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VII Jornadas de Antropologia social. 1 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 1 BOA PARA BEBER, MELHOR PARA PENSAR: A VALORIZAÇÃO DA CACHAÇA E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA Nathália Caroline Dias Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil Universidade Federal de Juiz de Fora nathalia.cdias@hotmail.com Euler David de Siqueira Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro euleroiler@gmail.com Resumo: Bebida de vagabundos e associada às camadas mais baixas da sociedade brasileira durante décadas, há pouco mais de 20 anos a cachaça conhece um processo crescente de valorização a ponto de mobilizar o governo brasileiro contra as restrições impostas pelos EUA a sua exportação. Através da intervenção federal sob a forma de dois decretoslei publicados no começo dos anos 2000, o governo brasileiro busca delimitar geograficamente a cachaça como bebida exclusivamente produzida no Brasil, da mesma forma que define a caipirinha como bebida tipicamente brasileira obtida exclusivamente a partir da cachaça. O que parece um simples ato jurídico nos revela, porém, uma complexa operação de construção da identidade nacional por parte do Estado brasileiro. O expediente não é novo e foi paulatinamente usado desde os anos 1930 com a ajuda de inúmeros intelectuais dentro ou fora do Estado. Em linhas gerais, esse trabalho tem como objetivo analisar a forma como o Estado brasileiro se apropria de elementos da cultura e da identidade populares com vias a reforçar a identidade nacional. Metodologicamente, a presente pesquisa, de natureza qualitativa, adota um olhar sociológico e antropológico relacional. Através da análise documental e da pesquisa bibliográfica que lança mão das noções de patrimônio, cultura e identidade, buscamos compreender a maneira como a cachaça e a caipirinha são reapropriadas pelo Estado com vias a reforçar aspectos de uma identidade nacional livre de contradições. Ambas as bebidas, através de um processo ideológico operado pelo Estado com a mediação de intelectuais, são apresentadas como bebidas que rememoram uma suposta origem mítica da nação. Palavraschave: Memória coletiva. Identidade nacional. Estado nacional. Patrimônio cultural. Cachaça. Abstract: Beverage of bums and associated with lower levels of Brazilian society for decades, just over 20 years, the cachaça meets a growing process of valorization enough to mobilize the Brazilian government against the restrictions on its export to the U.S.. Through federal intervention in the form of two decrees published in the early 2000s, the Brazilian government intends to delimit geographically the cachaça as exclusively produced in Brazil, of the same way that defines the caipirinha as typical Brazilian drink obtained exclusively from cachaça. What seems a simple legal act reveals us a complex operation of national identity construction by the Brazilian State. This process isn’t new and has been used gradually since VII Jornadas de Antropologia social. 2 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 2 the 1930’s with the support of countless intellectuals. In general, this paper intends to analyse how the Brazilian State borrows elements of the popular culture and identity to build a national identity. This sociological and anthropological study is one of qualitative nature. Through the analysis of documents and the bibliographic research that make use of concepts such as “heritage”, “culture” and “identity”, this paper focuses on understanding how cachaça and caipirinha are reappropriated by the State as a way of reinforcing aspects of a consensual and homogeneous national identity free from contradictions. Both beverages, through an ideological process operated by the State with the mediation of intellectuals, are presented as beverages that are somehow reminiscent of the historical origin of the nation. Keywords: Collective memory. National identity. National state. Cultural heritage. Cachaça. INTRODUÇÃO Neste artigo propomonos a investigar criticamente de que maneira duas importantes manifestações da cultura popular brasileira, a cachaça e a caipirinha, são reapropriadas e retraduzidas juridicamente pelo Estado a fim de figurar como a mais pura e autêntica expressão de nossa identidade nacional. Nosso objeto de investigação se constitui na ação do Estado em registrar legalmente a origem dessas bebidas, supostamente “nacionais”, através de dois decretos federais, o que atestaria o peso e a disposição do Estado em definir e legitimar tanto a origem quanto a natureza dessas bebidas. Há pouco mais de uma década, a cachaça, uma bebida destilada da cana de açúcar, tem sido o alvo de um intenso investimento por parte do Estado com o objetivo de tornála um significativo elemento da identidade nacional brasileira. Acreditamos que ao fazer da cachaça a bebida oficial dos brasileiros e o modo de preparar a caipirinha uma receita tradicional a preservar, o Estado não parece estar apenas interessado em abrir caminho junto ao poderoso mercado norteamericano cuja classificação da cachaça como Rum faz incidir pesados impostos. O que nos parece mais importante destacar é que com essa iniciativa o Estado também se arvora em legitimo defensor e guardião da memória coletiva nacional, pois é ele quem passa a deter legitimamente o monopólio em definir o que pode ou não se chamar cachaça e o que é necessário para que um drink feito com ela possa ser chamado de caipirinha. A presente pesquisa se justifica diante do considerável aumento de bens patrimonializados – frequentemente acompanhado de um debate sobre a banalização do que é VII Jornadas de Antropologia social. 3 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 3 patrimonializado (AMIROU, 2000; SANTOS, 2002), mas também sobre o monopólio e a legitimidade estatal em conferir a esses objetos a alcunha de patrimônio – e também em função da valorização nas últimas décadas de aspectos das ditas culturas populares chamadas a figurar o papel de origem das identidades nacionais (AMIROU, 2000; CANCLINI, 2008; ORTIZ, 1994). A metodologia desta pesquisa caracterizase como sendo de natureza qualitativa e orientada por um approche antropológico e sociológico relacional. Estamos interessados, sobretudo, pela forma como sentidos são forjados para serem atribuídos à cachaça e à caipirinha como elementos essenciais à definição de uma certa configuração identitária nacional. Metodologicamente, a presente pesquisa, que caracterizase como sendo de natureza qualitativa, lança mão da pesquisa bibliográfica e documental em meios eletrônicos com destaque para os sites especializados na cachaça, como o Instituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC) 1 e o Mapa da Cachaça2. Através dos sítios eletrônicos supracitados obtivemos acesso aos decretos que narram a origem da cachaça e da caipirinha como bebidastipicamente brasileiras, respectivamente, o Decreto nº 4062, de 21 de dezembro de 2001 e o Decreto nº 4851, de 2 de outubro de 20033. Por fim, esperamos com este trabalho colocar em evidência a forma como a seleção e eleição daquilo que será patrimonializado revelam também interesses nem sempre claros presentes nos discursos oficiais do Estado (BERGER, 1980). ESTADO, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE NACIONAL O patrimônio nacional é um dos efeitos mais imediatos da criação dos Estados nacionais em fins do século XIX. Os Estados nacionais enxergaram no patrimônio um poderoso meio de fabricar tanto uma memória quanto uma identidade nacional capazes de serem compartilhadas imaginariamente por todos os membros de uma sociedade. A forma que toma o discurso patrimonial operado pelo Estado é tributária do mito, mas não menos da ideologia. Valendose desses dois atributos o Estado funda uma origem comum onde todos os seus membros podem enxergarse e identificarse apesar das inúmeras contradições 1 Disponível em: <http://www.ibrac.net/>. Acesso em 22 out. 2012. 2 Disponível em: <http://www.mapadacachaca.com.br/>. Acesso em: 01 mar. 2013. 3 Disponíveis para pesquisa em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/>. Acesso em 22 out. 2012. VII Jornadas de Antropologia social. 4 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 4 existentes. Coesão e integração sociais são assim forjadas a despeito de todas as fissuras e rachaduras presentes em uma sociedade. Em sua obra sobre o imaginário do turismo cultural, o sociólogo francês Rachid Amirou assinala a importância que o controle e o monopólio da memória nacional adquirem para o Estado. Ele diz que: « Revenons à la France pour dire que la sauvegarde du passe devient une mission de l’Etat qui assure le monopole quasi exclusif de la protection du patrimoine. (…) L’importante pour l’histoire de l’art des chefsd’œuvre de l’Ile de France est le premier critère de sauvegarde. (…) L’Etat central, en tant que responsable de la mémoire nationale, remplit dès lors une mission de surveillance des évolutions et transformations du patrimoine ». (AMIROU, 2000, p.18). Detentor legítimo do monopólio da memória nacional, como não poderia deixar de ser, o Estado elege e institui os critérios fundamentais à eleição do que pode ou não figurar como patrimônio sem que esses sejam contestados. Nesse processo, assinala Amirou, o Estado nacional frequentemente não leva em conta aspectos do cotidiano no momento da patrimonialização. Apenas critérios artísticos, estéticos e históricos de bens dotados de excepcionalidade e, ou monumentalidade, são assinalados no momento da patrimonialização, conforme argumenta o autor: « Les dimensions historiques et sociologiques ne sont prises en compte nulle part: le patrimoine a été vu en tant que chefd’œuvre et non en tant que vécu par une population. Les productions locales, sauf quelques exceptions, n’entrent pas dans le patrimoine national ». (AMIROU, 2000, p.18). Salta aos olhos que uma bebida até bem pouco tempo desprezada, considerada vulgar e associada às baixas camadas da sociedade pudesse ascender um dia a um patamar de destaque no conjunto do patrimônio cultural brasileiro. A possibilidade de que a cachaça pudesse figurar como bebida nacional e, assim, figurar ao lado de importantes ícones da identidade nacional somente foi possível em decorrência de importantes mutações sendo a mais importante a noção antropológica de cultura. Os decretos do executivo brasileiro parecem suspender, segundo seus interesses, os critérios de excepcionalidade histórica e artística ao figurar a cachaça como bebida nacional. O que antes era classificado como vulgar, bebida de pobres, de desajustados ou de alcoólatras, agora passa a ter seu valor reconhecido pelo legítimo detentor da memória e da cultura nacionais. Esse processo, que não se deu de VII Jornadas de Antropologia social. 5 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 5 um dia para o outro, depende frequentemente de mudanças culturais lentas e profundas, inclusive na formação de um novo “gosto” (BOURDIEU, 2000). Foi com as Cartas de Veneza (1964), assim como as de Florença e de Malta, assinala Amirou (2000), que a noção de patrimônio histórico e artístico foi alargada ganhando aos poucos a denominação de patrimônio cultural. Aqui o espaço foi aberto permitindo que a cachaça pudesse abandonar sua condição inferior para figurar como aspecto fundador da matriz cultural brasileira. As mutações que sacudiram a noção de patrimônio precisaram deixar para trás inúmeros obstáculos. Ao criticar as teorias que lançavam mão das “necessidades sociais” no que diz respeito à ideia de patrimônio, Amirou mostra que pouco a pouco a extensão da noção de patrimônio abarcou todas as épocas e todos os lugares: “la prise en compte de critères liés aux sociabilités, aux identités, quant à la définition du patrimoine (qualité de vie, convivialité, tradition, ceci est visible dans la protection et la sauvegarde des quartiers anciens et des cultures ‘minoritaires’)” (AMIROU, 2000, p.20). Amirou (2000) sublinha ainda que desde a criação da UNESCO a ideia de universalidade do patrimônio já era enfatizada. Segundo o autor, a emergência da noção de patrimônio imaterial provocara uma mudança significativa na noção de patrimônio. Alguns exemplos apresentados pelo autor colocam em evidencia esses aspectos. Amirou assinala que relacionado mais a sociabilidade desse espaço do que a seus aspectos arquitetônicos, a inscrição da praça Djama el Fna em Marrakesh como patrimônio mundial pela UNESCO é um bom exemplo do que se pretende inscrever como patrimônio cultural. Da mesma forma, as Arenas do baixo Languedoc, na França, também inscritas em 1992 na lista do inventário do patrimônio francês, se devem muito mais a seu valor etnológico do que seu valor estético (AMIROU, 2000). De acordo com Amirou, os critérios levados em consideração no momento de solicitação do registro ou do tombamento escapam aqueles tradicionalmente orientados pelos critérios artísticos e históricos. Na verdade, eles se devem mais a aspectos ligados à antropologia e à sociologia. Nos dois casos analisados por Amirou é preciso mostrar que, mais do que lugares, o que se procurou registrar foram os aspectos imateriais, como a VII Jornadas de Antropologia social. 6 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 6 sociabilidade. Podemos ver de que maneira a dimensão simbólica investe o material aumentando consideravelmente o espectro daquilo que pode ser registrado. O Nacional como popular O estudo acerca da relação entre Estado e identidade nacional não se faz sem a crítica da relação entre o nacional e o popular, bem como sobre da função social dopatrimônio histórico cultural no processo de formação da identidade nacional. Assim, optamos por basearmonos nas obras do sociólogo brasileiro Renato Ortiz e do antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini para levar a bom termo nossa empreitada. Tal escolha se justifica pela forma como ambos abordam a relação entre a memória, a cultura e o Estado, mas não excluem tantos outros autores que defendem perspectivas distintas. Ortiz e Canclini parecem concordar que há uma escassez de estudos voltados para a temática da identidade nacional e do patrimônio histórico cultural nos países da América Latina. Do lado brasileiro, Ortiz (1994) menciona autores do fim do século XIX e início do século XX, como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, considerados os precursores das Ciências Sociais no Brasil, como empenhados em explicar a situação social e cultural do Brasil de sua época a partir de argumentos teóricos racistas provenientes da Europa cujo declínio na Europa era claro. Para os pais da sociologia brasileira, o atraso brasileiro em relação aos países “desenvolvidos” se devia a não adaptação do elemento racial europeu aos trópicos. Estamos diante de dois tipos de determinismo: o racial e o geográfico. Segundo esse ponto de vista, negros e mestiços não forneciam os elementos adequados para se construir uma nação em moldes modernos, daí a contradição: como erigir uma nação nesses termos? A resposta se dava em torno da adaptação do elemento europeu aos trópicos, o que significava para esses intelectuais em uma aposta de projeto futuro de nação, inclusive, com o recurso na imigração seletiva em massa de europeus. Até as primeiras décadas do século XX, a ideia do popular simplesmente não fazia o menor sentido para pensar o quadro brasileiro. Para explicar a relação entre nacional e popular, Ortiz (1994, p.131) recorre às noções de memória coletiva e nacional. Essa duas noções são compreendidas a partir de um contexto moral e territorial: o do Estado nacional. VII Jornadas de Antropologia social. 7 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 7 Essa relação seria expressa pelo autor através de exemplos como o candomblé e as manifestações folclóricas, claro, tomando o cuidado em evitar derivas que caíssem no senso comum do romantismo ou da essencialização de um povo pelo folclore. Ao estudar o Candomblé, manifestação religiosa de origem africana, Ortiz (1994, p.132) explica que as práticas rituais associadas a essa religião acionam todo um conjunto de referências à memória coletiva do grupo. Através do sincretismo religioso, a lógica simbólica situa e coordena os elementos de outro sistema cultural. Assim é que as entidades africanas encontram entre as entidades da igreja católica uma sorte de equivalente sem que os primeiros percam, contudo, seu valor e importância. Quando toma o folclore como fenômeno cultural, Ortiz (1994, p.134) os caracteriza no campo da polissemia. A semelhança entre os dois estaria no fato de suas existências estarem essencialmente ligadas às práticas cotidianas de um grupo social no interior do qual seus membros ocupam posições e funções precisas atualizando a memória coletiva a cada instante em que são celebradas. É por isso que as festividades e as reuniões adquirem relevância ao processo de atualização da memória e da identidade de um grupo. Ortiz associa as manifestações folclóricas à cultura popular e isso quer dizer, sobretudo, o campo plural e fragmentado. Ortiz toma o cuidado em evitar a apreensão das práticas míticas e rituais como simples reproduções de tradições engessadas que se repetem sem cessar. Para ele, assim como para muitos outros intelectuais, as dinâmicas se processam a partir de um tipo de negociação simbólica intermediada por relações do tipo étnicas e isso quer dizer que estamos diante de uma oposição contrastiva do tipo Nós x Eles (BARTHE, 1998, CUCHE, 1992). O popular caracterizarseia sempre como algo que faz parte de uma tradição de um grupo concreto particular. Dito de outra forma, sua memória coletiva seria reproduzida e atualizada a partir das práticas orais e cotidianas. Cada grupo popular manteria viva sua memória coletiva atualizandoa de tempos em tempos através dos ritos. Estamos longe, portanto, do discurso ideológico hegemônico em que memória e identidade nacional são acionadas pela lógica monopolística e universal do Estado. Através da ideologia o Estado torna universal algo que é particular. A memória e a identidade coletivas associadas aos inúmeros grupos sociais seriam, assim, unificadas pelo VII Jornadas de Antropologia social. 8 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 8 Estado nacional através do processo de transformação do particular em universal ou nacional. Esse processo é guiado no interior do Estado por intelectuais, direta ou indiretamente ligados ao Estado, que se apropriam dessas produções culturais locais e particulares selecionandoas e reorganizandoas com o objetivo de forjar ideologicamente uma memória coletiva nacional coerente. Na relação entre o nacional (universal) e o popular (particular), a intermediação dos intelectuais se apresenta como decisiva. É por meio da reinterpretação das práticas populares cotidianas que esses mediadores simbólicos promoveriam a unificação das expressões culturais particulares de forma a integrálas em narrativas livres de tensões e contradições. Ortiz (1994, p.135) recorre à distinção proposta por Peter Berger (1980) acerca dos fenômenos ligados à memória coletiva. Ele explica que para a memória coletiva ser vivenciada cotidianamente, ela ganha a forma de uma narrativa mítica, pois é ritualmente manifestada. Já a memória nacional seria o resultado da história social do Estado, pertencendo, portanto, ao domínio da ideologia. A diferença fundamental entre a memória coletiva e a ideologia é que a segunda não seria sustentada como a primeira pelos seus membros através de suas práticas míticorituais. Rito, patrimônio e significação Abordar o patrimônio como expressão de práticas culturais nos remete à noção de ritual. Ao invés de vermos o patrimônio como um simples objeto naturalmente dotado de qualidades extraordinárias, melhor seria concebêlo como uma construção social cujo ritual possui participação privilegiada. O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta entende que o universo ritual não deve ser analisado de forma separada da realidade cotidiana, pois “sendo o mundo social fundado em convenções e símbolos, todas as ações sociais são realmente atos rituais ou atos passíveis de ritualização” (1997, p.72). Outro antropólogo brasileiro, Reginaldo Gonçalves (2007), se debruça sobre os simbolismos atribuídos aos bens e tradições destacando sua pertinência à ação: “sobretudo para ‘agir’ e não somente para se ‘comunicar’. O patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: ele é bom para agir [...]. Nãoexiste apenas para representar ideias e valores abstratos e para ser contemplado. Ele, de certo modo, constrói, forma as pessoas” (GONÇALVES, 2007, p.114). VII Jornadas de Antropologia social. 9 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 9 O ritual envolvido na construção da memória coletiva é um processo através do qual, por meio do discurso ideológico elaborado por intelectuais dentro ou fora do Estado, elementos rotineiros têm seus valores e significados sublinhados segundo interesses específicos dos membros de determinados grupos sociais. Dito de outra forma, o ritual acentuaria elementos do cotidiano fazendo com que não passassem despercebidos. Ao estudar a ritualização do patrimônio cultural de uma nação, Canclini indaga como bens e práticas tradicionais pertencentes ao passado histórico de um povo ganham destaque na contemporaneidade por meio da construção ideológica. Através da ideologia, o patrimônio seria integrado ao discurso do Estado como sendo um dom recebido do passado e cuja perenidade seria fonte de consenso. Nas palavras do autor, “os ritos legítimos são os que encenam o desejo de repetição da ordem” (CANCLINI, 2008, p.163), o que vem ao encontro do pensamento de Ortiz (1994, p.137) que caracteriza tais discursos como “de segunda ordem”, ou seja, uma ideologia que naturaliza as contradições sociais. Ao mesmo tempo em que o ritual engloba todos os que compartilham de uma mesma memória coletiva, ele exclui os que não fazem parte dessa ordem. É dessa forma que Canclini (2008, p.164) afirma que: “todo grupo que quer diferenciarse e afirmar sua identidade faz uso tácito ou hermético de códigos de identificação fundamentais para a coerção interna e para protegerse frente a estranhos”. Muitas vezes os conflitos étnicos presentes na história nacional não são mencionados, pois a maneira como cada grupo faz uso da cultura e o modo pelo qual cada um a compreende tende a ser desigual, como afirma Canclini: [...] os bens reunidos na história por cada sociedade não pertencem realmente a todos, mesmo que formalmente pareçam ser de todos e estejam disponíveis para que todos os usem [...] diversos grupos se apropriam de formas diferentes e desiguais da herança cultural [...]. Como vimos no estudo do público em museus de arte, à medida que descemos na escala econômica e educacional, diminui a capacidade de apropriarse do capital cultural transmitido por essas instituições (CANCLINI, 2008, p.194, grifo do autor). A construção da identidade nacional exige a circunscrição de um espaço geográfico, pois é em seu interior que se articula a relação entre nacional e popular. Como mostra Canclini (2008), a partir de movimentos de independência nacional ao longo do século XX, a VII Jornadas de Antropologia social. 10 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 10 reconstrução da identidade passou a estar intrinsicamente ligada à recuperação do território antes apropriado por estranhos. Estamos de acordo com Canclini quando ele assinala que as políticas culturais seriam mais bem sucedidas a partir da articulação dos bens e tradições do passado com os seus significados no presente ao invés de serem analisadas apenas pelo viés da relação entre tradição e modernidade. Conforme esse ponto de vista, alerta o autor: “Existem objetos e práticas que merecem ser especialmente valorizadas porque representam descobertas para o saber, inovações formais e sensíveis, ou acontecimentos fundadores da história de um povo” (CANCLINI, 2008, p.200). A partir do que foi avançado por Canclini e Ortiz, o caso da aguardente de cana produzida no Brasil ilustra bem a forma como o Estado busca reconstruir a história da bebida apelando para um instrumento legal esvaziado de qualquer traço histórico. A partir de uma analise histórica acerca das infinitas práticas sociais que envolvem a bebida no país é possível perceber sua popularidade e seu papel de elemento unificador na cultura popular. Um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre a Cachaça foi o antropólogo Câmara Cascudo, para quem a cachaça seria uma bebida predominante em diferentes grupos sociais no Brasil, “demonstrando aculturação nacional” (2006, p.51). Ainda que a noção de aculturação como processo de imposição violenta de uma cultura sobre a outra tenha cada vez mais sua validade posta em xeque, isso não impede que vejamos a importância que a cachaça assume em todo o território nacional e que seja articulada como elemento de resistência. Para Cascudo, a cachaça atuaria como um importante elemento de integração da memória coletiva tamanha a sua entrada nos mais diferentes setores da sociedade nacional. Através da publicação de dois decretos federais que definem a natureza da cachaça e da caipirinha como sendo de origem autenticamente brasileira, o Estado brasileiro reatualizaria o mito da identidade nacional. Se o mito valese de narrativas fantásticas, absurdas e inverossímeis, o decreto cumpre bem esse papel, pois no mito nada parece fazer sentido do ponto de vista da lógica racional. Além dos decretos, há um projeto de Lei que visa a instituir o Dia Nacional da Cachaça4. Por meio dessas iniciativas, o Estado apropriase 4 Projeto de lei 5428/2009 disponível para consulta em: <http://www2.camara.leg.br/>. Acesso em 03 mar. 2013. VII Jornadas de Antropologia social. 11 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 11 de aspectos das memórias coletivas fragmentadas unificandoas através do trabalho dos intelectuais situados em seu interior. O resultado é algo a naturalização e a essencialização da cachaça como bebida autenticamente e tipicamente brasileira. A CONSTRUÇÃO DA CACHAÇA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO AUTÊNTICO A construção da identidade nacional pelo Estado brasileiro segundo a forma como esse ator apropriase da cachaça e da caipirinha leva em conta também o processo de patrimonialização. Através da patrimonialização, o Estado busca tornar uma manifestação popular, concreta e plural em um discurso homogêneo livre de contradições. Esse discurso faz de cada brasileiro o portador de um gosto natural tanto pela cachaça quanto pela caipirinha. O viés ideológico da preservação do patrimônio cultural referese ao que Arantes (1984, p.8) define como “a vontade coletiva de defender o que constitui e que, ao mesmo tempo, é testemunho de experiências comuns, que são pensadas como história compartilhada”. Visto dessa maneira, o patrimônio cultural representaria uma série de bens e práticas tradicionais considerados essenciais à formação da identidade de um povo. Museus e patrimônios mostramse bons operados ideológicos, pois permitem dar conta de uma ampla gama de situações onde os sujeitos podem articular seus pertencimentos. Nas palavras de Marta Anico (2005, p.83): “Patrimônio e museus desempenhamum papel importante no que concerne quer à criação de consciências pessoais, quer no que diz respeito à construção e representação de identidades locais, regionais ou nacionais, em virtude do seu posicionamento enquanto instrumentos pedagógicos e ideológicos. Simultaneamente agentes e produtos da mudança política, social e cultural”. Definido pelo o quê do passado é (re) criado e utilizado no presente, o patrimônio assegura uma espécie de perenidade. Tratarseia de um tempo que se aproxima do mito. Visto dessa maneira, o patrimônio opera como um elo de continuidade entre as gerações. Pensamos ser relevante a análise acerca das noções de memória voluntária e involuntária apresentadas por Willi Bolle (1984) a partir de seu estudo sobre o texto Infância berlinense por volta de 1900, do filósofo alemão Walter Benjamim. Segundo Bolle, a memória voluntária é aquela que faz parte de nossa vida cotidiana, cujas referências são VII Jornadas de Antropologia social. 12 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 12 constantemente reforçadas por divulgação nos meios de comunicação. A memória involuntária se caracterizaria por ser essencialmente relacionada às experiências que tivemos no passado. Nesse sentido, “a memória não aparece apenas como uma instância voltada para o passado. Devemos imaginála como uma relação dinâmica entre passado e presente. A memória é um elemento muito enraizado no presente” (BOLLE, 1984, p.13). Para o autor, existiria ainda uma terceira manifestação da memória, “ligada basicamente à memória involuntária, mas não totalmente restrito a ela. Para um indivíduo cuja cultura sofre ameaça de destruição, uma arma eficiente de resistência é a memória afetiva. Dela é que depende a preservação de identidade, sua ou de seu grupo; ela é o núcleo de sua personalidade” (BOLLE, 1984, p.1314). Da mesma forma que a memória coletiva precisa ser manifestada no cotidiano do grupo social ao qual pertence, os bens culturais materiais e imateriais devem ser constantemente produzidos e utilizados por todos para tornar a existência humana coletiva coesa e organizada. Aqui nos deparamos com a instabilidade e a efemeridade da memória. É nesse sentido que a categoria de preservação ganha destaque no pensamento da antropóloga brasileira Eunice Durham: “As coisas preservadas podem ser monumentos às realizações das classes dominantes ou monumentos às realizações das classes dominadas [...] a tentativa de preservar, no sentido de tornar disponível, uma variedade maior daquelas coisas que foram criadas. Porque muito do que os homens produzem e inventam se perde com relativa facilidade” (DURHAM, 1984, p.38). Segundo esse ponto de vista, é por meio da preservação dos valores simbólicos de uma cultura que se dá a relação entre o Estado e seu povo. Mas é preciso mais do que preservar algo sob a chancela do patrimônio: é preciso inserilo no presente como referência do passado. Para Canclini (2008, p.162), “o patrimônio existe como força política na medida em que é teatralizado: em comemorações, monumentos e museus”. Sendo assim, a questão agora não é mais a de preservar ou não, mas sim a de o que preservar. Para a UNESCO (2012): É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. A essa porção intangível da herança cultural dos povos, dáse o nome de patrimônio cultural imaterial. VII Jornadas de Antropologia social. 13 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 13 Os modos de apropriação e de usos sociais do patrimônio, bem como os interesses políticos muitas vezes divergentes, criam disputas entre os grupos sociais que o compartilham. Dentro desse contexto, retomo o estudo de Roberto DaMatta sobre os mecanismos da ritualização. O autor destaca que “na sociedade complexa, existem oscilações entre grupos especializados que passam de dominantes a dominados e viceversa” (DAMATTA, 1997, p.7475), ou seja, há disputas no sentido de qual grupo social terá sua memória coletiva universalizada em memória nacional, o que o autor mencionou como “contaminação de todo sistema por parte de um grupo social e sua ideologia” (1997, p.75). Nesse sentido, os sistemas podem ser caracterizados como dinâmicos e mutáveis, os quais seriam totalmente “contaminados” por um grupo dominante ou passariam por períodos de equilíbrio entre os diversos grupos existentes. Através de um retrospecto acerca da história do Brasil, vimos que no nosso país o processo de formação da identidade nacional foi marcado pela mistura de três principais grupos étnicos: o branco, o indígena e o negro. Porém, durante essa formação, houve o que Durham caracterizou como: “Um processo de desapropriação e destruição de culturas existentes. Os portugueses se apropriaram de inúmeras produções culturais indígenas e destruíram os índios. Depois, tiveram uma ação intensíssima no sentido de descaracterizar e não permitir a reprodução de toda a cultura trazida pelos escravos. A escravidão é um dos processos mais violentos que existe de empobrecimento cultural. Estabelecese um controle absoluto que impede a reprodução da cultura original e, ao mesmo tempo, negase o acesso à cultura dominante. Com os negros aconteceram as duas coisas, de modo que a imensa contribuição negra na cultura brasileira é nada menos que um milagre” (DURHAM, 1984, p.3940). O processo descrito por Durham é chamado por Pierre Clastres (1982) de etnocidio. De acordo com Trindade (2006, p.31) é por volta de 1600 que a cachaça brasileira faz sua entrada no universo cultural da colônia. Na tentativa portuguesa de superar a concorrência espanhola pela comercialização de bebidas, a cachaça é inserida no continente africano. Entretanto, no Brasil a bebida já era considerada popular, sendo consumida pelos membros menos abastados da população, pelos indígenas e, principalmente, pelos escravos africanos que, segundo Trindade, provavelmente foram os responsáveis pela sua invenção. Dizemos invenção no lugar de descoberta para sublinhar a forma como lenta e gradualmente foise formando isso que mais tarde será chamado de cachaça. VII Jornadas de Antropologia social. 14 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 14 A cachaça, além de seu fundamental papel na economia nacional, tornouse um dos símbolos da cultura popular brasileira, sendo relacionada ao imaginário popular,expressando e revelando a memória e a identidade do brasileiro, povo mestiço. Nas palavras de Cascudo, a cachaça “é a bebidadopovo, áspera, rebelada, insubmissa aos ditames do amável paladar, bebida de 1817, da Independência, atrevendose enfrentar o vinho português soberano [...] bebida nacional, a Brasileira” (CASCUDO, 2006, p.47, grifo do autor). A cachaça, no decorrer dos anos, foi sendo enriquecida por uma variedade de sinônimos na língua portuguesa, dentre os quais destacamos: águaquepassarinhonãobebe, aguardente, amarelinha, branquinha, caiana, cana, caninha, malvada, parati, pinga, tirajuízo. Essa riquíssima nomeação da bebida demonstra seu forte apelo social e cultural em todas as regiões do Brasil, claro guardandose as devidas peculiaridades com que ela é concebida localmente. O chamado folclore da cachaça também abrange a literatura popular, especialmente a de cordel; orações; versinhos; e músicas que retratam a vivência cotidiana em nosso país. Contudo, entre o século XIX e início do século XX, a elite e a classe média brasileira, numa tentativa de se identificar com a cultura européia, desenvolveu um forte preconceito contra os hábitos e costumes ditos “brasileiros”. Nesse sentido, a cachaça passou a ser considerada uma bebida inferior e, nesse sentido, marginalizada. Foi somente a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, movimento de renovação da brasilidade e da valorização da cultura nacional realizado por intelectuais, artistas e estudiosos, que a cachaça tornouse novamente bebida relevante econômica e culturalmente, consolidandose como um símbolo da identidade brasileira (GONÇALVES; GRAVATÁ, 1991). Como consequência, gradativamente, a cachaça foi sendo inserida em todos os níveis sociais. Sua imagem foi desvinculada dos sujeitos à margem da sociedade para ganhar destaque até nas casas dos mais “nobres”. UMA DOSE DE AÇÃO POLÍTICA Já vimos que a construção da identidade nacional é um processo ideológico no qual há uma reinterpretação e universalização das práticas populares por parte de intelectuais situados VII Jornadas de Antropologia social. 15 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 15 no interior do Estado brasileiro. O Estado nacional se relaciona com os brasileiros por meio da elaboração de legislação específica para promover a preservação e identificação da cachaça e da caipirinha como bebidas tipicamente brasileiras, através de seus registros, pois como explica Gonçalves (2007, p.111) “a proposta é no sentido de se ‘registrar’ essas práticas e representações e de se fazer um acompanhamento para verificar sua permanência e transformações”. A valorização da cachaça como bebida “oficialmente” nacional com a publicação de dois decretosleis. Em 21 de dezembro de 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, através do decreto n° 4.062, define as expressões "cachaça", "Brasil" e "cachaça do Brasil" como sendo indicações geográficas. Em seu artigo primeiro, estabelece que “o nome ‘cachaça’, vocábulo de origem e uso exclusivamente brasileiros, constitui indicação geográfica para os efeitos no comércio internacional” e no artigo terceiro determina que “o uso das expressões protegidas ‘cachaça’, ‘Brasil’ e ‘cachaça do Brasil’ é restrito aos produtores estabelecidos no país”. Outra importante ação do Estado foi a elaboração do decreto n° 4.851, de 02 de outubro de 2003 que estabelece que “a caipirinha é a bebida típica brasileira com graduação alcoólica de quinze a trinta e seis por cento em volume a vinte graus Celsius obtida exclusivamente com Cachaça, acrescida de limão e açúcar”. Dessa forma, a cachaça e a caipirinha são apropriadas como atrativos culturais brasileiros, contribuindo para sua preservação como patrimônio cultural imaterial. Além de estabelecer o registro de bebidas, esse decreto define uma classificação na qual há uma relevante distinção entre aguardente de cana, cachaça e rum, a partir da variação da porcentagem alcoólica e da matériaprima utilizada para a produção de cada destilado. A cachaça, nesse momento entendida como denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, se diferencia da aguardente comum por possuir graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume, a vinte graus Celsius, e apesar de também ser obtida pela destilação do mosto fermentado de canadeaçúcar, apresenta características sensoriais peculiares. O rum passa a ser registrado como bebida com graduação alcoólica de trinta e cinco a cinquenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, produzida a partir do destilado VII Jornadas de Antropologia social. 16 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 16 alcoólico simples de melaço, ou da mistura dos destilados de caldo de canadeaçúcar e de melaço, envelhecidos, total ou parcialmente, em recipiente de carvalho ou madeira equivalente, conservando suas características sensoriais peculiares. Acreditamos que a distinção “decretada” entre a cachaça (ou aguardente de cana) e o rum, além de tratarse de uma disputa econômica, seja uma das mais expressivas ações do Estado no processo de construção da identidade nacional tendo a bebida como elemento popular unificador. Entretanto, há ainda um árduo caminho a ser percorrido na busca pelo reconhecimento internacional, pois a nossa cachaça ainda é conhecida em muitos países como “Brazilian Rum” (rum brasileiro). Contudo, desde abril de 2012 um acordo entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA) vem sendo elaborado para alterar essa situação. Recentemente, foi divulgado nos meios de comunicação que esse acordo será em breve colocado em prática. A partir do dia 11 de abril de 2013, a cachaça será exportada para os EUA como bebida de origem exclusivamente brasileira. Dessa forma, para se chamar cachaça nos EUA, o produto terá obrigatoriamente que ter indicação de origem geográfica e estar de acordo com padrões oficiais brasileiros de identidade e qualidade. Apesar desse processo de reconhecimento externo da cachaça estar apenas no começo, dentro do contexto do Estado nacional a bebida parece possuir uma clara relação de “autenticidade” com o povo brasileiro. Nesse sentido, a noção de autenticidade é analisada tendo como base os estudos de Gonçalves (2007) acerca dos patrimônios culturais. A autenticidade da cachaça como bebida tipicamente brasileira referese à sua originalidade histórica. A canadeaçúcar e a cachaça, por terem suas origens muitas vezes confundidas com a própria origem do Brasil, estiveram presentes em importantes acontecimentos históricos do país. Os esforços em prol do desenvolvimento e fortalecimento da cachaça, tanto no mercado interno quanto no exterior, possibilitaram a padronização, classificação e registro da bebida no Brasil. Sendo assim, nada mais justo do que a existência de um dia em que sua origem é celebrada nacionalmente. A iniciativa da criação do Dia Nacional da Cachaça partiu doInstituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC) 5 em 2009 e a data escolhida foi o dia 13 de setembro. A escolha se VII Jornadas de Antropologia social. 17 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 17 justifica pelo fato de que em 13 de setembro de 1661 a produção e a venda da bebida tonaramse legalizadas no país, após a Revolta da Cachaça, movimento ocorrido no Rio de Janeiro no qual os senhores de engenho se revoltaram contra a Corte portuguesa. Por meio de todas essas ações, o Estado ao definir que a cachaça é nossa, constrói uma série de valores e significados que rememoram o passado da nação e promovem todo um imaginário associado ao território e ao povo brasileiro. CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS Bebida popular por excelência, durante muitas décadas a cachaça esteve associada a um imaginário vagabundo e marginal. Nas últimas décadas, entretanto, assistise a um processo de valorização da cachaça como bebida nacional por excelência. A patrimonialização da cachaça e da caipirinha através de dois decretoslei federais nos parece ser a expressão de um processo em constante atualização por parte do Estado brasileiro de valorização e afirmação da identidade nacional brasileira. A partir de um olhar antropológico relacional e do recurso à análise histórica acerca da cachaça no Brasil e de seu imaginário na cultura popular brasileira, é possível concluir, ainda que provisoriamente, que o Estado Brasileiro, através da criação dos dois decretos reafirma seu papel de legitimo guardião da memória e da identidade nacionais. O Estado realiza essa operação através do registro “oficial” e, principalmente, da identificação da bebida como sendo eminentemente nacional, o que reforça os estudos feitos por Ortiz e Canclini acerca dos significados atribuídos ao patrimônio cultural imaterial no processo ideológico de transformação de um elemento particular em universal. A cachaça e a caipirinha, expressas nas memórias coletivas dos diversos grupos sociais brasileiros, devido a sua grande popularidade e tradição, são reapropriadas pelo discurso ideológico do Estado através do esvaziamento de sua concretude traduzida na forma da lei abstrata, vazia de todo conteúdo da vida social. 5 O IBRAC é uma associação nacional fundada em 2006 que envolve grandes, médias, pequenas e micro empresas, além de entidades de classe do segmento produtivo da cachaça. O Instituto tem como um de seus principais objetivos a consolidação, no Brasil e no exterior, da cachaça como uma bebida originalmente brasileira. VII Jornadas de Antropologia social. 18 Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013 UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas _____________________________________________________________________ 18 A construção e a valorização da identidade nacional encontramse profundamente relacionadas a uma constante reinterpretação e ressignificação da cultura popular e da memória coletiva dos diversos grupos sociais que integram a nação. Nesse processo de construção ideológica, o Estado Nacional e seus ideólogos, situados fora ou dentro Estado, operam a transformação do particular em universal, reapropriando e reinterpretando práticas culturais dos mais diversos grupos sociais particulares atualizadas através de ritos e mitos sustentados em uma memória predominante oral. O Estado parece dialogar com seus membros através da elaboração de políticas públicas voltadas à preservação do patrimônio cultural como que expressando uma unidade consensual livre de conflitos e tensões. Finalmente, talvez o mais grave seja o fato de que ao decretar a cachaça como bebida nacional e a caipirinha como um modo autêntico e tradicional de preparação do mais famoso drink brasileiro, o Estado apague uma importante parte da história na qual milhões de negros foram trazidos escravizados para trabalhar nas fazendas de açúcar e, mais tarde, café. Ao decretar a cachaça e a caipirinha como ícones fundamentais de uma autêntica brasilidade diluise o passado de violência, sofrimento e injustiça para com aqueles que tiveram papel chave na invenção desse complexo cultural que é a cachaça. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMIROU, Rachid. Imaginaire du tourisme culturel. Paris: PUF, 2000 p.156 ANICO, Marta. A pósmodernização da cultura: património e museus na contemporaneidade. 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