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artigo cachaça, ideologia e identidade nacional,TURISMO E PATRIMÔNIO

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VII Jornadas de Antropologia social.        1
Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013
UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas
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1
BOA PARA BEBER, MELHOR PARA PENSAR: A VALORIZAÇÃO DA CACHAÇA 
E A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA
   Nathália Caroline Dias
       Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
  Universidade Federal de Juiz de Fora
nathalia.cdias@hotmail.com
Euler David de Siqueira
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
euleroiler@gmail.com 
Resumo: Bebida de vagabundos e associada às camadas mais baixas da sociedade brasileira 
durante  décadas,  há  pouco  mais  de  20  anos  a  cachaça  conhece  um  processo  crescente  de 
valorização  a  ponto  de  mobilizar  o  governo  brasileiro  contra  as  restrições  impostas  pelos 
EUA  a  sua  exportação.  Através  da  intervenção  federal  sob  a  forma  de  dois  decretos­lei 
publicados no começo dos anos 2000, o governo brasileiro busca delimitar geograficamente a 
cachaça  como  bebida  exclusivamente  produzida  no  Brasil,  da  mesma  forma  que  define  a 
caipirinha  como bebida  tipicamente brasileira  obtida  exclusivamente  a  partir  da  cachaça. O 
que parece um simples ato jurídico nos revela, porém, uma complexa operação de construção 
da  identidade  nacional  por  parte  do  Estado  brasileiro.  O  expediente  não  é  novo  e  foi 
paulatinamente usado desde os anos 1930 com a ajuda de inúmeros intelectuais dentro ou fora 
do Estado. Em linhas gerais, esse trabalho tem como objetivo analisar a forma como o Estado 
brasileiro se apropria de elementos da cultura e da identidade populares com vias a reforçar a 
identidade nacional. Metodologicamente,  a presente pesquisa, de natureza qualitativa,  adota 
um olhar sociológico e antropológico relacional. Através da análise documental e da pesquisa 
bibliográfica  que  lança  mão  das  noções  de  patrimônio,  cultura  e  identidade,  buscamos 
compreender a maneira como a cachaça e a caipirinha são reapropriadas pelo Estado com vias 
a  reforçar  aspectos  de  uma  identidade  nacional  livre  de  contradições.  Ambas  as  bebidas, 
através de um processo ideológico operado pelo Estado com a mediação de intelectuais, são 
apresentadas como bebidas que rememoram uma suposta origem mítica da nação.
Palavras­chave:  Memória  coletiva.  Identidade  nacional.  Estado  nacional.  Patrimônio 
cultural. Cachaça. 
Abstract: Beverage of bums and associated with lower levels of Brazilian society for decades, 
just over 20 years,  the cachaça meets a growing process of valorization enough to mobilize 
the Brazilian government against  the restrictions on  its export  to  the U.S.. Through  federal 
intervention in the form of two decrees published in the early 2000s, the Brazilian government 
intends to delimit geographically the cachaça as exclusively produced in Brazil, of the same 
way that defines the caipirinha as typical Brazilian drink obtained exclusively from cachaça.
What  seems  a  simple  legal  act  reveals  us  a  complex  operation  of  national  identity 
construction by the Brazilian State. This process isn’t new and has been used gradually since 
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Buenos Aires, 27, 28 e 29 de novembro de 2013
UBA – Universidade de Buenos Aires, Instituto de ciências antropológicas
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the 1930’s with the support of countless intellectuals. In general, this paper intends to analyse 
how  the  Brazilian  State  borrows  elements  of  the  popular  culture  and  identity  to  build  a 
national  identity.  This  sociological  and  anthropological  study  is  one  of  qualitative  nature. 
Through the analysis of documents and the bibliographic research that make use of concepts 
such  as  “heritage”,  “culture”  and  “identity”,  this  paper  focuses  on  understanding  how 
cachaça and caipirinha are re­appropriated by the State as a way of reinforcing aspects of a 
consensual  and  homogeneous  national  identity  free  from  contradictions.  Both  beverages, 
through an ideological process operated by the State with the mediation of intellectuals, are 
presented as beverages that are somehow reminiscent of the historical origin of the nation.
Keywords: Collective memory. National identity. National state. Cultural heritage. Cachaça.
INTRODUÇÃO
Neste artigo propomo­nos a  investigar criticamente de que maneira duas importantes 
manifestações  da  cultura  popular  brasileira,  a  cachaça  e  a  caipirinha,  são  reapropriadas  e 
retraduzidas  juridicamente  pelo  Estado  a  fim  de  figurar  como  a  mais  pura  e  autêntica 
expressão de nossa identidade nacional. Nosso objeto de investigação se constitui na ação do 
Estado em registrar legalmente a origem dessas bebidas, supostamente “nacionais”, através de 
dois decretos federais, o que atestaria o peso e a disposição do Estado em definir e legitimar 
tanto a origem quanto a natureza dessas bebidas.
Há pouco mais de uma década, a cachaça, uma bebida destilada da cana de açúcar, tem 
sido o alvo de um  intenso  investimento por parte do Estado com o objetivo de  torná­la um 
significativo elemento da identidade nacional brasileira. Acreditamos que ao fazer da cachaça 
a bebida oficial dos brasileiros  e o modo de preparar  a  caipirinha uma  receita  tradicional  a 
preservar, o Estado não parece estar apenas interessado em abrir caminho junto ao poderoso 
mercado  norte­americano  cuja  classificação  da  cachaça  como  Rum  faz  incidir  pesados 
impostos.  O  que  nos  parece  mais  importante  destacar  é  que  com  essa  iniciativa  o  Estado 
também se arvora em legitimo defensor e guardião da memória coletiva nacional, pois é ele 
quem  passa  a  deter  legitimamente  o  monopólio  em  definir  o  que  pode  ou  não  se  chamar 
cachaça  e  o  que  é  necessário  para  que  um  drink  feito  com  ela  possa  ser  chamado  de 
caipirinha.
A  presente  pesquisa  se  justifica  diante  do  considerável  aumento  de  bens 
patrimonializados – frequentemente acompanhado de um debate sobre a banalização do que é 
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patrimonializado  (AMIROU,  2000;  SANTOS,  2002),  mas  também  sobre  o  monopólio  e  a 
legitimidade  estatal  em  conferir  a  esses  objetos  a  alcunha  de  patrimônio  –  e  também  em 
função da valorização nas últimas décadas de aspectos das ditas culturas populares chamadas 
a  figurar o papel de origem das  identidades nacionais  (AMIROU, 2000; CANCLINI, 2008; 
ORTIZ, 1994).
A  metodologia  desta  pesquisa  caracteriza­se  como  sendo  de  natureza  qualitativa  e 
orientada  por  um  approche  antropológico  e  sociológico  relacional.  Estamos  interessados, 
sobretudo,  pela  forma  como  sentidos  são  forjados  para  serem  atribuídos  à  cachaça  e  à 
caipirinha  como  elementos  essenciais  à  definição  de  uma  certa  configuração  identitária 
nacional. Metodologicamente, a presente pesquisa, que caracteriza­se como sendo de natureza 
qualitativa,  lança  mão  da  pesquisa  bibliográfica  e  documental  em  meios  eletrônicos  com 
destaque  para  os  sites  especializados  na  cachaça,  como  o  Instituto  Brasileiro  da  Cachaça 
(IBRAC)  1  e  o Mapa  da  Cachaça2.  Através  dos  sítios  eletrônicos  supracitados  obtivemos 
acesso aos decretos que narram a origem da cachaça e da caipirinha como bebidastipicamente 
brasileiras,  respectivamente, o Decreto nº 4062, de 21 de dezembro de 2001 e o Decreto nº 
4851, de 2 de outubro de 20033. Por fim, esperamos com este trabalho colocar em evidência a 
forma como a seleção e eleição daquilo que será patrimonializado revelam também interesses 
nem sempre claros presentes nos discursos oficiais do Estado (BERGER, 1980). 
ESTADO, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE NACIONAL
O  patrimônio  nacional  é  um  dos  efeitos  mais  imediatos  da  criação  dos  Estados 
nacionais  em  fins  do  século  XIX.  Os  Estados  nacionais  enxergaram  no  patrimônio  um 
poderoso meio  de  fabricar  tanto  uma memória  quanto  uma  identidade  nacional  capazes  de 
serem compartilhadas imaginariamente por todos os membros de uma sociedade. A forma que 
toma  o  discurso  patrimonial  operado  pelo  Estado  é  tributária  do  mito,  mas  não menos  da 
ideologia. Valendo­se desses dois atributos o Estado funda uma origem comum onde todos os 
seus  membros  podem  enxergar­se  e  identificar­se  apesar  das  inúmeras  contradições 
1 Disponível em: <http://www.ibrac.net/>. Acesso em 22 out. 2012.
2 Disponível em: <http://www.mapadacachaca.com.br/>. Acesso em: 01 mar. 2013.
3 Disponíveis para pesquisa em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/>.  Acesso em 22 out. 2012.
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existentes. Coesão  e  integração  sociais  são  assim  forjadas  a  despeito  de  todas  as  fissuras  e 
rachaduras presentes em uma sociedade.
Em  sua  obra  sobre  o  imaginário  do  turismo  cultural,  o  sociólogo  francês  Rachid 
Amirou assinala a importância que o controle e o monopólio da memória nacional adquirem 
para o Estado. Ele diz que:
« Revenons à la France pour dire que la sauvegarde du passe devient une mission de 
l’Etat  qui  assure  le  monopole  quasi  exclusif  de  la  protection  du  patrimoine.  (…) 
L’importante  pour  l’histoire  de  l’art  des  chefs­d’œuvre  de  l’Ile  de  France  est  le 
premier  critère  de  sauvegarde.  (…)  L’Etat  central,  en  tant  que  responsable  de  la 
mémoire  nationale,  remplit  dès  lors  une mission  de  surveillance  des  évolutions  et 
transformations du patrimoine ». (AMIROU, 2000, p.18). 
Detentor legítimo do monopólio da memória nacional, como não poderia deixar de ser, 
o Estado elege e institui os critérios fundamentais à eleição do que pode ou não figurar como 
patrimônio  sem  que  esses  sejam  contestados.  Nesse  processo,  assinala  Amirou,  o  Estado 
nacional  frequentemente  não  leva  em  conta  aspectos  do  cotidiano  no  momento  da 
patrimonialização.  Apenas  critérios  artísticos,  estéticos  e  históricos  de  bens  dotados  de 
excepcionalidade e, ou monumentalidade, são assinalados no momento da patrimonialização, 
conforme argumenta o autor: « Les dimensions historiques et sociologiques ne sont prises en 
compte nulle part: le patrimoine a été vu en tant que chef­d’œuvre et non en tant que vécu par 
une  population.  Les  productions  locales,  sauf  quelques  exceptions,  n’entrent  pas  dans  le 
patrimoine national ». (AMIROU, 2000, p.18).
Salta aos olhos que uma bebida até bem pouco tempo desprezada, considerada vulgar 
e  associada  às  baixas  camadas  da  sociedade  pudesse  ascender  um  dia  a  um  patamar  de 
destaque  no  conjunto  do  patrimônio  cultural  brasileiro.  A  possibilidade  de  que  a  cachaça 
pudesse  figurar  como  bebida  nacional  e,  assim,  figurar  ao  lado  de  importantes  ícones  da 
identidade  nacional  somente  foi  possível  em  decorrência  de  importantes mutações  sendo  a 
mais  importante  a  noção  antropológica  de  cultura.  Os  decretos  do  executivo  brasileiro 
parecem  suspender,  segundo  seus  interesses,  os  critérios  de  excepcionalidade  histórica  e 
artística ao figurar a cachaça como bebida nacional. O que antes era classificado como vulgar, 
bebida de pobres, de desajustados ou de alcoólatras, agora passa a ter seu valor reconhecido 
pelo legítimo detentor da memória e da cultura nacionais. Esse processo, que não se deu de 
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um  dia  para  o  outro,  depende  frequentemente  de  mudanças  culturais  lentas  e  profundas, 
inclusive na formação de um novo “gosto” (BOURDIEU, 2000).
Foi com as Cartas de Veneza (1964), assim como as de Florença e de Malta, assinala 
Amirou  (2000),  que  a  noção  de  patrimônio  histórico  e  artístico  foi  alargada  ganhando  aos 
poucos  a  denominação  de  patrimônio  cultural.  Aqui  o  espaço  foi  aberto  permitindo  que  a 
cachaça  pudesse  abandonar  sua  condição  inferior  para  figurar  como  aspecto  fundador  da 
matriz cultural brasileira.
As  mutações  que  sacudiram  a  noção  de  patrimônio  precisaram  deixar  para  trás 
inúmeros obstáculos. Ao criticar as teorias que lançavam mão das “necessidades sociais” no 
que diz respeito à ideia de patrimônio, Amirou mostra que pouco a pouco a extensão da noção 
de patrimônio abarcou todas as épocas e todos os lugares: “la prise en compte de critères liés 
aux sociabilités, aux identités, quant à la définition du patrimoine (qualité de vie, convivialité, 
tradition,  ceci  est  visible  dans  la  protection  et  la  sauvegarde  des  quartiers  anciens  et  des 
cultures ‘minoritaires’)” (AMIROU, 2000, p.20).
Amirou  (2000)  sublinha  ainda  que  desde  a  criação  da  UNESCO  a  ideia  de 
universalidade do patrimônio  já era enfatizada. Segundo o autor, a emergência da noção de 
patrimônio  imaterial  provocara  uma mudança  significativa  na  noção de  patrimônio. Alguns 
exemplos apresentados pelo autor colocam em evidencia esses aspectos. Amirou assinala que 
relacionado  mais  a  sociabilidade  desse  espaço  do  que  a  seus  aspectos  arquitetônicos,  a 
inscrição da praça Djama el Fna em Marrakesh como patrimônio mundial pela UNESCO é 
um bom exemplo do que se pretende inscrever como patrimônio cultural. Da mesma forma, as 
Arenas do baixo Languedoc, na França, também inscritas em 1992 na lista do inventário do 
patrimônio  francês,  se  devem muito mais  a  seu  valor  etnológico  do  que  seu  valor  estético 
(AMIROU, 2000).
De  acordo  com  Amirou,  os  critérios  levados  em  consideração  no  momento  de 
solicitação do registro ou do tombamento escapam aqueles tradicionalmente orientados pelos 
critérios  artísticos  e  históricos.  Na  verdade,  eles  se  devem  mais  a  aspectos  ligados  à 
antropologia  e  à  sociologia.  Nos  dois  casos  analisados  por  Amirou  é  preciso mostrar  que, 
mais  do  que  lugares,  o  que  se  procurou  registrar  foram  os  aspectos  imateriais,  como  a 
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sociabilidade.  Podemos  ver  de  que  maneira  a  dimensão  simbólica  investe  o  material 
aumentando consideravelmente o espectro daquilo que pode ser registrado.
O Nacional como popular
O estudo acerca da relação entre Estado e identidade nacional não se faz sem a crítica 
da  relação  entre  o  nacional  e  o  popular,  bem  como  sobre  da  função  social  dopatrimônio 
histórico  cultural  no  processo  de  formação  da  identidade  nacional.  Assim,  optamos  por 
basearmo­nos  nas  obras  do  sociólogo  brasileiro  Renato  Ortiz  e  do  antropólogo  argentino 
Néstor Garcia Canclini para levar a bom termo nossa empreitada. Tal escolha se justifica pela 
forma  como  ambos  abordam  a  relação  entre  a  memória,  a  cultura  e  o  Estado,  mas  não 
excluem tantos outros autores que defendem perspectivas distintas.
Ortiz e Canclini parecem concordar que há uma escassez de estudos voltados para a 
temática  da  identidade  nacional  e  do  patrimônio  histórico  cultural  nos  países  da  América 
Latina. Do lado brasileiro, Ortiz (1994) menciona autores do fim do século XIX e início do 
século  XX,  como  Silvio  Romero,  Nina  Rodrigues  e  Euclides  da  Cunha,  considerados  os 
precursores das Ciências Sociais no Brasil, como empenhados em explicar a situação social e 
cultural  do  Brasil  de  sua  época  a  partir  de  argumentos  teóricos  racistas  provenientes  da 
Europa  cujo  declínio  na  Europa  era  claro.  Para  os  pais  da  sociologia  brasileira,  o  atraso 
brasileiro em relação aos países “desenvolvidos” se devia a não adaptação do elemento racial 
europeu aos trópicos. Estamos diante de dois tipos de determinismo: o racial e o geográfico. 
Segundo esse ponto de vista, negros e mestiços não forneciam os elementos adequados para 
se  construir  uma  nação  em  moldes  modernos,  daí  a  contradição:  como  erigir  uma  nação 
nesses termos? A resposta se dava em torno da adaptação do elemento europeu aos trópicos, o 
que significava para esses  intelectuais em uma aposta de projeto futuro de nação,  inclusive, 
com o recurso na imigração seletiva em massa de europeus.
Até as primeiras décadas do século XX, a ideia do popular simplesmente não fazia o 
menor  sentido  para  pensar  o  quadro  brasileiro.  Para  explicar  a  relação  entre  nacional  e 
popular,  Ortiz  (1994,  p.131)  recorre  às  noções  de memória  coletiva  e  nacional.  Essa  duas 
noções são compreendidas a partir de um contexto moral e territorial: o do Estado nacional. 
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Essa  relação  seria  expressa  pelo  autor  através  de  exemplos  como  o  candomblé  e  as 
manifestações folclóricas, claro, tomando o cuidado em evitar derivas que caíssem no senso 
comum do romantismo ou da essencialização de um povo pelo folclore.
Ao  estudar  o  Candomblé,  manifestação  religiosa  de  origem  africana,  Ortiz  (1994, 
p.132) explica que as práticas rituais associadas a essa religião acionam todo um conjunto de 
referências à memória coletiva do grupo. Através do sincretismo religioso, a lógica simbólica 
situa e coordena os elementos de outro sistema cultural. Assim é que as entidades africanas 
encontram entre as entidades da igreja católica uma sorte de equivalente sem que os primeiros 
percam, contudo, seu valor e importância. Quando toma o folclore como fenômeno cultural, 
Ortiz (1994, p.134) os caracteriza no campo da polissemia. A semelhança entre os dois estaria 
no fato de suas existências estarem essencialmente ligadas às práticas cotidianas de um grupo 
social  no  interior  do  qual  seus membros  ocupam posições  e  funções  precisas  atualizando  a 
memória coletiva a cada instante em que são celebradas. É por isso que as festividades e as 
reuniões adquirem relevância ao processo de atualização da memória e da identidade de um 
grupo.
Ortiz  associa  as  manifestações  folclóricas  à  cultura  popular  e  isso  quer  dizer, 
sobretudo,  o  campo plural  e  fragmentado. Ortiz  toma  o  cuidado  em  evitar  a  apreensão  das 
práticas míticas e  rituais como simples  reproduções de  tradições engessadas que se  repetem 
sem cessar. Para ele, assim como para muitos outros intelectuais, as dinâmicas se processam a 
partir  de  um  tipo  de  negociação  simbólica  intermediada  por  relações  do  tipo  étnicas  e  isso 
quer  dizer  que  estamos  diante  de  uma oposição  contrastiva  do  tipo Nós  x Eles  (BARTHE, 
1998, CUCHE, 1992).
 O popular caracterizar­se­ia sempre como algo que faz parte de uma tradição de um 
grupo  concreto  particular.  Dito  de  outra  forma,  sua  memória  coletiva  seria  reproduzida  e 
atualizada  a  partir  das  práticas  orais  e  cotidianas.  Cada  grupo  popular  manteria  viva  sua 
memória  coletiva  atualizando­a  de  tempos  em  tempos  através  dos  ritos.  Estamos  longe, 
portanto,  do  discurso  ideológico  hegemônico  em  que  memória  e  identidade  nacional  são 
acionadas pela lógica monopolística e universal do Estado.
Através  da  ideologia  o Estado  torna universal  algo que  é  particular. A memória  e  a 
identidade  coletivas  associadas  aos  inúmeros  grupos  sociais  seriam,  assim,  unificadas  pelo 
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Estado nacional através do processo de transformação do particular em universal ou nacional. 
Esse processo é guiado no interior do Estado por intelectuais, direta ou indiretamente ligados 
ao Estado, que se apropriam dessas produções culturais locais e particulares selecionando­as e 
reorganizando­as  com o  objetivo  de  forjar  ideologicamente  uma memória  coletiva  nacional 
coerente.
Na  relação entre o nacional  (universal) e o popular  (particular),  a  intermediação dos 
intelectuais se apresenta como decisiva. É por meio da reinterpretação das práticas populares 
cotidianas  que  esses  mediadores  simbólicos  promoveriam  a  unificação  das  expressões 
culturais particulares de forma a integrá­las em narrativas livres de tensões e contradições.
Ortiz  (1994,  p.135)  recorre  à  distinção  proposta  por Peter Berger  (1980)  acerca  dos 
fenômenos  ligados  à  memória  coletiva.  Ele  explica  que  para  a  memória  coletiva  ser 
vivenciada  cotidianamente,  ela  ganha  a  forma  de  uma  narrativa  mítica,  pois  é  ritualmente 
manifestada.  Já  a  memória  nacional  seria  o  resultado  da  história  social  do  Estado, 
pertencendo,  portanto,  ao  domínio  da  ideologia.  A  diferença  fundamental  entre  a memória 
coletiva  e  a  ideologia  é  que  a  segunda  não  seria  sustentada  como  a  primeira  pelos  seus 
membros através de suas práticas mítico­rituais.
Rito, patrimônio e significação
Abordar  o  patrimônio  como  expressão  de  práticas  culturais  nos  remete  à  noção  de 
ritual.  Ao  invés  de  vermos  o  patrimônio  como  um  simples  objeto  naturalmente  dotado  de 
qualidades  extraordinárias, melhor  seria  concebê­lo  como uma construção  social  cujo  ritual 
possui  participação  privilegiada.  O  antropólogo  brasileiro  Roberto  DaMatta  entende  que  o 
universo ritual não deve ser analisado de forma separada da realidade cotidiana, pois “sendo o 
mundo social fundado em convenções e símbolos,  todas as ações sociais são realmente atos 
rituais ou atos passíveis de ritualização” (1997, p.72). Outro antropólogo brasileiro, Reginaldo 
Gonçalves  (2007),  se  debruça  sobre  os  simbolismos  atribuídos  aos  bens  e  tradições 
destacando sua pertinência à ação:
“sobretudo para ‘agir’ e não somente para se ‘comunicar’. O patrimônio é usado não 
apenas  para  simbolizar,  representar  ou  comunicar:  ele  é  bom  para  agir  [...].  Nãoexiste apenas para representar ideias e valores abstratos e para ser contemplado. Ele, 
de certo modo, constrói, forma as pessoas” (GONÇALVES, 2007, p.114).
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O ritual envolvido na construção da memória coletiva é um processo através do qual, 
por  meio  do  discurso  ideológico  elaborado  por  intelectuais  dentro  ou  fora  do  Estado, 
elementos  rotineiros  têm  seus  valores  e  significados  sublinhados  segundo  interesses 
específicos  dos  membros  de  determinados  grupos  sociais.  Dito  de  outra  forma,  o  ritual 
acentuaria elementos do cotidiano fazendo com que não passassem despercebidos.
Ao estudar a ritualização do patrimônio cultural de uma nação, Canclini indaga como 
bens e práticas tradicionais pertencentes ao passado histórico de um povo ganham destaque na 
contemporaneidade  por meio  da  construção  ideológica.  Através  da  ideologia,  o  patrimônio 
seria  integrado  ao  discurso  do  Estado  como  sendo  um  dom  recebido  do  passado  e  cuja 
perenidade  seria  fonte  de  consenso.  Nas  palavras  do  autor,  “os  ritos  legítimos  são  os  que 
encenam o desejo de repetição da ordem” (CANCLINI, 2008, p.163), o que vem ao encontro 
do  pensamento  de  Ortiz  (1994,  p.137)  que  caracteriza  tais  discursos  como  “de  segunda 
ordem”, ou seja, uma ideologia que naturaliza as contradições sociais. Ao mesmo tempo em 
que o ritual engloba todos os que compartilham de uma mesma memória coletiva, ele exclui 
os que não fazem parte dessa ordem. É dessa forma que Canclini (2008, p.164) afirma que: 
“todo grupo que quer diferenciar­se e afirmar sua  identidade faz uso  tácito ou hermético de 
códigos  de  identificação  fundamentais  para  a  coerção  interna  e  para  proteger­se  frente  a 
estranhos”.  Muitas  vezes  os  conflitos  étnicos  presentes  na  história  nacional  não  são 
mencionados, pois a maneira como cada grupo faz uso da cultura e o modo pelo qual cada um 
a compreende tende a ser desigual, como afirma Canclini: 
[...]  os  bens  reunidos  na  história  por  cada  sociedade  não  pertencem  realmente  a 
todos, mesmo que formalmente pareçam ser de todos e estejam disponíveis para que 
todos os usem [...] diversos grupos se apropriam de formas diferentes e desiguais da 
herança  cultural  [...].  Como  vimos  no  estudo  do  público  em  museus  de  arte,  à 
medida que descemos na escala econômica e educacional, diminui a capacidade de 
apropriar­se do capital cultural transmitido por essas instituições (CANCLINI, 2008, 
p.194, grifo do autor).
A construção da  identidade nacional exige a circunscrição de um espaço geográfico, 
pois  é  em  seu  interior  que  se  articula  a  relação  entre  nacional  e  popular.  Como  mostra 
Canclini (2008), a partir de movimentos de independência nacional ao longo do século XX, a 
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reconstrução da  identidade passou  a  estar  intrinsicamente  ligada  à  recuperação do  território 
antes apropriado por estranhos.
Estamos de acordo com Canclini quando ele assinala que as políticas culturais seriam 
mais  bem  sucedidas  a  partir  da  articulação  dos  bens  e  tradições  do  passado  com  os  seus 
significados  no  presente  ao  invés  de  serem  analisadas  apenas  pelo  viés  da  relação  entre 
tradição  e  modernidade.  Conforme  esse  ponto  de  vista,  alerta  o  autor:  “Existem  objetos  e 
práticas que merecem ser  especialmente valorizadas porque  representam descobertas para o 
saber, inovações formais e sensíveis, ou acontecimentos fundadores da história de um povo” 
(CANCLINI, 2008, p.200).
A  partir  do  que  foi  avançado  por  Canclini  e  Ortiz,  o  caso  da  aguardente  de  cana 
produzida no Brasil ilustra bem a forma como o Estado busca reconstruir a história da bebida 
apelando para um  instrumento  legal  esvaziado de qualquer  traço histórico. A partir de uma 
analise histórica acerca das infinitas práticas sociais que envolvem a bebida no país é possível 
perceber sua popularidade e seu papel de elemento unificador na cultura popular.
Um dos primeiros estudiosos a se debruçar sobre a Cachaça foi o antropólogo Câmara 
Cascudo, para quem a cachaça seria uma bebida predominante em diferentes grupos sociais 
no  Brasil,  “demonstrando  aculturação  nacional”  (2006,  p.51).  Ainda  que  a  noção  de 
aculturação como processo de imposição violenta de uma cultura sobre a outra tenha cada vez 
mais sua validade posta em xeque, isso não impede que vejamos a importância que a cachaça 
assume em todo o território nacional e que seja articulada como elemento de resistência. Para 
Cascudo, a cachaça atuaria como um importante elemento de integração da memória coletiva 
tamanha a sua entrada nos mais diferentes setores da sociedade nacional.
Através da publicação de dois decretos federais que definem a natureza da cachaça e 
da  caipirinha  como  sendo  de  origem  autenticamente  brasileira,  o  Estado  brasileiro 
reatualizaria  o  mito  da  identidade  nacional.  Se  o  mito  vale­se  de  narrativas  fantásticas, 
absurdas e  inverossímeis, o decreto cumpre bem esse papel, pois no mito nada parece fazer 
sentido do ponto de vista da  lógica  racional.   Além dos decretos, há um projeto de Lei que 
visa a instituir o Dia Nacional da Cachaça4. Por meio dessas iniciativas, o Estado apropria­se 
4  Projeto  de  lei  5428/2009  disponível  para  consulta  em:  <http://www2.camara.leg.br/>.  Acesso  em  03  mar. 
2013.
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de  aspectos  das  memórias  coletivas  fragmentadas  unificando­as  através  do  trabalho  dos 
intelectuais situados em seu interior. O resultado é algo a naturalização e a essencialização da 
cachaça como bebida autenticamente e tipicamente brasileira.
A  CONSTRUÇÃO  DA  CACHAÇA  COMO  PATRIMÔNIO  CULTURAL 
BRASILEIRO AUTÊNTICO
A construção da identidade nacional pelo Estado brasileiro segundo a forma como esse 
ator  apropria­se  da  cachaça  e  da  caipirinha  leva  em  conta  também  o  processo  de 
patrimonialização.  Através  da  patrimonialização,  o  Estado  busca  tornar  uma  manifestação 
popular, concreta e plural em um discurso homogêneo livre de contradições. Esse discurso faz 
de cada brasileiro o portador de um gosto natural tanto pela cachaça quanto pela caipirinha.
O  viés  ideológico  da  preservação  do  patrimônio  cultural  refere­se  ao  que  Arantes 
(1984,  p.8)  define  como  “a  vontade  coletiva  de  defender  o  que  constitui  e  que,  ao mesmo 
tempo,  é  testemunho  de  experiências  comuns,  que  são  pensadas  como  história 
compartilhada”. Visto dessa maneira, o patrimônio cultural representaria uma série de bens e 
práticas tradicionais considerados essenciais à formação da identidade de um povo. Museus e 
patrimônios mostram­se bons operados  ideológicos, pois permitem dar conta de uma ampla 
gama  de  situações  onde  os  sujeitos  podem  articular  seus  pertencimentos.  Nas  palavras  de 
Marta Anico (2005, p.83):
“Patrimônio e museus desempenhamum papel  importante no que concerne quer à 
criação  de  consciências  pessoais,  quer  no  que  diz  respeito  à  construção  e 
representação  de  identidades  locais,  regionais  ou  nacionais,  em  virtude  do  seu 
posicionamento enquanto instrumentos pedagógicos e ideológicos. Simultaneamente 
agentes e produtos da mudança política, social e cultural”.
Definido  pelo  o  quê  do  passado  é  (re)  criado  e  utilizado  no  presente,  o  patrimônio 
assegura  uma  espécie  de  perenidade.  Tratar­se­ia  de  um  tempo  que  se  aproxima  do  mito. 
Visto  dessa  maneira,  o  patrimônio  opera  como  um  elo  de  continuidade  entre  as  gerações. 
Pensamos  ser  relevante  a  análise  acerca  das  noções  de  memória  voluntária  e  involuntária 
apresentadas por Willi Bolle (1984) a partir de seu estudo sobre o  texto Infância berlinense 
por  volta  de  1900,  do  filósofo  alemão  Walter  Benjamim.  Segundo  Bolle,  a  memória 
voluntária  é  aquela  que  faz  parte  de  nossa  vida  cotidiana,  cujas  referências  são 
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constantemente  reforçadas  por  divulgação  nos  meios  de  comunicação.  A  memória 
involuntária se caracterizaria por ser essencialmente relacionada às experiências que tivemos 
no passado. Nesse sentido, “a memória não aparece apenas como uma instância voltada para o 
passado.  Devemos  imaginá­la  como  uma  relação  dinâmica  entre  passado  e  presente.  A 
memória é um elemento muito enraizado no presente” (BOLLE, 1984, p.13).   Para o autor, 
existiria ainda uma terceira manifestação da memória, 
“ligada basicamente à memória involuntária, mas não totalmente restrito a ela. Para 
um  indivíduo  cuja  cultura  sofre  ameaça  de  destruição,  uma  arma  eficiente  de 
resistência é a memória afetiva. Dela é que depende a preservação de identidade, sua 
ou de seu grupo; ela é o núcleo de sua personalidade” (BOLLE, 1984, p.13­14).
Da  mesma  forma  que  a  memória  coletiva  precisa  ser  manifestada  no  cotidiano  do 
grupo  social  ao  qual  pertence,  os  bens  culturais  materiais  e  imateriais  devem  ser 
constantemente  produzidos  e  utilizados  por  todos  para  tornar  a  existência  humana  coletiva 
coesa e organizada. Aqui nos deparamos com a instabilidade e a efemeridade da memória. É 
nesse sentido que a categoria de preservação ganha destaque no pensamento da antropóloga 
brasileira Eunice Durham:
“As  coisas  preservadas  podem  ser  monumentos  às  realizações  das  classes 
dominantes ou monumentos às realizações das classes dominadas [...] a tentativa de 
preservar, no sentido de tornar disponível, uma variedade maior daquelas coisas que 
foram criadas. Porque muito do que os homens produzem e inventam se perde com 
relativa facilidade” (DURHAM, 1984, p.38).
Segundo esse ponto de vista, é por meio da preservação dos valores simbólicos de uma 
cultura que se dá a relação entre o Estado e seu povo. Mas é preciso mais do que preservar 
algo  sob  a  chancela  do  patrimônio:  é  preciso  inseri­lo  no  presente  como  referência  do 
passado. Para Canclini (2008, p.162), “o patrimônio existe como força política na medida em 
que é teatralizado: em comemorações, monumentos e museus”. Sendo assim, a questão agora 
não é mais a de preservar ou não, mas sim a de o que preservar. Para a UNESCO (2012):
É  amplamente  reconhecida  a  importância  de  promover  e  proteger  a memória  e  as 
manifestações  culturais  representadas,  em  todo  o  mundo,  por  monumentos,  sítios 
históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura 
de  um  povo.  Há muito  mais,  contido  nas  tradições,  no  folclore,  nos  saberes,  nas 
línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral 
ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. A essa 
porção  intangível  da  herança  cultural  dos  povos,  dá­se  o  nome  de  patrimônio 
cultural imaterial. 
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Os modos  de  apropriação  e  de  usos  sociais  do  patrimônio,  bem  como  os  interesses 
políticos  muitas  vezes  divergentes,  criam  disputas  entre  os  grupos  sociais  que  o 
compartilham.  Dentro  desse  contexto,  retomo  o  estudo  de  Roberto  DaMatta  sobre  os 
mecanismos da ritualização. O autor destaca que “na sociedade complexa, existem oscilações 
entre  grupos  especializados  que  passam  de  dominantes  a  dominados  e  vice­versa” 
(DAMATTA, 1997,  p.74­75),  ou  seja,  há disputas no  sentido de qual  grupo  social  terá  sua 
memória  coletiva  universalizada  em  memória  nacional,  o  que  o  autor  mencionou  como 
“contaminação de  todo sistema por parte de um grupo social e  sua  ideologia”  (1997, p.75).   
Nesse  sentido,  os  sistemas  podem  ser  caracterizados  como  dinâmicos  e mutáveis,  os  quais 
seriam  totalmente  “contaminados”  por  um  grupo  dominante  ou  passariam  por  períodos  de 
equilíbrio entre os diversos grupos existentes.
Através  de  um  retrospecto  acerca  da  história  do  Brasil,  vimos  que  no  nosso  país  o 
processo  de  formação  da  identidade  nacional  foi  marcado  pela  mistura  de  três  principais 
grupos étnicos: o branco, o  indígena e o negro. Porém, durante essa formação, houve o que 
Durham caracterizou como:
“Um processo de desapropriação e destruição de culturas existentes. Os portugueses 
se  apropriaram  de  inúmeras  produções  culturais  indígenas  e  destruíram  os  índios. 
Depois, tiveram uma ação intensíssima no sentido de descaracterizar e não permitir 
a  reprodução  de  toda  a  cultura  trazida  pelos  escravos.  A  escravidão  é  um  dos 
processos mais violentos que existe de empobrecimento cultural. Estabelece­se um 
controle absoluto que impede a reprodução da cultura original e, ao mesmo tempo, 
nega­se o acesso à cultura dominante. Com os negros aconteceram as duas coisas, de 
modo que a  imensa contribuição negra na cultura brasileira é nada menos que um 
milagre” (DURHAM, 1984, p.39­40).
O processo descrito por Durham é chamado por Pierre Clastres  (1982) de etnocidio.   
De acordo com Trindade  (2006, p.31)  é por volta de 1600 que a  cachaça brasileira  faz  sua 
entrada  no  universo  cultural  da  colônia. Na  tentativa  portuguesa  de  superar  a  concorrência 
espanhola  pela  comercialização  de  bebidas,  a  cachaça  é  inserida  no  continente  africano. 
Entretanto, no Brasil  a bebida  já era considerada popular,  sendo consumida pelos membros 
menos  abastados  da  população,  pelos  indígenas  e,  principalmente,  pelos  escravos  africanos 
que,  segundo  Trindade,  provavelmente  foram  os  responsáveis  pela  sua  invenção.  Dizemos 
invenção  no  lugar  de  descoberta  para  sublinhar  a  forma  como  lenta  e  gradualmente  foi­se 
formando isso que mais tarde será chamado de cachaça. 
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A cachaça,  além de  seu  fundamental papel na  economia nacional,  tornou­se um dos 
símbolos da cultura popular brasileira, sendo relacionada ao imaginário popular,expressando 
e revelando a memória e a identidade do brasileiro, povo mestiço. Nas palavras de Cascudo, 
a cachaça “é a bebida­do­povo, áspera, rebelada, insubmissa aos ditames do amável paladar, 
bebida de 1817, da  Independência,  atrevendo­se enfrentar o vinho português  soberano  [...] 
bebida nacional, a Brasileira” (CASCUDO, 2006, p.47, grifo do autor).
A  cachaça,  no  decorrer  dos  anos,  foi  sendo  enriquecida  por  uma  variedade  de 
sinônimos na língua portuguesa, dentre os quais destacamos: água­que­passarinho­não­bebe, 
aguardente, amarelinha, branquinha, caiana, cana, caninha, malvada, parati, pinga, tira­juízo. 
Essa riquíssima nomeação da bebida demonstra seu forte apelo social e cultural em todas as 
regiões  do  Brasil,  claro  guardando­se  as  devidas  peculiaridades  com  que  ela  é  concebida 
localmente.  O  chamado  folclore  da  cachaça  também  abrange  a  literatura  popular, 
especialmente a de cordel; orações; versinhos; e músicas que retratam a vivência cotidiana 
em nosso país. 
Contudo, entre o século XIX e início do século XX, a elite e a classe média brasileira, 
numa  tentativa de se  identificar com a cultura européia, desenvolveu um forte preconceito 
contra  os  hábitos  e  costumes  ditos  “brasileiros”.  Nesse  sentido,  a  cachaça  passou  a  ser 
considerada  uma  bebida  inferior  e,  nesse  sentido,  marginalizada.  Foi  somente  a  partir  de 
1922,  com  a  Semana  de  Arte  Moderna,  movimento  de  renovação  da  brasilidade  e  da 
valorização da cultura nacional realizado por intelectuais, artistas e estudiosos, que a cachaça 
tornou­se novamente bebida relevante econômica e culturalmente, consolidando­se como um 
símbolo da identidade brasileira (GONÇALVES; GRAVATÁ, 1991). 
Como consequência, gradativamente, a cachaça foi sendo inserida em todos os níveis 
sociais.  Sua  imagem  foi  desvinculada  dos  sujeitos  à  margem  da  sociedade  para  ganhar 
destaque até nas casas dos mais “nobres”. 
UMA DOSE DE AÇÃO POLÍTICA 
Já vimos que a construção da identidade nacional é um processo ideológico no qual há 
uma reinterpretação e universalização das práticas populares por parte de intelectuais situados 
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no interior do Estado brasileiro. O Estado nacional se relaciona com os brasileiros por meio 
da elaboração de legislação específica para promover a preservação e identificação da cachaça 
e  da  caipirinha  como  bebidas  tipicamente  brasileiras,  através  de  seus  registros,  pois  como 
explica Gonçalves  (2007,  p.111)  “a  proposta  é  no  sentido  de  se  ‘registrar’  essas  práticas  e 
representações  e  de  se  fazer  um  acompanhamento  para  verificar  sua  permanência  e 
transformações”.
A valorização da cachaça como bebida “oficialmente” nacional com a publicação de 
dois  decretos­leis.  Em  21  de  dezembro  de  2001,  o  então  presidente  Fernando  Henrique 
Cardoso, através do decreto n° 4.062, define as expressões "cachaça", "Brasil" e "cachaça do 
Brasil" como sendo indicações geográficas. Em seu artigo primeiro, estabelece que “o nome 
‘cachaça’,  vocábulo  de  origem  e  uso  exclusivamente  brasileiros,  constitui  indicação 
geográfica para os efeitos no comércio  internacional” e no artigo  terceiro determina que “o 
uso  das  expressões  protegidas  ‘cachaça’,  ‘Brasil’  e  ‘cachaça  do  Brasil’  é  restrito  aos 
produtores estabelecidos no país”.
Outra  importante  ação  do  Estado  foi  a  elaboração  do  decreto  n°  4.851,  de  02  de 
outubro de 2003 que estabelece que “a caipirinha é a bebida típica brasileira com graduação 
alcoólica  de  quinze  a  trinta  e  seis  por  cento  em  volume  a  vinte  graus  Celsius  obtida 
exclusivamente  com  Cachaça,  acrescida  de  limão  e  açúcar”.  Dessa  forma,  a  cachaça  e  a 
caipirinha  são  apropriadas  como  atrativos  culturais  brasileiros,  contribuindo  para  sua 
preservação como patrimônio cultural imaterial.
Além de  estabelecer  o  registro  de  bebidas,  esse  decreto  define  uma  classificação  na 
qual há uma relevante distinção entre aguardente de cana, cachaça e rum, a partir da variação 
da porcentagem alcoólica e da matéria­prima utilizada para a produção de cada destilado. A 
cachaça,  nesse momento  entendida  como  denominação  típica  e  exclusiva  da  aguardente  de 
cana produzida no Brasil, se diferencia da aguardente comum por possuir graduação alcoólica 
de  trinta  e  oito  a  quarenta  e  oito  por  cento  em  volume,  a  vinte  graus Celsius,  e  apesar  de 
também  ser  obtida  pela  destilação  do  mosto  fermentado  de  cana­de­açúcar,  apresenta 
características sensoriais peculiares.
O rum passa a ser registrado como bebida com graduação alcoólica de trinta e cinco a 
cinquenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, produzida a partir do destilado 
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alcoólico  simples de melaço, ou da mistura dos destilados de  caldo de  cana­de­açúcar  e de 
melaço,  envelhecidos,  total  ou  parcialmente,  em  recipiente  de  carvalho  ou  madeira 
equivalente, conservando suas características sensoriais peculiares.
Acreditamos que a distinção “decretada” entre a cachaça (ou aguardente de cana) e o 
rum,  além de  tratar­se  de  uma disputa  econômica,  seja  uma das mais  expressivas  ações  do 
Estado  no  processo  de  construção  da  identidade  nacional  tendo  a  bebida  como  elemento 
popular unificador.
Entretanto, há ainda um árduo caminho a ser percorrido na busca pelo reconhecimento 
internacional,  pois  a  nossa  cachaça  ainda  é  conhecida  em muitos  países  como  “Brazilian 
Rum”  (rum  brasileiro).  Contudo,  desde  abril  de  2012  um  acordo  entre  Brasil  e  Estados 
Unidos da América  (EUA) vem sendo elaborado para alterar essa  situação. Recentemente, 
foi divulgado nos meios de comunicação que esse acordo será em breve colocado em prática. 
A partir do dia 11 de abril de 2013, a cachaça será exportada para os EUA como bebida de 
origem exclusivamente brasileira. Dessa forma, para se chamar cachaça nos EUA, o produto 
terá obrigatoriamente que ter indicação de origem geográfica e estar de acordo com padrões 
oficiais brasileiros de identidade e qualidade. 
Apesar desse processo de reconhecimento externo da cachaça estar apenas no começo, 
dentro  do  contexto  do  Estado  nacional  a  bebida  parece  possuir  uma  clara  relação  de 
“autenticidade” com o povo brasileiro. Nesse sentido, a noção de autenticidade é analisada 
tendo como base os estudos de Gonçalves (2007) acerca dos patrimônios culturais. 
A  autenticidade  da  cachaça  como  bebida  tipicamente  brasileira  refere­se  à  sua 
originalidade histórica. A cana­de­açúcar e a cachaça, por  terem suas origens muitas vezes 
confundidas  com  a  própria  origem  do  Brasil,  estiveram  presentes  em  importantes 
acontecimentos históricos do país. Os esforços em prol do desenvolvimento e fortalecimento 
da  cachaça,  tanto  no  mercado  interno  quanto  no  exterior,  possibilitaram  a  padronização, 
classificação e registro da bebida no Brasil. Sendo assim, nada mais justo do que a existência 
de um dia em que sua origem é celebrada nacionalmente. 
A  iniciativa da criação do Dia Nacional da Cachaça partiu doInstituto Brasileiro da 
Cachaça  (IBRAC)  5  em  2009  e  a  data  escolhida  foi  o  dia  13  de  setembro.  A  escolha  se 
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justifica  pelo  fato  de  que  em  13  de  setembro  de  1661  a  produção  e  a  venda  da  bebida 
tonaram­se legalizadas no país, após a Revolta da Cachaça, movimento ocorrido no Rio de 
Janeiro no qual os senhores de engenho se revoltaram contra a Corte portuguesa.
Por meio de todas essas ações, o Estado ao definir que a cachaça é nossa, constrói uma 
série  de  valores  e  significados  que  rememoram o passado da  nação  e  promovem  todo um 
imaginário associado ao território e ao povo brasileiro.
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Bebida popular por excelência, durante muitas décadas a cachaça esteve associada a 
um  imaginário  vagabundo  e  marginal.  Nas  últimas  décadas,  entretanto,  assisti­se  a  um 
processo  de  valorização  da  cachaça  como  bebida  nacional  por  excelência.  A 
patrimonialização da cachaça e da caipirinha através de dois decretos­lei federais nos parece 
ser  a  expressão de um processo  em constante  atualização por  parte  do Estado brasileiro  de 
valorização e afirmação da identidade nacional brasileira.
A partir de um olhar antropológico relacional e do recurso à análise histórica acerca da 
cachaça no Brasil e de seu imaginário na cultura popular brasileira, é possível concluir, ainda 
que provisoriamente, que o Estado Brasileiro, através da criação dos dois decretos  reafirma 
seu papel de legitimo guardião da memória e da identidade nacionais. O Estado realiza essa 
operação  através  do  registro  “oficial”  e,  principalmente,  da  identificação  da  bebida  como 
sendo eminentemente nacional, o que reforça os estudos feitos por Ortiz e Canclini acerca dos 
significados  atribuídos  ao  patrimônio  cultural  imaterial  no  processo  ideológico  de 
transformação de um elemento particular em universal.
A  cachaça  e  a  caipirinha,  expressas  nas  memórias  coletivas  dos  diversos  grupos 
sociais  brasileiros,  devido  a  sua  grande  popularidade  e  tradição,  são  re­apropriadas  pelo 
discurso ideológico do Estado através do esvaziamento de sua concretude traduzida na forma 
da lei abstrata, vazia de todo conteúdo da vida social.
5  O  IBRAC  é  uma  associação  nacional  fundada  em  2006  que  envolve  grandes,  médias,  pequenas  e  micro 
empresas,  além  de  entidades  de  classe  do  segmento  produtivo  da  cachaça. O  Instituto  tem  como  um de  seus 
principais  objetivos  a  consolidação,  no  Brasil  e  no  exterior,  da  cachaça  como  uma  bebida  originalmente 
brasileira.
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A  construção  e  a  valorização  da  identidade  nacional  encontram­se  profundamente 
relacionadas  a  uma  constante  reinterpretação  e  ressignificação  da  cultura  popular  e  da 
memória  coletiva  dos  diversos  grupos  sociais  que  integram  a  nação.  Nesse  processo  de 
construção  ideológica,  o Estado Nacional  e  seus  ideólogos,  situados  fora  ou dentro Estado, 
operam a transformação do particular em universal, reapropriando e reinterpretando práticas 
culturais  dos mais  diversos  grupos  sociais  particulares  atualizadas  através  de  ritos  e mitos 
sustentados  em  uma  memória  predominante  oral.  O  Estado  parece  dialogar  com  seus 
membros  através  da  elaboração  de  políticas  públicas  voltadas  à  preservação  do  patrimônio 
cultural como que expressando uma unidade consensual livre de conflitos e tensões.
Finalmente, talvez o mais grave seja o fato de que ao decretar a cachaça como bebida 
nacional e a caipirinha como um modo autêntico e tradicional de preparação do mais famoso 
drink brasileiro, o Estado apague uma importante parte da história na qual milhões de negros 
foram  trazidos  escravizados  para  trabalhar  nas  fazendas  de  açúcar  e,  mais  tarde,  café.  Ao 
decretar  a  cachaça  e  a  caipirinha  como  ícones  fundamentais  de  uma  autêntica  brasilidade 
dilui­se  o  passado  de  violência,  sofrimento  e  injustiça  para  com  aqueles  que  tiveram papel 
chave na invenção desse complexo cultural que é a cachaça.  
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<http://www.brasil.gov.br/noticias/>. Acesso em 01 mar. 2013.
Foi publicado hoje no DOU o decreto nº 7968/2013, alterando o decreto nº 6871/2009 e 
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Publicada pelo governo dos EUA a nova regulamentação para a Cachaça, reconhecida 
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fev. 2013.

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