido estabelecidos na União Soviética por um discípulo de Pavlov, Sergei Metalnikoff, a partir de 1926. No entanto, tais resultados não foram aceitos no Ocidente, apesar de serem conhecidos. Isso revela a força que um paradigma tem de orientar a pesquisa dos cientistas, por vezes impedindo a realização de novas descobertas. Apesar disso, a ciência parece ter um método para sobrepujar dogmas que estejam em “crise” (ou seja, atolados em um mar de problemas não resolvidos) – crise essa que seria a pré-condição para a ocorrência de uma revolução, segundo Kuhn – ou que, por alguma outra razão, acabam cedendo às mudanças. 3. Definição de Ciência O exemplo examinado é um caso típico de atividade científica, em que conhecimento foi produzido. O que é conhecimento? A análise padrão, que remonta ao Teeteto de Platão, seria que conhecimento é uma crença verdadeira justificada. O pré-socrático Empédocles acreditava que o Cosmos tivesse sido criado em uma grande explosão; tal crença é verdadeira (segundo a concepção atual do big bang), mas ele não tinha justificação apropriada para tal crença (pois não tinha como observar o movimento das galáxias distantes, como Edwin Hubble faria em 1929). Assim, sua tese cosmogônica não seria “conhecimento”. Por outro lado, o médico helenista Erasístrato tinha justificativa para acreditar que as artérias continham ar, mas tal crença é falsa, portanto também não seria conhecimento. A definição de “conhecimento” apresentada tem sido criticada por filósofos a partir de alguns exemplos cuidadosamente elaborados4. Notemos também que ela pressupõe uma definição de “verdade por correspondência”, própria de uma atitude “realista” (explicaremos esses termos mais tarde). Por outro lado, se a ciência for reduzida a uma forma de “conhecimento”, nesse sentido estrito, então mesmo a física newtoniana não poderia ser considerada ciência, já que ela é falsa (uma saída seria trabalhar com uma noção de “verdade aproximada”). De qualquer forma, podemos dizer que a ciência é uma atividade que almeja o conhecimento (nesse sentido estrito). Mesmo sem nos preocuparmos com uma definição estrita de conhecimento, tolerando uma definição mais intuitiva, fica claro que há formas de conhecimento que não são científicas, como o chamado “conhecimento pessoal”. Sei que quando a galinha cacareja, ela está botando ovo, mas tal conhecimento não é considerado científico. Por outro lado, se colocarmos um certo “fator de crescimento” no bico de um embrião de galinha, ela nascerá com dentes, revelando que seus antepassados (dinossauros) tinham dentes e que essa capacidade genética encontra-se latente nos pássaros5. Tal conhecimento é claramente científico, pois ele não é óbvio nem imediato, e foi o resultado de muito trabalho metódico e da concatenação de observações e teorias. Assim, de maneira simplificada, podemos dizer que a ciência é uma forma de conhecimento não-imediata, e que por isso requer um método específico, mais sofisticado do que as simples observações e inferências que empregamos em nosso dia-a-dia. Além disso, o conhecimento científico que é obtido por um pesquisador deve ser verificável por outras 4 Ver MOSER, P.K. (1992), “Gettier Problem”, in DANCY, J. & SOSA, E. (orgs.), A Companion to Epistemology, Blackwell, Oxford, pp. 157-9. Uma boa introdução à análise padrão do conhecimento se encontra em CHISHOLM, R.M. ([1966] 1969), Teoria do Conhecimento, Zahar, Rio de Janeiro. 5 Maiores detalhes em: COHEN, P., “Monsters in our Midst”, New Scientist 2300, 21 julho 2001, pp. 30-33; artigo original: Proc. Nat. Acad. Sci. 97, 10044. TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 4 pessoas (como aconteceu com o experimento de Ader), de forma que a ciência seja considerada “objetiva”. Não precisamos nos preocupar com uma definição exata, “conjuntista”, de ciência, que estipularia precisamente as características necessárias e suficientes para que uma atividade seja considerada científica (associada a nomes como Aristóteles e Frege). Pelo contrário, podemos nos inspirar em um estilo de definição que podemos chamar de prototípico (inspirado na “semelhança de família” de Wittgenstein e no trabalho da psicóloga Eleonor Rosch, e descrito também pela lógica difusa ou fuzzy). Pesquisas em psicologia indicam que nossa mente não trabalha com conceitos definidos de maneira exata, mas sim com “protótipos”6. Temos um protótipo do que seja “cadeira”, um objeto que satisfaz um conjunto de propriedades: tem quatro pernas, um assento, um encosto, tem um tamanho compatível com o ser humano, pode ser usado para sentar, foi feito com a finalidade de que um ser humano nele sentasse, é rígido, etc. Se retirarmos uma dessas propriedades, continua sendo, claramente, “cadeira”. Mas se retirarmos duas, três, começaremos a ficar em dúvida. A definição prototípica incorpora a existência de zonas de transição entre diferentes protótipos, e não procura estipular de maneira arbitrária e convencional (como faria tipicamente uma “filosofia analítica” de inspiração conjuntista) uma linha de demarcação clara. Falando em galináceos, poderíamos relembrar o infame “problema do ovo e da galinha”: quem veio primeiro? Uma estratégia conjuntista definiria de maneira exata o que seria um Gallus gallus, por exemplo a partir de uma especificação detalhada das seqüências de DNA que caracterizariam uma galinha, e das seqüências que não a caracterizam. Desta forma, na linhagem das galinhas, teria havido uma primeira galinha que nasceu de um ovo que foi posto por uma não-galinha: assim, o ovo (de galinha) teria vindo antes da primeira galinha. Por outro lado, segundo uma definição prototípica, o problema não teria solução, pois a transição da proto-galinha para a galinha é suave, sem cortes. Busquemos então, para finalizar essa discussão, levantar uma lista de características que marcaram o surgimento da ciência, segundo o relato feito na seção anterior. Faremos isso considerando que, para estudarmos a ciência, devemos dividir suas características em três grandes classes: teoria, experimento e social. Assim, a ciência é uma forma de teorização que se baseia na experiência e que é sustentada por uma organização social. Dos traços práticos (experimentais) mencionados neste capítulo, podemos desatacar: a observação, a construção de artefatos, e a realização de experimentos (o que envolve um método). Dos traços teóricos, há o fornecimento de explicações, e especialmente as explicações naturalistas (sem o envolvimento de deuses); entre os babilônios, havia o registro sistemático (de observações) e a realização de previsões; com os pré-socraticos, vê-se claramente a busca de generalizações (do universal, acima do particular, como por exemplo: “tudo é água”). Por fim, dentre os traços sociais, mencionamos a prática do debate público, a difusão da educação e a importância da patronagem (financiamento da pesquisa). 4. Os Primeiros Filósofos-Cientistas Gregos Os filósofos-cientistas teóricos milésios são mais lembrados pelas três cosmogonias propostas. i) Tales (c. 585 a.C.) colocou a questão sobre o que veio primeiro, e concluiu que foi a água. No entanto, não se conhecem explicações sobre como esta água se transformaria em outras substâncias, como o fogo. 6 LAKOFF, G. (1987), Women, Fire and Dangerous Things. What Categories Reveal about the Mind, U. of Chicago Press. Em português, ver BARBOSA DE OLIVEIRA, M. (1999), Da Ciência Cognitiva à Dialética, Discurso Editorial, São Paulo, caps. 7-9. TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 5 ii) Anaximandro (555 a.C.) sugeriu que a primeira coisa não foi uma substância específica, mas algo indefinido, que chamou de Ilimitado. Apresentou também um relato de como este Ilimitado resultou nas coisas: “No nascimento deste mundo, uma semente de quente e frio se separou do Ilimitado e a partir disto uma bola de fogo girou no ar em torno da Terra, como o casco de uma árvore.” (Ver também a seção III.3.) iii) Anaxímenes (535 a.C.) voltou-se às evidências empíricas, sugerindo que o ar seria o princípio de tudo. Este ar se transformaria em água através da condensação, e em fogo através da rarefação. O próximo grupo a se destacar no cenário filosófico-científico se concentrou em torno de Pitágoras. Nascido na ilha de Samos, na Ásia Menor, mudou-se para Crotona, na Magna Grécia (atual Itália), onde formou uma escola religiosa, filosófica e política. Aristóteles atribuiu aos milésios a busca pela “causa material” das coisas. Já os pitagóricos viam nos números os elementos básicos de tudo, o que pode ser considerado uma “causa formal” (na terminologia aristotélica, que veremos adiante). Os pitagóricos aplicavam a numerologia para tudo. Com isso, realizaram talvez o primeiro estudo empírico sistemático, ao elaborarem uma lei científica quantitativa, na acústica. Estudaram a relação entre os tons musicais de uma corda vibrante e seu tamanho, encontrando que os intervalos de oitava, quarta e quinta poderiam ser expressos em termos de razões numéricas simples de comprimentos da corda, respectivamente 1:2, 2:3, 3:4. Estudaram também os sons gerados em jarros com diferentes níveis de água. Para os pitagóricos, os números exprimiam mais do que aspectos formais dos fenômenos: as coisas seriam feitas de números. Desenvolveram também vários modelos astronômicos. Os pitagóricos também foram importantes por terem desenvolvido métodos dedutivos em Matemática. O mais conhecido envolve a prova do “teorema de Pitágoras”, aplicável para os lados de um triângulo com ângulo reto: a² + b² = h², cujo enunciado já era conhecido dos babilônios. 5. O Problema da Mudança O grande problema metafísico do início do séc. V a.C. era o problema da mudança: como é possível algo mudar, e deixar de ser o que era? Heráclito de Éfeso (500 a.C.) salientava que tudo estava sujeito a mudanças: “panta rhei” (tudo flui). Explorava exemplos, como o da corda tensionada, que indicava que por trás de um repouso aparente havia uma interação entre contrários, que finalmente podia levar ao movimento (no caso, quando a corda é solta). Parmênides de Eléia (480 a.C.) tomava uma posição oposta. Mais do que qualquer pensador antes dele, Parmênides duvidava da evidência dos sentidos, colocando a razão como única fonte confiável de conhecimento. Em seu famoso poema, salientou que “o que é não pode deixar de ser”, ou que “do não-ser não pode surgir o ser”. Em suma, a mudança é impossível. As mudanças que vemos à nossa volta são apenas aparentes, não são reais. Após as conclusões de Parmênides, todos os filósofos gregos tinham que tomar uma posição em relação às suas teses. Anaxágoras de Clazômenas (445 a.C.), tutor de Péricles em Atenas, era um que concordava que “nada pode vir a ser a partir do não-ser”, mas explicava a mudança a partir da mistura de todas as substâncias. Por exemplo, enfocando o nosso corpo, perguntava como era possível que um cabelo pudesse surgir a partir do “não-cabelo”. Sua resposta era de que o cabelo já existia em nosso alimento, sendo então incorporado ao nosso corpo e saindo de nossa pele na forma de cabelo. O cabelo, então, deve ter existido desde o começo, na mistura TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 6 original de todas as coisas. Eis o sentido de seu enunciado de que “em tudo há uma porção de tudo”. Empédocles de Agrigento (445 a.C.), resolveu de maneira semelhante o paradoxo de Parmênidas. Concordava com as limitações do sentido, mas também argumentava que a razão era limitada. Concordando também que “nada pode vir a ser a partir do não-ser”, restaurava a noção de mudança postulando quatro elementos, terra, água, ar e fogo, que produzem mudanças ao se recombinarem e separarem. Para responder à questão de como apenas quatro “raízes” podiam levar a uma multiplicidade de diferentes substâncias, lançou a idéia de que os elementos se combinariam em diferentes proporções, dependendo da substância. Assim, por exemplo, o osso consistiria de fogo, água e terra na proporção 4:2:2, ao passo que o sangue consistiria dos quatro elementos em iguais proporções. Não efetuou, no entanto, nenhuma investigação empírica metódica para explorar sua idéia, que antecipou (de modo especulativo) a lei das proporções fixas da química moderna (ver também as seções II.1 e II.3). Outra abordagem para o problema da mudança foi o atomismo de Leucipo de Mileto (435 a.C.) e Demócrito de Abdera (410 a.C.). Segundo esta visão, só têm realidade os átomos e o vazio. Qualquer diferença que observamos no mundo é devido a modificações na forma, arranjo e posição dos átomos. Haveria um número infinito de átomos espalhados no vazio infinito. Os átomos estariam em movimento contínuo, chocando-se freqüentemente uns com os outros. Nas colisões, os átomos poderiam rebater ou então se ligarem através de ganchos ou formas complementares. Os atomistas, assim, escapavam das conclusões eleáticas postulando uma infinitude de seres (os átomos) e também a existência do não-ser (o vácuo). Demócrito foi um escritor prolífico, redigindo tratados de física, astronomia, zoologia, botânica, medicina, agricultura, pintura e guerra. Aplicou em detalhe o atomismo em sua doutrina das qualidades sensíveis (ver mais nas seções II.1 e II.3). Os pensadores do séc. V a.C. ocupavam-se com explicações sobre todo tipo de questão: Por que o mar é salgado? Por que o Nilo transborda? Como ocorre a diferenciação sexual em embriões? 6. Platão e a Matemática Na segunda metade do séc. V, três fatores influenciaram o desenvolvimento do pensamento grego: 1) A expansão da educação, associada ao movimento dos sofistas, que ensinavam qualquer matéria, além das já tradicionais gramática, música e poesia, em troca de dinheiro. 2) Uma virada das preocupações com a filosofia da natureza para a ética, feita por Sócrates e por muitos sofistas, como Protágoras. 3) Atenas tornou-se o principal centro intelectual da Grécia. Platão de Atenas (428-347 a.C.) herdou a preocupação moral de seu mestre, Sócrates, mas também fez contribuições importantes para a ciência. Fundou sua Academia em torno de 380 a.C., que agregou vários matemáticos, astrônomos e filósofos importantes. Apesar de se dedicar pouco a áreas particulares da ciência, Platão contribuiu de maneira significativa para a filosofia da ciência. Na República, Platão descreveu a educação do filósofo-rei, que deveria governar a república, e salientou a importância da razão sobre a sensação. A astronomia platônica, por exemplo, seria uma astronomia abstrata, matemática. Sua abordagem de matematização da ciência vinha junto com um desprezo pela observação, mesmo em uma ciência como a acústica. No Timeu, Platão apresenta uma cosmologia que parte da distinção entre o mundo mutável do vir-a-ser e as “Formas” que existiriam de maneira eterna. Ele reconhece que qualquer especulação sobre o vir-a-ser do mundo não pode ser considerada verdadeira, mas TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 7 isto por uma questão de princípio, e não por falta de evidência. Os problemas da física não podem ser resolvidos por métodos observacionais: tal atividade não passaria de mera “recreação”. A cosmologia de Platão envolve as Formas puras, as entidades particulares que são modeladas de acordo com as Formas, e uma teleologia, personificada por um demiurgo, o artesão divino, que imporia ordem à matéria. Tal demiurgo não seria onipotente e nem teria criado o mundo. Com relação à constituição da matéria, tomou os quatro elementos de Empédocles e os identificou com quatro sólidos regulares (Fig. I.1): fogo → tetraedro; ar → octaedro; água → icosaedro (20 faces); terra → cubo; o quinto sólido regular, o dodecaedro (12 faces) podia ser associada à matéria celeste. Como tais sólidos podem ser construídos a partir de unidades mais básicas (assim como as faces podem ser construídas de triângulos), Platão sugeriu explicações para algumas transformações na natureza. Por exemplo, a água se transforma em vapor porque o icosaedro da água (20 triângulos) se transformaria em dois octaedros (8 triângulos cada) de ar e um tetraedro (4 triângulos) de fogo. Platão, desta maneira, deu um passo a mais no atomismo antigo, introduzindo uma descrição geométrica precisa dos átomos, e descrevendo as mudanças por meio de fórmulas matemáticas. Platão, porém, não aceitava o vácuo de Leucipo e Demócrito. De qualquer forma, o destaque que Platão deu às simetrias das formas puras, como princípio explicativo da natureza, encontraria eco na física teórica do séc. XX. No Cap. IV examinaremos o estímulo que Platão deu ao projeto de “salvar as aparências” do movimento dos corpos celestes, usando exclusivamente movimentos circulares uniformes, que considerava o mais perfeito. Tetraedro Cubo Octaedro Dodecaedro Icosaedro 4 triângulos 6 quadrados 8 triãngulos 12 pentágonos 20 triângulos Figura I.1: Os cinco poliedros regulares em três dimensões.7 7. Aristóteles: Metafísica e Física Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) deixou uma vasta obra e exerceu uma influência incomparável até o séc. XVII. Para ele, a finalidade da ciência é revelar a causa das coisas. Por “causa”, ele entende quatro fatores: (i) a matéria – uma mesa é feita de madeira; (ii) a forma – a forma da mesa; (iii) a causa eficiente – a mesa foi feita por um carpinteiro; (iv) a causa final – a finalidade do carpinteiro. Essas noções se aplicam também aos objetos naturais. Tomemos como exemplo a reprodução de uma espécie animal, como o homem. A matéria seria fornecida pela mãe, a forma seria a característica definidora da espécie (no caso do homem, um bípede racional), a causa eficiente seria fornecida pelo pai, e a causa final seria o adulto perfeito para o qual cresce a criança. Na natureza a causa final não consistiria 7 A figura foi retirada do seguinte sítio: http://www.jimloy.com/geometry/hedra.htm . Como curiosidade, vale mencionar que o matemático suiço Ludwig Schläfli provou em 1852 que em quatro dimensões há seis polítopos regulares! Ver o sítio: http://mathworld.wolfram.com/PlatonicSolid.html . TCFC I (2004) Cap. 1 – Ciência: Caracterização e Primórdios na Grécia 8 de uma finalidade consciente, mas seria uma finalidade imanente, que pode ser impedida de acontecer devido à ação de outros fatores. A física aristotélica rejeitava a “quantificação das qualidades” empreendida pelos atomistas e por Platão. Partiu de dois pares de qualidades opostas: quente/frio, seco/úmido. Os corpos simples que compõem todas as substâncias são feitos de opostos: terra = frio e seco; água = frio e úmido; ar = quente e úmido; fogo = quente e seco. Os corpos celestes envolveriam um quinto elemento, o éter, que daria conta da imutabilidade dos céus, em seu eterno movimento circular. Na Terra, fogo e ar sobem naturalmente, água e terra descem. Há também movimentos não naturais, como quando uma pedra é jogada para cima. A “dinâmica” praticamente inexistia antes de Aristóteles. Os pré-socráticos falavam no princípio de “atração dos iguais pelos iguais”, o que explicaria porque a pedra tende a cair para o chão, mas o princípio se aplicava a tudo. Aristóteles, por contraste, refletiu sobre os fatores determinantes da velocidade de um corpo em movimento. Enunciou três leis em contextos diferentes. (1) Em “Sobre os Céus”, sugeriu que a velocidade v é diretamente proporcional ao peso P do corpo: v ∝ P. (2) Na “Física”, sugeriu que a velocidade é inversamente proporcional à densidade D do meio no qual se dá o movimento: v ∝ 1/D. Disso, inferiu que o movimento no vácuo seria impossível. (3) Ao tratar do movimento forçado, sugeriu que a velocidade é diretamente proporcional à força aplicada F, e inversamente proporcional ao peso: v ∝ F/P. Reconheceu porém que há exceções, pois às vezes a diminuição da força leva abruptamente a uma situação sem movimento. A maior parte da obra científica de Aristóteles versa sobre a biologia. Ao contrário dos platônicos, ele valorizava a observação detalhada da natureza (como veremos na seção III.4), de maneira a fornecer explicações, estabelecendo as causas formais e finais dos fenômenos. Com relação às causas finais, tanto Platão quanto Aristóteles insistiam que a natureza é regida por um desígnio racional, em contraste com a abordagem mecanicista de Empédocles e dos atomistas.
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