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Personalidade individual e social

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PERSONALIDADE INDIVIDUAL E SOCIAL 
I. - A CIÊNCIA DO COSTUME 
Costumes e Comportamento 
A Antropologia ocupa-se dos seres humanos como produtos da vida em 
sociedade. Fixa a sua atenção nas características físicas e nas técnicas industriais, nas 
convenções e valores que distinguem uma comunidade de todas as outras que pertencem 
a uma tradição diferente. 
O que distingue a Antropologia das outras ciências sociais é o ela incluir 
no seu campo, para as estudar cuidadosamente, sociedades que não são a nossa 
sociedade. Para os seus fins qualquer norma social de casamento e de reprodução tem 
tanto significado como aquelas que nos são próprias, mesmo que seja a dos Dyaks do 
Mar, e não tem qualquer possível relação histórica com a da nossa civilização. Para o 
antropólogo, os nossos costumes e os de uma tribo da Nova Guiné são dois esquemas 
sociais possíveis, que tratam do mesmo problema, e cumpre ao antropólogo enquanto 
antropólogo, evitar toda e qualquer apreciação de um em favor do outro. Interessa-o a 
conduta humana, não como é modelada por uma certa tradição, a nossa tradição, mas 
como o foi por qualquer tradição, seja ela qual for. Interessa-o a vasta gama de costumes 
que existe em culturas diferentes, e o seu objetivo é compreender o modo como essas 
culturas se transformam e se diferenciam, as formas diferentes por que se exprimem, e a 
maneira como os costumes de quaisquer povos funcionam nas vidas dos indivíduos que 
os compõem. 
Ora o costume não tem sido considerado assunto de grande importância. O 
funcionamento íntimo do nosso cérebro, eis o que nos parece constituir a única coisa 
digna de estudo; o costume, temos tendência para pensar, é conduta na sua forma mais 
vulgar. De fato, o contrário é que é verdade. O costume tradicional, considerado pelo 
mundo em geral é uma massa de conduta pormenorizada mais espantosa do que o que 
qualquer pessoa pode jamais revelar nas ações individuais, por mais aberrantes. E no 
entanto isso é um aspecto um tanto trivial da questão. O que é verdadeiramente 
importante é o papel predominante que o costume desempenha no que se experimenta na 
vida diária e no que se crê, e as verdadeiramente grandes variedades sob que pode 
manifestar-se. 
A herança da criança 
Não há ninguém que veja o mundo com uma visão pura de preconceitos. 
Vê-o, sim, com o espírito condicionado por um conjunto definido de costumes, e 
instituições, e modos de pensar. Nem mesmo nas suas concepções filosóficas ele 
consegue subtrair-se a esses estereótipos; até os seus conceitos do verdadeiro e do falso 
são ainda referidos aos seus particulares costumes tradicionais. John Dewey disse 
perfeitamente a sério que o papel desempenhado pelo costume no moldar do 
comportamento do indivíduo, comparado com qualquer maneira por que este possa afetar 
o costume tradicional, está na mesma proporção que a totalidade do vocabulário da língua 
materna comparada com os termos da sua linguagem infantil adotados no vernáculo da 
família. Quando se estudam a serio ordens sociais que se puderam desenvolver 
autonomamente, aquela comparação não é mais que uma exata observação de fato. A 
 2 
história da vida individual de cada pessoa é acima de tudo uma acomodação aos padrões 
de forma e de medida tradicionalmente transmitidos na sua comunidade de geração para 
geração. Desde que o indivíduo vem ao mundo os costumes do ambiente em que nasceu 
moldam a sua experiência dos fatos e a sua conduta. Quando começa a falar, ele é o 
frutozinho da sua cultura, e quando crescido e capaz de tomar parte nas atividades desta, 
os hábitos dela são os seus hábitos, as crenças dela, as suas crenças, as incapacidades 
dela, as suas incapacidades. Todo aquele que nasça no seu grupo delas partilhará com ele, 
e todo aquele que nasça num grupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte 
dessa herança. Nenhum outro problema social nos cabe mais forçosamente conhecer do 
que este do papel que o costume desempenha na formação do indivíduo. Enquanto não 
pudermos compreender as suas leis e as suas variedades, os principais fatos que 
complicam a vida humana continuarão a ser para nós ininteligíveis. 
A nossa falsa perspectiva 
O estudo do costume só nos pode aproveitar depois de aceitarmos certos 
postulados; e alguns desses postulados têm encontrado erguida contra si uma oposição 
violenta Em primeiro lugar todo o estudo científico exige a ausência de tratamento 
preferencial de um ou outro dos termos da série escolhida para ser estudada. Em todos os 
campos menos sujeitos a controvérsia, como o estudo dos cactos, ou das térmites, ou da 
natureza das nebulosas, o método de estudo a seguir o de agrupar o material significativo 
e registar todas as possíveis formas e condições variantes. Foi deste modo que prendemos 
tudo o que sabemos das leis da astronomia, ou os hábitos dos insetos sociais, por 
exemplo. Só no estudo do próprio homem é que as mais importantes ciências 
substituíram aquele método pelo estudo de uma variação local - a civilização Ocidental. 
A Antropologia foi, por definição, impossível enquanto estas distinções 
entre nós próprios e o primitivo, nós próprios e o bárbaro, nós próprios e o pagão, nos 
dominaram o espírito. Foi necessário começar por atingir aquele grau de afinamento 
intelectual em que já não pomos a nossa crença em contraste com a superstição do nosso 
vizinho; foi necessário saber conhecer que aquelas instituições que assentam nas mesmas 
premissas, isto é: o sobrenatural, devem ser consideradas sob o mesmo angulo, aquelas 
como a nossa própria, para que tal impossibilidade desaparecesse. 
Na primeira metade do século XX este postulado elementar não podia 
ocorrer nem sequer ao espírito mais esclarecido dentre as pessoas da civilização 
Ocidental. O homem, através de toda a sua história, defendeu como um ponto de honra a 
idéia da sua incomparabilidade, do seu caráter de ser excepcional. No tempo de 
Copérnico esta reivindicação de supremacia era de tal modo ambiciosa que incluía 
mesmo a Terra em que ele vive, e o século XIV recusou-se com paixão a admitir a 
subordinação deste planeta a ocupar apenas um lugar entre os outros no sistema solar. No 
tempo de Darwin, tendo cedido ao inimigo o sistema solar, o homem lutou com todas as 
armas de que dispunha pela exclusividade da alma, atributo inconcebível dado por Deus 
ao homem, de maneira tal que negou a descendência do homem de quaisquer membros 
do reino animal. Nem a falta de continuidade lógica da argumentação, nem quaisquer 
dúvidas sobre a natureza dessa “alma”, nem sequer a circunstância de o século XIX não 
ter procurado afirmar a sua fraternidade com quaisquer estranhos ao grupo - nenhum 
destes fatos contaram contra a magnífica exaltação que se manifestou rapidamente 
perante a indignidade que a evolução propunha contra o conceito da excepcionalidade do 
 3 
homem, ser único entre os seres. 
Ambas essas batalhas se podem considerar ganhas - se não já, pelo menos 
em breve; mas a luta só mudou de frente. Hoje estamos perfeitamente dispostos a admitir 
que a revolução da terra em torno do Sol, ou a descendência animal do homem, quase 
nada tem que ver com a excepcionalidade das nossas realizações humanas. Se habitamos 
um qualquer planeta dentre miríades de sistemas solares, tanto maior glória para nós, e se 
todas as heteróclitas raças humanas estão ligadas, por evolução, com o animal, tanto mais 
radicais são as diferenças demonstráveis entre nos e qualquer animal, e tanto mais notável 
é a unicidade das nossas instituições. Mas as nossas realizações, as nossas instituições são 
únicas, incomparáveis; são de uma ordem diferente das das raças inferiores e têm de ser 
protegidas a todo o custo. De sorte que, ou sejauma questão de imperialismo, ou de 
preconceito de raça, ou comparação entre Cristianismo e paganismo, continuamos 
envaidecidos com a unicidade, não das instituições humanas do mundo em geral, com 
que, aliás, nunca ninguém se preocupou, mas das nossas próprias instituições e 
realizações, da nossa civilização. 
Confusão de costume local com Natureza humana 
A civilização Ocidental, devido a circunstâncias históricas fortuitas, teve 
uma expansão mais vasta do que a de qualquer outro grupo local até hoje conhecido. 
Estandardizou-se por sobre a maior parte do globo, e fomos, pois, levados a aceitar a 
crença na uniformidade da conduta humana, que noutras circunstâncias não teria surgido. 
Até povos muito primitivos tem, por vezes, muito mais forte consciência do que nós, os 
ocidentais, do papel das feições culturais, e por muito boas razões. Sofreram a 
experiência íntima de culturas diferentes. Viram a sua religião, o seu sistema econômico, 
as suas restrições matrimoniais tombarem perante o branco. Renunciaram a umas e 
aceitaram outras, muitas vezes com bem grande incompreensão delas; mas vêem com 
clareza que existem vários arranjos da vida humana. Atribuirão, por vezes, certos 
caracteres dominantes do branco à sua concorrência comercial ou às suas instituições 
militares, muito da forma por que fazem os antropólogos. 
O branco, esse, tem tido uma experiência diferente. Nunca, porventura, 
terá visto um homem de outra civilização, a não ser que o homem de outra civilização já 
esteja europeizado. Se viajou, muito provavelmente fê-lo sem nunca ter ficado fora de um 
hotel cosmopolita. Pouco sabe de quaisquer maneiras de viver que não sejam as suas. A 
uniformidade de costumes, de pontos de vista, que vê em volta de si parecem-lhe 
suficientemente convincentes, e esconde das suas vistas o fato de que se trata, afinal, de 
um acidente histórico. Aceita sem mais complicações a equivalência da natureza humana 
e dos seus próprios padrões de cultura. 
E no entanto, a grande expansão da civilização branca não é uma 
circunstância histórica isolada. O grupo Polinésio, em épocas relativamente recentes, 
espraiou-se desde Ontong, Java, até à ilha da Páscoa, de Havaí até à Nova Zelândia; e as 
tribos de língua Bantu espalharam-se desde o Sara à África do Sul. Mas nós em nenhum 
caso consideramos esses povos como mais do que uma variação local hipertrofiada da 
espécie humana. A civilização Ocidental teve todas as suas invenções em meios de 
transporte e todas as suas organizações comerciais de largo âmbito, a apoiar a sua vasta 
dispersão, e é fácil compreender historicamente como isto se deu. 
 4 
A nossa cegueira perante outras culturas 
As conseqüências psicológicas desta expansão da cultura branca têm sido 
desproporcionadas quando comparadas com as conseqüências materiais. Esta difusão 
cultural em grau mundial têm-nos impedido, como nunca o homem o foi até aqui, de 
tomar a sério as civilizações dos outros povos; tem feito que a nossa cultura e a nossa 
universalidade maciça tenham, desde há muito tempo, deixado de tomar em consideração 
o que é de essência histórica, e que assentamos ser, pelo contrário, necessário e 
inevitável. Interpretamos a dependência, em que estamos na nossa civilização, da 
concorrência econômica, como prova de que esta é a primeira causa determinante em que 
a natureza pode confiar, ou resolvemos, sem mais, que o comportamento das crianças tal 
como é moldado pela nossa civilização e registado nas clinicais para crianças, é 
Psicologia infantil ou o modo por que o animal humano jovem tem de se comportar. O 
mesmo se dá quer se trate da nossa ética quer da nossa organização familiar. O que 
defendemos é a inevitabilidade de cada motivação familiar, tentando sempre identificar 
os nossos modos locais de comportamento, com Comportamento, ou os nossos próprios 
hábitos em sociedade, com Natureza Humana. 
Ora o homem moderno fez desta tese uma das circunstâncias vitais do seu 
pensar e da sua conduta prática, mas as fontes de que ela provém recuam até ao que, a 
avaliar pela sua existência universal entre povos primitivos, parece ser uma das mais 
primitivas distinções humanas, a diferença qualitativa entre “o meu próprio” grupo 
fechado, e o que a ele é estranho. Todas as tribos primitivas concordam em reconhecer 
esta categoria dos estranhos ao seu grupo, aqueles que não só estão fora das disposições 
do código moral que é observado dentro dos limites do grupo de cada uma, mas a quem 
sumariamente se nega um lugar no esquema humano. Um grande número dos nomes de 
tribos comumente usados, Zuñi, Déné, Kiowa e outros, são nomes por meio dos quais 
povos primitivos se reconhecem a si próprios, e são os termos nativos que designam 
“seres humanos”, isto é, eles próprios. Fora do grupo fechado não há seres humanos. E 
isto, a despeito do fato de, de um ponto de vista objetivo, cada tribo estar rodeada por 
povos que partilham das suas artes e invenções materiais, de práticas complicadas que se 
desenvolveram através de trocas mútuas de comportamento entre um povoe outro. 
O homem primitivo nunca considerou o mundo nem viu a Humanidade 
como se fosse um grupo, nem fez causa comum com a sua espécie. Desde inicio foi um 
habitante de uma província que se isolou por meio de altas barreiras. Quer se tratasse de 
escolher mulher ou de cortar uma cabeça, a primeira distinção que fazia, e a mais 
importante, era entre o seu próprio grupo humano e os fora do grêmio. O seu grupo e 
todo os seus modos de comportamento, eram únicos. 
De modo que o homem moderno, quando distingue Povo Eleito e 
estrangeiros perigosos, grupos dentro da sua própria civilização genética e culturalmente 
aparentados um com o ouro, como quaisquer tribos na selva australiana o são, tem por 
trás da sua atitude a justificação de uma longa continuidade histórica. Os pigmeus têm as 
mesmas pretensões. E não nos fácil libertarmo-nos de uma feição humana tão 
fundamental mas podemos, pelo menos aprender a confessar a sua história e as suas 
polimorfas manifestações. 
Uma dessas manifestações, e aquela que é muitas vezes citada como 
 5 
primária e condicionada mais por emoções religiosas do que por este mais generalizado 
provincialismo, é a atitude universalmente sustentada nas civilizações Ocidentais na 
medida em que a religioso se conservou entre elas uma circunstância viva. A distinção 
entre qualquer grupo fechado e povos estranhos torna-se, em termos de religião, a de 
verdadeiros crentes e de pagãos. Durante milhares de anos não havia pontos de contato 
entre estas duas categorias. Não havia numa delas, idéias ou instituições que fossem 
válidas na outra Pelo contrário, todas as instituições eram consideradas antagônicas, só 
por pertencerem a uma ou a outra das, muitas vezes, levemente diferenciadas religiões: 
de um lado era uma questão de Verdade Divina e de verdadeiro crente, de revelação e de 
Deus; do outro era uma questão de erro mortal, de fábulas, do maldito e de demônios. 
Não se tratava de equacionar as atitudes dos grupos em oposição, e por conseqüência, 
compreender através de dados estudados objetivamente a natureza desta importante 
feição humana - religião. 
Preconceitos de raça 
Nós sentimos uma certa superioridade justificada quando se aceita uma 
caracterização, como esta, da atitude religiosa padrão. Pelo menos desembaraçamo-nos 
daquela absurdidade especial, e aceitamos estudar comparadamente as religiões. Mas 
considerando o alcance que uma atitude semelhante tem tido na nossa civilização sob a 
forma de, por exemplo, preconceitos de raça, justifica-se certo cepticismo quanto a ser a 
nossa largueza de vistas, em questões de religião, devida ao fato de termos superado a 
cândida infantilidadede visão, ou simplesmente ao fato de a religião ter deixado de ser o 
tablado em que se põem em cena as grandes batalhas da vida moderna. Nas questões 
realmente vitais da nossa civilização parece estarmos ainda longe de ter adquirido a 
atitude desinteressada que tão largamente alcançamos no campo da religião. 
Outra circunstância fez do estudo sério do costume uma disciplina ainda 
em atraso e muitas vezes cultivada com hesitação, e esta é uma circunstância mais difícil 
de vencer do que aquelas a que vimos de nos referir. O costume não provocou a atenção 
dos teorizadores sociais porque ele constituía a própria substancia do seu pensar: era, por 
assim dizer, a lente sem a qual nada podiam ver. Precisamente porque era fundamental, 
existia fora da sua atenção consciente. Tal cegueira nada tem de enigmático. Depois de 
um investigador reunir os vastos dados necessários para o estudo de créditos 
internacionais, ou do processo de aprender, ou do narcisismo como fator de 
psiconeuroses, é por intermédio e dentro deste corpo de dados que o economista, ou o 
psicólogos, ou o psiquiatra operam. .Não toma em consideração o fato de outros 
complexos sociais em que, porventura, todos os fatores se dispõem de uma maneira 
diferente. Isto é, não conta com o condicionamento cultural. Vê o aspecto que está a 
estudar como manifestando-se de modos conhecidos e inevitáveis, e apresenta estes como 
se fossem absolutos, porque a eles se reduzem todos os materiais que lhe servem para 
trabalhar racionalmente. Identificam-se atitudes locais da década de trinta, com natureza 
humana, e a sua caracterização, com Economia e Psicologia. 
Na prática, isto, muitas vezes, não importa. Os nossos filhos devem ser 
educados na nossa tradição pedagógica, e o estudo do processo de aprendizagem nas 
nossas escolas é o que realmente importa. Da mesma forma se justifica o encolher de 
ombros com que muitas vezes se acolhe uma discussão de outros sistemas econômicos 
que não o nosso. Afinal temos de viver dentro do quadro do meu e do teu que a nossa 
 6 
particular cultura estabelece. 
Isto é, realmente, assim, e o fato de as variedades de culturas se poderem 
discutir melhor tais como existem em espaço, é pretexto para a nossa nonchalance. Mas é 
apenas a limitação de material histórico o que impede que se tirem exemplos da sucessão 
das culturas em tempo. Essa sucessão é coisa a que não podemos furtar-nos, mesmo que 
o queiramos e quando olhamos mesmo só uma geração para trás que seja, então 
compreendemos até que ponto foi longe a revisão, por vezes no nosso mais íntimo 
comportamento. Até aqui tais revisões têm sido não deliberadas, mas o resultado das 
circunstâncias que só retrospectivamente podemos figurar. E se não fosse a nossa 
relutância em enfrentar mudanças culturais em questões essenciais, enquanto elas se nos 
não impõem, não seria impossível assumir uma atitude mais inteligente e autorizada. 
Aquela relutância é em grande parte um resultado da nossa incompreensão das 
convenções culturais, e especialmente uma sublimação daquelas que pertencem à nossa 
nação e à nossa década. Um conhecimento mesmo escasso de outras convenções e de 
como elas podem ser diferentes das nossas, contribuiria muito para promover uma ordem 
social racional. 
O estudo de culturas diferentes tem ainda outro alcance muito importante 
sobre o pensamento e o comportamento de hoje em dia. A vida moderna pôs muitas 
civilizações em contato íntimo, e no momento presente a reação dominante a esta 
situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, mais do que hoje, a civilização 
teve necessidade de indivíduos bem conscientes do sentido de cultura, capazes de verem 
objetivamente o comportamento socialmente condicionado de outros povos sem temor e 
sem recriminação. 
Desdém pelo estrangeiro não é a única solução possível do nosso atual 
contato de raças e nacionalidades; esta nem sequer é uma solução cientificamente 
alicerçada. A tradicional intolerância anglo-saxónica é uma feição cultural, local e 
temporal como qualquer outra. Mesmo um povo tão aproximadamente do mesmo sangue 
e da mesma cultura como o espanhol dela não sofreu, e o preconceito de raça nos países 
de colonização espanhola é uma coisa completamente diferente do dos países dominados 
pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. Nestes não se trata evidentemente de uma 
intolerância dirigida contra a mistura de sangue de raças biologicamente muito distantes, 
porque ocasionalmente a exaltação é tão grande contra o católico irlandês em Boston, ou 
o italiano na Nova Inglaterra, como contra o Oriental na Califórnia. É a velha distinção 
entre o grupo de dentro e o grupo de fora, e se neste aspecto continuamos a tradição 
primitiva, temos muito menos desculpa do que as tribos selvagens. Nós viajamos, 
orgulhamo-nos das nossas vistas desempoeiradas. Mas não conseguimos compreender a 
relatividade dos hábitos culturais, e continuamos privados de muito proveito e de muito 
prazer nas nossas relações humanas com povos de diferentes tipos de cultura, e a não ser 
dignos de confiança nas nossas relações com eles. 
O reconhecimento da base cultural do preconceito de raça é hoje uma 
necessidade desesperada na civilização Ocidental. Chegamos a um ponto em que 
alimentamos preconceitos de raça contra os nossos irmãos de sangue, os Irlandeses, e em 
que a Noruega e a Suécia falam da sua inimizade como se também eles representassem 
sangues diferentes. A chamada linha racial, durante uma guerra em que a França e a 
Alemanha se batem em campos opostos, mantém-se para dividir o povo de Baden do da 
 7 
Alsácia, ainda que somaticamente ambos pertençam à sub-raça alpina. Numa época de 
movimentos sem embaraços e de casamentos mistos na ascendência dos elementos mais 
desejáveis da comunidade, pregamos, sem corar de vergonha, o evangelho da raça pura. 
O homem moldado pelo costume não pelo instinto 
A isto a Antropologia dá duas respostas. A primeira respeita à natureza da 
cultura, e a segunda à natureza da herança. A resposta respeitante à natureza da cultura 
leva-nos até às sociedades pré-humanas. Há sociedades em que a Natureza perpetua o 
mais tênue modo de comportamento por meio de mecanismos biológicos, mas tais 
sociedades não são de homens, são de insetos. A formiga rainha, transportada para um 
ninho solitário, reproduzirá todas as feições do comportamento sexual, todos os 
pormenores do ninho. Os insetos sociais representam a Natureza não disposta a correr 
quaisquer riscos. O padrão de toda a estrutura social, confia-o ao comportamento 
instintivo da formiga. Não há maior número de probabilidades de as classes sociais de 
uma sociedade de formigas ou de os seus padrões de agricultura se perderem pela 
separação de uma formiga do seu grupo, do que de a formiga não vir a reproduzir a forma 
das suas antenas ou a estrutura do seu abdômen. 
Feliz ou infelizmente, a solução do homem ocupa o pólo oposto. Nada da 
sua organização social tribal, da sua linguagem, da sua religião local é transportado na 
sua célula germinal. Na Europa, em séculos passados, quando se encontravam crianças 
que tinham sido abandonadas e se tinham conservado em florestas, separadas de outros 
seres humanos, eram de tal modo parecidas entre si que Lineu as classificou como uma 
espécie à parte, Homo ferus, e supôs que eram uma espécie de anões raros. Não podia 
conceber que tivessem nascido de homens, esses brutos idiotas, esses seres sem interesse 
no que se passava à sua volta, oscilando ritmicamente para trás e para diante como 
qualquer animal de jardim zoológico, com órgãos da fala e da audição que mal podiam 
educar-se, que resistiam ao frio apenas com uns farrapos e tiravam batatas de água a 
ferver sem o menorincômodo. É claro que não havia qualquer dúvida que se tratava de 
crianças abandonadas na infância, e o que a todas faltara fora a associação com os seus 
semelhantes, só através da qual as faculdades do homem se afinam e ganham forma. 
Hoje, na nossa civilização, mais humanitária, já não se encontram crianças 
selvagens. Mas o fato ressalta com igual clareza de qualquer caso de adoção de uma 
criança em outra raça ou cultura. Uma criança Oriental adotada por uma família 
Ocidental, aprende inglês, revela para os seus pais adotivos as atitudes correntes entre as 
crianças com quem brinca, e encarreira-se para as mesmas profissões que elas escolhem. 
Aprende todo o conjunto de feições culturais da sociedade que adotou, e o grupo dos seus 
verdadeiros progenitores não desempenha em tudo isto qualquer papel. O mesmo se 
passa em grande escala quando populações inteiras se desembaraçam da sua cultura 
tradicional em duas ou três gerações e adotam os costumes de um grupo estrangeiro. A 
cultura do Negro americano nas cidades do norte veio a aproximar-se em todos os 
pormenores da dos brancos nas mesmas cidades. Há alguns anos, quando se fez um 
recenseamento cultural em Harlem, um dos traços peculiares aos Negros era a moda que 
seguiam de apostar nos três últimos algarismos dos investimentos da bolsa no dia 
seguinte. Pelo menos saía mais barato do que a correspondente predileção dos brancos 
por jogarem na própria bolsa, e tinha a mesma incerteza e era igualmente excitante. Era 
uma variante do padrão branco, mas nem por isso se afastava muito dele. E a maioria das 
 8 
feições de Harlem conservam-se ainda mais próximas das formas correntes em grupos 
brancos. 
Por toda a parte, e desde o princípio da história do homem, se demonstra 
que certos povos puderam adota a cultura de povos de outro sangue. Não há na estrutura 
biológica do homem nada que torne isto sequer difícil, muito menos impossível. O 
homem não é obrigado, pela sua constituição biológica, a obedecer em pormenor a 
qualquer variedade particular de comportamento. A grande diversidade de soluções 
elaboradas por ele em diferentes culturas relativamente à união dos sexos, por exemplo, 
ou ao comércio, são todas igualmente possíveis na base dos seus dotes originais. A 
cultura não é um complexo que seja transmitido biologicamente. 
O que se perde em garantia de segurança dada pela Natureza é 
compensado pelas vantagens de uma maior plasticidade. No animal humano não se 
desenvolve, como no urso, um revestimento de pêlos que o resguardam do frio, com o 
resultado de, depois de muitas gerações, se adaptar aos rigores árticos. Ele aprende, sim, 
a fazer agasalhos e a construir uma casa de neve. Pelo que nos diz a história da 
inteligência nas sociedades pré-humanas, como nas humanas, esta plasticidade foi o 
húmus em que o progresso humano começou a crescer e em que se tem mantido vivo. 
Nos tempos dos mamutes, espécies sobre espécies sem plasticidade surgiram, 
ultrapassaram-se e desapareceram, vitimas do desenvolvimento daquelas mesmas feições 
que a adaptação ao ambiente nelas tinha produzido. Os animais carnívoros e por fim os 
símios superiores vieram lentamente a apoiar-se em adaptações não meramente 
biológicas, e foi sobre a conseqüente plasticidade assim aumentada que se estabeleceram, 
pouco a pouco, as fundações para o desenvolvimento da inteligência. Talvez, como 
muitas vezes se sugere, o homem venha a destruir-se a si próprio em virtude exatamente 
do desenvolvimento da sua inteligência. Mas nunca ninguém se lembrou de aventar 
quaisquer meios por que possamos voltar aos mecanismos do inseto social; de modo que 
não nos resta qualquer alternativa. A herança cultural humana, para nosso bem ou para 
nosso mal, não se transmite biologicamente. 
O corolário que daqui deriva em política moderna é que não há qualquer 
fundamento no argumento de que podemos confiar as nossas conquistas espirituais e 
culturais a quaisquer plasmas germinais especiais hereditários. Na nossa civilização 
Ocidental a liderança passou, em diferentes períodos, sucessivamente para os Hamitas, 
para o subgrupo Mediterrâneo da raça branca e finalmente para os Nórdicos. Não há 
qualquer dúvida acerca da realidade do fato da continuidade cultural da civilização, seja 
quem for o seu portador em dado momento. Temos de aceitar todas as implicações da 
nossa herança humana, uma das maiores das quais é a inimportância relativa do 
comportamento biologicamente transmitido, e o papel enorme do processo cultural da 
transmissão da tradição. 
A “pureza racial” é uma ilusão 
A segunda resposta dada pela Antropologia ao argumento do purista 
racial, respeita à natureza da hereditariedade. O purista racial é a vítima de um mito. 
Porque, o que vem a ser “herança racial”? Sabe-se mais ou menos o que é herança de pai 
para filho. Dentro de uma linhagem familiar a importância da hereditariedade é imensa. 
Mas hereditariedade é uma questão de linhagens familiares. Para além disso é mito. Em 
 9 
comunidades pequenas e estáticas, como uma aldeia Esquimó isolada, hereditariedade 
racial e hereditariedade de filho e pais são praticamente equivalentes, e nessas condições 
a expressão hereditariedade racial faz sentido. Mas como conceito aplicado a grupos 
espalhados por uma área vasta, digamos, no caso dos Nórdicos, não tem qualquer base 
real. Em primeiro lugar, em todas as nações nórdicas há linhagens de família que também 
são representadas em comunidades alpinas ou mediterrâneas. Qualquer análise da 
constituição física de uma população européia apresenta zonas de sobreposição: o Sueco 
de olhos e cabelos escuros representa linhagens de família que são mais concentradas 
para o Sul, mas ele deve ser considerado em relação ao que sabemos destes últimos 
grupos. A sua hereditariedade, na medida em que tem qualquer realidade física, é uma 
questão da sua linhagem de família, que não se confina à Suécia. Não sabemos até que 
ponto tipos físicos podem variar sem entremistura. Sabemos que o intracruzamento 
provoca o aparecimento de um tipo local. Mas este caso quase não se dá na nossa 
cosmopolita civilização branca, e quando se invoca “hereditariedade racial”, como é 
habitual, para reunir um grupo de pessoas com, aproximadamente, a mesma posição 
econômica, com cursos de, aproximadamente, as mesmas escolas, e que lêem os mesmos 
semanários, tal categoria é nada mais do que outra versão do grupo dentro do grêmio e do 
grupo fora do grêmio, e não se refere à verdadeira homogeneidade biológica do grupo. 
O que na realidade liga os homens é a sua cultura - as idéias e os padrões 
que têm em comum. Se em vez de escolher um símbolo como hereditariedade de sangue 
comum, e de o arvorar em moto, a nação dirigisse antes a sua atenção para a cultura que 
une o seu povo, pondo em relevo os seus méritos e reconhecendo os diferentes valores 
que se podem desenvolver uma cultura diferente, substituiria uma espécie de simbolimo 
perigoso, por ser enganador, por um pensar realista. 
Razão para se fazer o estudo de povos primitivos 
No pensar social é necessário um conhecimento de diferentes formas de 
cultura, e este livro ocupa-se deste problema da cultura. Como acabamos de ver, forma 
do corpo, ou raça, é separável de cultura, e, para o fim que temos em vista, tal conceito 
pode ser posto de parte, exceto em certos pontos em que por qualquer razão especial 
passe a ser relevante. Uma discussão de cultura exige em primeiro lugar que se baseie 
numa larga seleção de formas culturais possíveis. Só assim poderemos distinguir entre 
aqueles ajustamentos humanos culturalmente condicionados e os que são comuns e, tanto 
quanto podemos saber, inevitáveis, na humanidade. Não podemos, por introspeção ou porobservação de qualquer sociedade, descobrir que comportamento é “instintivo”, isto é, 
organicamente determinado. Para classificarmos de instintivo qualquer comportamento, 
não basta provar que ele é automático. O reflexo condicionado é tão automático como o 
determinado organicamente, e reações culturalmente condicionadas constituem a maioria 
do nosso vasto equipamento de comportamento automático. 
Por conseqüência o material mais significativo para o caso de uma 
discussão de formas e processos culturais é o das sociedades tanto quanto possível 
historicamente pouco relacionadas com a nossa e entre si. Com a vasta rede de contatos 
históricos que as grandes civilizações espalharam sobre enormes áreas, as culturas 
primitivas são hoje a única fonte a que devemos recorrer. Elas são um laboratório em que 
podemos estudar a diversidade de instituições humanas. Com o seu relativo isolamento, 
muitas regiões primitivas tiveram ao seu dispor vários séculos em que puderam elaborar 
 10 
os temas culturais de que se apropriaram. Fornecem-nos, prontas para serem estudadas, 
informações relativas a possíveis grandes variações em ajustamentos humanos, e para 
qualquer compreensão dos processos culturais é essencial um exame crítico desses 
ajustamentos. É este o único laboratório de formas sociais de que dispomos ou 
disporemos. 
Este laboratório tem outra vantagem. Os problemas põem-se, aqui em 
termos mais simples do que nas grandes civilizações Ocidentais. Com as invenções que 
tornam fáceis os transportes, com cabos internacionais, telefones, rádiotransmissão, 
aquelas invenções que asseguram permanência e vasta distribuição da imprensa, o 
desenvolvimento de grupos profissionais, cultos e classes em concorrência e a sua 
uniformização por todo o mundo, a civilização moderna tornou-se demasiadamente 
complexa para ser convenientemente analisada, exceto quando, para isso, se fracione em 
pequenas seções artificiais. E estas análises parciais são inadequadas porque muitos 
fatores externos que se apresentam não podem ser controlados. Uma revista de qualquer 
grupo envolve indivíduos provenientes de grupos heterogêneos opostos, com padrões 
diferentes, diferentes objetivos sociais, relações familiares e moralidade. A inter-relação 
destes grupos é demasiadamente complicada para a avaliarmos com o necessário 
pormenor. Na sociedade primitiva, a tradição cultural é suficientemente simples para que 
o saber de cada adulto a abranja, e os modos de proceder e a moral do grupo ajustam-se a 
um padrão geral bem definido. É possível neste ambiente simples, avaliar a inter-relação 
de aspectos de uma forma impossível nas correntes que se chocam na nossa complexa 
civilização. 
Nenhuma destas razões para insistir nos fatos de cultura primitiva tem 
nada que ver com o uso que classicamente se tem feito deste material. Este uso visava à 
reconstituição de origens. Os antropólogos anteriores tentavam dispor todos os aspectos 
de culturas diferentes numa seqüência evolutiva, desde as primeiras formas até ao seu 
desenvolvimento último na civilização Ocidental. Mas não se deve supor que ao discutir 
a religião Australiana, e não a nossa, nós, estamos a revelar a religião primitiva, ou que 
ao discutir a organização social Iroquesa revertemos aos hábitos de acasalamento dos 
primeiros antepassados do homem. 
Uma vez que somos forçados a aceitar que o homem constitui uma 
espécie, conclui-se daí que por toda a parte o homem tem atrás de si uma história 
igualmente longa. É possível que certas tribos primitivas se tenham conservado mais 
próximas de formas primitivas de comportamento do que o homem civilizado, mas pode 
suceder que isto seja apenas relativo, e as nossas suposições tanto podem ser verdadeiras 
como errôneas. Não se justifica que identifiquemos qualquer primitivo costume atual com 
o tipo original de comportamento humano. No ponto de vista de método só há urna 
maneira de atingir um conhecimento aproximado desses estádios primitivos da 
humanidade: pelo estudo da distribuição desse pequeno número de feições universais ou 
quase universais da sociedade humana. Muitas são bem conhecidas. Dentre elas todos 
concordam em contar o animismo i e as restrições exógamas sobre o casamento. Mais 
questionáveis são as concepções, que afinal mostram ser muito diferentes, sobre a alma 
humana e sobre uma vida futura. Crenças quase universais como estas últimas, podem 
justificadamente considerar-se como invenções humanas extraordinariamente antigas. O 
que não quer dizer que as consideremos determinadas biologicamente, pois que podem 
 11 
ter sido invenções muito primitivas do homem, feições “de berço” que se tornaram 
fundamentais em todo o pensar humano. Em última análise podem ser tão socialmente 
condicionadas como qualquer costume local. Mas tornaram-se desde há muito 
automáticas no comportamento humano. São antigas e universais. Mas não podemos 
concluir dai que as formas que hoje se podem observar sejam as formas originais surgidas 
nos tempos primitivos. Nem há qualquer processo de reconstituir essas origens a partir do 
estudo das suas variedades. Podemos isolar o núcleo universal da crença e derivar dele as 
suas formas locais, mas apesar disso é ainda possível que a feição particular tenha 
surgido de uma forma local pronunciada e não de qualquer mínimo denominador comum 
de todas as formas observadas. 
Por isto, a utilização de costumes primitivos no estabelecimento de 
origens é de natureza especulativa. É possível formular um argumento em apoio de 
quaisquer origens que se desejem, origens que se excluam mutuamente ou que sejam 
complementares. De todas as utilizações de material antropológico, é este aquele em que 
especulação seguiu especulação mais rapidamente, e em que, pela própria natureza da 
questão não é possível fazer prova. 
Tão-pouco a razão de utilizar sociedades primitivas na discussão de 
formas sociais está necessariamente relacionada com um romântico regresso ao 
primitivo. Ele não se filia em qualquer espírito de poetização dos povos menos evoluídos, 
Sob muitos aspectos a cultura de um ou outro povo seduz nos fortemente nesta era de 
padrões heterogêneos e de confusa agitação mecânica. Mas não é num regresso a ideais 
conservados por povos primitivos para nosso proveito, que a nossa sociedade curará os 
seus males. O romântico Utopismo que anseia pelo primitivo mais simples, por atraente 
que por vezes possa ser constitui nos estudos de Antropologia tanto um empecilho como 
um auxílio. 
O estudo cuidadoso das sociedades primitivas é hoje, como dissemos, 
importante, mas por fornecer material para o estudo de formas e processos culturais. 
Ajuda-nos a distinguir as respostas específicas de tipos culturais locais, das que são gerais 
na Humanidade. Além disto ajudam-nos a avaliar e compreender o papel imensamente 
importante de comportamento culturalmente condicionado. A cultura, com os seus 
processos e funções é um assunto sobre que necessitamos todo o esclarecimento possível, 
e em nada como nos fatos das sociedades pré-letradas nós podemos buscar colheita mais 
compensadora. 
 12 
II. - A DIVERSIDADE DE CULTURAS 
O vaso da vida 
Um chefe dos Índios Diggerii, como os habitantes da Califórnia lhes 
chamam, falou muito comigo a respeito dos hábitos do seu povo em tempos idos. Era 
cristão e pioneiro entre os seus na cultura de pêssegos e alperces de regadio, mas ao falar 
dos xamãs que, vira ele com os seus olhos, se tinham transformado em ursos durante a 
dança-dos-ursos, as mãos tremiam-lhe e a voz vibrava de emoção. Era uma coisa 
extraordinária a energia do seu povo nos tempos antigos. Mais do que tudo gostava de 
falar do que o deserto lhes dava como alimentos. Tratava cada plantaque arrancava, com 
amor e com uma segurança absoluta da sua importância. Nesses tempos o seu povo tinha 
comido “da saúde do deserto”, dizia ele, e ignorava tudo a respeito de latas de conserva e 
do que se vendia nos talhos. Tinham sido estas inovações que tinham acabado por fazê-
los degenerar. 
Um dia, sem transição, Romão começou a descrever como se esmagava o 
mendobi e se preparava sopa de bolota. “No principio”, dizia, “Deus deu um vaso a cada 
povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida”. Não sei se o símbolo 
aparecia em qualquer rito tradicional do seu povo que nunca descobri qual fosse, ou se 
era inventado por ele. É difícil admiti que o tivesse recebido dos brancos que conhecera 
em Barining; estes não eram gente que discutisse o ethos de diferentes povos Seja como 
for, no espirito deste índio humilde a figura de retórica era clara e rica de significado. 
“Todos enchiam o seu vaso mergulhando-o na água”, continuava, “mas os vasos eram 
diferentes. O nosso quebrou-se; desapareceu”. 
O nosso vaso quebrou-se. Aquilo que tinha atribuído significado à vida do 
seu povo, os rituais domésticos de tomarem os alimentos, as obrigações do sistema 
econômico, a sucessão dos cerimoniais nas aldeias, o estado de possessos na dança do 
urso, os padrões do bem e do mal - tudo desaparecera, e com isso a forma e o significado 
da sua vida. O velho conservava-se ainda vigoroso e continuava a ser quem orientava as 
relações dos seus com os brancos. Não queria ele dizer, com aquele modo de se exprimir, 
que se tratava de qualquer coisa como a extinção do seu povo. Mas no seu espírito havia 
como que a consciência da perda de qualquer coisa que tinha um valor igual ao da própria 
vida, toda a estrutura dos padrões e das crenças do seu povo. Havia ainda outros vasos da 
vida, talvez com a mesma água, mas a perda era irreparável. Não se tratava de juntar aqui 
isto, de tirar ali aquilo. A modelação do vaso fora fundamental, fosse como fosse era de 
uma só peça. Fora o seu vaso. 
Romão tinha tido a experiência pessoal daquilo de que falava. Fizera a 
forquilha entre duas culturas cujos valores e modos de. pensamento eram 
incomensuráveis. Duro destino. Na civilização Ocidental as nossas experiências foram 
diferentes. Somos educados para viver dentro de uma cultura cosmopolita, e as nossas 
ciências sociais, a nossa Psicologia e a nossa teologia teimam em ignorar a verdade 
expressa pela figura de Romão. 
O curso da existência e a pressão do ambiente, para não falar da facúndia 
da imaginação humana, proporciona um número incrível de orientações possíveis, todas 
as quais, aparentemente, permitem que sejam adotadas por uma sociedade. Há os 
 13 
esquemas da propriedade, com a hierarquia social que se pode associar ao que se possui; 
há coisas materiais e as complicadas técnicas correspondentes; há todas as facetas da vida 
sexual, da paternidade e do culto dos antepassados; há as associações ou os cultos que 
podem estruturar a sociedade; há as trocas econômicas: há os deuses e as sanções 
sobrenaturais. Cada um destes aspectos e muitos outros serão exaustivamente seguidos 
com uma elaboração cultural e cerimonial que monopoliza a energia cultural e deixa 
pouco lugar para a criação de outros aspectos. Aspectos da vida que se nos afiguram 
importantíssimos foram ignorados e desatendidos por povos cuja cultura, orientada 
noutra direção, esteve longe de ser pobre. Ou a mesma feição comum pode tornar-se 
complicada a tal ponto que a consideramos fantástica. 
Necessidade de uma seleção 
Passa-se na vida cultural o que se passa com a linguagem. O número de 
sons que as nossas cordas vocais e as nossas cavidades bucais e nasais podem emitir é 
praticamente ilimitado. As três ou quatro dezenas da língua inglesa constituem uma 
escolha que nem com a de outras línguas tão intimamente relacionadas com ela como o 
Alemão e o Francês coincide. Nunca ninguém ousou calcular o número total desses sons 
usados em diferentes linguagens. Mas cada língua tem de escolher os seus e de os aceitar, 
sob pena de perder toda a inteligibilidade. Uma língua que utilizasse mesmo as poucas 
centenas dos elementos fonéticos possíveis - e realmente registados - seria inutilizável 
como meio de comunicação oral. Por outro lado muito da nossa incompreensão das 
línguas que não sejam afins da nossa resulta de tentarmos relacionar sistemas fonéticos 
estranhos, com o nosso próprio como ponto de referencia. Nós só reconhecemos um K. 
Se outras têm cinco sons diferentes de K localizados em diferentes pontos na garganta e 
na boca, é-nos impossível compreender diferenças de vocabulário e de construção que 
dependem daquelas localizações enquanto não dominarmos estas. Nós temos um d e um 
n. Entre eles pode haver um som intermediário que, se não conseguimos identificá-lo, 
representaremos ora por um d ora por um n. introduzindo distinções que não existem. A 
condição prévia elementar da análise lingüística é possuir a consciência desse incrível 
número de sons ao nosso dispor, de que cada linguagem escolhe uns tantos. 
Também em cultura temos de imaginar um grande arco em que alinham os 
interesses possíveis que o ciclo da vida humana, ou o ambiente, ou as várias atividades do 
homem fornecem. Uma cultura que acumulasse mesmo uma proporção considerável 
desses interesses seria tão inteligível como uma linguagem que utilizasse todos os sons 
linguais, todas as suspensões glóticas, todas as labiais, dentais, sibilantes, e guturais das 
mudas às tônicas, das orais às nasais. O seu caráter distintivo, como uma cultura, depende 
da escolha de certos segmentos desse arco. Toda a sociedade humana, onde quer que seja, 
realizou essa escolha nas suas instituições culturais. Cada uma delas, do ponto de vista de 
qualquer outra, ignora o que é essencial e explora o que é irrelevante. Uma cultura quase 
não reconhece valores monetários: outra tornou-os fundamentais em todos os campos do 
comportamento. Numa sociedade a técnica é inacreditavelmente desdenhada, mesmo 
naqueles aspectos da vida que parecem necessários para garantir a sobrevivência; em 
outra tão simples como ela, os aperfeiçoamentos técnicos são extraordinariamente 
complexos e admiravelmente adequados a cada situação. Uma erige uma enorme 
superestrutura cultural sobre a adolescência, outra, sobre a morte, outra ainda, sobre a 
vida futura. 
 14 
O caso da adolescência é particularmente interessante, já porque está em 
foco na nossa civilização, já porque sobre ele dispomos de informações suficientes 
relativas a outras culturas. Entre nos toda uma vasta bibliografia de estudos psicológicos 
pôs em relevo a inevitável inquietação do período da puberdade. Na nossa tradição ele é 
um estado fisiológico tão precisamente caracterizado por explosões domésticas e por 
rebelião, como a tifóide o é pela febre. Não são os fatos que faltam. Na América são 
comuns. O problema está antes na sua inevitabilidade. 
Maneiras diferences em diferentes sociedades de considerar a 
adolescência e a puberdade 
O exame mais perfunctório dos modos como diferentes sociedades têm 
considerado a adolescência, põe em evidência o seguinte fato: mesmo naquelas culturas 
que dão mais importância a este aspecto, a idade em que fazem incidir a sua atenção varia 
num largo intervalo de anos. É, pois, imediatamente claro que se continuamos a pensar 
em termos de puberdade biológica as chamadas instituições de puberdade são uma má 
designação. A puberdade que elas consideram é de natureza social, e as cerimônias 
correspondentes são um reconhecimento, variável na forma, da nova condição do estado 
de adulto da criança. Esta investidura em novas ocupações e obrigações é 
consequentemente tão variada e culturalmente tãocondicionada como o são aquelas 
mesmas ocupações e obrigações. Se o único dever considerado honroso do homem adulto 
são os feitos guerreiros, a investidura do guerreiro faz-se mais tarde e é de natureza 
diferente da de uma sociedade em que o estado de adulto confere o privilégio de dançar 
numa representação de deuses mascarados. Para compreendermos as instituições de 
puberdade não é da análise da necessária natureza dos rituais de transição que nós 
precisamos: do que precisamos é, antes, de saber o que, em diferentes culturas, se 
identifica com o inicio da fase de adulto e quais os seus métodos de admissão no novo 
estado de maturidade. 
Maturidade na América Central significa capacidade de fazer a guerra. 
Honorabilidade nesta é a grande ambição de todos os homens. O tema sempre repetido da 
emancipação do mancebo, como da preparação para a carreira das armas em qualquer 
idade, é um ritual mágico do êxito na guerra. A tortura não é infringida aos iniciados por 
outrem, mas por estes a si próprios: cortam tiras de pele nos braços e pernas, amputam 
dedos, arrastam grandes pesos fixados aos músculos do peito ou das pernas. O seu 
galardão é exaltação de proezas em feitos de guerra. 
Na Austrália, pelo contrário, maturidade significa participação num culto 
exclusivamente masculino cuja feição fundamental é a exclusão de mulheres. Qualquer 
mulher que ouça sequer o homem que solta o urro do touro nas cerimônias, é condenada 
a morrer: ela nunca deve ter conhecimento dos ritos. As cerimônias de puberdade são 
repudiações simbólicas e complicadas das ligações com a fêmea: os homens são 
simbolicamente promovidos a seres que se bastam a si próprios elementos 
completamente responsáveis da comunidade. Para alcançarem esse fim empregam-se 
drásticos ritos sexuais e conferem-se ao iniciado garantias sobrenaturais. 
Os fatos fisiológicos claros da adolescência são, pois, principalmente, 
interpretados socialmente, mesmo onde eles são postos em relevo. Mas uma revista das 
instituições de puberdade torna evidente uma coisa: a puberdade é, no ponto de vista 
 15 
fisiológico, uma coisa diferente no ciclo vital do macho e da fêmea. Se o aspecto cultural 
acompanhasse o aspecto fisiológico, as cerimônias no caso das raparigas seriam mais 
fortemente caracterizadas do que no dos rapazes; isso, porém, não é o que se dá. As 
cerimônias celebram um fato social: as prerrogativas do homem têm mais largo alcance 
do, que as das mulheres, seja qual for a cultura, e por conseqüência, como nos casos 
acima citados, é mais comum nas sociedades darem atenção a este período nos rapazes do 
que nas raparigas. 
A puberdade de rapazes e de raparigas pode, porém, ser celebrada na tribo 
da mesma maneira. Onde, como no interior da Colúmbia Britânica, os ritos de 
adolescência são um treino mágico para todas as ocupações, os rapazes e as raparigas são 
sujeitos aos mesmos tipos de procedimento. Os rapazes fazem rolar pedras pelas 
montanhas empurrando-as encosta abaixo para serem rápidos na corrida, ou arremessam 
varas-de-arremesso para serem bem sucedidos nos jogos; as raparigas transportam água 
de fontes distantes ou deixam cair pedras entre as roupas e o corpo, para que os seus 
filhos nasçam com tanta facilidade como as pedras caem. 
Numa tribo como a Nandi, da região dos lagos da África Oriental, rapazes 
e raparigas partilham em comum num rito de puberdade uniforme, ainda que, atendendo 
ao papel dominante do homem na cultura, o seu período de treino juvenil seja mais 
intenso do que o das mulheres. Neste caso os ritos são uma provocação infligidas pelos já 
admitidos à situação de adultos, aos que eles agora são forçados a admitir no seu seio. 
Exigem deles o mais complexo estoicismo perante engenhosas torturas relacionadas com 
a circuncisão. Os ritos para os dois sexos são separados mas seguem o mesmo padrão. 
Em ambos, os noviços envergam para a cerimônia os vestuários dos seus namorados. 
Durante a operação espiam-se-lhes os mais ligeiros sinais de sofrimento, e a retribuição 
da coragem é conferida com grande regozijo pelo namorado, que se adianta para receber 
qualquer dos seus adornos. Para ambos, rapariga e rapaz, os ritos marcam a sua entrée 
numa nova situação de sexo: o rapaz é agora um guerreiro e pode ter uma namorada, a 
rapariga pode casar-se. Os testes de adolescência são para ambos os sexos uma provação 
pré-marital, em que a palma é conferida pelos respectivos namorados. 
Os ritos de puberdade podem também assentar nos fatos da puberdade da 
rapariga, sem admitir extensão aos rapazes. Um dos mais ingênuos deste gênero é a 
instituição da casa-de-engorda para raparigas, na África Central. Na região em que a 
beleza quase se identifica com a obesidade, a rapariga na puberdade é segregada, às vezes 
durante anos, alimentada com gorduras e substancias doces, e não desenvolve qualquer 
atividade, e fricciona-se-lhe o corpo repetidamente com óleos. Durante esse período 
ensinam-se-lhe os seus futuros deveres, e a reclusão termina com uma exibição da sua 
corpulência a que se segue o casamento com o noivo, orgulhoso. Quanto ao homem não 
se considera necessário que ele atinja semelhante forma de aparente beleza. 
As idéias usuais em torno das quais as instituições de puberdade gravitam, 
e que não se alargam naturalmente aos rapazes, são as relacionadas com a menstruação. 
A impureza da mulher menstruada é uma idéia muito espalhada, e em certas regiões a 
primeira menstruação tornou-se o foco em que convergem todas as atitudes com ela 
relacionadas. Os ritos de puberdade nestes casos têm um caráter completamente diferente 
dos daqueles de que já falamos. Entre os índios Carrier da Colúmbia Britânica, o temor e 
o horror da puberdade de uma rapariga atingiu o grau máximo. Os seus três ou quatro 
 16 
anos de isolamento designavam-se pela expressão “enterramento em vida”, e durante 
todo esse tempo ela vivia sozinha na selva, numa cabana de ramos afastada de todas as 
veredas freqüentadas. Constituía uma ameaça para todo aquele que sequer a visse, mesmo 
só de fugida, e as suas meras pegadas poluíam um carreiro ou um rio. Andava coberta 
com uma grande capa de pele curtida que lhe escondia a cara e os peitos e por trás lhe 
caía até aos pés. Os braços e pernas estavam carregados com tiras de tecido tendinoso, 
para a proteger do espirito mau de que estava possessa. Em perigo, ela mesma, constituía 
para os outros uma fonte de ameaças. 
As cerimônias de puberdade das raparigas, fundamentadas nas idéias que 
se associam ao mênstruo, são facilmente convertíveis no que, do ponto de vista do 
indivíduo em questão, é o comportamento exatamente oposto. Há sempre dois aspectos 
possíveis do sagrado; ele pode ser uma fonte de perigos ou uma fonte de bênçãos. Em 
certas tribos a primeira menstruação da rapariga é uma grande bênção sobrenatural. 
Assim, entre os apaches, vi os próprios padres passarem, de joelhos, diante da fileira de 
solenes rapariguinhas, para delas receberem a bênção de os tocarem. Todas as criancinhas 
e os velhos acorrem também até elas, para que os aliviem dos seus males. As 
adolescentes não são segregadas como fontes de perigos, mas rende-se-lhes preito como a 
fontes de bênçãos sobrenaturais. Pois que as idéias em que assentam os ritos de 
puberdade das raparigas, se fundamentam em crenças relativas à menstruação, tanto entre 
os Carrier como entre os Apaches, aqueles não são extensíveis aos rapazes, e a puberdade 
destes é celebrada em vez disso, e superficialmente, com simples testes e provas de 
virilidade. 
De modo que o comportamento de adolescência, mesmo nas raparigas não 
era ditado por qualquer caráter fisiológico do próprio período, mas sim por requisitos 
maritais ou mágicos comele socialmente relacionados. Estas crenças faziam que a 
adolescência fosse numa tribo serenamente religiosa e benéfica, e noutra, tão 
perigosamente impura que a adolescente tinha de advertir os outros em altos gritos, para 
que evitassem na selva a sua proximidade. A adolescência das raparigas pode também, 
como vimos, ser um tema que a cultura não institucionaliza. Mesmo onde, como na maior 
parte da Austrália. a adolescência dos rapazes recebe um tratamento complicado, pode 
suceder que os ritos sejam uma entrada na situação do estado de adulto e na participação 
do macho em questões de tribo, e que a adolescência da fêmea passe sem qualquer 
espécie de reconhecimento formal. 
Estes fatos, porém, deixam ainda sem resposta a questão fundamental. 
Não terão todas as culturas de enfrentar as perturbações naturais deste período, mesmo 
que se lhes não dê expressão institucional? A Dra. Mead estudou esta questão em Samoa. 
.Ai a vida da rapariga passa por períodos bem caracterizados. Os seus primeiros anos 
depois da infância, passa-os em pequenos grupos vizinhos de companheiras da mesma 
idade que os rapazes são estritamente excluídos. O cantinho da aldeia a que ela pertence é 
o que realmente importa, e os rapazitos são seus inimigos tradicionais. O seu dever é 
tratar da criança de idade infantil, mas em vez de ficar em casa a cuidar dela, leva-a 
consigo, e assim os seus divertimentos não são seriamente prejudicados. Alguns anos 
antes da puberdade, quando já ganhou forças suficientes para se lhe poderem exigir 
tarefas mais pesadas e se tornou suficientemente sensata para aprender técnicas que 
exigem mais habilidade, o seu grupo, em que cresceu e brincou, dispersa-se. Passa a usar 
 17 
trajes de mulher e cabe-lhe cooperar na lida da casa. Para ela este período é bem pouco 
interessante, e não passa de calma rotina. A puberdade não altera nada. 
Passados anos, depois de ser mulher feita, começam os tempos agradáveis 
de namoricos casuais e irresponsáveis que ela prolongará tanto quanto possa até ao 
momento em que é considerada já capaz de casar. Nenhuma manifestação social 
reconhece expressamente a sua puberdade, nem mudança de atitude nem expectativa. 
Tudo se passa como se a sua timidez de pré-adolescente continuasse durante alguns anos. 
A vida de rapariga, em Samoa, é absorvida por outras considerações que não a de 
maturação fisiológica do sexo, e a puberdade passa como um período particularmente 
apagado e calmo durante o qual não se manifestam quaisquer conflitos de adolescente. A 
adolescência, por conseqüência, não só não é celebrada por qualquer cerimonial, como 
não tem qualquer espécie de importância na vida emocional da rapariga e na atitude da 
aldeia para com ela. 
Povos que nunca ouviram falar de guerra 
A guerra é outro tema social que pode ser ou não considerado em cada 
cultura. Onde se lhe liga grande importância, pode ter objetivos diferentes, diferente 
organização relativamente ao Estado. e arrastar consigo sanções diferentes. Pode ser um 
meio de obter cativos para sacrifícios religiosos, como sucede entre os Astecas. Como os 
espanhóis combatiam, segundo o modo de ver Asteca, para matar, faltavam às regras do 
jogo. Os astecas perderam a coragem, e Cortês entrou vitorioso na capital. 
Há, até, em diferentes partes do mundo, noções a respeito da guerra que 
são, do nosso ponto de vista, ainda mais singulares. Para o fim que nos propomos basta 
notar o que se passa naquelas regiões em que não se encontram meios organizados de 
matança mútua entre grupos sociais. Só a nossa familiaridade com a guerra torna 
inteligível que um estado de guerra alterne com um estado de paz nas relações de uma 
tribo com outra. Esta idéia, e, naturalmente, perfeitamente vulgar em varias partes do 
mundo. Mas, por um lado, para certos povos, é inconcebível um estado de paz, o que para 
a sua maneira de ver, seria equivalente a admitir tribos inimigas na categoria de seres 
humanos que, por definição, eles não são, mesmo que a tribo excluída possa ser da 
mesma raça e ter a mesma cultura que as outras. 
Por outro lado, pode ser igualmente impossível a um povo, conceber um 
estado de guerra. Reassumes fala-nos da perplexidade com que o Esquimó reagiu à sua 
exposição do nosso costume. Os esquimós compreendem perfeitamente que se mate um 
homem. Se ele se lhe atravessa no caminho, deita contas à sua própria força e, se se sente 
capaz de o fazer, mata-o. Se o que matou é forte, não há intervenção social. Mas a idéia 
de uma aldeia esquimó atacar outra aldeia esquimó em ar de guerra, ou de uma tribo 
atacar outra tribo, ou, até, de outra aldeia poder ser legitimamente atacada de emboscada, 
é para eles completamente estranha. Matar é sempre matar, e não se distinguem, no cato, 
categorias, como nós fazemos: Ser o matar, num caso coisa meritória e noutro ofensa 
capital. 
Eu próprio tentei falar de guerra aos índios da Missão, da Califórnia, mas 
era coisa impossível. A sua incompreensão de um estado de guerra era irredutível. Não 
havia na sua cultura base em que assentasse tal idéia, e as suas tentativas de procurar 
interpretá-la racionalmente reduziam as grandes guerras, a que nós estamos prontos a 
 18 
entregar-nos com fervor moral, a meras desordens de vielas. Não tinham na sua cultura 
padrão nada que lhes permitisse distinguir uma coisa da outra. 
A guerra é, vemo-nos forçados a admitir, mesmo perante o lugar enorme 
que ocupa na nossa civilização, um aspecto associal. No caos que se seguiu à Segunda 
Grande Guerra Mundial, todos os argumentos que no decorrer dela se apresentavam para 
explicar o alto preço da coragem, do altruísmo, dos valores espirituais, soavam 
desagradavelmente a falso. Guerra, na nossa civilização. é o melhor exemplo dos 
excessos de destruição até que pode conduzir o desenvolvimento de uma feição 
culturalmente escolhida. Se justificamos a guerra é porque todos os povos justificam os 
aspectos de que se sentem possuidores, não porque a guerra resista a um exame objetivo 
dos próprios méritos. 
Costumes relacionados com o casamento 
A guerra não é um caso isolado. Em todas as partes do mundo e em todos 
os níveis de complexidade cultural e possível encontrar exemplos da elaboração 
presunçosa e, afinal de contas, associal de uma feição da cultura. Esses casos são da 
máxima clareza onde, como por exemplo, em normas de regime alimentar ou de 
acasalamento, a tradição vai contra os impulsos biológicos. A organização social, em 
Antropologia, tem um significado inteiramente especializado, devido à unanimidade, 
existente em todas as sociedades, em acentuar os grupos de parentesco em que o 
casamento é proibido. .Não há nenhum povo em que toda a mulher seja considerada 
como uma esposa possível. Isto não é um ,meio de, como muitas vezes se supõe, evitar 
uniões consangüíneas, no sentido em que isto nos é familiar, porque em muitas partes do 
mundo a esposa prevista é uma prima, muitas vezes a filha de um tio materno. Os 
parentes a que a proibição se refere variam radicalmente de povo para povo, mas todas as 
sociedades humanas se assemelham no respeitante a fazer restrições deste tipo. O incesto, 
mais do que qualquer idéia humana, tem tido, em cultura, constantes e complicadas 
elaborações. Os grupos de incesto são muitas vezes as unidades funcionais mais 
importantes da tribo, e os deveres de cada indivíduo em relação a qualquer outro 
definem-se pelas suas relativas posições nesses grupos. Tais grupos funcionam como 
unidades em cerimoniais religiosos e em ciclos de trocas econômicas, e é enorme o papel 
que têm desempenhado na história social. 
Algumas religiões consideram moderadamente tabu o incesto. A despeito 
das restrições feitas, pode haver um número considerávelde mulheres com que um 
homem pode casar. Noutras o grupo que é tabu, alarga-se, em virtude de uma ficção 
social, de modo a incluir grande número de indivíduos que não tenham quaisquer 
antepassados comuns discerníeis, c a escolha de uma consorte é consequentemente 
excessivamente limitada. Esta ficção social tem expressão inequívoca nos termos de 
relação de parentesco usados. Em vez de distinguir parentesco linear de parentesco 
colateral, como nós fazemos na distinção entre pai e tio, irmão e primo, um dos termos 
usados significa, literal mente, “homem do grupo de meu pai (parentesco , localidade, 
etc.) da sua geração” sem distinguir entre linhas direta e colateral, mas fazendo outras 
distinções que nós não fazemos. Certas tribos da Austrália oriental usam uma forma 
extrema deste chamado sistema de classificação de parentesco. Aqueles a quem chamam 
irmãos e irmãs são os da sua geração com quem reconhecem ter qualquer parentesco. A 
categoria primo ou qualquer coisa que lhe corresponda não existe; todos os parentes da 
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geração de um indivíduo são seus irmãos e irmãs. 
Este modo de avaliar o parentesco é mais comum do que pode julgar-se, 
mas na Austrália há, além disso, um horror sem igual pelo casamento com uma irmã, e 
um desenvolvimento sem paralelo de restrições exógamas. Assim os Kurnai, com o seu 
sistema de classificação de parentesco levado ao extremo, sentem o horror característico 
do australiano pelas relações sexuais com todas as suas irmãs, isto é, com as mulheres da 
sua geração que de qualquer modo com eles são aparentados. Além disto, os Kurnai têm 
regras locais estritas que presidem à escolha de uma companheira. Por vezes duas 
localidades das quinze ou dezasseis que pertencem à mesma tribo, são obrigadas a trocar 
as mulheres, e não escolher esposas em qualquer outro grupo. Mais ainda, como sucede 
em toda a Austrália, os velhos são um grupo privilegiado, e os seus privilégios vão até 
poderem casar com as raparigas jovens e atraentes. Resulta destas regras que, é claro, em 
todo o grupo local que deve por prescrição absoluta fornecer a um mancebo uma esposa, 
não há rapariga que não caia dentro do campo destes tabus. Ou é uma das que por 
parentesco com a mãe daquele é sua irmã. ou foi já negociada por um velho, ou por 
qualquer razão menos importante é vedada ao pretendente. 
Isto não leva os Kurnai a reformular as suas regras de exogamia. Insistem 
em que elas sejam respeitadas, por todas as formas de violência. Por conseqüência, o 
único meio por que conseguem casar-se é levantando-se francamente contra as 
regulações, recorrendo ao rapto. Logo que a aldeia tem conhecimento do que se passou, 
lança-se em perseguição dos fugitivos, e se o par é apanhado, matam os dois. Não 
importa que, como pode suceder, os perseguidores se tenham casado também por rapto. 
A indignação moral é enorme. Há, porém, uma ilha que é considerada refúgio seguro, e 
se os fugitivos conseguem chegar lá e aí se conservarem até que lhes nasça um filho, 
quando de volta são ainda recebidos com pancadas, é certo, mas podem defender-se. 
Depois de aceitarem o repto e de passarem entre filas de homens, e de serem por eles 
açoitados e espancados, assumem então o estado de pessoas casadas na tribo. 
Esta maneira de os Kurnai resolverem o seu dilema cultural é bem típica. 
Alargaram e complicaram um aspecto particular de conduta até ao ponto de o tornar um 
impedimento. Ou têm de o modificar, ou o rodeiam por subterfúgio. Ao recorrer ao 
subterfúgio evitam a extinção, e mantêm a sua ética sem alteração patente. Este modo de 
tratar o mores nada perdeu com o progresso da civilização. A geração antecedente da 
nossa civilização defendeu a prostituição, e nunca os louvores da monogamia foram tão 
fervorosos como nos grandes tempos dos bairros da lanterna vermelha às portas. As 
sociedades justificam sempre as fórmulas tradicionais favoritas. Quando estas são 
excedidas e se recorre a alguma nova forma de comportamento suplementar, presta-se 
preito à fórmula tradicional como se este não existisse. 
Entretecimento de feições culturais 
Esta rápida revista de formas culturais humanas põe a claro vários falsos 
conceitos comuns. Em primeiro lugar as instituições que as culturas humanas erigem 
sobre as indicações dadas pelo ambiente ou em virtude das necessidades físicas do 
homem, não se mantêm sem se desviarem do impulso original, tão integralmente como 
facilmente se julga. Aquelas indicações são, na realidade, meros esboços grosseiros, uma 
lista de fatos crus. São potencialidades ínfimas, e a elaboração que em volta delas se 
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borda é ditada por muitas considerações estranhas à questão. ,A guerra não é a expressão 
do instinto da belicosidade. A belicosidade do homem é uma característica tão ínfima no 
caráter humano que pode nem ter qualquer expressão nas relações entre as tribos. Quando 
é institucionalizada, a fórmula que assume segue outras linhas de pensamento diferentes 
das implícitas no impulso original. Belicosidade não passa de um leve ponto de contato 
na bola do costume, e um ponto, além disso, que pode não ser tocado. 
Este modo de ver os processos culturais exige uma retificação de muitos 
dos nossos argumentos correntes em defesa das nossas instituições tradicionais. Esses 
argumentos assentam ordinariamente na impossibilidade de o homem funcionar, na 
ausência dessas particulares formas tradicionais. Mesmo feições muito especiais intervêm 
nesta espécie de validação, como, por exemplo, a forma particular de móbil econômico 
que surge no nosso sistema particular de posse de bens individuais. E esta urna motivação 
especialíssima, e há provas de que mesmo na nossa geração está a sofrer fortes 
modificações. Seja porém como for, não temos de tornar confuso o problema discutindo-
o como se se tratasse de uma questão de valores de sobrevivência biológica. Manutenção 
do indivíduo é um motivo de que a nossa civilização tirou proveito. Se a nossa estrutura 
mudar de modo que este motivo perca o valor de móbil tão forte como o foi na era da 
grande fronteira e do industrialismo em expansão, há muitos outros motivos que seriam 
adequados a uma nova organização econômica. Cada cultura, cada era, explora apenas 
poucas de entre um grande número de alternativas possíveis. As transformações podem 
ser muito inquietantes e envolverem grandes perdas, mas isso resulta das dificuldades de 
tudo o que é mudança em si, não do fato de a nossa época e o nosso pais terem acertado 
na única possível motivação pela qual a vida humana pode conduzir-se. Devemos 
lembrar-nos que as transformações, apesar de todas as dificuldades que arrastam, são 
inevitáveis. Os nossos temores perante até os mínimos desvios da norma são, 
ordinariamente, inanes. As civilizações podiam mudar muito mais radicalmente do que 
qualquer autoridade humana jamais tenha desejado ou imaginado mudá-las, e no entanto 
funcionarem perfeitamente. As pequenas transformações que tanta repulsa hoje 
provocam, tais como o aumento do número de divórcios, a secularização cada vez maior 
das nossas cidades, as reuniões cariciosas de rapazes e raparigas, e muitas outras, podiam 
ajustar-se perfeitamente num padrão de cultura só muito levemente diferente do nosso. 
Desde que se tornassem tradicionais receberiam a mesma riqueza de conteúdo, a mesma 
importância e o mesmo valor que os velhos padrões tiveram noutras gerações. 
A verdade da questão está, antes, em que os possíveis motivos e 
instituições humanas são legião, em todos os planos de simplicidade ou complexidade 
culturais, e que a sabedoria consiste numa muito maior tolerância para com as suas 
variedades. Ninguém pode participar completamente em qualquer cultura se não tiver 
sido criado dentrodas suas formas e vivido de acordo com elas: mas todos podem 
conceder que outras culturas têm, para os seus participantes, o mesmo significado que se 
reconhecem na sua própria. 
A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as 
sociedades elaboram ou repudiam aspectos possíveis da existência. É devida ainda mais a 
um complexo entretecimento de feições culturais. A forma final de qualquer instituição 
tradicional vai, como dissemos, muito além do impulso humano original. Em grande 
parte esta forma final depende do modo como esta feição se fundiu com outras de 
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diferentes campos de experiência. 
Uma feição largamente espalhada pode, num povo, ser saturada com 
crenças religiosas e funcionar como um aspecto importante da sua religião. Noutro, pode 
ser absolutamente uma questão de transferência econômica e constituir, por isso, um 
aspecto dos seus arranjos monetários. As possibilidades neste campo são inúmeras, e os 
ajustamentos, muitas vezes singulares. A natureza da feição será variável com as regiões 
e de acordo com os elementos com que está combinada. 
Importa que vejamos claramente este processo, pois, de contrário, caímos 
facilmente na tentação de generalizar numa lei social geral os resultados de uma fusão 
local de feições, ou tomamos a sua união como um fenômeno universal. O grandioso 
período da arte plástica da Europa foi motivado religiosamente. A arte pintou e tornou 
propriedade comum as cenas religiosas e os dogmas, fundamentais no ponto de vista 
desse período. A estética européia moderna teria sido absolutamente outra se a arte 
medieval tivesse sido puramente decorativa e não tivesse feito causa comum com a 
religião. 
No ponto de vista puramente histórico têm-se, no campo da arte, dado 
grandes acontecimentos notavelmente alheios à motivação e à utilização religiosa. A arte 
pode manter-se definitivamente alheia à religião, mesmo onde uma e outra atingiram alto 
desenvolvimento. Nos povos do Sudoeste dos Estados Unidos, as formas de arte da olaria 
e dos tecidos provocam grande respeito nos artistas de qualquer cultura. mas os seus 
vasos sagrados usados pelos padres ou próprios dos altares são inferiores, e as 
decorações, rudes. e não estilizadas. Nalguns museus têm-se posto de parte objetos 
religiosos do Sudoeste por estarem muito abaixo do nível tradicional de habilidade. Os 
Índios Zuñis dizem, querendo significar que as exigências religiosas eliminam toda a 
exigência de perfeição artística: “Temos de representar aqui uma rã". Esta distinção entre 
arte e religião não é um caráter exclusivo dos Pueblos. Certas tribos da América do Sul e 
da Sibéria fazem a mesma distinção, ainda que a manifestem de maneiras diferentes. Não 
utilizam a habilidade artística para servir a religião. Em vez, pois, de buscarmos fontes da 
expressão artística em um assunto localmente importante, a religião, como os velhos 
críticos de arte por vezes tem feito, devemos antes investigar até que ponto arte e religião 
mutuamente se interpenetram, e as conseqüências de tal interpenetração para a arte e a 
religião. 
Espíritos guardiões e visões 
A interpenetração de diferentes campos da experiência, e a conseqüente 
modificação que para eles dai resulta, pode exemplificar-se por fatos de todas as fases da 
existência: economia, relações entre os sexos, folclore, cultura material e religião. O 
processo pode ser ilustrado por uma das feições religiosas largamente espalhadas dos 
Ameríndios do Norte. Por todo o continente, em todas as áreas de cultura, exceto a dos 
povos do Sudoeste, o poder sobrenatural obtinha-se através de um sonho ou visão. O 
êxito na vida, segundo as suas crenças, resultava de um contato pessoal com o 
sobrenatural. A visão de cada um conferia-lhe poder para durante toda a vida, e em certas 
tribos renovava-se constantemente o contato com os espíritos buscando novas visões. 
Fosse o que fosse que ele visse, um animal ou uma estrela, uma planta ou um ser 
sobrenatural, fazia de quem o visse um protegido pessoal, e aquele que assim f cava sob a 
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sua proteção, podia a isso recorrer quando o necessitasse. Ele tinha deveres a cumprir 
para com o seu patrono em visão, oferendas a dar-lhe e obrigações de toda a espécie. Em 
troca, o espirito conferia-lhe os poderes específicos que lhe prometera no momento da 
visão. 
Em cada grande região da América do Norte este complexo espirito 
guardião tomava formas diferentes segundo as outras feições da cultura com que estava 
mais íntimamente associado. Nos planaltos da Colúmbia Britânica associava-se com as 
cerimônias de adolescência a que nos referimos. Rapazes e raparigas, nessas tribos, iam, 
na adolescência, para as montanhas, para realizarem um treino mágico. As cerimônias de 
puberdade estão largamente espalhadas ao longo de toda a Costa do Pacífico, e na maior 
parte dessa região são completamente distintas das práticas do espirito guardião. Mas na 
Colúmbia Britânica confundiam-se. O clímax do treino de adolescência para os rapazes 
era a aquisição de um espirito guardião que pelos seus dons ditava a profissão do jovem 
para toda a vida. Seria guerreiro, sacerdote, caçador, jogador, segundo o que lhe ditasse a 
visão sobrenatural. As raparigas também recebiam os seus espíritos guardiões, que 
representavam os seus labores domésticos. A experiência do espirito guardião entre estes 
povos está tão profundamente moldada pela sua associação com o cerimonial de 
adolescência, que antropólogos que conhecem essa região têm sugerido que todo o 
complexo da visão dos ameríndios tem a sua origem nos ritos de puberdade. Mas não há 
correlação genética entre as duas coisas. Confundem-se, localmente, e ao confundir-se 
ambos os aspectos assumiram formas especiais e caraterísticas. 
Noutras partes do continente, a busca do espirito guardião não tem lugar 
na puberdade, nem é levada a cabo por todos os jovens da tribo. Logo, o complexo não 
tem nestas culturas qualquer espécie de parentesco com os ritos de puberdade mesmo 
quando estes existem. Nas planícies do Sul é o homem adulto que busca as sanções 
místicas. O complexo da visão confunde-se com um aspecto muito diferente dos ritos de 
puberdade. Os Osage estão organizados em grupos de parentesco em que a linhagem 
válida é a paterna, sendo a materna desprezada. Estes grupos clã têm uma herança 
comum de bênção sobrenatural. .A lenda de cada clã diz como o seu antepassado buscou 
uma visão e foi abençoado pelo animal cujo nome o clã herdou. O antepassado do clã do 
mexilhão buscou sete vezes, com as lágrimas correndo-lhe pelo rosto, uma bênção 
sobrenatural. Por fim encontrou o mexilhão e dirigiu-se-lhe dizendo. 
Oh meu avo, 
Os pequeninos não têm nada de que façam os seus corpos 
Ao que o mexilhão respondeu: 
Dizes que os pequeninos não têm nada de que façam os seus 
corpos. 
Que os façam, então, do meu corpo. 
Quando o fizerem do meu corpo 
Viverão sempre até à velhice. 
Repara nas rugas da minha pele (concha) 
Que eu fiz para por elas chegar à velhice. 
Quando os pequeninos fizerem de mim os seus corpos. 
Viverão sempre até verem sinais da velhice na sua pele. 
As sete curvas do rio (da vida) 
Passo-as a salvo. 
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E nas minhas viagens nem os próprios deuses podem ver o 
rasto que deixo 
Quando os pequeninos fizerem de mim os seus corpos 
Ninguém, nem mesmo os deuses, poderão ver o rasto que eles 
deixam. 
Neste povo todos os elementos familiares da visão estão presentes, mas 
esta foi conquistada por um primeiro antepassado do clã, e as bênçãos que ele conferiu 
foram herdadas por um grupo de parentesco. 
Esta situação entre os Osage revela uma das mais complexas 
representações que existem, do totemismo, esse misto íntimo de

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