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ANTOLOGIA DE CONTOS

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Professora Juliana Jurisberg 
8ºA, 8ºB, 8ºC, 8ºD, 8ºE, 8ºF 
 
 
 
 
 
 
 
ANTOLOGIA DE CONTOS 
(PARTE 2) 
 
 
 
 
 
 
Machado de Assis 
Clarice Lispector 
Mia Couto 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Abril/Maio 
2016 
 
Enzo Rocha Saldanha - 8º D
enzo saldanha
enzo saldanha
enzo saldanha
 
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SUMÁRIO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 2 
Pai contra mãe 03 
Autor: Machado de Assis 
 
 
Viagem à Petrópolis 13 
Autora: Clarice Lispector 
 
 
O dia em que explodiu Mabata-Bata 19 
Autor: Mia Couto 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
enzo saldanha
Antologia de Contos
 
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PAI CONTRA MÃE 
Machado de Assis 
 
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras 
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um 
deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-
deflandres. 
A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. 
Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por 
um cadeado. Com o vício de beber perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era 
dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados 
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem 
social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os 
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de 
máscaras. 
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, 
com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás 
com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia 
assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. 
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos 
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos 
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de 
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da 
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, 
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas 
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que 
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse 
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. 
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha 
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, 
se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a 
quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa 
gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de 
 
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preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com 
todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. 
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser 
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza 
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou 
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o 
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o 
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. 
Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de 
uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha 
um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de 
estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, 
mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não 
ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, 
era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A 
obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de 
cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma 
repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados 
pouco depois de obtidos. 
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que 
poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas 
para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas 
lições. 
Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. 
Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para 
cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou 
muito. 
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, 
e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados 
apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, 
olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. 
Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se 
o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à 
roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. 
 
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O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o 
possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-- 
para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que 
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e 
foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que 
por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, 
nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em 
demasia a patuscadas. 
--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, 
defunto não; mas é que... 
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se 
foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora 
viesse agravar a necessidade. 
--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. 
--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a 
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era 
amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. 
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes 
eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que 
rir, e o riso digeria-se sem esforço. 
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha 
emprego certo. 
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo 
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a 
criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada 
ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. 
--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. 
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia 
grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim
era preciso, uma vez que, 
além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força 
de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era 
escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. 
--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. 
--Mas as outras crianças não nascem também?- perguntou Clara. 
 
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--Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... 
--Certa como? 
--Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa 
infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? 
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero 
mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de 
comer. 
--A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não 
quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... 
--Bem sei, mas somos três. 
--Seremos quatro. 
--Não é a mesma cousa. 
-- Que quer então que eu faça, além do que faço? 
-- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, 
o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não 
digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas 
sem vintém. 
-- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me 
abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos 
entregam-se logo. 
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e 
fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. 
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros 
muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não 
obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e 
um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e 
saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo 
fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era 
muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas 
remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem 
era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do 
vicioso. 
 
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Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas 
mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas 
geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. 
Um dia, os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como 
dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o 
negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, 
copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. 
Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles 
pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. 
Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. Clara não 
tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser 
para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, 
via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum 
fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que 
ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um 
preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram 
os parentes do homem. 
--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir 
narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, 
outro emprego. 
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas 
por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O 
pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. 
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. 
Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja 
narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser 
mais amargos. 
--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa 
escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! 
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho 
de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver 
palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, 
guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? Enjeitar como? Candinho 
 
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arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que 
era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. 
-- Titia não fala por mal, Candinho. 
--Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o 
melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se 
não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; 
mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão 
recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar 
nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém 
morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... 
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se 
na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal 
franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a 
amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz 
baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. 
--Quem é? perguntou o marido. 
--Sou eu. 
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar 
o inquilino. Este quis que ele entrasse. 
--Não é preciso... 
--Faça favor. 
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo 
à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar 
mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para 
regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o 
que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma 
inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. 
--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. 
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, 
contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, 
recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde 
muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, 
não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não 
alcançando mais que a ordem de mudança. 
 
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A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes 
emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de 
alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu 
emprestar os quartos baixos da casa, ao
fundo da cocheira, para os lados de um pátio. 
Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no 
desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio 
seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, 
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a 
casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que 
cuidassem. 
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias 
depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica 
insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à 
Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a 
levaria. 
Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. 
Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda 
na noite seguinte. 
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior 
parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a 
cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. 
Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; 
imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista 
nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande 
esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do 
Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um 
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, 
três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar 
como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros 
fugidos de gratificação incerta ou barata. 
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si 
mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, 
não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o 
que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos 
 
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de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que 
vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação 
do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem 
recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao 
filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai 
pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. 
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos 
certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do 
sereno. 
Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. –
Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita 
ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que 
ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na 
direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. 
Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a 
intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele 
também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi 
acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um 
instante; viria buscá-la sem falta. 
--Mas... 
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até 
ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando 
ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a 
mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. 
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de 
corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era 
já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que 
andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de 
costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que 
a soltasse pelo amor de Deus. 
--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-
lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. 
Me solte, meu senhor moço! 
-- Siga! repetiu Cândido Neves. 
 
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--Me solte! 
--Não quero demoras; siga! 
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem 
passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não 
acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria 
com açoutes, --cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, 
ele lhe mandaria dar açoutes. 
--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? Perguntou 
Cândido Neves. 
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera 
dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava 
pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina 
desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, 
inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá 
chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali 
ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. 
--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. 
-- É ela mesma. 
--Meu senhor! 
--Anda, entra... 
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os 
cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil 
réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, 
levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. 
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e 
os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que 
horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem 
querer conhecer as consequências do desastre. 
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis 
esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro 
com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que 
pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. 
Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas 
para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, 
 
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ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. 
Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da 
fuga. 
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e 
não se lhe dava do aborto. 
--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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VIAGEM A PETRÓPOLIS 
Clarice Lispector 
 
 Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender
que 
estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o 
vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido 
encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em 
lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas 
semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de 
um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela 
fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação: 
- Mocinha. 
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava: 
- Nome, nome mesmo, é Margarida. 
O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, 
marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos 
e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma 
esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. 
Quando lhe davam cama para dormir davam-na estreita e dura porque Margarida fora 
aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a 
cabeça. Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma 
casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em 
Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma 
velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava 
lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia 
uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um 
sorriso gentil: 
- Passeando. 
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era 
verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há 
muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não 
pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar 
no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa 
sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro. 
 
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Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia 
surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. 
De algum modo tinham razão. Todos lá eram muito ocupados, de vez em quando 
surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, 
ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha 
no ombro: "olha!". Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a 
velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça 
compreendesse tratar-se de um ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém 
falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na 
casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia 
provocar. 
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-
de semana em Petrópolis, levou a velha no carro. Por que Mocinha não dormiu na noite 
anterior? À idéia de uma viagem, no corpo endurecido o coração se desenferrujava todo 
seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em 
certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação 
do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas idéias. 
Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho 
atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão – se ele tivesse vivido no tráfego 
do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, 
das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara 
com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria 
gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas não 
era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a 
festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em 
mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se 
virava com leveza na cama. De repente, descobriu que a cama era dura. 
- Que cama dura, disse bem alto no meio da noite. 
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo 
tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito – mas que fome furiosa! Alucinada, 
levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga 
ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, 
arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, 
cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se 
 
15 
 
despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que 
esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, 
coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e 
depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu. E pela primeira vez foi 
preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça 
e já de maleta no chão. Inesperadamente, Mocinha pediu uns instantes para pentear os 
cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se 
penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear os cabelos. 
Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam 
com seu ar alegre e com os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o 
rapaz. À moça da casa ocorreu: "E eu que até tinha pena dela". 
Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas irmãs 
acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a 
primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era 
um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás: 
- Não vá enjoar, vovó! 
As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em 
quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas 
não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que 
os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu 
um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado. 
A viagem foi muito bonita. As moças estavam contentes, Mocinha agora já 
recomeçara sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por 
um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! 
Letras – tudo engolido pela velocidade. 
Quando Mocinha acordou não sabia mais onde estava. A estrada já havia 
amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos 
distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a 
cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante. 
Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de 
paletó - achei, achei! – o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se 
do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte. Elvira, e a mãe de 
Elvira até era aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então, 
ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras. 
 
16 
 
 As moças falavam: 
- Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito! 
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no 
carro? Como conhecera seu marido e aonde? Como é que a mãe de Maria
Rosa e 
Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois 
acostumou-se de novo. 
O rapaz disse para as irmãs: 
- Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a 
gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar. 
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma 
incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam 
mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada. 
- É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, 
você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você 
pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia 
mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o 
garoto, viu... 
Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé, mas 
pairando entontecida sobre as rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por 
entre as pernas. 
Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um 
pano contra pó amarrotado na cabeça, tomava café. Um menino louro – decerto aquele 
que Mocinha deveria vigiar – estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e 
comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A 
alemã encheu-lhe o prato de mingau e aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com 
manteiga. 
As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente 
talvez passasse o frio no corpo. 
A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na 
história a recomendação da cunhada, embora "de lá" tudo fosse de se esperar. Mas 
talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às 
vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não 
estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. 
O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o armário cheio de louça nova. 
 
17 
 
- Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o 
que se pode fazer. 
Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu 
que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que 
escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente.. Café, 
café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, 
rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios 
grandes, trouxe um prato de queijo branco mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou 
bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo 
e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se: 
- Mãe, cem cruzeiros. 
- Não. Para quê? 
- Chocolate. 
- Não. Amanhã é que é Domingo. 
Uma pequena luz iluminou Mocinha: Domingo? Que fazia naquela casa em 
vésperas de Domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta 
daquele menino. 
Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino 
Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela 
contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria 
mesmo era café. 
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato 
fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira 
mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em 
Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de 
queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer a verdade, 
porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que 
os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas. Afinal, 
Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz 
baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para 
Mocinha: 
- Não pode ser não, aqui não tem lugar não. 
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto: 
- Não tem lugar não, ouviu? 
 
18 
 
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as 
duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e 
vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas 
penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou: 
- E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o 
Rio, ouviu? Volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, 
viu? Aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu! 
Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar 
para comer, Mocinha reapareceu: 
- Obrigada, Deus lhe ajude. 
Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor 
saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da 
estação. 
Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes 
passear um pouco. Um homem passou. Então muito curiosa, e sem interesse, foi 
iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma 
imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e 
cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em 
cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é muito bonita. 
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça 
enchia uma lata de água. Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir 
as mãos em concha e beber. Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se 
como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água 
escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas 
brilharam suspensas nos cabelos. 
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção 
às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos 
pelo resto do corpo como luzes. 
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e sua 
muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder 
apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que 
voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo 
verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e 
morreu. 
 
19 
 
O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA 
Mia Couto 
 
De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um muuu. No capim, em volta 
choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. 
Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a 
imitar a vida, no invisível do vento. 
O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele 
admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais 
vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado 
como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde 
que era órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das 
primeiras horas. 
Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada. 
“Deve ser foi um relâmpago”, pensou. 
Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o 
raio? Ou foi a terra que relampejou? 
Interrogou o horizonte, por cima das árvores.
Talvez o ndlati, a ave do 
relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada 
do ndlati era ali, onde se juntos os todos rios para nascerem para nascerem da mesma 
vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando 
as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, 
enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança seu vôo incendiado sobre os seres 
da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e ali deita a sua urina. 
Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escovar aquele 
ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do 
ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao 
menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam 
corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de 
uma só vez, conforme sucedeu-se. 
Reparou em volta, os outros bois assustados, espalharam-se pelo mato. O medo 
escorregou dos olhos do pequeno pastor. 
– Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres. 
 
20 
 
A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. 
Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras, mas não encontravam 
saídas. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. 
Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, 
que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da 
escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono 
quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar 
o rio a boleia do rabo do Mabata-bata, apostar na briga dos mais fortes. Em casa, o tio 
advinha-lhe o futuro: 
– Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca. 
E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos 
maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que iria deixar. Calculou o dentro 
do seu saco: uma fisga, frutos de djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não 
pode deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a 
começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra 
margem parou à espera nem sabia de quê. 
Ao fim da tarde, a avó Carolina esperava Raul à porta da casa. Quando chegou 
ela disparou a aflição: 
- Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois. 
– O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar. 
– Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos… 
– Aconteceu brincadeira dele, mais nada. 
Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do 
casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da 
avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três. 
– Boa noite, precisam de alguma coisa? 
– Boa noite, viemos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde, 
foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui. 
Outro soldado acrescentou: 
– Queremos saber onde está o pastor dele. 
– O pastor, estamos à espera – respondeu Raul. 
E vociferou: 
– Malditos bandos! 
 
21 
 
– Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom 
ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado. 
Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do 
Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí? 
– Avó, eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. 
Deve ser, talvez, deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo. 
– Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso. 
Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o 
Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. 
Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor 
escolhera refugiar-se no vale. 
Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou: 
– Azarias, volta. Azarias! 
Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. 
Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho. 
– Apareças lá, não tenhas medo. Não vou te bater, juro. 
Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de 
juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos habituados à 
penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou 
alerta. 
– Azarias? 
Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina. 
– Sou eu, Raul. 
Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, 
rebentava-se e, pior, estoirava com ela também. 
– Volta em casa, avó! 
– O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há de ouvir. 
E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Pro trás das sombras, uma silhueta 
deu aparecimento. 
– És tu, Azarias. Volta comigo, vamos pra casa. 
– Não quero, vou fugir. 
O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto pra saltar e agarrar as goelas do 
sobrinho. 
– Vais fugir para onde, meu filho? 
 
22 
 
– Não tenho onde, avó. 
– Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados – 
precipitou-se a voz rasteira de Raul. 
– Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria – E voltando-se para o 
pastor: – Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda 
ajudar o teu tio juntar os animais. 
– Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo. 
Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito. 
– Como é? Os bois estão aí? 
– Sim, estão. 
Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade de Azarias. 
– Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois? 
A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio 
e pediu ao miúdo que escolhesse. 
– O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido. 
Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria 
as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens. 
– Fala lá o seu pedido. 
– Tio: próximo ano posso ir na escola? 
Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. 
Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento: 
– Vais, vais. 
– É verdade, tio? 
– Quantas bocas tenho, afinal? 
– Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde. 
– Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui. 
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De 
súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu 
aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite, viu descer 
o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar: 
– Vens pousar quem, ndlati? 
Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto 
vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua 
água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos. 
 
23 
 
– Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, 
arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me? 
E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem 
de sua chama.

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