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Richard Bucher Inlernacicinais de Catalogarão na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livrei, SP, Brasill Bucher, Richard, 1940-1997 B932n A psicolcrapia pela fala: fundamentos, princípios, qucstiotianicnios / Richard Emil 13uolior. São Paulo: EPU, 19S9. Bibliografia ISBN 85-12-60440-9 1. Psicanálise 2. Psicologia clínica 3. Psitolcrapía 4. Relações interpessoais [. Titulo. 8-2178 CDD-SIS.89H -157.9 -616.8917 NLM-WM 420 índices paia tuialii^n sisltmálico: 1. Psicanálise: Medicina 616.S917 2. Psicologia clinica 157.9 3. Psicoterapia: Medicina 616.89 4. Relações Psicolcrápiças 616.8914 A PSICOTERAPIA PELA FALA icípiFundamentos, princípios questionamentos rapia" "todos os métodos que utilizam meios psicológicos para combater a doença pela intervenção do funções psíquicas". Nesta definição se reflele tanto o enfoque medica] ("combater as doenças") quanto a referência à psicologia associacionista da época ("as funções psíquicas"). 10. A respeito, pode-se citar a controvérsia en- tre Binswanger d Freud acerca dos compo- nentes espirituais ("superiores") e pulsío- nais {"inferiores") da natureza humana. Binswanger, no seu trabalho comemorati- vo do 80." aniversário de Freud, "A Con- cepção Freudiana do Homem à Luz da Antropologia", criticou a concepção natu- ralista de Freud, pela qual o homem seria "reduzido" a um esquema ou sistema con- forme às ciências exalas. Diante das preo- cupações espiritualistas e transcendentais de Binswanger, Freud já anteriormente ti- nha deixado clara a sua posição: "A hu- manidade desde sempre sabia que tem espírito; eu tinha que mostrar a ela que também há pulsÕes". Quanto ao referido trabalho, Fremi o elogia com cortesia, para continuar: "Naturalmente apesar de tudo, não acredito no Sr. Sempre demorei apenas no térreo e no subsolo do prédio. O Sr. afirma que basta mudar o ponto de vista para enxergar lambem um andar superior onde residem hóspedes tão distintos como religião, arte e outros. O Sr. não c o único, ali, a maioria dos exemplares culturais do homo naturu pensa assim. O Sr. nisso é conservador, eu sou revolucionário. Se ti- vesse ainda toda uma vida de trabalho diante de mim, me atreveria a indicar àque- les aristocratas uma moradia em minha ca- sinha humilde...". Percebe-se que as pre- missas (ou os "pontos de vista") são bem divergentes, fílosófico-transcendcntais de um lado, empírico-clínicas de outro. Nota-se ainda que Binswanger, num traba- lho posterior, corrigiu sua crítica do homo untura de Freud, percebendo outros valores de "veracidade" na obra de Freud. Em: BINSWANGER, L., Mein Weg zu Freud, em: Der Memcli in der Psychialrle. Neske, 1951. Este trecho ainda é citado por Rollo MAY, no texto "Psicologia Existencial", em: Millon, T. Teorias da Psicologia e Per' sotialidade, pp. 136-37. 11. BINSWANGER, L. Lebensfutútion und innere Lebensgesehichte, (1927). Em: Aus- gewâhlte Vorlràge und Aufsatze, vol. I. Bem, Francke Verlag, 1961(;), pp. 50-73 (tradução nossa). 12. JASPERS, K. Psicopatoiogia geral. Z vol. Rio de Janeiro, Athencu, 1979P). Ver 2.a parle: As conexões compreensíveis da vida psíquica (Psicologia compreensiva); I, pp. 361-534. 3.a parte: As conexões causais da vida psíquica (Psicologia explicativa); II, pp. 551-672. Nota-se que a noção de "conexão" ("Zu- sammenhang") influenciou, desde Dilthey, em alto grau as ciências humanas da época, notadamente na Alemanha. Na própria obra de Freud ele aparece com frequência, sendo traduzida da maneira mais variada (coerência, contexto, coesão, correlação, encadeamento, ligação, trama, elo, proces- so, aproximação, conjunto, associação, se- quência...), de sorte que seu reconheci- mento nas traduções é de averiguação difí- cil (tanto cm inglês ou francês quanto em português). Antes de qualquer estruturalis- mo, a noção de Zusainmenhang se equipara àquela de estrutura; em Freud, testemunha a. sua convicção do determinismo psíquico e da coerência de todos os fenómenos da alma humana, antecipando a concepção es- trutural propriamente dita. Capítulo 3 Delineamentos teóricos do campo psicoterápico 3.1. O problema da teoria da prática psicoterápica No capítulo precedente, confronta- monos com a especificidade da relação psicoterápica. Esta se opõe, como vimos, à relação médico-paciente, na medida em que não recorre a meios intermediários. Se a ação médica opera mediante recursos objetivos, instrumentais, apelando para forças de oulra espécie — físicas, quími- cas, biológicas — a psicoterapia apela unicamente para aqucías forças que estão presentes diretamenfe em qualquer ação (ou melhor: interação) humana: as forças do diálogo, da "fala", da verbalízação e tudo aquilo que implicam afetiva e cogni- livamente. Não obstante, cabe, com vistas a uma delimitação teórica do campo psicoterápi- co, distinguir a relação psicológica da re- lação psicoterápica propriamente dita. A primeira sempre está presente, em qual- quer relação humana, inclusive na relação médica. Ela é implícita, concomitante, automática por assim dizer e, embora consciente, se efetua de maneira não re- fletida, mais como um pano de fundo di- fuso do que respondendo a uma intenção explícita. Sem referência a teorias ou técnicas, a dimensão psicológica participa de tudo que é humano, regulamentada por certas convenções (as fórmulas de polidez, por exemplo) e codificada (e decodificada) segundo as necessidades de cada situação concreta. No caso da relação médica, ela intervém pela maneira do paciente apre- sentar a f-ua queixa, do médico interrogar, examinar, discutir, prescrever e, quem sabe, prometer alivio ou mesmo cura com- pleta do achaque — interações aparente- mente simples, mas de fato complexas se pensarmos nas implicações mágicas ou in- conscientes que contêm; complexas tam- bém no que tange à sugestão, à persuasão que o médico pode ser tentado a usar (prometendo alívio, por exempio). Neste caso, situamo-nos na região limí- trofe da relação psicológica cotidiana, isto é, não psicoterápica, em consequên- cia do ohjetivo consciente, mas talvez in- 42 confessado, de querer diretamente in- fluenciar o outro, para que "acredite" nas palavras — e no poder — daquele que fala, que "sabe" e que ordena em con- cordância com este seu saber. A persuasão aproxima-se, portanto, da relação psicoíerãpica(l), porquanto visa produzir uma certa mudança no outro. A relação psicológica, no entanto, não pre- tende alcançar esta mudança de maneira explícita ou proposital: ela pode produ- zir-se iocidentalmente, como efeito de re- forço ou pelo amparo que uma atenção caritativa, por exemplo, proporciona ao doente. O médico, no caso, não se empe- nha em propiciar esta mudança ou cura pela via psicológica, o que resta o apaná- gio, precisamente, da relação psicote- rápica. Bem em oposição à relação psicológica, espontânea e superveniente em qualquer situação humana, esta é explícita, siste- mática e relativamente padronizada. Ela se sustenta por um arcabouço teórico que lhe confere uma certa coerência, um certo rigor e uma veríficabilidade que, embora longe de ser experimental, obedece a cri- térios de reflexão científica e contém re- ferências a parâmetros metodológicos ave- riguados. A conjunção dos dois aspectos, da teo- rização contínua e do méíodo sistemáti- co de investigação e prática, oferece uma garantia mínima pela não-arbitrariedade e seriedade do empreendimento terapêu- tico. Esta não deixa de ter a sua impor- tância, visto as pretensões de cientificida- de, isto c, de uma certa objetividade e comprovação intersubjetiva da psicologia clínica. Voltaremos à distinção das diversas re- lações psicológicas e psicoterápicas. Por enquanto, traiamos em primeiro lugar da necessidade de definir teoricamente o que c psicolerapia, onde, em que campo ela se situa e como cia procede. Esta necessida-de decorre precisamente da pretensão científica mantida por aquela psicologia clínica que se inscreve na tradição filo- sófico-científica do ocidente. Pelas suas exigências de reflexão metodológica, de rigor, consistência c autocrítica, ela reage contra as abordagens psicológicas de cunho mais especulativo, místico, trans- cendental ou parapsicológico. Nestas orientações, os critérios tradicionais de cientificidade são desleixados; outras re- ferências são invocadas para justificar as linhas de atuação, tais como a intuição, a criatividade espontânea, o contato ime- diato com o cliente, a meditação transcen- dental, a mentali^ação, a sugestão, o êxta- se, relações com forças ou seres extrater- restres e assim adiante. Não se trata aqui de criticar estas li- ge aos critérios de verificação e de elabo- ria oriental; basta citá-las para assinalar a diferença radical de enfoque no que tan- ge aos critérios de verificação e de elabo- ração teórica, bem como para situar a psicologia clínica à qual nós nos referi- mos: ela não pretende fugir das exigên- cias de coerência lógica e racional que caracterizam a evolução da ciência no ocidente; embora "não positiva", no sen- tido de não referir-se a um objeío direta- mente observável ou quantificável, ela não abre mão da sua própria cientificida- de. Para alcançá-la, elabora critérios pró- prios de investigação, adaptados ao seu objeto geral — o ser humano que luta com dificuldades c conflitos —, tanto quanto ao seu objeto específico — as in- teraçôes que, a nível de terapia, possam iniciar processos de mudança que benefi- ciem este ou aquele portador de conflitos. De fato, como vimoj nos dois capítu- los anteriores, a psieoterapia consiste numa interação muito particular entre duas (ou mais) pessoas. Ela é, portanto, uma prática, mas uma prática que não tira sua consistência de nenhuma teoria, de nenhuma "ciência básica" preestabele- cida. Em sua estrutura, distingue-se essen- cialmente da terapia comportamental. Esta considera a si mesma como uma apli- cação de princípios encontrados por ou- tros métodos, ou seja, no laboratório, pela psicologia experimental (sobretudo ani- mal). Isto implica um procedimento cien- tífico radicalmente diferente, o que reper- cute inevitavelmente nos métodos de ava- liação e de comprovação. Por conseguinte, a relação com a teo- ria é muito diferente: no caso da terapia uomportamcntal, a teoria precede a apli- cação, sendo elaborada num contexto di- ferente — contexto que corresponde, qua- se que totalmente, aos critérios da cien- tificidade "positiva", aqueles de quantifi- cação, objetivação e abstração. Com muita lógica, a terapia comportamental conside- ra a sua aluação como "científica", uma vez que aplica os resultados da ciência experimental do comportamento, obtidos principalmente por via indutiva. Ela se re- fere, pois, explicitamente, ao caráter "po- sitivo" da sua fundamentação teórica, en- raivada bem mais nas ciências exalas, em particular na biologia, do que nas ciências do homem. A psieoterapia aqui conceituada, en- quanto parte da abordagem clínica não comportamental (nem psicométrica), de- senvolve-se obedecendo a princípios dife- rentes. Sendo ela prática clínica (e não aplicação técnica), não se refere a uma teoria constituída alhures, mas elabora a sua teoria própria, mini movimento cir- cular permanente: a sua elaboração teóri- ca, embora fertilizada pelas reflexões filo- sóficas e antropológicas milenares da hu- manidade, procede com uma referência imprescindível à experiência clínica. Esta, sendo não experimental, não controlada e não repetitiva, não pode submeter-se aos cânones da ciência "positiva" — me- lhor, não pode nem deve submeter-se a eles, uma vez que obedece a outros prin- cípios, decorrentes da sua situação especí- fica com um objeto, não apenas alvo de investigação e de pesquisa, mas um sujei- to, parceiro num processo de interação que almeja a mudança. Não se pode pensar, pois, como na si- tuação experimental ou de aplicação, no controle das variáveis ou na estabilidade do seu aetting, se no enfoque psicoterápi- co, controle e estabilidade não fazem parte das propriedades desejáveis — se, pelo contrário, devem ser excluídos ou combatidos como "sintomas" de rigidez, de defesa e de resistência de um ou de ambos os protagonistas desta singela rela- ção humana. Assim entendida, a psicologia clínica (e com eia a psieoterapia aqui em foco) não é "positiva" segundo o conceito tradicio- nal (e positivista) de ciência. Levando as coisas ao pé da letra — uma vez que as palavras "querem dizer algo" c que a no- ção de "positivo" faz parte de um contex- to histórico que quis extirpar, explicita- mente, o "obscurantismo" do não-positi- vo, isto é, do negativo, pelas célebres "ideias claras c distintas" (leia-se: quan- titativas) de Descartes — a nossa psico- logia clínica logicamente pertencerá a uma "psicologia negativa" (2). O que caracteriza então uma tal psi- cologia negativa, contestada, por não ser científica, cm seu direito de cidadania na 44 45 comunidade ideológica dos cientistas.. . ? Sendo baseada na prálica, será ela neces- sariamente situativa e concreta; referin- do-se à fala, ao diálogo como meio de co- municação e instrumento de trabalho, será ela necessariamente dialética; focali- zando as experiências passadas da pessoa, do "sujeito" pedindo auxílio, será ela ne- cessariamente histórica; enfatizando o ca- ráter humano da problemática em ques- tão, será ela necessariamente ligada às ciências do homem; investigando as es- truturas do tornar-se homem e dos trope- ços que neste processo o acometem, será ela universal em suas extrapolações teó- ricas, à condição que estas sejam proces- sadas com rigor e pertinência. Quanto ao conteúdo desta "psicologia negativa", a ser recriada sempre, embora antiga como a sabedoria humana, farão parte dela todas aquelas experiências ne- gativas que o homem está sofrendo consi- go mesmo e com os outros, ligadas à sua situação existencial, ao drama de ser "jo- gado no universo", numa derrelição sem fim. Pertencem a estas experiências a an- gústia, existencial ou situativa, a agressi- vidade e destrutividade humanas, a psico- patologia de cada um, micro ou macroscó- pica; a mortalidade, finalmente, ou seja, o espectro da morte, inelutável na sua certeza objetiva e absoluta, perseguindo o homem como única certeza não-científíca, acerca da qual não lhe resta dúvida de quanto quer fugir dela. De maneira mais ampla, fazem parte destas experiências negativas iodos os fe- nómenos irracionais, nos quais se incluem o amor, a sexualidade, a afcíividade, o sonho, o desejo e a culpa — experiências banidas dos laboratórios da ciência posi- tiva. Elas se infiltram cm nossa consciên- cia, fazem irrupção em nosso comporta- mento, oriundos de um "outro lugar" (como disse Fechner a respeito do sonho), de uma "cena alheia", ao mesmo tempo inquietante e familiar (isto é, subjetiva), exercendo um efeito subversivo sobre as nossas certezas aparentemente bem orde- nadas . . . Todos estes aspectos "irracionais", pre- sentes na mais cotidiana conduta huma- na, não são tratados pela "psicologia geral e experimental". Porém, eles não de- vem ser negados ou evitados pela fuga para o laboratório e suas certezas acon- chegantes, nem pela prioridade intransi- gente atribuída ao estudo do "homem ge- ral, adulto e civilizado", nem pela prima- zia reclamada para o estudo de traços parciais ou ultradetalhados do seu com- portamento. Ao lado desta psicologia ge- ral, cabe pois uma psicologia concreta e, em particular, clínica, cuja elaboração urge, visto a amplidão e a permanência dos conflitos humanos — presentes inal- teradamente apesar de todo o "progresso da ciência". Esta psicologia concreta, longe de pre- tender alcançar a abstração, aceita a im- plicação do psicólogoou do psicotera- peuta nas interações múltiplas com o seu objeto que, precisamente, não é um objeto, mas um sujeito, a ser apreendido, estudado e tratado na sua singularidade subjetiva. Esta subjetividade, tão bem en- fatizada por Binswangcr, não apresenta um déficit, uma fraqueza da abordagem psicológica aqui preconizada, mas uma riqueza na investigação de fenómenos hu- manos de alta relevância. Como já frisa- mos, esta psicologia será concreta e uni- versal ao mesmo tempo, st' conseguir apreender c articular entre si elementos significantes de uma tal qualidade e en- vergadura que revelem os alicerces da es- truturação psíquica do homem, a um nível transindividual e propriamente an- uo pológico. Uma tal abordagem, sem dúvida, não permitirá verificações empíricas diretas ou "positivas", mas nem por isso será ne- cessariamente incontrolável, selvagem, es- peculativa ou não-científica. Para executar este projeto, será preciso basear-se cm cri- térios próprios de cientificidade, diferen- ics daqueles das ciências exalas — o que não quer dizer que sejam por isso menos rigorosos, sendo que o critério de exaíidão (isto é, de quantificação e metrificação) não é o único critério científico. Qualquer sistema com pretensões de cientificidade se valida não pelo aspecto da exatidão, mas pela coerência lógica das suas propo- sições e hipóteses teóricas, o que é um problema não quantitativo, mas episte- mológico. Esboçadas estas considerações gerais sobre a necessidade de discutir a questão da cientificidade também a nível da psi- cologia clínica, bem como de proceder à sua elaboração teórica, faz-se mister en- contrar critérios capazes de nortear este empreendimento. De fato, a tentação pode ser grande — e não são poucas as orientações ou "escolas" que sucumbem a ela — de desistir da reflexão teórica rigorosa, uma vez que não adianta, diante da especificidade do objeto, a relação psicoterápica, recorrer aos critérios tradi- cionais da ciência. Em particular, não adianta recorrer ao sacrossanto critério da quantificação, se se quer apreender o que de subjetivo, de inconsciente, de a\e- tivo ou de irracional participa na intera- ção entre terapeuta e paciente, ou até mesmo a constitui estruturalmente, se nós a considerarmos além da sua aparência observável. Não obstante, empenham-se muitos au- tores hoje em dia para chegar a uma ava- liação quantitativa daquilo que "se passa" numa sessão de psícoterapia, ou ainda, dos efeitos supostos que a inleração cons- tatada produz. Não nos referimos aqui a estes esforços em detalhe, empreendidos sobretudo na escola rogeriana(3) e na es- cola que se baseia na teoria da comunica- ção(4); em pesquisas sobre a interação psicoterápica, é sem dúvida possível obter resultados estatísticos interessantes, mas estes se situarão inevitavelmente a nível da consciência e da racionalidade — onde os elementos e processos qualitativos já estão bastante complexos — o que nos pa- rece insuficiente para levar em conta a globalidade e a complexidade do psiquis- mo humano. Por outro lado, a insuficiência da abor- dagem científica tradicional não deve ser- vir de pretexto para abrir mão, simples- mente, do esforço reflexivo: significaria abdicar da responsabilidade ética pela ação psicoterápica, tanto ao nível indivi- dual quanto ao nível comunitário, e en- tregar-se a uma perigosa fantasmatização ideológica. Conquanto nenhuma reflexão teórica é capaz de eliminar a influência ideoló- gica — presente, no seu sentido mais am- plo, em todos os empreendimentos huma- nos — compete, tanto ao cientista quanto ao prático, ficarem vigilantes a este res- peito, para diminuir ao máximo aquela presença imponderada. Ela facilmente se torna distorcedora dos verdadeiros obje- tivos, minando sub-repticiamente as posi- ções éticas declaradas e abrindo as por- tas a situações clínicas falaciosas e irre- flctídas, uma vez que a formação mínima do profissional é, em psicologia, muito lacunária e de difícil controle, apesar das 46 47 lindemos aqui, tão-somente, mostrar a preocupação com a fundamentação cien- tífica do novo método psicotcrapêutico, descoberto acidentalmente por Breuer e desenvolvido por Freud. É nesta mesma página, aliás, que o novo procedimento é resumido de modo singular e conciso: trata-se simplesmente de "dar palavras ao afeto" (reprimido) — em que consiste, su- mariamente, todo o segredo da psicote- rapia, mesmo se a referência concerne ainda ao modelo da neurose traumática. O problema, no entanto, é de saber como chegar lá, como proceder para que isto se produza, em benefício do paciente e da sua libertação interna. Sem entrar muito em detalhes, pare- ce-nos interessante seguir um momento a apresentação que Freud faz do seu novo método. Como base da sua reflexão teó- rica, Freud situa a noção de defesa e, por- tanto, de conflito: a intervenção terapêu- tica consiste num esforço, num "traba- lho psíquico" que tem que opor-se à "força psíquica" do paciente, força esta que se opõe à rememoração e, por conf.e- guinte, à resolução do conflito. O modelo de Freud, de chofre, é emi- nentemente dinâmico: o psicoterapeuta intervém num "jogo de forças" no qual tem que tomar posição em favor da ideia ou representação reprimida (não se fala ainda de recalque), contra o Eu do pa- ciente. Este, em consequência da repro- vação do conteúdo temático da represen- tação, a relega a um lugar "fora" da cons- ciência e da memória disponível. Neste "lugar" —• que pouco depois Freud cha- mará de inconsciente — a representação continua ativa, exercendo um efeito palo- gênico devido a sua pressão constante sobre o psiquismo consciente da pessoa. Destarte, o não-saber do histérico cor- responde mais a um "não-querer-saber", mas com a ressalva de que este não-que- rer não se impõe de maneira toíalmente consciente. A tarefa do psicoterapeuta consiste, na formulação de Freud, em "superar a resistência à associação pelo trabalho psíquico", sendo que a própria terapia corresponde au "caminho até a re- presentação patogênica". À maneira de um quebra-cabeça, cabe, pois, ao psico- terapeuta, recompor a "organização su- posta" ao material patogénico, num ver- dadeiro "jogo de paciência" que se torna muito demorado pela impossibilidade de "peneirar diretameníe até o núcleo da or- ganização patogênica". Além da insistência sobre o aspecto di- nâmico, percebemos, pois, através das comparações que Freud emprega, a alu- são a um fator lúdico: o trabalho psico- terapéutico é uma atividade humana comparável a um jogo (em um texto pos- terior, Freud chega a comparar a própria psicanálise com um jogo de xadrez) (8), com regras complexas cuja aplicação re- quer paciência, dosagem e perspicácia. Ao lado do aspecto lúdico, este "jogo" contém um outro que podemos chamar de cognitivo: várias vezes aparecem no- ções como "inteligência inconsciente", "pensamento inconsciente", "fio lógico", coerência, sistema. . ,, além da referência contínua à importância da linguagem, ou seja, ã Iransposição em palavras, à verba- lização dos conteúdos mentais "reprimi- dos". Todas estas formulações ocupam um lugar central e demonstram um inte- resse teórico particularmente nítido. Quanto aos meios de que o psicotera- peuta pode dispor para superar as tena- zes resislências do paciente, são eles mui- to simples: "quase todos aqueles pelos quais um homem exerce em geral um efeito psíquico sobre um outro". Nada pois de artefatos, de truques, de forças extraordinárias ou mágicas, mas um tra- balho que se situa ao nível de interações psíquicas que são simplesmente humanas —- ideia que já encontramos acima, apre- sentando a concepção de Binswanger. O interesse pela fundamentação cien- tífica, manifestado por Freud já neste texto precoce, assinala-se ainda em dois outros trechos. Num primeiro, frisa que nem sempre é possível "encerrara ativi- dade psicoterápica em fórmulas"; isto tornar-se-ia particularmente difícil quan- do se tratasse de convencer o paciente a abandonar ou trocar os seus motivos de defesa, depois do psicoterapeuta os ter "adivinhado". Percebe-se, no entanto, que a dificuldade mencionada por Freud se deve a uma teorização insuficiente da transferência e do seu manejo — muito embora já a aponte, mas de modo mais descritivo do que instrumental, usando os termos, por exemplo, "vinculação er- rónea" ou mésalliance; não pode conce- ber a mudança psicoterápica sem recor- rer ao modelo da sugestão, a atitudes ex- plicativas ou ate paternalistas. . . Não obstante, é nítido que Freud en- trevê a "transformação em fórmulas" como um ideal desejável para uma abor- dagem científica, o que não deixa de con- figurar um presságio de tentativas poste- riores, notadamente estruturalistas, de formalizar os processos psíquicos e psico- terápicos. Finalizando, Freud toca aí no proble- ma da compreensão da i ale ração entre psiquismo consciente e inconsciente, a respeito de suposições acerca do estado do material patogénico antes da análise. A seu ver, é impossível dizer algo de coe- rente ou de pertinente sobre estes esta- dos, "antes de ter clareado, aprofunda- danente, as c ncepçóes psicológicas de ba;e, em particular sobre a natureza da consciência". Com esta colocação, parece-nos estipu- lada a necessidade de uma teoria abran- gente do psiquismo humano, teoria essa que Freud se esforçava por elaborar du- rante muitos anos, sem que chegasse, contudo, a uma formulação definitiva. Porém, o que nos interessa aqui é que desde o início, vislumbrava esta necessi- dade, e isto precisamente no que tange à compreensão dos processos psicoterãpi- cos: sem dispor, como base, de uma teo- ria geral do psiquismo, não será possível entender o que se passa numa psicotera- pia, nem o que fundamenta e estrutura os processos psíquicos normais e/ou palo- Iógicos do homem. Não existe até hoje nenhuma teoria abrangente do psiquismo humano, na qual seria possível basear-se para atingir o nosso objetivo: delinear o campo psicote- rápico. Nem Freud, nem a psicanálise pós-freudiana, nem outras abordagens lo- graram lançar mão de uma teoria geral, aceitável como "provisoriamente definiti- va" pela comunidade dos cientistas psi- cólogos. O que existe, entrementes — e com que podemos e devemos contar — são os diversos modelos teóricos, surgi- dos em determinados momentos da his- tória da psicologia e que hoje coexistem, embora, de fato, nem sempre pacifica- mente. . . Fm particular, estamos em presença de três modelos teóricos, de concepções mui- to diferentes e de alguma forma comple- mentares, que respondem a exigências mí- nimas de cientificidade, pelos seus proce- dimentos, premissas, critérios e objetivos. 50 Todos os três foram elaborados fora do campo médico e psiquiátrico, embora mantendo certos vínculos com ele: o mo- delo behaviorista, baseado no conceito da aprendizagem e no esquema estímulo- -resposta; o modelo da comunicação, re- ferindo-se à teoria geral dos sistemas, e o modelo psicanalítico, baseado no conceito do inconsciente e na estruturação que este impõe ao psiquismo humano. Não cabe esmiuçar aqui estes três mo- delos; basta citá-los para que se Lenha uma ideia geral sobre os modelos básicos que orientam a prática psícolcrápica ho- dierna bera como a reflexão que esta ins- pira. Pessoalmente, já deixamos clara nossa preferência pelo modelo psicanalí- tico •— ou, de maneira mais geral, "psi- codinámíco". Trata-se aí, é óbvio, de uma limitação arbitrária, devida a uma opção pessoal que assumimos; porém, esta se sustenta por uma razão simples: a (eoría psicanalítica é a única das três teorias ci- ladas que £i? origina diretamente na prá- tica clínica. Com efeilo, foi a parlir da sua expe- riência clínica que Freud a elaborou, e é com referência permanente àquela, que a reformulava sem parar. Por esta razão, ela se apresenta, ao nosso ver, como a teo- ria mais adequada para dar conta dos processos psicoterápicos, ou seja, daqui- lo que se passa, concretamente, entre os dois protagonistas da situação psicoterá- pica. Como a psicanálise não nasceu em laboratórios experimentais, nem toma empresíado os seus conceitos ou esque- mas de outros campos epistèmicos (ou se o faz, o faz de modo metafórico, isto é, transfigurando o seu alcance), ela não 0, portanto, uma "aplicação" de conheeí- mentos obtidos em searas alheias; ela de- monstra pela sua própria estruturação in- terna, uma congenialidade com o campo a delinear. Neste sentido, o modelo psicanalítico representa o nosso horizonte teórico, mas isto apenas em termos gerais, como refe- rência que possa nortear a nossa investi- gação, sem que seja a nossa intenção discutir conceitos ou concepções psícana- líticos em detalhe, nem querer "apli- cá-los" diretamente ao campo psicote- rápico. Este, como campo da atuação profis- sional do psicolerapeuta, poderá benefi- eíar-se da contribuição metodológica e re- flexiva que o modelo psicanalítico ofe- rece, em particular quando se trata de analisá-lo com respeito às incidências an- tropológicas e psicológicas "negativas" que o caracterizam. É o que já iniciamos, tanto ao nível do desenvolvimento da te- mática dos capítulos anteriores, quanto pela referência a Freud no que tange às suas ideias sobre a psicoterapia da histe- ria. Se aquele trabalho de Freud repre- senta o início da reflexão científica (iatQ é, teórica) sobre a atividade do psicote- rapeuta, ele pode também ser considera- do como base possível da nossa investi- gação, se bem que es!a seja mais ampla e mais concreta. Não acreditamos, portanto, ser possí- vel proceder à elaboração de uma doutri- na geral da psicoterapia: as diversas abordagens são diferentes demais, as po- sições e posturas dos teóricos demasiada- mente influenciadas por elementos ideo- lógicos e subjetivos, para que seja possí- vel chegar-se a uma unificação. Contudo, a multiplicidade de modelos, de tipos de terapia e de concepções do homem não contém aspectos apenas negativos; indica também a riqueza e a complexidade do fenómeno humano e da sua abordagem pela psicoterapia. Como já frisamos acima, isto, no en- lanlo, não quer dizer que se deva acolher às cegas tudo aquilo que hoje em dia se ;>presenta como psicoterapêutico, nem que as atitudes ecléticas sejam as mais apro- priadas ou as mais prometedoras para os pacientes: para que uma psicoterapia me- reça este nome, ela lem que passar pelo crivo da reflexão teórica e da avaliação científica, obedecendo a critérios espe- cíficos adaptados ao seu objeto. Somente assim será possível aproveitar a riqueza e a complementariedadc das diversas abordagens, respeitando as diferenças e os esforços de outros profissionais para abrir novos caminhos. No que diz respeito ao modelo psica- nalítico que norteia este nosso delinea- mento, cabe uma última afinação. Como salientamos, Freud pode ser considerado não somente fundador da psicanálise, mas lambem pioneiro na investigação leórica da psicoterapia. No decorrer da "evolu- ção" da psicanálise, todavia, o espírito pioneiro de Freud chegou a se perder cada vez mais. Paralelamente às conces- sões ao modelo médico c às necessidades terapêuticas da sociedade — sobretudo nítidas na vertente americana da psicaná- lise, na ego-psychology e na "psiquiatria dinâmica" — desenvolveu-se um dogma- tismo oprimente que pesava muito {c con- tinua a pesar) sobre o interesse por outras formas de psicoterapia, bem como sobre a própria psicanálise. Preocupadas mais cm manter uma suposta "pureza doutri- nal" (c com ela, quem sabe, um monopó- lio de mercado), na qual o próprio Freud nunca tinha pensado, as gerações poste- riores de psicanalistas afincaram-se em elaborar sistematizações mais abrangen- tes, em propor novasclassificações, es- quemas e conceitos que, de fato, alarga- ram o campo psicanalítico, mas o priva- ram de forças mais imaginativas e mais criativas, que poderiam, na esteira de Freud, ter proporcionado uma renovação acurada da sua obra. Não é por acaso que a obra de Lacan, visando uma tal renovação, desenvolveu-se à margem des- ia psicanálise "oficial". .. Dianlc da esterilidade da psicanálise assim institucionalizada e "adestrada", anunciada como herdeira de Freud mas desvirtuada da sua intenção originária e fundadora, as reações não se fizeram es- perar e são fáceis de compreender. Elas vão da rejeição pura e simples, como no caso de um Eysenck(9), por eexmplo, a aceitação parcial ou à transformação de determinados elementos em peças-mestres de novas doutrinas. Nestas, o conjunto do arcabouço teóri- co de Freud e o seu relativo equilíbrio são abandonados, em benefício de ele- mentos que podem ser importantes, mus que, na psicanálise, eram subordinados à concepção global do funcionamento da alma; isolados deste contexto que lhes d;i sentido e coerência, transformam-se facil- mente cm hipertrofias provocando visões (e atuações) unilaterais, em detrimento da reflexão teórica rigorosa c do respeito à unidade psicossomática do homem c ã complexidade da sua existência. Isto aconteceu, ao nosso ver, com Bins- wanger, como já indicamos, e num senti- do semelhante com |ung, Boss c outros, que focalizaram mais o Sado espiritual, esquecendo-se do pulsional e da sua inci- dência no inconsciente. Do lado oposto, assistimos à ênfase dada por Reich e ou- tros ao biológico, por ]anov, Pcrls, Mo- reno c outros à reação catártica, pelos culturalistas à influência social e aos patterns culturais. . . Seria possível pro- longar esta enumeração c apresentar a longa Hsla de "novas" psicoterapias que se referem em algum aspecto à psicaná- lise, mas não é essa a nossa intenção. Bas- ta esta alusão à evolução da psicanálise, aos problemas que ela suscita cm conse- quência da sua falta de rigor e da sua di- fusão ideológica, bem como à sua absor- ção filtrada por ou iras escolas de psicoterapia, nem sempre conscientes ou preocupadas em esclarecer as suas raízes, empréstimos e implicações; basta ter apre- sentado aqui esta situação geral, para po- dermos nos situar, nos definir e proceder agora ã investigação teórica preconizada. 3.3. A fundamentação teórica e os manuais de psicoterapia Acreditamos ter insistido suficiente- mente sobre a importância e o caráter im- prescindível da fundamentação teórica da prática psicoterãpica. Porém, folheando monografias ou manuais sobre psicotera- pia, deparamo-nos com a ausência quase que total de uma reflexão teórica explíci- ta. Quando muito, encontramos referên- cias teóricas a determinados modelos ou, mais frequentes, alusões incidentais aos arcabouços leóricos que sustentam as di- versas técnicas. O questionamento das in- cidências epistcmológicas e antropológi- cas, a serem apreendidas precisamente através da mais rigorosa fundamentação possível das premissas desta prática, sur- preendentemente muitas vezes faz falta. Ao nosso ver, temos aí um índice de como são subestimadas a necessidade e a importância desta reflexão teórica — B como, simetricamente, se sobrevaloríza o aspecto técnico da atuação profissional do psicoterapeuta. Vale a pena examinarmos alguns dos grandes manuais de psicoterapia ou de psicologia clínica que, pela suma das in- formações e pelas contribuições dos mais variados autores, são sem dúvida repre- sentativos do pensamento c das tendên- cias atuais que norteiam a clínica psíco- terápica. Em 1965, foi publicado o Handbook of Clinica! Psychology, sob a coordenação de B. B. Wolman(lO). O volume, de mais de 1.500 páginas, conta com a colabora- ção de 61 profissionais, especializados nas diversas áreas psieoterápicas. Na introdução, o coordenador apresen- ta os diversos objetivos que regiam a ela- boração da obra; quanto ao nosso propó- sito, define o seguinte objetivo: "familia- rizar os psicólogos clínicos e profissionais afins com o vasto campo de pesquisa, ex- perimentação, leórica e prática da psico- logia clínica"; quanto aos objetivos mais pragmáticos e éticos, enfatiza: "apresen- tar a profissão do psicólogo clínico e de- monstrar sua vitalidade, sua vigorosa e eficiente busca da verdade científica c sua boa vontade c capacidade de ajudar a quem precisa de auxílio destes profis- sionais". Aparecem, portanto, aí noções tais como "campo de pesquisa", "experimen- tação", "teoria", ou ainda "busca da ver- dade científica", que tesfemunham o inte- resse pelos aspectes epistemológicos da prática psicolerápica. E, com efeito, no corpo do livro, a segunda parte é dedi- cada aos "Fundamentos teóricos da psi- cologia clínica". Em dez capítulos, são tratadas as diversas disciplinas que estão contribuindo para o entendimento das "perturbações mentais" e suas causas. São discutidas, sucessivamente, a genética, a neurologia, a bioquímica, a sociologia, a antropologia, a teoria da aprendizagem, as teorias comportamentais e de persona- lidade, a psicanálise c as suas diversas escolas. Porém, não se trata aí, realmente, de uma reflexão epistemológica e antropoló- gica sobre a fundamentação teórica da prática psicoterápica; as diversas disci- plinas "fundamentadoras" ficam justapos- tas e não são consideradas numa perspec- tiva integradora, ficando, portanto, "es- Iranbas" ao campo psicoterápico. Mas será que a fundamentação teórica de uma determinada prática pode processar-se a partir de outros campos epistèmicos de investigação e de saber . . . ? Não será ne- cessário que esta reflexão se desenvolva, pelo menos em parte, dentro do próprio campo de atuação, em congenialidade com as características do seu objeto: a intcraçâo humana. . .? 1'arecc-nos que esta preocupação, tão fundamental, está ausente nesta obra vo- lumosa, no resto muito bem concebida. Talvez seja esta ausência uma consequên- cia da linha metodológica ou científica adotada e apresentada na primeira parte do volume, "Métodos c pesquisa em psi- cologia clínica", pelo que se vê que a questão da metodologia é colocada antes da questão da fundamentação teórica. Mas não é que esta determina em grande parte aquela e que é tão-somente a par- tir do delineamento teórico de um objeto de estudo que métodos possam ser elabo- rados para a sua investigação? A relação circular que existe entre definição do objeto, método, prática e teoria fica, pois, ao nosso ver, pouco valorizada na presen- te obra. Uma outra obra prestigiosa, embora não coletiva, é The Technique of Psycho- thempy, da autoria de L. R. Wolberg( 11). Na segunda edição, de 1967 (l.a edição em 1954), os dois volumes ultrapassam 1.400 páginas. O livro apresenta uma visão —• muito bem elaborada e desenvol- vida, por sinal — da psicoterapia, a par- tir das premissas da psiquiatria dinâmi- ca americana, fundada, como se sabe, a partir de uma recepção transformadora das principais ideias de Freud acerca do funcionamento do psiquismo humano. O título, no entanto, indica já clara- mente que a obra se restringe aos aspec- tos técnicos da psicoterapia; mesmo no primeiro grande capítulo, de mais de 400 páginas (The scope, types and general principies of psychotherapy), não encon- tramos, apesar de muitas considerações interessantes e aprofundadas, nenhuma referência ã fundamentação teórica deita prática — prática singela que o autor des- creve muito bem, propondo diferenciu- ções pertinentes quanto a outras relações psicológicas. Mencionamos ainda que o enfoque da obra c predominantemente médico e psiquiátrico, embora não che- gue a contestar a presença de psicólogos clínicos no campo psicoterápico. Em 1971, foi publicado o Handbook of Psychotherapy and Behavior Change, coordenado por Bergin Sc Garfield(12). Contando com acolaboração de 32 auto- res, a obra apresenta (apesar do sub- título An Empirical Anaíysis) uma pri- meira parte sobre Theory, Methodology and Experimentation. Contudo, nos seis capítulos desta parte introdutória não en- contramos, novamente, nenhuma elabora- ção teórica criteriosa; o primeiro capitu-- lo, Some Historical and Conceptual Pers- pectives on Psychotherapy and Behavior 54 55 Changt, introduz considerações gerais •obra a evolução da psícoterapia cm nos- so século, mas limita-se, em seguida, a discutir táticas e técnicas de procedimen- to. .. Como o título deixa supor, o en- foque é mais psicológico do que psiquiá- trico, mas aqui ainda, as preocupações de operacionalização e de aplicação pragmá- tica tampouco deixam espaço para ques- Lionamenío epis temo lógicos. No âmbito do idioma alemão, cabe mencionar a sistematização tentada em Klinische Psychologie, coordenado por Schraml & Baumann( 13). O primei- ro volume, "Teoria e Prática", foi reedi- tado, ampliado, em 1975 (1.* ed. em 1970) e conta com 30 colaboradores; o segundo volume, intitulado "Métodos, Resultados e Problemas de Pesquisa" data de 1974, com 26 autores. Apesar da promessa contida no título do primeiro volume, encontramos alusões apenas oca- sionais à problemática da fundamentação teórica. Na introdução dos editores, en- contramos uma preocupação cm definir o campo da psicologia clinica, mas eia é considerada simplesmente como uma aplicação de "conhecimentos, técnicas e métodos das disciplinas básicas da psico- logia e das suas disciplinas vizinhas", tais como psicologia profunda, sociologia e pedagogia social. Não se questiona pois, como estes co- nhecimentos, técnicas e métodos são adquiridos e o que eles implicam quanto à imagem do ser humano a ser tratado; o enfoque é predominantemeníe dinâmico e social, mas não antropológico — lacuna importante, ao nosso ver, desta obra que, de resto, se destaca pela sua linha mais psicossocial do que psiquiátrica. Cabe mencionar em seguida o Hand- buch der I'sychohgie(l4), obra monu- mental elaborada segundo as melhores tradições da psicologia alemã, O volume 8, editado em dois livros (1977 e 1978), totaliza mais de 3.300 páginas c conta com contribuições de mais de 100 auto- res, o que nos dá uma ideia do seu al- cance. Sendo muito bem concebida e muito complexa, não nos é possível ofe- recer aqui uma visão global da obra; po- rém, encontramos enfim algo que corres- ponde às nossas preocupações de funda- mentação: na introdução ("História, Objcto, Fundamentos da Psicologia Clí- nica"), de autoria do coordenador geral L. J, Pongratz, confrontamo-nos, em 50 páginas, não somente com uma visão de- talhada da história da psicologia clínica desde Rousscau, Darwin e Kracpelin, mas ainda com um esforço de definir o que é a psicologia clínica c qual o objeto específico sobre o qual age ou intervém. Na última parte desta introdução, en- contramos mesmo "Prolegômcnos antro- pológicos" da psicologia clínica, onde se discutem as diversas imagens do homem, implícitas nos diversos modelos que nor- teiam as atividades do psicólogo clínico. Referência se faz à célebre controvérsia entre Skinner e Rogers acerca do homem como sendo controlado ou autónomo, a uma comparação realizada por Ford & Urhan entre as concepções do "homem- -robô" e do "homem-piloto", e a questão de saber se o ser humano é essencialmen- te ativo ou reativo (o que implica em pressupostos cosmológicos e epistcmoló- gicos e propriamente numa "cosmo- visão"). Citamos um trecho da conclusão do autor deste capítulo: "Conceitos antropo- lógicos significam muito para a ciência; eles determinam de modo definitivo teo- ria, terminologia e metodologia. Do pon- Io de vista da psicologia clínica, eles têm consequências para o objetivo de uma te- rapia e para a técnica do tratamento. Os modelos do homem robô, reativo e con- trolado se adaptam mais ao objetivo tera- pêutico de eliminação de sintomas e a uma intervenção terapêutica preponderan- temente ativa. Ao contrário, os modelos do homem 'piloto', ativo e autónomo, evocam uma atitude terapêutica visando descobrir a estruturação própria ao in- divíduo e leva ao objetivo da auto- rcalização". Seguem-se as diversas partes da obra, a primeira dedicada a sintomatolo- gia, a segunda aos "Fundamentos teó- ricos gerais" c a terceira, aos "Funda- mentos teóricos específicos". Percebe-se, pois, que a questão da fundamentação teórica recebe a devida atenção: desen- volvida em mais de 500 páginas, ela con- tém, entre muitas outras contribuições, um capítulo específico sobre "Fundamen- tos epistemológicos", onde são discutidas as relações entre teoria, pesquisa e prá- tica, os problemas de validação, de for- mação dos conceitos, do planejamento, bem como questões ét icas. . . Se todos estes aspectos não são tratados de manei- ra aprofundada, eles pelo menos são men- cionados no devido contexto, de sorte que a sensibilização aos "prolegómenos antropológicos, filosóficos e epistemoló- gicos" da prática clínica se torna pos- sível. No âmbito da cultura francesa, men- cionamos uma única obra, a Propédeuti- que d'une Psychothémpte (1976), de au- toria de P. B. Schncidcr(15), com uma série de colaboradores. Obra sucinta, de apenas 350 páginas, ela, não obstante, loca às questões fundamentais não mais da psicologia clínica em geral, mas da psicoterapia. "Propedêutica", no sentido de introdução, de conhecimentos prelimi- nares ao exercício da disciplina em pauta, ela corresponde em muito às nossas preo- cupações de fundamentar a prática psico- terápica — com uma ressalva importante: não podemos concordar com o enfoque exclusivamente médico ou psiquiátrico do autor principal; este enfoque nos parece por demais antiquado, visto a evolução da psicologia clínica desde a introdução da psicanálise c as aplicações da psicolo- gia comportamental; cabe, hoje em dia, ressaltar, em primeiro lugar, as diferen- ças fundamentais entre o discurso médico e o discurso psicanalítico, bem como as repercussões deste último sabre a prática psicoterápica em geral. Voltaremos, abaixo, a esta diferença capital. Por enquanto, mencionamos que a primeira parte desta "Propedêutica", "Alguns problemas teóricos", contém de- senvolvimentos interessantes e aprofun- dados, sobretudo no primeiro capítulo, "Esboço de uma teoria geral da psicote- rapia", e no capítulo sobre a "Relação psicoterápica". dos quais veremos algu- mas ideias adiante. Finalizando esta revisão de grandes manuais de psicolerapia ou de psicologia clínica, cabe salientar que não temos co- nhecimento da existência de tais obras no âmbito brasileiro. Convém referir-se, no entanto, ao livro de H. J. Fiorini, Teoria e Técnica de Psicoterapias (1976 trad. do espanhol) (16). O título, porem, pela sua generalidade engana: trata-se essen- cialmente de um trabalho sobre a psico- terapia breve, com algumas considera- ções mais amplas. Estas se desenvolvem segundo um enfoque que procura consti- tuir "uma teoria das técnicas de psicote- 56 57 rapia em que esteja incluída uma conside- ração crítica de algumas de suas bases ideológicas" — projeto bem concebido pelas suas intenções, mas cuja execução não faz justiça à pretensão anunciada. 3.4. A definição do campo psicoterápico Pretender definir o campo da atuação psicoterápica corresponde a definir (ou a tentar definir) o que é e onde atua a psi- coterapia. No segundo capítulo, confron- tamo-nos com a análise fcnomenológica que Binswanger fez da palavra psicotera- pia. Reencontraremos os princípios desta análise mais adiante (3.7.), procedendo primeiro ao exame de algumas defini- ções propostas por diversos autores. Há, no entanto, autores que omitem definir o campo e a atuação do psicolerapeuta. As- sim, por exemplo, ouve-se que "psicote- rapia é tudo aquilo que um psicotera- peuta profissionalfaz" (em Strotzka, H.) (17), o que, obviamente, não corres- ponde a uma definição, mas a unia saída pela tangente diante de uma dificuldade que caberia enfrentar. Bem é verdade que nenhuma ciência começa por uma definição clara do seu campo ou do seu objeto, e que a elabo- ração teórica se processa ao longo de todo um percurso de pesquisa e de re- flexão; não obstante, quando se trata de uma prática que envolve outrem, a exi- gência de pensar sobre esta atividade e as suas implicações se faz, por razões tanto éticas quanto científicas, particularmente premente. Wolberg (1967) (11) define psicotera- pia como "o tratamento de problemas de natureza emocional mediante meios psi- cológicos"; insiste em que, nela, "uma pessoa formada estabelece cieliberada- mente uma relação profissional com o pa- ciente", com os objetivos " 1 . " de elimi- nar, modificar ou retardar os sintomas existentes, 2." de influenciar modos per- turbados de comportamento e 3." de pro- mover um crescimento e uma evolução positiva da personalidade". Percebemos que o autor, embora psi- quiatra, se situa numa linha mais psico- lógica do que médica: não há, em sua definição, referência à noção de doença; o psicoterapeuta não é um médico, mas "'uma pessoa formada" (ou "treinada") e os objetivos aludem, além da eliminação de sintomas, às noções de comportamen- to e de personalidade, como noções e objelívos claramente não médicos. Em re- lação a estes três objetivos, o autor dis- tingue, de fato, em seguida, entre três tipos de psicoterapia: aqueles que visam influenciar os sintomas, o comportamen- to ou as atitudes, e a personalidade pro- funda. Porém, o portador dos "problemas de natureza emocional" estranhamente está ausente, mas reaparece depois sob a for- ma do "paciente" com o qual se institui uma "relação profissional"... Com a omissão ou até eliminação da pessoa afe- tada de "problemas emocionais", cabe in- dagar, no entanto, se não se elimina tam- bém o aspecto da subjetividade, do "su- jeito" que carrega estes problemas, com a sua conseguinte transformação em "pa- ciente", isto é, em alguém que, passiva- mente, se submete ao tratamento. . . Voltaremos mais adiante a estas impli- cações. Por enquanto, citamos uma se- gunda definição de psicoterapia, desta vez de Meltzoff & Kornreich (1970) (18). Segundo eles, psicoterapia consiste "na aplicação informada e planejada de téc- nicas que são derivadas de princípios psicoiógicos estabelecidos". Estas técni- cas seriam aplicadas "por pessoas que, pela formação e experiência, se qualifica- ram para isto". Como objetivo da psico- lerapia, os autores estipulam: "apoiar os indivíduos para modificar aquelas carac- terísticas pessoais, como sentimentos, va- lores, atitudes e modos de comportamen- to, que O terapeuta avalia como desa- juste". Aqui também, os autores se situam, de maneira resoluta, numa linha psicológi- ca e, mais precisamente, compor-lamentai. Não é questão da pessoa, nem dos seus desejos, nem da sua motivação para mo- dificar-se: os objetivos a atingir serão fi- xados pelo terapeuta, que determinará o que deve ser considerado como "desajus- tamento" ou "desadaptação". A atitude normativa c direliva deste terapeuta se destaca, pois, com nitidez. Mencionamos uma terceira definição, bem diferente das anteriores. Strotzka (1978) (17) expressa-se assim: "Psicote- rapia é um processo interacional cons- ciente c planejado que visa influenciar, mediante meios psicológicos verbais e averbais, distúrbios de comportamento e estados patológicos que são consensual- mente considerados como necessitando de um tratamento". O autor insiste em que este consenso deverá ocorrer "se possível entre paciente, terapeuta e gru- po de referência"; como meta, estipula que o processo se direciona "para um objetivo definido e elaborado, se possível, em comum (minimização dos sintomas e/ou mudança estrutural da persona- lidade)". Finalmente, estes objetivos seriam al- cançados graças a "técnicas ensináveis e baseadas numa teoria do comportamento normal e patológico", sendo que se preci- sa uma "ligação emocional sólida" para a consecução destas metas. A orientação que se reflete nesta com- plexa definição é psicológica e médica. E nofadamente a ideia de doença que, se não aparece explicitamente no texto, pre- domina nas expressões empregadas: "es- tados patológicos" (ou "mórbidos"), "teo- ria do comportamento normal e patoló- gico". De fato, o autor defende a preser- vação da noção de doença, em oposição a noções psicológicas, como desajusta- mento, para não correr o risco de "re- cair num estádio pré-cicntífíco da psi- quiatria". A posição médica e a insistência sobre as virtudes do "discurso médico" caracte- rizam, pois, esta definição, mesmo se elas se coadunam com uma perspectiva social apreciável, se pensarmos na noção de consenso entre terapeuta, paciente e o gru- po de referencia, como a família ou a comunidade. As três definições analisadas nos pa- recem reflelir três orientações teóricas e clínicas bem diferentes; poderíamos citar outras, mas elas sempre vão correspon- der, de perto ou de longe, a uma destas três linhas de atuação psicoterápica, se- guindo quer uma psicologia de vaga ins- piração psicanalítica, quer uma psicolo- gia comportamcntal ou uma abordagem medico-psiquiátrica. Diante da multiplicidade dos aspectos enfocados nestas definições, percebe-se mais uma vez a complexidade do fenóme- no psicoterapia, a influência das atitudes e opções pessoais dos seus autores (que podemos chamar de ordem ideológica: não há definição neutra.. .) , bem como a necessidade de chegar-se a uma visão 58 59 mais integrada da aluação psicoterápica — no interesse daqueles que a procuram e no interesse, novamente, da sua cienti- ficidade e ética. Em nosso entender, pois a psicolera- pia consiste numa ativiáade clínica, que se desenvolve no campo clínico e traía de problemas clínicos. Isto já decorre da palavra terapia, con- siderada tradicionalmente como aquela parle da medicina que "estuda c aplica os meios adequados para aliviar ou curar os doentes". No enlanlo, pela evolução das disciplinas psicológicas e sociais, bem como pela dificuldade da psiquiatria cUíssica em definir positivamente etiolo- gia, patogênese e nosologia das "entida- des mórbidas", é óbvio, hoje em dia, que não se pode restringir o campo psicote- rápico à aplicação médica. A esse respeito, já vimos acima que os três modelos teóricos predominantes na psic o terapia moderna foram elaborados fora do âmbito psiquiátrico, se não em oposição a ele. Os seus integrantes, na verdade, mais se interessaram em erigir sistemas e classificações nosológicas cor- respondendo ao enfoque orgânico e "científico" da "doença mental" c em de- fender a hegemonia sobre a área, do que em preocupar-se com a investigação da dimensão psíquica do ser humano. Esta foi e continua sendo o apanágio das ciências do homem. È a partir destas que foram desenvolvidos instrumentos de intervenção e de tratamento psicológico. Porém, se destarte elas se afastaram e se diferenciaram cada vez mais do campo médico, quer isto dizer que as suas apli- cações se tornaram necessariamente "não-clínicas". . . ? A resposta a esta quentão dependerá de como nós definimos "clínico". Durante séculos, clínico (significando, etimologi- camente, leito, ao leito, acamado) foi considerado como sinónimo de atuação médica, um pouco como — não pode- mos resistir à tentação de fazer o cotejo — a psique foi considerada sinónimo de consciência e de racionalidade. A partir da psicanálise, no entanto, a noção de psique foi ampliada, incluindo a dimen- são do inconsciente, para grande escân- dalo dos filósofos e outros profissionais do pensamento cartesiano; pela psicaná- lise c pelas teorias de aprendizagem e de comunicação, foi ampliada a noção declínico, acrescentando às "doenças men- tais" os conflitos, desajustes, transtornos de personalidade, desadaptações e outras dificuldades de ordem psíquica ou social. Mas nem por serem não-médicas, estas dificuldades deixam de ser "clínicas", no sentido de — mesmo sem referência a uma doença ou a um quadro mórbido or- gânico —• implicar um sofrimento que, quando suscita um desejo de mudança e um pedido de ajuda, contém uma neces- sidade de tratamento. Definir assim o clínico como uma di- mensão humana que ultrapassa a medi- cina, englobando o pathos, a interação "pática" entre psiquismo, organismo e ambiente, como sendo aquilo que deter- mina antropologícamente a existência do homem, não quer dizer, em absoluto, que se deva abrir mão de critérios rigorosos para definir esta dimensão. £ noladamen- te o estudo da psicopatologia que se tor- na imprescindível para quem quer, futu- ramente, aluar neste campo clínico hu- mano. Contudo, a psicopatologia não se refere apenas à nosografia psiquiátrica, mas é essencialmente uma disciplina psi- cológica, que estuda e classifica as ííís- junções psíquicas, do mesmo modo que a psicologia geral estuda as suas funções. O campo clínico no qual atua o psíco- terapeuta se define, pois, pelos proble- mas psicopatológicos que nele se en- contram. Esles problemas podem ser entendidos e classificados segundo os critérios mais diversos, inclusive não- -científicos. Mas nisto, um clemenlo- -chave não pode faltar: que eles sejam abordados como problemáticas humanas, necessitando portanto de uma compreen- são antropológica, no sentido mais amplo do termo, e de uma referência à imagem do homem (bem como à eosmovisão) que inevitavelmente implicam. Cabe pergunfar-se se a psicopatologia, entendida destarte como uma disciplina básica para a psicoterapía, pode dispen- sar a noção de "doença", e em particular aquela de "doença mental", sem que se caia num empirismo claudicante ou até pragmático, mas sem princípios. Esíe pe- rigo, ao nosso ver, realmente existe, mas acreditamos que ele possa ser contorna- do por uma reflexão rigorosa (v. 3.5). Ademais, o perigo contrário parece-nos pesar ainda mais sobre a prática psicote- rápica, a baber, aquele de "coisificar" a pessoa doente em favor da sua suposta doença (mental) e de levar assim a uma rotulação do paciente, com toda aquela esligmatização social bem conhecida (labeling ejject). Devemos e podemos, portanto, abrir mão, em psicopalologia e psicoterapia, da noção médica cie doença e de doente, em benefício desta pessoa que luta com difi- culdades de ordem psíquica, e sem que isto implique perder rigor e eficácia no seu atendimento. Por conseguinte, não falaremos mais, daqui por diante, de "doentes". Mas co- mo designar então a pessoa que, no cam- po clínico acima definido, está à procura de uma psicoterapia? A palavra ' cliente" é muito comum, hoje em dia, sob a in- fluência da psicologia americana. Ela tem, sem dúvida, uma conotação de consumo ou de marketlng, aproximando-se de "freguês", devido à ênfase implícita ao intercâmbio comercial, obedecendo às leis da demanda e da oferta; no entanto, im- plica também uma opção, uma ação cons- ciente de busca de alguma mudança: se chega a consultar e depois a entrar numa relação psicoterápica qualquer, 6 que o cliente o quer pessoalmente, uma vez que poderia dizer "não" a este seu enga- jamento. O voluntariado deste engajamento, pois — ou ainda, o seu aspecto "liberal" — se destaca bem pelo termo "cliente". Mas vejamos nele mais dois inconvenien- tes. Em primeiro lugar, a referência a uma certa passividade. Apesar da pro- cura deliberada, incluindo uma ação, é o "cliente" que "recebe" algo, em maior ou menor grau de dependência e passivi- dade, do "outro" que "está dando". Im- plica portanto uma prestação de serviço que o cliente "compra" do terapeuta, submetendo-se ao saber e às técnicas deste. . .(19). Em segundo lugar, o recurso a esse ter- mo deve ser considerado, pelo menos im- plicitamente, como uma tentativa de contornar os problemas da patologia psí- quica e os tabus a esta associados. Falan- do-se de cliente, os seus problemas psico- patológicos são negados ou, ao menos, minimizados. De fato, não há dúvida de que, até hoje, o patológico assusta e discrimi- na, tanto mais quanto se trata de "pro- blemas mentais". Sofrer de tais proble- 61 mas é extremamente mal visto, em nossa sociedade, seja tão-som ente sob forma de um "desajuste" ou de uma "desadapta- ção"; falar de "cliente", então, ao invés de "paciente", equivale a contornar este tabu — mas instaura e reafirma, pelo mesmo fato, a bem conhecida segregação entre normal e patológico. Como se o pa- tológico não fizesse parte da existência humana, como se ele pudesse ser evitado, e como se a pessoa que sofre de dificul- dades de ordem psicopatológica, fosse um "menos", um marginal, um excluído da sociedade... Diante deste exorcismo, reafirmamos pois o valor plenamente humano do pa- tológico, conforme o "princípio de cris- tal" acima mencionado, e não tememos a palavra "paciente". Conotações de pas- sividade marcam, aliás, tanto o termo "paciente" quanto o termo "cliente". Com ambos os apelidos, a ação, o agir terapêutico é relegado às mãos do outro, do terapeuta, investido, destarte, de um grande poder e de uma grande responsa- bilidade. No extremo, isto pode significar que o paciente ou cliente se desrespon- sabiliza da sua problemática e da con- duta terapêutica a adotar, e se reme- te inteiramente ao poder terapêutico (ou mágico. . .) do "agente". Deste, ele "re- cebe" ou "sofre" a intervenção, destina- da a pôr fim ou a aliviar os seus acha- ques, sem que tenha que assumir ou, no mínimo, participar no trabalho tera- pêutico. Faz falta portanto um vocábulo mais ativo, como nós o temos cm psicanálise. O parceiro do psicanalista deveras não é o psicanalisado, mas o "analisante", uma vez que ninguém é analisado pelo analis- ta (imagem errónea muito difundida!), mas se analisa, na transferência com e pe- rante este parceiro singular, "diretor" do processo analítico, mas não o seu agente. No que tange ao parceiro do psicotera- peuta, o mais correto então seria falar em "terapeutizante", neologismo, é preciso convir, que não faz sentido. Na falta de um termo mais adequado que traduza a atividade e a responsabili- dade que, em nosso entender, deve fazer parte do processo psicolerápico, damos preferência à palavra "sujeito", que ao menos implica uma participação subjeti- va daquele que se "submete" ao trata- mento. Quanto a cliente ou paciente, pre- ferimos ainda esla última palavra, por- que conota algum sofrimento e se refere mais diretamenle ao campo clínico que tentamos aqui cercear como sendo o cam- po da atuação psicoterápica. Não obstante a nossa recusa em reter as noções de doença e de doente para de- finir este campo, é certo que o sentimen- to de um mal-estar, psíquico ou físico, deve estar presente para que determina- do sujeito se decida a consultar. Este sen- timento pode ate referir-se a uma doen- ça, pode incluir uma convicção de "estar doente" — no caso do paciente psicos- somático, por exemplo. Mas cabe a nós, ao clínico, investigar se se trata de uma doença, isto é, de um achaque orgânico, ou se atrás deste sentimento de "estar doente" se situam problemas não orgâni- cos, isto é, problemas de ordem psíquica ou psicossocial. Ao proceder a esta inves- tigação, poderá ser necessário recorrer a exames complementares, onde o trabalho em equipes interdisciplinares será evi- denlemente de grande valia. Seja como for: sentir-se doente, sen- tir-se mal consigo mesmo ou no relacio- namento com os outros, algum sofrimen- to humano deve estar presente (e deve estar percebido) para que o sujeito, reco- nhecendo-se "paciente" sofrendo de al- gum mal, se decida a recorrer a um tra-balho psicoterápico. Desta forma, ele in- gressará no campo clínico, situar-se-á nele como necessitando de uma ajuda ou de uma intervenção "clínica", isto é, psi- coterápica — e, pelo fato mesmo, distin- guil-Be-á de pessoas que estão à procura de uma ajuda ou intervenção psicológica não-clínica. Com efeito: a psicoterapia, enquanto terapia situada no campo clínico acima definido, dislingue-se da ampla gama de práticas psicológicas não-clínicas. Insistir sobre esta diferença não é desvalorizar ou criticar outras práticas psicológicas, mas simplesmente delinear a atuação das di- versas práticas, uma vez que a confusão das atribuições, competências e objetivos sempre só faz prejudicar o desempenho sério e responsável do profissional. Portanto, há muitas práticas ou técni- cas psicológicas que não são clínicas e que não fazem parte do campo psicote- rápico. Pensamos nos grupos de sensibi- lização ou de encontro, na dinâmica de grupo, nas sessões espíritas, sugestivas ou hipnóticas, nas consultas a cartomantes ou clarividentes, na orientação espiritual, pastoral ou moral, nos objetivos de trei- namento, de aprendizagem, de cresci- mento pessoal, de iniciação religiosa, eso- térica ou mística — todas ações psicoló- gicas interpessoais, onde um agente quer transmitir algo que influencie e modifi- que o outro. Este, à procura de mudança, submete-se aos procedimentos encenados pelo agente e aceita, pelo menos implicita- mente, as premissas de sua atuação, bem como os objetivos almejados ou prome- tidos. Pode até acontecer que estas premis- sas sejam fundamentadas mais ou menos sistematicamente — mas isto não quer di- zer que elas sejam, por isso, psicoterápi- cas, ou se disponham para uma atuação no campo clínico. Assim sendo, a ação psico- lógica do pedagogo, a ação psicológica do assistente social, do conselheiro conjugal ou do sacerdote, pode basear-se em todo um programa de formação e cm amplos conhecimentos científicos ou pré-científi- cos, mas nem por isso corresponderá a uma ação psicoterápica. Para esla, a refe- rência psicopatológica será decisiva. Com isto, não queremos dizer que um efeito psicoterápico não possa advir por métodos e intervenções que não sejam psi- coterápicos, no sentido próprio da pala- vra. Uma dinâmica de grupo, um grupo de encontro ou uma sessão espirita po- dem perfeitamente alcançar uma mudança comparável a um efeito psicoterápico, mas este efeito será por assim dizer aci- dental, pois não decorre de uma ação executada ad hoc e nem sempre foi pro- curado propositadamente. Este propósito nos parece essencial para definir uma atuação psicolerápica: se a psicoterapia pretende ser reconheci- da como disciplina científica, ela tem que esforçar-se em elaborar uma base teórica, a partir da qual possa justificar os seus conceitos, os seus métodos, objetivos, propósitos e intervenções. Portanto, como já frisamos acima, ela tem que saber o que está fazendo, como e por que o está fazendo. A seriedade científica, a trans- missibilidade e a responsabilidade ética dependerão destes critérios, sem os quais corre-se o perigo de deslizar para o im- 62 63 proviso ou o eclctismo, senão a charla- tanice. Voltaremos abaixo às diversas relações psicológicas e às suas diferenças, distân- cias ou proximidades para com a relação psicoterápica. Esta, repetimos, merece ser considerada num sentido próprio c estri- to, aquele de intervenção planejada e teo- ricamente fundamentada no campo hu- mano das difieuldades psicopatológicas (a serem definidas no próximo capítulo). Neste sentido próprio, pois, pode-se dizer que a psicolerapia, como disciplina cien- tífica, corresponde a uma tentativa de compreender, sistematizar e articular as práticas psicológicas ou psicoterápicas pré-científieas: práticas xamanísticas, es- piritistas, intuitivas, mágicas c outras, com o intento de elaborar teorias e técni- cas metodologicamente verificáveis, per- mitindo uma avaliação criteriosa a partir de práticas milenares. Nesta perspectiva, não se trata de cor- tar os vínculos com as práticas antigas, em favor, por exemplo, de resultados ex- perimentais obtidos em laboratórios; aquelas são reconsideradas à luz de no- vos conceitos e metodologias, com vistas ao seu aprimoramento e a sua operacíona- lização refletida. Ocorre, no entanto, que a distinção entre psicoterapia e outras intervenções psicológicas encontra dificuldades, não somente por causa de efeitos terapêuticos ocasionais, mas em função de definições e delineamentos insuficientes. Isto vaie em particular para o "acon- selhamento", definido em geral de ma- neira bastante nebulosa. Cabe pergun- tar-se até que ponto esta disciplina não foi introduzida no Brasil (por importação do counseling americano) precisamente para contornar as implicações clínicas da prática psicoterápica e para evitar, deste modo, o confronto com o corpo medico — confronto que não deve ser evitado ou contornado artificialmente, mas enfren- tado a partir de um embasamento teóri- co sólido e de uma reflexão rigorosa sobre a prática clínica humana. Neste esforço reflexivo, vale lembrar, será de suma importância lançar mão das diversas contribuições das ciências do ho- mem, referências indispensáveis para che- gar-se a uma compreensão aprofundada do homem "pálico" que todos somos, tra- vando luta sem trégua com dificuldades físicas e psíquicas de todas as espécies, bem como para superar os relentos de se- gregação entre normal e patológico, sem- pre prestes a levantar a cabeça e a infil- trar-se ideologicamente em nossos afos e debates. Neste sentido, a introdução do "acon- selhamento", a cavaío sobre a psicotera- pia e a orientação psicológica(20), cor- responde mais a uma resposta ideológica do que científica, equivalendo ainda, quem sabe, a uma tentativa de apro- priar-se (pscudocícntificameiite) de uma determinada fatia do mercado " p s i " . . . Da definição do campo psícoterápieo como acima esboçada, decorre uma últi- ma consequência: a prática psicoterápica corresponde a uma pratica profissional especializada. Esta será exercida a um ní- vel não somente técnico, assistencial, edu- cacional ou de treinamento, mas clínico, lendo para isso que assumir a contradi- ções do ser humano e as repercussões psicopaíológicas que estas provocam. Necessariamente, uma tal prática exige uma formação profissional aprofundada e contínua, ultrapassando de longe a defi- ciente formação académica de graduação que oferecem as nossas faculdades de psi- cologia. Neste sentido, implica uma for mação de pós-graduação, no sentido amplo; o candidato a psicoterapeuta a realizará segundo a opção teórica ou a li- nha que lhe convém, mas que deveria sempre abarcar toda a gama das ciências do homem, em particular das ciências hu- manas clínicas. 3.5. A definição do material psícoterápieo Depois de ter definido o campo de atuação do psicoterapeuta como sendo o campo clínico, cabe agora perguntar-se qual o material com que se trabalha nes- te campo. Como já frisamos acima, não pode aí tratar-se de "doenças", uma vez que o campo clínico, em nosso enten- der, não se confunde com o campo mé- dico; o maferial, portanto, tem que ser outro — embora é claro que se possa questionar a própria noção de "material", uma vez que em psieoterapia, o ser hu- mano conta como unidade integrada, e não como um "material" qualquer. Vimos no capítulo 2 que Binswanger, criticando a própria palavra psieoterapia, rejeita a ideia de uma "psique" que se- ria consertada mecanicamente, como por um ato de cirurgião: a psieoterapia não se aplica a uma "máquina", mas envol- ve duas pessoas numa interação muito especifica. Nesta interação, a pessoa do "paciente" está presente em sua totali- dade, como um corpo animado, como uma alma encarnada, a serem "tratados" em conjunto, em suas repercussões "psi- cossomáticas"recíprocas. . . Não obstante, parece-nos pertinente fa- lar, especificamente, de um material que é trabalhado, o que, devidamente defi- nido, não implica prejuízo para o sujeito que se engaja na relação psicoterápica. Este material nos é apresentado pelos conflitos que o ser humano vive, inevi- tavelmente, e que, em certas condições, adolam uma dimensão patológica, a sa- ber, quando não chegam a uma resolu- ção "fisiológica". A ideia de conflito merece alguns comentários. A "Psicologia do Confli- to"{2!) corresponde a uma visão do psiquismo humano como essencialmente conflituoso, islo é, dividido. Segundo es- ta visão, o ser humano não dispõe de uma totalidade harmoniosa: dividido, ele c não-idêntico a si mesmo, mas se desenvolve através de oposições dialéti- cas. De fato, a noção de conflito implica um antagonismo entre duas ou mais ins- tâncias ou partes, opondo-se em função de interesses divergentes. Ora, falando- -se de "interesses", torna-se óbvio que nós nos situamos num campo humano que ultrapassa o aspecto meramente so- mático ou orgânico, fazendo intervir os seus componentes psíquicos ou psicosso- ciais. De fato, à luz de dados antropo- lógicos universais, a evolução humana caracteriza-se por crises e por conflitos não somente inevitáveis, mas ainda ne- cessários e estruturanles para o homem. Estas crises c conflitos não representam cm si nada de patológico — pelo con- trário, assinalam as etapas de sua ma- turação e as diferenças que marcam o seu desenvolvimento singular, tanto quan- to a convivência humana. Exemplificaremos brevemente a que di- ferenças e conflitos psíquicos ou psicos- sociais — em suma, antropológicos —, estamos nos referindo. Universalmente, os homens têm de se confrontar, em sua 64 vida, com duas diferenças fundamentais, independentes de qualquer cultura ou época — confronto, aliás, cujas vicissi- tudes transformam esta vida num per- curso histórico, vivido e experimentado subjetivamente. Trata-se das duas dife- renças de geração e de sexo. Com efeito, não há como não encon- trar estas duas diferenças, naturais e inevitáveis não somente no homem, mas em todo ser vivo: nós todos descende- mos de genitores que existiam antes de nós, inserindo-nos num dos dois grupos sexuais que diferenciara os seres vivos. Ao dizer, no entanto, que se trata aí de duas diferenças "naturais" não abar- camos a totalidade, nem o essencial da- quilo que diferencia os seres humanos. Se estas diferenças se limitassem aos as- pectos biológicos da descendência de de- terminados reprodutores e da matrícula sexual anatómica, elas não suscitariam aqueles conflitos que, psicológica e cul- turalmente, deixam marcas "páticas" no ser humano. Mas eis a incidência cultu- ral no desenvolvimento psicossocial do homem: pela interdição do incesto, prin- cípio organizador fundamental da socie- dade humana, as diferenças de geração e de sexo se transformam em problemá- ticas psicológicas, em encruzilhadas con- flitantes que temos que atravessar e re- solver. Esta travessia, pode-se dizer, represen- ta o processo de humanização da crian- ça, tarefa complicada cuja resolução compete a cada um de nós — resolu- ção, no entanto, que está longe de se passar tranquilamente e sem conflitos, e que sempre deixa traços na persona- lidade que aos poucos se forma. Percebe-se que é o próprio "Complexo de Édipo" que nesta encruzilhada se es- boça c se cristaliza: a "resolução do Édipo" dependerá da maneira pela qual a criança consegue situar-se em sua linha genealógica, explicar-se com os seus pais, assumir a sua posição de filho ou de filha, identificar-se com seu corpo se- xuado e integrar-se em seu papel se- xual(22). Neste sentido, pois, ninguém nasce co- mo homem ou como mulher, mas tem que tornar-se homem ou mulher, atra- vés de todo um processo de identifica- ção consigo mesmo e com o outro, pelo qual a bissexualidade inata chega pau- latinamente a definir o seu rumo, a crian- ça a definir sua identidade. Nesta complexa evolução, múltiplos deslizes podem ocorrer, deslizes que for- marão as diversas manifestações psico- patológicas. A grosso modo, é possível considerar as desordens psicóticas co- mo decorrentes de conflitos de geração (problemas ligados à identidade e á filia- ção), atribuindo-as (não exclusiva mas preferencialmente) ao eixo das diferen- ças entre gerações; por outro lado, as desordens neuróticas vinculam-se nitida- mente a conflitos da áTea sexua! (ou ain- da, do Édipo propriamente dito), dizen- do respeito à aceitação da diferença de sexo. Parece-nos que esta distinção, aqui tão-somente mencionada, tem um valor tanto didático quanto clínico. Segundo estas considerações, pois, a estrutura fundamental do psiquismo hu- mano é conflituosa, sendo tais confli- tos responsáveis, quando não ou insufi- cientemente resolvidos, por perturbações psieopatológicas e pela formação de sin- tomas. Se é com estas perturbações que lida o psicoterapeuta em sua prática (e se é por causa deias que o paciente o procura), elas, não obstante, não são o material sobre o qual se trabalha, uma vez que somente representam a manifes- tação externa e não as "causas" das di- ficuldades deste ou daquele paciente. As "causas", nós as vemos precisamente nos conflitos (não resolvidos) que, embora não-patológicos em si, referem-se às ar- ticulações da estruturação humana on- de, em conseqiiência de particular vulne- rabilidade, processos patológicos podem iniciar-se. Os conflitos que aí temos em men- te são, portanto, conflitos interiorizados, dispondo de um alto potencial patogêni- co e podendo produzir tanto micro quan- to macropsicopatologias: micro no senti- do de "psicopaíologias da vida cotidia- na" (para falar com Freud), macro no sentido de disfunções e desordens afeti- vas que afetam o sujeito de modo glo- bal ou parcial, provocando sintomas, transtornos de personalidade ou desvios de caráter — enfim, que o fazem so- frer em uma área qualquer (ou em to- das) da sua vida pessoal. Contudo, este sofrimento, para nós, não se constitui em "doença". Discordamos, portanto, de Schneider (op. cit.) (15), quando formula que os conflitos interio- rizados "se desenrolam no interior mes- mo do psiquismo do sujeito doente": di- ficuldades de ordem psicológica, sejam elas "macropatoiógicas" no sentido de produzir sintomas neuróticos ou psicóti- cos, não são "doenças". Uma perspec- tiva mais ampla, mais antropológica do que medica, será aqui de rigor. A insistência sobre a qualidade inter- na destes conflitos não é supérflua. Com efeito, 6 condição sine qua non para a possibilidade de um trabalho psicoterá- pico que o paciente reconheça que o seu sofrimento pessoal seja condicionado por uma problemática que se situa nele, e não fora dele. Neste último caso, aliás, de achar que se sofre em função de cau- sas ou razões externas, a pessoa rara- mente se constitui "paciente" disposto a consultar, mas tenta atuar sobre estes problemas externos, ou, ainda, apresen- ta-se como vítima destes, proclamando- -se atingida, por exemplo, pela injustiça social. É indispensável, pois, que o sujeito te- nha aíguma consciência da origem das suas dificuldades e não tente impufá-las a situações externas, a serem invocadas como bodes expiatórios; somente reco- nhecendo que há algo de errado nele, é que o sujeito se sentirá motivado a ini- ciar uma psicoterapia ou a procurar uma ajuda psicológica qualquer. Sem esta mo- tivação, não terá a paciência de ser "pa- ciente" e de submeíer-se a um trabalho de psicoterapia, na maioria das vezes bastante longo, sofrido e oneroso. Em determinadas pessoas e em deter- minadas categorias de dificuldades psieo- patológicas, esta consciência faz falta, ao ponto de nem existir, às vezes, sen- sibilidade para a dimensão psíquica in- terna. De fato, há muitas pessoas que negam a importânciada vida interna (ou negam mesmo a sua existência) •— o que não significa que não possam so- frer de conflitos psíquicos. Mas negan- do a sua possível origem interna, esta- rão sem motivação para uma abordagem psicológica ou psícoterápica, podendo até defender-se virulentamente contra uma ta! insinuação. E o caso notadamente dos chamados "pacientes psicossomáticos", em que pese sua obstinação em se declarar "doente orgânico", sem levar em consideração e sem dar espaço à dimensão psíquica dos 66 67 seus achaques (se não da existência co- mo um todo). Este aspecto, capital para a questão da indicação terapêutica, será tratado mais adiante, num capítulo espe- cífico. Da mesma forma, será difícil ou mes- mo impossível trabalhar em psicoterapia com pessoas que percebem a existên- cia de conflitos, mas os situam jora de si; ao invés de intrapessoais, elas os vêem como interpessoais, atribuindo as causas das próprias dificuldades (ou a culpa por estas) "aos outros". Psicopatas ou paranóicos, como costumamos rotulá-los, não terão nenhum motivo para questio- nar-se a si mesmos — no que consiste precisamente grande parte do trabalho psicoterápico — e não sentirão a neces- sidade de elaborar os seus conflitos in- ternos: em sua perspectiva, cabe "aos outros" resolver as dificuldades, uma vez que estes é que as criaram. Um caso particular representam aqui os adolescentes e as crianças. Neles, a consciência de um conflito intrapsíquico raramente está presente — pelo contrá- rio, na maioria das vezes ele é negado, de tal forma que o jovem c levado à consulta pela família. Esta questão tam- bém será tratada mais adiante; limitamo- -nos aqui a frisar que as numerosas pes- soas que negam ou ignoram a dimensão psíquica interna e os seus possíveis con- flitos não são passíveis de uma aborda- gem psicoterápiea no sentido estrito da palavra. Elas poderão ser atendidas me- diante outras formas de tratamento psi- cológico ou sócio-terapéutico, como te- rapias de apoio, de relaxamento, técni- cas comportamentais, ocupaeionais ou de reabilitação, entre outras, mas não con- seguirão tirar proveito de um processo psicofenípico, pela dificuldade intrínseca (pelo menos inicialmente) de aceitá-lo. Cabe ao psicoterapeuta discernir os possíveis conflitos presentes no paciente que o consulta. Eis a tarefa das entre- vistas iniciais: discernir, detectar estes conflitos e avaliar a capacidade (e a mo- tivação) do sujeito de elaborá-los num trabalho psicoterápico(23). Nesta tarefa c!c discernimento, a ex- periência clínica e a formação pessoal se- rão de grande valia; de fato, o psicote- rapeuta deve saber (e deve experimen- tá-lo) que, como ser humano, é o palco de conflitos semelhantes àqueles dos seus pacientes — com a diferença, obviamen- te, que os seus próprios conflitos já de- vam ter sido resolvidos. Se isto nunca oeorre totalmente, ao menos deveriam eles ter sido trabalhados (ou "analisa- dos") o suficiente, para que tenha cons- ciência e controle sobre eles, para que não interfiram em sua atuação clínica. Os conflitos dos quais falamos podem ser das mais diversas espécies. Eles com cerleza não se limitam àqueles decorren- tes dos dois eixos diferenciais dos quais falamos acima, mesmo se estes represen- tam a matriz da estruturação psíquica conflituosa do homem. As configurações históricas específicas de cada sujeito serão decisivas para a forma e o tipo do conflito que chega a vivenciar. Estes podem tocar a valo- res humanos ou transcendentais, a repre- sentações conflitantes sobre sexualidade, relacionamento, agressividade e compe- tição, a percepções interiorizadas ou a símbolos, à busca de sentidos existenciais, a contradições oriundas de ambivalên- cias profundas, a imagens parentais, a necessidades compulsivas de repetir con- dutas alheias. . . Mas sempre serão con- flitos internos que causam um mal-eslar ou um sofrimento do qual o próprio su- jeito não consegue libertar-se. lmpõe-se uma última especificação a respeito destes conflitos. Falamos acima da necessidade do sujeito ter "alguma consciência da origem das suas dificul- dades". Com isto não queremos postu- lar que tenha que ter "plena consciên- cia" dos seus conflitos; pelo contrário, temos que admitir que estes são essen- cialmente inconscientes. Ademais, é por causa desta ancoragem no inconsciente que o potencial palogénico destes se tor- na tão temível. Não temos, pois, nem acesso nem apre- ensão direta da sua presença e atuação dinâmica; podemos tão-somente inferi- -los, detectá-los, adivinhá-los — e tra- balhar sobre eles, e é nisto que consiste precisamente o labor do processo psico- terápico. Subjacente a esta consideração, con- frontamo-nos novamente com uma ima- gem antropológica: o ser humano não somente é conflituoso, mas ainda pro- fundamente dividido em si mesmo, en- tre a sua consciência (o seu "Eu") e uma parte inconsciente que não domina, mas cjue o determina. Pelo menos é esta a concepção do ser humano que desenvolve a psicanálise. Não entramos em detalhes a este respei- to. Basta mencionar que esta imagem do homem dividido, parte integrante e ex- plícita da teoria psieanalítica, é tão an- tiga como a humanidade, e se encontra nas mais primitivas concepções do ho- mem a respeito de si mesmo. Ela faz parte da filosofia ocidental, dos pre-so- crátícos até os existencialistas, e deter- mina a filosofia oriental — com mati- zes muito diferentes, é verdade. É extremamente raro que uma cor- rente filosófica, antropológica ou psico- lógica conteste esta visão dualista; ela se deixa avaliar e interpretar diferente- mente, segundo as premissas de cada eortente; pode ser negligenciada ou, ao contrário, valorizada e investigada; po- de ser reconhecida implícita ou explici- tamente, mas sempre aparecerá, seja tão-somente em forma de filigranas. Vi- sões monolíticas, como aquela do beha- viorismo estrito (Watson) e de outros sistemas, tributárias de um meeanicismo extremo, têm vida curta c são rapidamen- te substituídas por visões mais abran- gentes, mais coadunáveis com a expe- riência humana em sua vertente subje- tiva. Como é precisamente esta vertente subjetiva que nos interessa na clínica psicoterápiea, o dualismo entre conscien- te e inconsciente (que recobre, em par- te, o dualismo entre o objetivo e o sub- jetivo), experimentado por nós Iodos (basta pensarmos nos sonhos) e teoriza- do pela psicanálise, ê de particular rele- vo para a compreensão do homem e dos seus conflitos. É a esta concepção, pois, a esta imagem antropológica que faze- mos referência, como concepção apta a fundamentar uma abordagem psicológi- ca e psicoterápiea do homem, que faça justiça tanto à sua complexidade quan- to aos seus conflitos e sofrimentos in- ternos. Resumindo, consideramos que são os diversos conflitos inconscientes, histórica, isto é, subjelivamente formados, que constituem o material com que se traba- lha em psieoterapia, para que o sujeito chegue, graças a esta elaboração feita a dois, a uma libertação interna (v. 3.9.). 68 3.6. A definição das qualidades pessoais necessárias à psicoterapia Para que a entrada em psicoterapia seja possível, a pessoa tem que dispor de algumas características particulares, bem gerais é verdade, mas não obstan- te imprescindíveis. Elas são condição stne qua non para qualquer psicoterapia que merece este nome. Falando de "pessoas" que necessitam dispor destas qualidades mínimas, pen- samos tanto no paciente quanto no psi- coterapeuta. De fato, esquece-se às ve- zes que ninguém nasce psicoterapeuta e que o exercício de sua profissão é con- dicionado por requisitos que nem sem- pre se deixam adquirir. Se a formação do psicoterapeuta é importante, a sua personalidade o é da mesma forma, e dela dependem os seus interesses, suas aptidões e aliludes. Enumeramos três condições indispen-sáveis para que a opção pela "carreira" de psicoterapeuta tenha sentido. Em pri- meiro lugar, o candidato a psicotera- peuta tem que interessar-se pelo ser hu- mano. Isto pode parecer óbvio, mas é preciso insistir sobre este aspecto, uma vez que a sua profissão não se resume a um exercício técnico; não é, pois, a parlir do fascínio pela técnica, tão pre- dominanle hoje em dia, que se deixa iniciar uma formação psicoterápica. Desta forma, pode-se dizer que as ciências do homem, a antropologia, a psicologia, a sociologia e a filosofia re- presentam as portas de entrada pelas quais o futuro profissional poderá sensi- bilizar-se com a dimensão humana (isto é, simbólica e imaginária) da exisfência — com o "antropológico", "o psicológi- 70 co", "o político" etc. •— com o qual será confrontado em seu trabalho futuro. Sem o interesse por estas dimensões, sem o esforço em penetrá-las pelo estu- do contínuo, visando adquirir conheci- mentos cada vez mais aprofundados das múltiplas facetas do humano e do seu funcionamento dinâmico e dialético, não se fará psicolerapia. Mas eis uma segun- da condição: não basta ter estes interes- ses, mas ainda o candidato tem que ser (ou se tornar) capaz de lidar com este humano em suas manifestações especifi- camente psicopatológicas e conflitantes; tem, portanto, de ser capaz de aturar o confronto com esta dimensão humana, tem que suportar o impacto que esta po- de exercer sobre ele, tem que ter alicer- ces suficientes para não desestruturar-se neste seu exercício. .. A aquisição de um autoconhecimenlo c de um autocontrole mediante uma psí- coterapia pessoal, visando familiarizá-lo com o próprio inconsciente, com os seus conflitos e com a sua própria "inquie- tante estranheza familiar", bem como a resolução pelo menos aproximativa des- tes conflitos, represenfam aqui etapas formativas das quais não se pode abrir mão — senão, o risco de não aturar o peso deste;> confrontos se tornará eleva- do demais. Cabe acrescentar um terceiro elemen- to, dizendo respeito à formação profissio- nal propriamente dita. Visamos aqui o aspecto técnico — necessário, mas insu- ficiente — de como lidar com este hu- mano, presente na situação psicorerápi- ca. Como se trata de trabalhar com esta dimensão humana conflituosa, a técnica, o "saber" adquirido sobre como abor- dá-la, elaborá-la e integrá-la, é de suma importância, mas pressupõe os dois ele- mentos básicos citados. Além disso, a questão técnica dependerá intimamente da opção por uma ou outra orientação ou linha teórica, razão pela qual nos con- lentarmos aqui em mencioná-la como ter- ceira condição, necessitando, ela tam- bém, de reflexão e reciclagem perma- nentes. Postas estas três condições básicas, po- demos enumerar uma série de qualida- des psicológicas que o candidato a psi- coterapeuta deve possuir. Assim, deve dispor de uma certa capacidade de in- tuição, apta a intuir os conflitos profun- dos do paciente que o procura; deve ser capaz de identificar-se com ele, colocar- -se "na pele" dele para sentir e reconhe- cer as áreas e a intensidade do seu so- frimento, das suas angústias e dramas — sem, no entanto, deixar-se envolver pela problemática deste; deve ser capaz de mobilizar a colaboração do paciente, criando um clima de confiança e de se- renidade que contraste com o seu mal- -estar ou mesmo seu desespero e abra perspectivas novas, de esperança quan- to a soluções possíveis; deve saber mo- bilizar-se pessoalmente, engajar-se no seu trabalho, ficando pacientemente na ex- pectativa ou intervindo quando a situa- ção o exige; deve ser capaz de se con- trolar e se reter, para não ceder à "de- manda", aos pedidos do paciente, à pro- cura de um alívio imediato, de uma so- lução mágica ou milagrosa, mas para vi- sar à resolução dos seus conflitos, gra- ças ao seu próprio esforço e trabalho; deve, portanto, ser capaz de devolver ao paciente o poder (mágico) e o saber (ili- mitado) que este lhe atribui, para que os desenvolva nele mesmo, tomando cons- ciência das suas próprias capacidades, aumentando o autoconhecímento c a au- toconfiança. Em suma, o psicolerapeuta tem que dispor de certas qualidades "em espe- lho", para poder servir de refletor ao seu paciente, no sentido não de apresen- tar-se a ele como um modelo a seguir ou a imitar (o que seria a íalta ética su- prema), mas de lhe devolver, de lhe re- fletír as suas dificuldades e problemas para que seja ele, o próprio paciente, que chegue a solucioná-los. Podemos caracterizar esta atitude de espelho como sendo uma atitude "de abs- tinência", pela qual o psicoterapeuta abdica do seu poder de intervenção e de "modelagem" do paciente, aquele poder de "fazer a cabeça" do outro; ao invés, pois, de desapossá-lo das suas próprias forças e responsabilidades, estas lhe são remetidas, devolvendo-lhe constantemen- te a procura de soluções — bem em contraste, sem dúvida, com o seu senti- mento de incapacidade, mas representan- do, por isso mesmo, uma prova de con- fiança e um incentivo para descobrir so- luções, para se descobrir. Vê-se que estas qualidades psicológi- cas ultrapassam a "empatia" de uma ati- tude afetuosa, compreensiva e de calor humano. Elas implicam uma autodisci- plina constante, a renúncia ao exercício de um poder que, muitas vezes, é ofe- recido ao terapeuta e que sempre repre- senta uma tentação; porém, cabe a ele aprender a privar-se deste poder para, modestamente, devolvê-lo ao seu único depositário legítimo, o sujeito à procura de auxílio. Vejamos agora do lado do paciente, candidato à psicoterapia (a qualquer uma das suas formas), quais as característi- cas necessárias para que esta possa iní- 71 ciar-se c desenvolver-se. Em primeiro lu- gar — e novamente parece banal e óbvio insistir nisto — ele deve querê-lo, deve interessar-se pela abordagem psicológica (e não médica ou somática) dos seus pro- blemas c conflitos. Para que isio seja possível, de tem que, previamente, reco- nhecer que há problemas c conflitos de ordem psicológica, que ele é o palco de altercações íntimas que escapam ao seu controle, ou mesmo ao seu conhecimen- to, e que, sub-reptíciamente, desaguam em dificuldades psíquicas e/ou somátí- Nestas consiste o sofrimento que o motiva para consultar, para procurar um auxílio. Mas para que este auxílio seja buscado sob a sua forma especificamen- te psicológica, não basla ser motivado pelo sofrimento físico ou moral; algo mais tem que acrescer)tar-sc, a saber, aquela qualidade psicológica particular que chamamos de introspecção, (Ein- sicht, insight), a aptidão de "intuir-se", de "olhar para dentro" e de ver um sen- tido em fazer isto. A pessoa que nega s possibilidade ou o interesse de uma tal atitude reflexiva e introspectiva, po- derá ser muito motivada a desfazer-sc dos seus achaques, sejam esles somáticos ou psíquicos, mas não terá capacidade nem disposição para entrar num proces- so psicoterápico. 72 O importante é que haja algum interesse para a abordagem psicológica das difi- culdades humanas, para que nestas se- jam reconhecidos (e devidamente ques- lionados) os conflitos intrapsíquicos. O primeiro passo da procura por psi- coterapia dependerá da presença desta sensibilidade para a dimensão psicológi- ca; é esta que conferirá à motivação a tratar-se um matiz especial, aquele da vontade de se questionar e de procurar cm si as "causas", as "razões" das difi- culdades sofridas. ca enquanto trabalho sobre os conflitos inconscientes. Sem estender-nos mais sobre este as- sunto, cabe todavia mencionar que o de- sejo da pessoa, à procura de uma psi- coterapia, não deve ser confundido com a sua "demanda" ou o seu "pedido"; este sempre será um pedido de cura (se- não de amor) imediata e mágica, alra- vés ào qual é preciso detectar (e traba- lhar) o desejo subjacente, ou seja, in- consciente. Este pode opor-seao pedido formulado (e em geral o faz); pode re- sistir à entrada ou ao prosseguimento da psicolerapia; pode manifestar-sc sob for- mas de rcpeliçôes, de atuações, de fugas —• mas sempre deverá ser avaliado c ana- lisado para que o seu poder destrutivo não prevaleça sobre o seu potencial tc- rapculicamente aproveitável, a saber, de desejar engajar-se na cura, estabelecendo uma relação psicoterápíca sólida o sufi- ciente para poder contrabalançar as vi- cissitudes negativas deste mesmo desejo. Uma outra qualidade ainda deve ca- racterizar o candidato à psicoterapia: ele tem que testemunhar uma tolerância ra- zoável aos sofrimentos que está enfren- tando, uma vez que o processo psicole- rápieo c relativamente demorado e não propicia alívio imediato da tensão, da an- gústia, da depressão e dos outros sinto- mas que motivaram a procura do auxí- lio terapêutico. Ligada a esta capacida- de de "adiar" a resolução dos sintomas, fazendo dependê-la da solução dos con- flitos intrapsíquicos, está uma outra e última qualidade, a saber, aquela de con- seguir estabelecer relacionamentos huma- nos profundos e duradouros, no caso com a pessoa do psicoterapeuta, poden- do servir de base e de ponte para a abor- dagem do material inconsciente confli- tante. Somente quando uma tal relação se estabelece — precisamente a chama- da "relação psicoterápica" — é que as múltiplas transações dialéticas do pro- cesso de uma psieoterapia podem desa- brochar e desenvolver o seu potencial curativo. Como se vê, as qualidades necessárias ao paciente completam ou refletem aque- las necessárias ao psicoterapeuta: como em um espelho, simetricamente, ambos devem interessar-se pela dimensão psí- quica do homem e devem ser capazes de desenvolverem e aprofundarem jun- tos a ação introspectiva do trabalho psi- cológico. Contudo, isto não quer dizer que este trabalho consista em debruçar-se reflexi- vamente sobre os seus próprios proces- sos internos. Pelo contrário, uma vez que estes processos são antes de tudo incons- cientes, um tal esforço reflexivo, basea- do na "boa intenção" e no empenho vo- luntarista, mais pode atrapalhar do que favorecer a ação psicoterápica em profun- deza. Não se trata, portanto, de "fazer introspecção", mas de se entregar aos próprios fluxos associativos e de aceitar o autoquestionamento — o que precisa- mente pressupõe o que denominamos, talvez impropriamente, capacidade intros- pectiva. Por outro lado, é claro que não há simetria em todos os aspectos da com- plexa interação paciente-terapeuta. Onde os papéis e tarefas são muito diferentes, uma simetria total até seria contrapro- ducente, com vistas aos objetivos da te- rapia. É tão-somente a respeito das qua- lidades psíquicas necessárias ao desem- penho psicoterápico que faz sentido fa- lar de uma tal simetria; paciente e psi- coterapeuta devem interessar-se, em co- 73 No entanlo, esta capacidade não cor- responde a um valor digiial absotuío ("tem ou não tem"), mas pode também desenvolver-se na pessoa, pode crescer quando presente de maneira pelo menos rudimentar (quando a negação da dimen- são psíquica interna é categórica, será mais difícil. . .) c quando incentivado de maneira adequada, pelo próprio psicote- tapeutfi ou por pessoas do seu ambiente. Neste sentido, percebe-se que este de- sejo — que se trata de descobrir na pessoa e de avaliar — tem alguma vin- culação cora a referida capacidade de in- trospecção (o que a motivação não tem necessariamente); não é abusivo, pois, considerar a capacidade introspectiva, o interesse peta dimensão psíquica da vida (e o desejo de se "curar") como requi- sitos do lado do paciente, e abarcá-los numa mesma linba do pensamento, aque- la que valoriza a abordagem psicolerápi- Quando falamos de motivação, usamos ura conceito oriundo da psicologia geral, que mal se coaduna cora a ideia do in- consciente ou de conflitos inconscientes, no sentido psicanalílico. Cabe, pois, sa- líenlar que, numa visão psicanalílica, se- rá mais pertinente falar em termos de desejo do que em motivação, sendo que a noção de desejo, pelo vínculo direto que mantém com a teoria do inconscien- te, implica a dimensão propriamente psí- quica da existência humana. Portanto, o desejo de se Iratar por meios psicológi- cos deve estar presente na pessoa, ba- seado no reconhecimento do sofrimento pessoal e na aceitação, pelo menos hipo- tética, da sua possível origem em con- flitos internos inconscíentcs(24). mum, pela abordagem psicológica, de- vem aturar esta abordagem e devem in- centivar-se mutuamente em prosseguir nesti: empreendimento: o terapeuta in- centivando o pacienle, pelo seu arsenal de intervenções, a proceder de maneira adequada aos seus questionamentos e in- vestigações, mobilizando certos falores que dizem respeito ao seu desejo de sa- rar; o paciente incentivando o psicote- rapeuta a interessar-se por esta investiga- ção. Com efeito, não nos parece exagerado dizer que o psicolcrapeuta (como, aliás, o psicanalista), sendo sempre também pesquisador e investigador, tem que dis- por de uma sã curiosidade cm traba- lhar com o seu paciente, no sentido de um "desejo de saber" que o instiga e impele a perquirir e revelar, nesta pes- soa que se confia a ele, as concatena- ções inconscientes e os segredos que de- tém. Obviameníe, a curiosidade assim esti- pulada nada tem a ver com bisbilhotice, mas deve fazer parte do interesse do te- rapeuta pela personalidade e pela histó- ria de vida do paciente; se este não con- segue interessar o terapeuta, incentivan- do-o a pesquisarem juntos as origens dos seus conflitos, a interação psicoterápica tornar-se-á impraticável. Neste caso — que ocorre talvez com maior frequência do que se pensa —• o terapeuta tem que ter a honestidade pessoal de reconhecer isto, de admitir que um determinado pa- cienle não consegue interessá-lo pela sua pessoa ou pela sua problemática, e enca- mínhá-lo a colegas que acha passíveis, razoavelmente, de desenvolverem afinida- des melhores. A qualidade de sincerida- de consigo mesmo e de permanente auto- crítica terá que ser, pois, mais uma das 74 características do psieoterapeuta, qualida- de que não se pode esperar nem, me- nos ainda, cobrar do paciente de ma- neira simétrica. Desenvolveremos em seguida esta ques- tão da assimetria na relação psicote- rápica. 3.7. A definição da interação psicoterápica O que se passa de fato no interior desta relação psicoterápica, tantas vezes já citada e, no entanto, permanecendo enigmática? Em que consiste a ação que aí se processa, se desenvolve, que supos- tamente induz a fatores de mudança e inclui um potencial curat ivo. . .? Em primeiro lugar — e isto vai nor- tear todo este capítulo — esta ação con- siste numa interação, em algo que se pas- sa entre o psieoterapeuta e o seu pacien- te, Entre eles, de fato, estabelece-se uma "circulação" muito particular de deter- minados conteúdos a serem "trabalha- dos". Mas quais são estes conteúdos, in- tercambiados e que definem a especifici- dade deste trabalho a dois? Descrevendo estes conteúdos, conseguiremos partir pa- ra uma definição mais adequada da in- teração psicoterápica, capítulo deveras complexo e talvez o mais difícil deste esboço teórico geral. Sem dúvida, os conteúdos que cir- culam entre ambos os protagonistas têm algo a ver com o "material" psicoicrã- pico, constituído, como vimos acima, pe- los conflitos intrapsíquicos, notadamente inconscientes. Estes se expressam de al- guma forma, emitem sinais ou signos en- dereçados ao interlocutor que, no caso, c supostamente preparado e disposto para captar estas emissões com vistas ao obje- tivo do empreendimento psicoterápico. Ao falar de "emissões", temos pois que pensar, em primeiro lugar, nas ver- balizaçÕes, nos conteúdos ditos pelo pa- ciente; porem, aquelas não se limitam aos conteúdosverbalizados (embora se outorgue um certo privilégio a estes, co- mo veremos abaixo), mas incluem todo um material não verbal, tais como a ex- pressão corporal, gestos, mímicas, atos (falhos ou não), comportamentos, postu- ras, afetos e emoções, O intercâmbio que assim se desenro- la implica comunicações, como em toda relação humana. Estas comunicações de- senvolvem-se com mais ou menos objeti- vidade, com mais ou menos distorções, equívocos, duplos sentidos c reticências, dependendo dos contextos e das finali- dades que lhes são atribuídas. Em to- das as comunicações, no entanto, inter- vêm os mesmos conteúdos ou elementos, como ingredientes básicos que mudam apenas quanto às proporções ou à com- posição, mas não quanto ao repertório à nossa disposição — que, simplesmen- te, é o repertório humano. Nele, reconhecemos pois, como ele- mentos básicos (embora todos eles em si muito complexos), ideias, pensamen- tos, reflexões, entendimentos, percepções, imagens, recordações, lembranças, fanta- sias, sentimentos, sensações, afetos. . . Neste vasto leque das possibilidades humanas de intercambiar e comunicar-se com outrem, podemos operar um corte classificatório de muita relevância para o nosso quesito: estes elementos todos ou referem-se à realidade observável, ou re- ferem-se à imaginação, ou ainda impli- cam uma mistura de ambas. Em outras palavras, são mais ou menos objetivos. mais ou menos subjetivos, ligados mais ao mundo externo ou mais ao mundo in- terno de cada um —• distinção de suma importância quando pensarmos nos crité- rios da normalidade, por exemplo, ou no problema da objetividade, capital pa- ra a ciência e suas aplicações técnicas, mas menos importante ou, melhor, re- vestindo matizes bem diferentes em nos- so âmbito clínico. Visto o objetivo da relação psicote- rápica, quais são, portanto, os elemen- tos que devem ser locados e colocados em movimento? Sem dúvida não são os elementos mais objetivos que aqui nos interessam; estes, como sublinha Schnei- dcr(!5), têm prioridade nos contatos co- tidianos das pessoas entre si, "na rua", no emprego, nas comunicações pragmá- ticas a serviço de um desempenho opera- cional, seguro e eficiente. Nestas situa- ções, afetos e sentimentos não são de grande valia; pelo contrário, podem atra- palhar, razão pela qual tenta-se eliminá- mos da circulação ou, se necessário, re- primi-los — como se lenta reprimir ao máximo os conflitos interpessoais, nos lu- gares de trabalho, por exemplo, uma vez que perturbam a funcionalidade dos sis- temas aí implementados. )unto com os sentimentos e afetos, tenta-se eliminar tudo aquilo que é sub- jeiivo, para que não interfira nas tare- fas (objetivas) a serem executadas — e há algo mais subjetivo, algo mais a es- conder diante dos outros, mesmo os mais próximos, do que a fantasia? Esta, de fa- to, não deve participar, não deve pene- trar em nossas relações repetitivas do dia-a-dia, para que não revelemos o nos- so foro mais íntimo, para que não cha- guem à tona aquelas zonas conflitantes 75 que tentamos esconder ou velar até de nós mesmos.. . Não é, portanto, apenas o mundo ob- jetívo das larefas profissionais, das rela- ções funcionais, que nos impede de ma- r.ifestar-nos com maior subjetividade: so- mos nós mesmos que temos interesse em proteger nossa vida psíquica íntima; não podemos permitir-nos extravasar livre- mente tudo aquilo que reprovamos em nós ou que sabemos reprovado pela so- ciedade da qual participamos. Vivemos, de fato, com uma necessi- dade permanente de camuflar as nossas intenções secretas, de escamotear os nos- sos impulsos, de velar as nossas veleida- des que poderiam contrariar os padrões estabelecidos. . . Atitudes que fazem par- te dos automatismos adquiridos através dos processos de socialização e que ado- tamos, pois, muitas vezes, sem nos dar- mos conta. Estes automatismos aumentam mais quando há aproximação de material con- flitivo, em particular de conflitos incons- cientes: nós "entramos na defensiva", sem saber "por quê", sentindo-nos amea- çados por algo que escapa ao nosso con- trole, mas que sentimos "na pele". . . Trata-se aí de uma experiência muito comum, mas que se manifesta em parti- cular na relação psicoterápica, em con- sequência do seu propósito explícito de "mexer" com este maíerial inconsciente c os seus conflitos, Neste sentido, podemos pois definir a relação psicoterápica como uma "relação interpessoal subjetívà" (Schneider) (15), na qual o paciente "se entrega" ao flu- xo de sua fantasia, de seu imaginário, "entregando" os produtos de sua imagi- nação ao terapeuta. Segundo o princípio de confiança c de "sinceridade" que re- 76 ge a relação, esta entrega poderia fazer- -se sem reticências e resistências, sem triagens e ocultações; porém, sabemos como c difícil e custosa esta entrega, não somente no início, mas ainda duran- te, ou mesmo perto do final deste pro- cesso que se desenrola entre ambos. É que não basta "querer" esta entrega, "querer fazer psicoterapia" para efetiva- mente ingressar nela e aproximar-se dos conflitos mais inconscientes: abrir a nos- sa subjetividade para outrem fere certos interesses nossos, notadamente no que tange ao amor próprio de não revelar as nossas falhas e fraquezas, e acompanha- -se de desconfiança c de impulsos auto- máticos de autoproíeção, que nunca de- saparecerão por completo. Isto, contudo, não quer dizer que nes- ta relação não haja material subjetivo, que não haja fantasias que sejam vei- culadas: haverá nela muito mais mate- rial oriundo do íntimo, do imaginário da pessoa, do que nas relações habituais que estabelecemos no decorrer da vida com os outros. Se ela não chega a ser uma relação subjetiva integralmenlc aber- ta, não quer dizer que não seja subjetiva de todo. No entanto, a relação psicoterápica não é a única relação subjetiva que co- nhecemos na vida. Relações subjetivas, relações de entrega recíproca existem, sem dúvida, em todas as situações onde a bus- ca de objetivos funcionais não é priori- tária, ou mesmo ausente. Na extensa es- fera do amor, da amizade e daquilo que Binswanger chamou de "comunicação existencial", as relações interpessoais são profundamente subjetivas, com um in- tercâmbio permanente de materiais sub- jelivos, incluindo sentimentos, fantasias, afetos e todas aquelas emoções que pre- cisamente fazem parle do amor (ou até o definem). Se estas relações desligam-se de objeti- vidades, sendo marcadas por participa- ções intensas de ambos os protagonistas, islo, todavia, não significa que os afe- tos nelas vividos sejam somente positi- vos; eles são antes de tudo intensos, mas podem oscilar entre o amor e o ódio, entre o desejo de se aproximar e de se juntar, até fusionai mente, e de se distan- ciar, de rejeitar o outro por completo. Sendo sempre marcadas pela paixão, nunca serão relações de indiferença, tampouco de interesses objetivos ou de finalidades explícitas: elas se bastam a si mesmas, por mais passionais que sejam. Estamos, porlanto, diante de âois tipos de relações humanas subjetivas, veicuian- do ambas um amplo material subjetivo. Mas cm que se distingue então a rela- ção de amor (ou de ódio), de amizade e de afeição desinteressada, da relação psicoterápica, se ambas visam a troca de conteúdos reservados, tocando ao âmago da subjetividade e das suas vivências mais íntimas? Veremos pois algumas di- ferenças, capitais para entender melhor o que se passa na relação em paut:i — bem particular é verdade. Em primeiro lugar, deparamos com uma diferença importante no que tange ao objcíivo: se a relação de amor não tem um objetivo a ser alcançado, a não ser a felicidade e o prazer recíprocos, a psicoterapia se propõe um objetivo cla- ramente definido, a saber, uma mudan- ça (mais ou menos profunda, dependen- do do caso e da linha terapêutica) na condutae/ou estrutura do paciente dis- posto a submeter-se a ela. Além disso, o próprio sentido da ação psieoterápica consiste neste encaminha- mento para o objetivo determinado (pe- lo menos aproximadamente) no início da operação: alcançado o objetivo, termina o trabalho que se empreende a dois, ces- sa a relação, em princípio para sempre. Eis até um dos paradoxos da relação psicoterápica: ela se desenvolve com mui- tas dificuldades, devido às próprias difi- culdades do paciente de relacionar-se e comunicar-se com outrem e que, de fato, o levaram a procurar um auxílio. Traba- lhando estes empecilhos no interior da re- lação afetiva que se estabelece (através de muitos esbarros, de altos e baixos), elas começam a amenizar-se até (ideal- mente) a desaparecer — e é neste pon- to, então, quando o paciente consegue comunicar-se bem (ou suficientemente melhor) com o psicoterapeuta, que a re- lação deve cessar, conforme o objetivo pautado no princípio. Com efeito, sendo a melhora da co- municação intersubjetiva o objetivo (ou melhor: um deles) que, simultaneamen- te, norteia o trabalho e o dificulta, uma vez que atacar o problema diretamente só faz aumentá-lo, não teria sentido pro- íongar a relação depois de tê-lo atingido; pelo contrário, persistir nesta relação porque propicia certas vantagens, um certo conforto ou determinadas satis- fações afetivas, até poderia colocar em cheque o fortalecimento da modificação conseguida e que precisa ser comprova- da in situ, isto é, na vida prática jora da terapia, sem as suas muletas c a sua pro- teção. Neste sentido, pois, o objetivo da psicoterapia não é apenas melhorar a comunicação intersubjetiva do paciente, mas, ainda, levá-lo a uma autonomia 77 maior, auxiliá-lo a emancipar-se das suas dependências afelivas, tanlo quanto a li- vrar-se dos seus sintomas. Para que con- siga assim "andar com as próprias per- nas", é necessário romper, num certo momento, o vínculo terapêutico (com preparação e eaufela, é claro, c não abruptamente) e devolver o paciente a si mesmo, à sua própria responsabilida- de em assumir-se naquelas dimensões que lhe foram desabrolhadas pelo traba- lho da psicoíerapia. Este rompimento, pois, faz parte da psicoterapia enquanto fase final, previs- to desde o início e imprescindível, mes- mo se é, frequentemente, dolorido e frus- trante, não apenas para o paciente, mas também para o terapeuta- A ambos com- pele a tarefa de travar o "trabalho de luto", aceitando a perda daquele "ou- tro" que duranle um frecho da vida o acompanhou, para assumir aos poucos a separação, superando as mágoas e aque- les sentimentos de abandono que mes- mo na posição do terapeuta podem aflo- rar. Eis então uma das diferenças essen- ciais para com a relação de amor: nin- guém se ama, ninguém se junfa com um determinado objetivo para depois se se- parar. Se um rompimento ocorrer, ele será acidental (e acidentes há muitos, convenhamos) e não essencial, como em psicoterapía. Esta, portanto, é limitada no tempo, por princípio e por definição, em função dos seus objetivos, seus sentidos e de toda a concepção que baliza o de- senvolvimento do seu trabalho. A limitação temporal e operacional pode acarretar limitações temáticas, so- bretudo no começo, no sentido do pa- ciente não se sentir à vontade para "en- tregar" todo o seu material pessoal e sub- 78 jetivo. Porém, nem no amor isto é pos- sível integralmente, e menos ainda no início de uma relação amorosa. Mas, em ambos os casos, é possível superar as re- licências iniciais para aprofundar aos poucos a comunicação subjetiva; no caso da psieoterapia, dependerá da força dos motivos que trouxeram o paciente, se ele chega a reconciliar-se com os limites téc- nicos da terapia. Compreendendo-os e aceilando-os como sendo as condições sine qua non para este (rabalho, ele aos pou- cos ingressará mais nele, inluirá o seu funcionamento e se envolverá com os movimentos afetivos que configuram, ou melhor, que constituem esta relação. Identificando-se com 0 seu papel de paciente, ele entenderá paulatinamente que "paciente" não é sinónimo de pas- sivo, e que a parte essencial do traba- lho compete a ele mesmo; não há como esperar que "o outro" faça o trabalho ou ofereça alguma solução para os seus problemas. Aceitar o papel de paciente significa assim reconhecer os limites da terapia — em Iodos os sentidos da pa- lavra — e submeter-se a ela, mesmo se implica frustrações, angústias e, no final, o rompimento da relação, no momento mesmo em que ela chegou à matura- ção. . . Identificar-se com este papel signifi- ca, ainda, admitir que haja papéis dife- rentes nesta relação, que haja assimetria entre a posição (e as tarefas) do pacien- te e aquela do terapeuta. Temos aí uma segunda grande diferença qualitativa: na relação amorosa ou de amizade, não exis- te, não deveria existir uma assimetria de papéis, de direitos e deveres; se ela ocor- rer, ela novamente será acidental (a não ser ao nível da estrita sexualidade bioló- gica), mas não faz parte dos princípios desta relação. Em psieoterapia, a assime- tria, pelo contrário, participa como um elemento essencial do funcionamento da relação, conferindo-lhe a sua especifici- dade e o seu sentido. Sem assimetria, com efeito, não have- rá relação psícoterápica. Poderá haver outros tipos de relação humana subjeti- va, mas nelas não poderá desenvolver-se aquele trabalho que consideramos como necessário para que haja realmente psi- coíerapia. Nas relações de amor, de ami- zade ou de "curtição espiritual", não há, de falo, nenhum traço de trabalho (nem, como vimos, de definição de objetivos): a "curtição" em conjunto, um com o ou- Iro, um perto do outro, se basta, numa comunhão auto-sufíeiente que, com fre- quência, exclui "os outros", exclui o mundo e todo aquele trabalho que ncsle c de rigor. Podemos dizer que, infelizmente, não há como mudar ou negar este fato: o tra- balho faz parte do mundo e da vida; somos condenados a trabalhar (por isto, ele "é" de rigor e não "está" de ri- gor. . .) , e se quisermos alcançar mudan- ças em nossa vida, temos que trabalhar, e arduamente, para aí chegar. .. Este trabalho impõe certas tarefas, im- põe a divisão de tarefas, entre o paciente e o terapeuta. O paciente, uma vez que é ele que vem com um pedido de auxí- lio, situar-se-á sempre na posição de "pa- ciente", enquanto o psicolcrapeuta ocupa- rá sempre a posição que as regras do jogo lhe atribuem. Neste "jogo", a assi- metria está marcada, desde o começo, pela posição de autoridade de que o te- rapeuta se reveste — mesmo se não a possui. Esta autoridade, de fato, lhe é dada, lhe é atribuída pelo paciente; este acredita nela, precisa acreditar nela pa- ra ousar o primeiro passo e tocar à por- ta do terapeuta. Mas — e eis uma dife- rença capital — cabe a este não acre- ditar nesta autoridade que lhe é atribuí- da, nem nos poderes que, magicamente, o paciente lhe outorga: trata-se de uma autoridade fictícia, imaginária, a cujo canlo de sereia não deve sucumbir se quiser realizar as suas tarefas. Vimos no primeiro capítulo as impli- cações mágicas e "primitivas" da rela- ção terapêutica. Aqui, vemos agora a im- portância que estas têm no desenvolvi- mento desta relação, reparando como elas definem as posições de ambos os protagonistas. O psicoterapeuta não "é" uma autoridade, uma vez que não dis- põe de meios especiais (e muito menos mágicos); ele, quando muito, "está" de autoridade, ocupa uma posição de auto- ridade relativa que lhe é conferida "de fora", pela sociedade que reconhece a sua profissão c o seu trabalho. Nesta posição, ele pode e, socialmen- te, até deve acreditar, mas tem que sa- ber que ela é muito relativa; da outra autoridade, daquela que, "de denfro", os pacientes alribuem a ele, ele tem que desistir; argumentos de autoridade não têm valor quando se tratade descobrir as verdades secretas do sujeito, soterra- das nos recônditos da sua alma de tal forma que nenhuma autoridade, a não ser ele mesmo, possa desvendá-las. Se é verdade que são os pacientes que o "fa- zem" psicoterapeuta, este somente o se- rá se, com modéstia, declina da auréo- la que lhe é oferecida, para desincum- bir-se das suas tarefas, auxiliando o pri- meiro a diminuir de mais em mais a assi- metria entre eles. Esla não glorifica o psieoterapeuta — ela lhe é imposta tan- to quanto ao paciente, mas cabe ao pri- 79 melro conduzir o processo de tal forma que, ao seu termo, este consiga recupe- rar a autoridade que investiu no outro, para aceder à sua aulonomia pessoal. Ao frisar acima que as limitações tem- porais possam dificultar a circulação do material subjetivo do paciente, não fize- mos referência direta ao aspecto da assi- metria e ila autoridade. Esta, quando fan- tasiada demais (da parte do paciente), ou quando real demais (da parte do tera- peuta), poderá aumentar a dificuldade em "passar" o mais Hvremenle possível os coníeúdos psíquicos ao terapeuta, pa- ra que esle os devolva e para que se de- senvolva assim um intercâmbio provei- toso. Se é o terapeuta que realmente che- ga a ocupar uma posição não somente de autoridade, mas de autoritarismo, atuan- do com intervenções autoritárias, cabe- rá a ele analisar e entender estas falhas de sua atuação; todavia, a experiência prova que este autoritarismo em geral é mais produto da fantasia do paciente — que não suporta ou rejeita a inevitável assimetria operacional •— do que resul- tante de intervenções intempestivas do primeiro. Fantasias sobre a sua autorida- de e o seu poder de fato sempre ocor- rerão. Mas importa que sejam analisa- das, que sejam Irabalhadas naquilo que veiculam de submissão passiva, de dese- jo de castigo, de revolta, de sedução, de desejo de receber ou de ser mimado, bem como de inevitáveis repetições de situa- ções anteriores. . . Somente quando este trabalho entra num impasse, esbarrando contra a re- cusa mais ou menos consciente de acei- tar a assimetria e as frustrações que im- plica, é que a relação psicoierápica cor- re um sério risco de encalhar.. . E, de 80 fato, não faliam exemplos em que o pa- ciente critica a distância, a frieza, o apa- rente desinteresse do psicoterapeuta, e que esta crítica camufle a sua incapaci- dade de aceitar as "regras do jogo", isto é, essencialmente, a sua assimetria, e de assumir (ativamente.. .) o papel de pa- ciente, confrontando-se consigo mesmo c enfrentando os seus conflitos, os seus conteúdos psíquicos, no que der e vier. Um outro elemento que contribui pa- ra dificultar o intercâmbio na relação subjetiva da psicoterapia, é a questão da dependência. Ela é inevitável. Ela ú um mal necessário. Mas ela assusta muito, como prova flagrante não apenas da as- simetria da relação, mas sobretudo da injantilização do paciente que nela se opera. Se esta faz parte do processo psi- coterápico, ela, não obstante todas as he- sitações e defesas, pode c deve ser tra- balhada, tanto quanto a questão da au- toridade. Ademais, deve ser claro, des- de o princípio da terapia, que ela não é um fim em si mesmo, mas que ela tem que diminuir, mediante o próprio trabalho que propicia, para que o depen- dente transforme-se num independente, ou melhor, num "interdependente", ca- paz então, no final da terapia, de desli- gar-se do processo terapêutico e da de- pendência que esta criou. Isto significa, ainda, que a assimetria iniciai deve aos poucos nivelar-se para dissolver-se, idealmente, no término da psicoterapia — quando os dois protago- nistas poderão encontrar-se em pé de igualdade, embora, em geral, para se se- parar. Relações de amizade após uma terapia, de fato não são excluídas, mas elas são raras, e os próprios princípios do pro- cesso que durante algum tempo reuniu os dois, dificultam esta metamorfose da relação: materiais altamente problemáti- cos, às vezes explosivos (e profundamen- te subjetivos!) foram veiculados entre ambos e sempre deixam resíduos: eles nunca são "perfeitamente analisados" ou "totalmente liquidados", ao ponto de per- mitir, de imediato, a troca por uma nova relação subjetiva, desinteressada desta vez, sem limites temporais e sem objeti- vos. Em geral, aliás, o ex-paciente ten- ta esquecer o seu ex-terapeuta, como tendo sido um catalisador necessário, mas cuja presença se tornou supérflua graças ao próprio resultado da terapia. Eis um dos critérios para avaliar uma terapia bem-sucedida. . . A despeito da assimetria, presente ini- cialmente em função de todas as expec- tativas e fantasias que o paciente traz pa- ra as primeiras entrevistas e depois "cur- te'' na terapia, a dependência que assim se cria não é unilateral, porquanto a as- simetria é dialélica e móbil, podendo evo- luir e até inverter-se. Uma tal inversão, pela qual é o terapeuta que começa a de- pender do seu paciente, ocorre talvez com maior frequência do que se pensa, sobretudo entre jovens profissionais. Ela não é incompreensível, se lembramos o fato enunciado acima de que são os pa- cientes que realmente transformam o atendenle em terapeuta: sem eles, o tera- peuta terá os seus diplomas e títulos, mas estes permanecem letra morta quan- do não comprovados pela prática, no contato terapêutico com o paciente. Este, portanto, é o aval da qualifica- ção do profissional, tanto quanto o ob- jeto no qual "aplica" os seus conheci- mentos. Neste sentido, pois, o terapeuta depende "socialmente" dos seus pacien- tes; isto, contudo, não quer dizer que afetivãmente tenha que depender deles também. Se uma tal inversão ocorrer, significa que urge rever os fundamentos da sua qualificação psicoterápica, para não cor- rer o risco de prender-se aos seus pacien- tes de forma desastrosa — desastrosa para o trabalho psicoterápico, para a ca- minhada do paciente rumo à sua liber- tação e independência, c para a respon- sabilidade ética e, por conseguinte, a pos- tura do psicoterapeuta. Com isto, não queremos postular que ele não possa encontrar satisfações afe- tivas em seu trabalho, mas estas devem ficar subordinadas aos objetivos da re- lação psicoterápica. Se, de secundárias e por a^sim dizer acidentais, elas se trans- formam em primárias, ao ponto de con- figurar uma necessidade existencial do profissional, estas satisfações tornar-se-ão obstáculos ao livre exercício das suas funções, porquanto o infantilizam e o deixam inapto à vigilância terapêutica, de rigor na profissão pela qual, apesar de difícil e às vezes ingrata, ele fez opção. Fizemos várias vezes já referência às junções do psicoterapeuta. Resumindo-as rapidamente, acabamos de falar em vigi- iância terapêutica. O terapeuta, de fato, é responsável pelo andamento do traba- lho, bem mais que pelo andamento do paciente em si, cujo controle, obviamen- te, escapa às suas funções e competên- claa. Contudo, cabe a ele se controlar, aferindo permanentemente o seu traba- lho c a congruência deste com os obje- tivos pautados. Para que isto seja pos- sível, vimos já que a inleração, toda dia- lética e dinâmica que seja, precisa de uma condução firme, para que não se in- 81 verta nem se apague a sua assimetria an- tes do tempo.. . Para alcançar os objetivos da terapia, a interação tem que desenvolver-se de maneira bem específica: cabe ao tera- peuta triar o material que o paciente lhe entrega — convidado que é a fazê-lo sem triagem preliminar, sem seleção, sem omissão — para sondá-lo quanto a sua relevância terapêutica e a sua referen- cia temporal: presente ou passado? Quan- to a suas implicações: subjetivas ou ob- jetivas, internas ou externas? Quanto a sua realidade: fantasia ou real? Esta função cie triagem, ele tem que preenchê-la de modo quase automático, lendo-a assimilado como uma segunda natureza, incorporando-aà sua poslura profissional (porém, tomara que esta se limite à sua profissão!); dependerá des- ta triagem a maneira pela qual ele de- volverá (ou não) o material ao paciente. De fato, esta função de devolver o ma- terial pode realizar-sc de muitas manei- ras, dependendo da linha teórica •—• mas sempre há uma devolução, e sem- pre há nela um deslocamento, afastan- do-a de uma resposta direta e imediata ao material comunicado, tanto quando se trale de uma sugestão, de uma interpre- tação ou construção, de uma indagação, de um apontamento, de um reforço, de uma persuasão ou dúvida. . . O arsenal técnico aí é extenso, mas o que nos interessa é o seu princípio de funcionamento: a devolução baseia-se num deslocamento, numa alteração do enfoque original para que se atinjam no- vos horizontes, para que novas perspec- tivas se abram onde um efeito psicoterá- pico possa desabrochar. O trabalho da psicoterapia consiste, pois, precisamente, nesta alteração que 82 ocorre na transmissão comunicativa en- tre ambos: não há um esquema de estí- mulo/reação, como no laboratório, nem pergunta e resposta, como num interro- gatório ou numa conversa social. Mas há este deslize, às vezes sutil c quase im- perceptível, depois cortante e quase agres- sivo, para em seguida suavizar-se de no- vo, que faz com que se produza sentido, seja pela retomada do passado no pre- sente, seja pela vinculação operada entre o imaginário e o real, entre o subjetivo e o objetivo ou entre assuntos aparen- temente sem nexo. A procura do sentido, do segredo dos conflitos do paciente e dos seus sintomas comanda estes desli- zes, deslocamentos, alterações, cortes e outras intervenções transformadoras do terapeuta; elas sempre visam algo além do manifesto, do banal, do visível, pa- ra tocar àqueles núcleos latentes onde se enraízam os conflitos que se trata de re- solver. Como estes deslocamentos se efetuam, no entanto, não c apenas uma questão técnica, mas também uma questão de arte, um segredo do artesão que habita no psícoterapeuta. Nisto consiste uma última diferença — e talvez a mais im- portante — entre as nossas duas rela- ções subjetivas. Vimos, no segundo ca- pítulo, que Binswanger insiste em dis- tinguir, ao lado da comunicação existen- cial, o aspecto técnico dos conhecimen- tos específicos do profissional, pelo qual a primeira se diferencia de uma relação subjetiva desinteressada. É este aspecto técnico que lhe confere sua forma de tra- balho, alvejando certas metas. Não en- tramos aqui na discussão deste "servi- ço", cujos detalhes se determinam pelas diversas técnicas próprias às linhas teó- ricas que se encontram no "mercado psi" hodierno; porem, cabe ressaltar que a interaçáo psicoterápíca se estende sem- pre entre estes dois pólos, entre o subje- tivo da comunicação, com todas as suas vertentes, indo da comunhão das ideias ao êxtase fusionai, e o pólo objetivo da técnica, até a aplicação mais instrumen- tal ou tecnocrátiea. . . A arte do psicoterapeuta, deste artesão do qual falamos, consiste precisamente na dosagem dos dois ingredientes de cuja mistura ele detém o segredo, segundo a sua ética, a sua formação profissional e a sua convicção teórica. Mas sempre ha- verá uma tal mescSagem, enquanto há um trabalho psicoterápico. Quanto mais a atuaçao de um determinado psicólogo ou médico se aproxima do pólo técni- co, dando prioridade à instrumentaliza- ção (com um leque imenso de parafer- nálias, antigas e modernas) em detrimen- to do contexto subjetivo, menos o seu trabalho será psicoterápico, mais será psicológico, didático ou "aplicado", le- vando a assimetria ao extremo; no opos- to, quanto maís o psicólogo enfatiza a fusão existencial e a "curtição" de sen- timentos, sensações e sensualidades, me- nos haverá trabalho — na ausência de um instrumento que possa mediatizar •— e mais haverá igualdade das posições, comunhão, experiências simbióticas e re- gressivas, simetria e, no extremo, misti- cismo ou mesmo fanatismo. Não há dúvida de que em ambos os extremos encontramos posições ideológi- cas, como os cstereólípos "oriente versus ocidente", por exemplo (21). Cabe ao (futuro) psicoterapeuta fazer a sua op- ção entre as múltiplas variantes e che- gar ao equilíbrio que lhe pareça ideal, segundo a sua personalidade, seus conhe- cimentos c convicções — para chegar ao seu equilíbrio pessoal, que lhe permita desempenhar as suas funções em plena consciência de sua condição de artesão, trabalhando com a matéria-prima da al- ma humana c dos seus mais íntimos des- regramentos. 3.8. A definição do instrumento psicoterápico Ao fazer referência, logo acima, à importância de um instrumento que pos- sa ser mediador não só entre o paciente e o psicoterapeuta, mas também entre o paciente e ele mesmo, no que tange à sua divisão interna — entre sua parte ra- cional e consciente e, por outro lado, o seu inconsciente e os conflitos que daí influenciam sua conduta e o perturbam — somos levados a pensar na lingua- gem. Já fizemos alusão a sua prevalência instrumental, mas trata-se agora de pre- cisá-la. Podemos perguntar-nos, primeiro, se é preciso recorrer a um instrumento: não c possível estabelecer um conlato direto e imediato com o paciente ou consigo mesmo? Em determinadas relações hu- manas, isto de fato ocorre, fazendo par- te de um número limitado de experiên- cias íntimas que o homem pode fazer, consigo ou com o outro. Cabe referir-se aqui ao amor, onde duas pessoas podem estar uma com a outra de maneira ime- diata — pelo menos em determinados momentos — capazes então de dispensar qualquer mediação, já que nào almejam outra finalidade senão estarem juntas. Os namorados estão sós no mundo, diz- -se, e de fato, no auge da relação amo- rosa, o mundo pára de existir, embora se faça rapidamente presente de novo . . . 83 Eis pois a condição humana: que a relação imediata consigo, com os outros ou com as eoisas é alcançada apenas em raros momentos privilegiados, "no ful- gor de um instante"; que a nossa divisão interna, que Ião cedo (e tão sofrida- mente) em nós se instala, nos determina e nos separa; enfim, que estamos fada- dos a refletir, a nos refletir, a pensar sobre nós, sobre as nossas experiências, os outros, o mundo. Para falar com os existencialistas, o homem está subtraído à presença "em si", imediata, maciça, bruta, caracteri- zando o mundo das coisas, mas não aquele da presença reflexiva (e fatalmen- te dualista) do homem. Para ele, o "por si" torna-se o seu modo de estar-no-mun- do, sempre à procura de algo que lhe falta, sempre dependendo do reconheci- mento do outro. Além da relação de amor, cabe men- cionar a experiência mística, queira liga- da a práticas religiosas, queira resultan- te de meditação transcendental ou de outros exercícios espirituais ou sensuais, de cunho sobretudo oriental. Todas elas são experiências com o objetivo geral de chegar a não almejar mais nada, ensi- nando a renunciar aos objetivos parti- culares; nelas, o ideal é chegar a bas- tar-se a si mesmo, a dispensar os outros e o mundo das coisas ou, ainda, unir-se a ele de modo fusionai, abolindo dife- renças e singularidades. Assim sendo, não há nestas experiências uma media- ção instrumental, ou se existe, não o é de maneira constitutiva, mas provisória, como um mal menor de uma etapa lée- niea a ser superada. Porém, para que haja um trabalho em nosso sentido, não se pode excluir a mediação do outro ou de técnicas que visam, de fato, realçar (e não abolir) as diferenças individuais, para que sejam assumidas com maior integração. Estas mediações devem então ser consideradas como essenciais, e não como meras inci- dências rumo a uma libertação total. A relação psicoterápica consiste assim em um Ira balho que, necessariamente (eis o nosso postulado), inclui media- ções, porque não idealiza contatos fusio- nais; incluiconhecimentos técnicos, por- que ligada a uma formação profissional específica; inclui objetivos a alcançar que delerminam os seus processos num tempo limitado; inclui uma instrumen- tação colocada a serviço das finalidades previstas, fazendo preeisamente função de mediação entre os termos que neste processo se engajam. Portanto, a mediação instrumental se apresenta como indispensável. Era nosso entender, é ilusório querer dispensar es- ta mediação para chegar-se a "contatos diretos", a "relações imediatas", a "vín- culos empáticos" ou "experiências trans- cendentais". Não que seja impossível "curtir" desta forma a relação com o outro, seja no "aqui e agora", seguindo certas orientações atualistas, seja no cor- po-a-corpo de encontros rítmicos, musi- cais, de dança ou de expressão gestual, ou ainda de certos exercícios energéti- cos; mas em todas estas experiências não se desenvolve aquele trabalho que, em nosso entender, é o único que merece ser chamado de psieoterápico — um trabalho exigente, muitas vezes árduo e que não prometa nada, nem curtição, nem soluções, mas que se propõe a pers- crutar da melhor maneira possível, numa relação a dois específica, o material con- flitante que faz a pessoa sofrer e a levou a consultar. A partir de premissas teóricas ante- riormente discutidas, deduz-se que o tra- balho psieoterápico visa a elaboração do material conflitante inconsciente. Isto não quer dizer que outros tipos de tra- balho não sejam possíveis, como, por exemplo, um trabalho com o corpo. Con- tudo, em tal caso, não se atingirão (c em geral nem se pretende) os conflitos in- conscientes, nem se recorre a um instru- mento que possa mediatizar estes confli- tos. A relação dualista da pessoa com o seu próprio corpo, nestas abordagens, não será questionada, mas contornada, no esforço de chegar-se a uma relação (ou uma "curtição") imediata consigo mesmo. Sem dúvida isto é possível al- cançar, embora de maneira bastante li- mitada; a questão é saber se desta forma a pessoa, o "paciente" consegue resolver aqueles problemas que, decorrentes de conflitos internos, influenciam o corpo, mas não se reduzem, nem se deixam reduzir a ele. Com este exemplo queremos dizer o seguinte: para que o trabalho que se es- boça enlre os dois atinja a pessoa como um todo, levando em conta a sua indis- sociável unidade psicossomática e tornan- do-se verdadeiramente psieoterápico, é imprescindível que respeite as caracterís- ticas constituintes, isto é, antropológicas, deste mesmo homem. Para tal, temos que admitir a necessidade de uma mediação, uma vez que não existe um acesso di- reto a nós, nem, sobretudo, a nossos conteúdos mais íntimos, mais subjetivos e mais conflitantes — àqueles conteúdos dos quais padecemos e que se trata de trazer à tona. E é a linguagem que, por excelência, nos oferece esta mediação, es- te acesso a nós mesmos. Mas de onde vem esta prevalência da linguagem, da fala? Eis o que temos que justificar. Numa visão antropológica-filo- sófica, a linguagem é constitutiva do ho- mem, participa, como um elemento es- sencial, de sua "anlropogénese", fazen- do-o plenamente humano pela inserção na dimensão simbólica, na dimensão do diálogo e da cultura. Tá a filosofia grega tem salientado esta característica, pela sua célebre definição do homem como antropos logon echon, "aquele que fica em pé e dispõe do lo- gos", da linguagem... Cracas aos ele- mentos diferenciais que lhe são propos- tos pela linguagem, a criança, injans, no início, aprende aos poucos a ordenar o seu mundo vivencial, reconhecer re- gras, coerências, regularidades e instituir (auto-) regulamentações, pela aquisição de operações reflexivas. Graças à lingua- gem, tornar-se-á capaz de desenvolver atos de reflexão e de consciência sobre o mundo e sobre as suas impressões sen- sórias. A linguagem, portanto, serve an- tes de tudo de órgão de pensamento, de consciência c de reflexão, proporcionan- do ao espírito humano uma certa auto- nomia sobre as coisas, bem como sobre as suas vivências diretas, autorizando, desse modo, uma tomada de distância com respeito a estas vivências e a inser- ção imediata no mundo. De fato, a fala permite evocar uma coisa, ''um real" qualquer, mediante o artefato de uma palavra que chega a substituir-se a esta coisa, sem que a seja; como por um passo de mágica, evoca pois a presença da coisa em sua plena ausência: a palavra, simultaneamente, é presença e ausência desta coisa, deste real que ela designa, referindo-se a este como a um "em si" que pertence a uma ordem própria de realidade. Ao designar uma coisa por uma palavra, ordenam-se duas ordens diferentes, se bem que refe- renciadas uma à outra: o real por um lado, a linguagem por outro. 84 85 Ura, esta substituição do real por um signo (linguístico) corresponde a uma operação de mediação, pela qual a pes- soa, o "falante", se distancia de sua ex- periência vivida. Isto lhe permile, pre- cisamente, encontrar-se como sujeito, dis- tinto daquilo que o envolve. Pela repro- dução da realidade que a linguagem ope- ra, ela "aliena" a pessoa (a criança), ti- ra-a da convivência ínfima, mas indis- tinta, com o real anterior; contudo, em troca, a identifica, lhe proporciona uma identidade e um sistema de referencia onde se inscrever e se segurar. Graças à linguagem, o conhecimento do mundo, dos outros e de si mesmo torna-se possível, porquanto institui o pensamento e as estruturas lógicas. A disjunção que assim se opera enlre o vivido e o signo que o substitui, é por- tanto contrabalançada pela inserção na linguagem e na lógica, cm uma palavra: no universo simbólico. Ao falar de universo simbólico, pro- nunciamos a palavra-chave para enten- der a importância capital da linguagem, fanío no processo de antropogênese quan- to na relação psicoterápica. Ela institui a junção simbólica que permite ao hu- mano adolar a distância necessária para com as coisas, pelo ato reflexivo que, a partir do acesso à linguagem, o deixa dividido, alheio a si mesmo mas, em compensação, capaz de pensar, de desen- volver a sua consciência e de se signi- ficar a si e aos outros, ou seja, no meio dos outros. "Simbolizar" torna-se então uma das tarefas essenciais do trabalho efetuado cm psícoterapia — não confundir com "intelectualizar", como ocorre com fre- quência . . . De fato, a símbolização não é algo que se passa ao nível racional, pelo raciocínio ou pelo "esforço de pen- 86 sar" ou de rcllelir a um nível intelectual e abstrato, mas pelo dizer. Nem mais, nem menos: dizer-se, deixar-se dizer, en- tregando-se ao fluxo de verbalização a respeito da vivência própria, dos proble- mas, dificuldades e confíitos pessoais que, destarte, podem encaminhar-se para uma resolução. Esta, novamente, não se situa ao nível racional ou consciente, mas faz parte desle misterioso processo de simbolização que transcende a dis- tinção entre consciente e inconsciente, entre racional e intuitivo, interior e ex- terior, e que se coaduna assim com o processo não menos misterioso da "efi- cácia simbólica" da qual tratamos no segundo capítulo. A linguagem, enquanto função dife- renciadora da vivência e do real, põe em movimento a simbolização das ex- periências vividas por uma delimitação tríplice: ela diferencia o inferior do ex- (erior (o "si mesmo" dos outros); distin- gue, na interioridade de si, entre a ex- pressão desta interioridade (o pensamen- to) e a interioridade mesma (sobre a qual porta o pensamento); faz reconhe- cer-se, em sua expressão própria, pela sua forma, em relação com oufras formas possíveis, e singulariza, "individualiza" deste modo a forma que a pessoa (ou seja, o "indivíduo" que assim se reper- toria, se "subjetiva") encontra para posi- cionar-se. A expressão pela fala, pois, é indivi- dualizante e promove relações de signi- ficação, estabelece "sentidos", oume- lhor, cria as condições de possibilidade para que "sentidos" possam advir. Com efeito, para que algo faça senti- do, seja significado, faz-se necessário que alguém o pense, debruçando-se so- bre ele, com uma necessária distância, tanto física quanto temporal; desta for- ma, o senlido surge "só depois", c sem que a coisa se faça presente. A lingua- gem liberta da coisa, cria a autonomia para diferenciar-se e opor-se à presença bruta do "em si"; graças a ela, o homem consegue também pôr-se em oposição a si mesmo, ganhar distância para consi- go, e mediante a verbalização, "anali- sar" os conflitos que o habitam e o fazem sofrer (26). Quanto mais inconscientes (ou "pro- fundos") estes conflitos, mais difícil tor- na-se a sua abordagem; encobertos de- fensivamente, a pessoa faz tudo para mantê-los fora da sua consciência e vi- vência, recorrendo preferencialmente a formas de agir que fazem com que con- tinuem encobertos. Ora, o que se opõe à linguagem — que permite, precisa- mente, evocar os conflitos, trazè-los à baila pela mediação da verbalização, mesmo quando inconscientes — é a ação, a atividade motora e sensória; ela, no extremo, pode chegar a um ativismo de- senfreado, quando a pessoa necessita li- teralmente fugir do confronto consigo mesma ("fugir para frente"). Entregar-se à ação para não ter que pensar, para não ter que refletir sobre si mesmo, sobre os próprios desejos, mo- tivações e intenções para com os outros, significa então encobrir os seus proble- mas e "protegê-los" para que não inco- modem mais. Ao agir desta forma, po- demos viver na ilusão, por algum tempo pelo menos, de termos resolvido nossos problemas; conseguimos aboli-los mo- mentaneamente e "fazer como se" nosso próprio equilíbrio fosse garantido, como se "aqueles problemas" não nos atingis- sem mais, porque estão fora do alcance da nossa consciência e da nossa ação. l'or esta razão, cm psicoterapia não se "faz" nada, não se age, nem se atua — o fazer, aí, se reduz ao dizer, à ver- balização, pela qual o material confli- tuoso pode ser evocado, tornado presen- te com e apesar de Ioda a sua ausência ao nível consciente; pode ser pensado e refletido apesar da distância, a lingua- gem servindo de elo mediador para "chamar" aquilo que se tornou proble- ma e que, tanlas vezes, é desconhecido. Longe então de encobrir o que inco- moda, a verbalização permite aproximá- -lo, cercá-lo, analisá-lo e elaborá-lo — em uma palavra, simbolizá-lo, desenca- deando lodo aquele processo de simbo- lização que, graças a ela, se torna pos- sível, mas que sem ela fica fora do alcance da intervenção "terapêutica", por mais sofisticada que seja. "Simbolizar", no entanto, não signi- fica que este trabalho se processe neces- sariamente ao nível de consciência, ou consista em "tornar consciente" o mate- rial inconsciente. A maior parte do pro- cesso de simbolização efetua-se de modo inconsciente; a conscientização pode ocorrer (depois de uma psicoterapia "bem-sucedida", a pessoa se conhece melhor, tem mais consciência de si), mas cia não é imprescindível para que o ma- terial conflituoso seja tocado, seja colo- cado em movimento, elaborado e reorga- nizado. Já frisamos que esta operação tem algo de misterioso; não é possível enten- der como a resolução dos conflitos pro- cede exalamente, em que consiste e "on- de" se desenrola; "dizendo tudo" e con- tando com as intervenções adequadas do terapeuta, o impacto dos conflitos in- conscientes sobre a conduta da pessoa diminui, os sintomas enfraquecem, a sua vida se "despatologiza", a comunicação 87 intra e interpsíquíca flui cora menos en- traves, a pessoa dispõe mais de si mes- ma. . . Eis a simbolização: não um processo automático, intelectual ou racional, mas um movimento de auto-integração torna- do possível pela fala e pelo seu poten- cial de penetração nos recônditos da alma humana, transcendendo a clivagem entre consciente e inconscienle, entre racional e afetivo e contribuindo para a "cura" da pessoa, dos seus males íntimos, des- de que sejam de origem psíquica. Cabe frisar, todavia, que a linguagem não é mágica: não é verdade que basta falar para que a pessoa seja "natural- mente" curada. Esla fala deve desenvol- ver-se no interior da relação psicoterápi- ca, deve integrar-se neste trabalho muito específico que entre os dois se opera — e nem sempre ele realmente ocorre, sen- do a possibilidade da sua ocorrência con- dicionada por uma série de variáveis. Es- tas serão abordadas em outros capítulos; aqui trata-se tão-somente de definir o instrumento da fala, condição sine qtta non (mas não suficiente) para que algu- ma elaboração se realize. A respeito do papel preponderante da linguagem em psicoterapia, encontramos cerfas objeçôes que voltam com frequên- cia. Elas são, muitas vezes, baseadas em mal-entendidos, ou então em premissas ideológicas representando determinadas orientações, não necessariamente de acor- do com os objetivos da psicoterapia. As- sim o mal-entendido segundo o qual o trabalho psicoterápico residiria tão-so- mente num "falatório" ("bater papo"), onde interviria mais a persuasão ou, quando muito, reaçÕes de catarse, do que processos cientificamente fundamentados. Ou ainda, que é o terapeuta que, falando mais, com insistência e imposição, che- garia a "fazer a cabeça" do paciente, sendo que a sua "cura" ou a sua me- lhora consistiria simplesmente na acei- tação das novas diretrizes; estas pode- riam desculpabilizá-lo ou tirar dele res- ponsabilidades que não quer ou não consegue assumir, de sorte que se sente melhor.. . Uma outra objeçao, à qual já aludi- mos, diz respeito aos aspectos intelec- tuais e racionais da linguagem. Ê ver- dade que a linguagem é mais apta para expressar e transmitir pensamentos abs- tratos do que vivências, raciocínios mais do que sentimentos — mas nem por isso torna-se impossível existir um discurso carregado de afetos, emoções e sentimen- tos, transmitindo algo da vivência pró- pria. Sem dúvida, nunca se chegará a uma transmissão integral da intimidade da pessoa; muito se opõe a isto, além das limitações da própria expressão linguís- tica, notadamente a inviabilidade de um acesso dírelo à nossa interioridade: não dispomos de um contato imediato conos- co, razão pela qual precisamos daquela mediação que a linguagem estabelece. Temos aí, aliás, um paradoxo que ca- racteriza a psicoterapia: o paciente está sendo convidado a "dizer tudo", possi- bilidade que, pela postura benévola do terapeuta, lhe é efetivamente oferecida; mas sabe-se de antemão que é impos- sível, humanamente, "dizer tudo", visto que a categoria do "tudo", da totalida- de abrangente, não faz parte da existên- cia humana: estamos e somos limitados em tudo, condição humana cuja aceita- ção nos custa muito, formando frequen- temente um dos maiores conflitos psí- quicos que temos que atravessar e re- solver. Não obstante esta impossibilidade in- trínseca, aquele "tudo" que abrange o inconscienle pode ser locado indireta- mente, O que em psicoterapia se visa e se torna praticável: a fala do paciente sempre veicula muito mais do que ele pensa ou pretende. As limitações da lin- guagem e da sua verbalização de ma- neira alguma são impedimentos para que elementos da sua vivência íntima se tra- duzam (ou se traiam), com ou sem a sua intenção, a sua "vontade" explícita. "Fa- lando, chegamos lá", sendo que, eviden- temente, outras condições têm que ser realizadas para que o processo psicote- rápico se desenrole de modo a oferecer apoio e direcionamento ao trabalho de ambos. O que as palavras não dizem, deixa- -se inferir pelo contexto da fala, pelas alusões que esta contém a materiais múl- tiplos, pelo conjunto da sua história — em suma, pelo não diIo que a atravessa e que faz parte dela, tanto quanto o dito. A propósito, o silêncio também faz par- te dafala, faz parte da verbalização em psicoterapia; esta não consiste num fa- lar ininterrupto, rmis tem os seus inter- valos, as suas cadências, escansòes, pon- iuações e suspensões, pelas quais, nova- mente, é o contexto, são as implicações do não-dito que "estão dizendo algo". O silêncio, pois, é uma maneira muito particular de falar, e com eie todos os outros fenómenos que observamos nas sessões psicoterápicas, inclusive as ex- pressões corporais, os gestos, mímicas e posturas: todos eles são maneiras de fa- lar, embora não dispensem a passagem pela fala, para que realmente haja aque- la mediação para conosco mesmo que permite uma aproximação dos conflitos internos. Uma outra objeção, de peso, apóia-se em considerações semelhantes sobre as limitações da verbalização, frisando em particular a falta de afetividade que ca- racterizaria a relação psicoterãpica, com as suas exigências de distância e de "tec- nicídade". Em consequência, a fala do paciente seria meramente mecânica, sem calor humano, sem emoção e sem expres- sividade. Outras abordagens, menos ra- cionais e dando mais espaço às emoções (e ao corpo) seriam portanto necessárias para que se desse livre expressão à sua intimidade, incluindo aí até os seus con- flitos inconscientes e os problemas resul- tantes do seu passado, Várias formas relativamente recentes de psicoterapia seguem este raciocínio e preconizam abordagens "mais flexíveis", mais emocionais, ou que trabalhem mais com o corpo. Voltaremos a esta discussão no último capítulo. Frisamos aqui tão- -somente que a ideia de "livre expres- são", não isenta de fortes componentes ideológicos, é mais um sonho, um desi- derato utópico (e obstinado) do homem, do que algo humanamente passível de realização: não conseguimos nunca ser- mos livres de nós mesmos, nem expres- sarmo-nos "livremente". Por outro lado, as regras que direcio- nam a relação psicoterãpica (e vimos anteriormente a sua justificação teórica) não impedem, em absoluto, que a ver- balização do paciente seja mesclada ou mesmo sustentada por afetoí> e emo- ções — pelo contrário, se este seu dis- curso for somente racional (ou raciona- lizado, intelectualizado), devem surgir dúvidas sobre a relação psicoterãpica e a interação que, neste caso, sem dúvida, funciona mal. Ê altamente desejável (e perfeitamente possível) que a fala do pa- 89 ciente seja afetiva, tanto quanto possí- vel. E ela o será, se a comunicação entre ambos se situar realmente ao nível da intimidade subjeliva que a relação psíco- terápica requer. Se islo não ocorrer, c que algo está errado, embora não nos princípios teó- ricos (que já fizeram suas provas, inú- meras vezes), mas nas contingências con- cretas que presidem o desenrolar deste ou daquele caso particular. Contingên- cias ligadas à pessoa do terapeuta, ao paciente, ã problemática, ao contexto e, portanto, à questão da indicação tera- pêutica {ver cap. 7), necessitando um exame aprofundado e certas medidas, co- mo, por exemplo, uma mudança de téc- nica ou de terapeuta. Mas não cabe, por islo, incriminar as características da fala humana: nela a expressão emocional é realizável com facilidade. Ela ocorre na grande maioria dos casos, onde a re- lação psicoterápica se instala de modo a desencadear a comunicação do mate- rial subjetivo íntimo. E esta comunica- ção subjetiva sempre é uma comunicação vivida com muitos afetos, porque toca os sofrimentos presenles e passados da pessoa e, com eles, o conjunto de recor- dações que perfazem a sua história pessoal. Pois é desta que se trata: a história do paciente é, antes de tudo, a história de sua afelivicíade; falando de si, é dela que se fala, c quanto mais se aprofunda o próprio material subjetivo, mais a fala será carregada de afetos c emoções — e mais ela será verdadeira. A verdade da pessoa, para cuja emergência o trabalho psícoterápico se engaja, é uma verdade subjetiva e afeliva, e c pela fala que ela é tocada e se revela •— nunca totalmen- te, nunca diretamente, mas em aproxi- mações sucessivas cujas cadências confi- guram o processo em pauta. Se o recurso à fala é imprescindível para uma ação psicoterápica em profun- didade, ela detém ainda certas vantagens intrínsecas. Em particular, a fala permite que os conflitos que surgem no interior do próprio relacionamento terapêutico sejam verbalizados. Tais conflitos são normais: sentimentos de rejeição ou de incompreensão, agressividade aberta ou latente, dúvidas, desconfiança ou dissi- mulação fazem parte do trabalho psico- terápico e ocorrem tanlo no início quan- to na fase de aprofundamento. Ao frisar que tais empecilhos são normais, participando regular e inevita- velmente de toda psicoterapia, queremos dizer que esta nunca corresponde a uma sinecura: vislo que "mexe" com a his- tória passada do paciente, tentando re- elaborá-la para resolver as problemáti- cas aí pendentes, os sentimentos negati- vos (tanto quanío, é claro, os positivos) tendem a reproduzir-se na situação de terapia, deslocados agora para a figura do psicoterapeuta. O importante é que possam ser ditos. Calados, camuflados ou escamoteados, farão estragos às vezes irreparáveis, levando, não raramente, à interrupção da terapia. Nomeados, tor- na-se viável a sua análise, podem ser trabalhadas as suas implicações, ramifi- cações e significações latentes, cm bene- fício do próprio processo terapêutico. Cabe ao terapeuta, à sua "arte", à sua intuição, criar um clima propício para que o paciente consiga, em confiança, falar dos seus sentimentos a respeito do terapeuta, a respeito da situação íntima (e envolvente) que se cria entre ambos, à medida que cada vez mais material subjetivo se esgaravata, até que os sen- timentos e desejos mais recônditos ve- nham à baila. Se pode ser constrangedor revelar tais assuntos, "normalmente" ca- lados, não deixa de ser libertador tocar neles e "dar nomes aos bois", oportu- nidade segura para que o trabalho pros- siga com novo ímpeto. Podemos comparar, aliás, com a vida familiar: as coisas não ditas, omitidas e passadas sob silêncio, continuam presen- tes e incomodam, ficam engasgadas e transformam-se aos poucos cm mentiras, sempre percebidas pelas crianças. Dizer a verdade pode assustar, pode encabular cada um de nós, mas alivia c limpa ter- renos que se pode, desde então, escara- funchar com proveito. No entanto, é evidente que o psicote- rapeuta tem que deter habilidade e ma- turidade suficientes para saber lidar com o material que chega assim a se verificar — sem se sentir agredido ou ofendido, sem situar estas erupções ao nível pes- soal, mas utilizando-as, devolvendo-as de maneira criteriosa, abrindo novas fa- cetas ao trabalho terapêutico. Ditos e analisados a dois, estes sentimentos ne- gativos podem transformar-se em dicas valiosas, em aliados poderosos para apro- ximar-se mais dos objetivos do processo. Outrossim, a linguagem, enquanto ins- trumento de comunicação e de compre- ensão, constitui o campo onde os con- flitos da pessoa podem aflorar, se mani- festar com maior ou menor nitidez — c onde podem ser mantidos e trabalhados. Repetimos que esta possibilidade se es- gota quando, ao invés de verbalizar, com paciência e persistência, se passa dire- lamente para a ação; vivendo e atuando os próprios sentimentos e emoções, os conflitos aos quais estes se atam, esva- ziam-se e desaparecem, pelo menos mo- mentaneamente, enquanto a passagem pela faia permite mantê-los e evocá-los ao seguirem-se os meandros do fluxo verbal. Mesmo sendo, sem dúvida, am- bíguo e plurívoco em sua expressão, co- mo toda linguagem, este, não obstante, possibilita uma comunicação relativa- mente precisa — mais precisa, pelo me- nos, do que a linguagem corporal ou in- fraverbal —, capaz de focalizar (e sim- bolizar!) os conteúdos conflitantes. Dando aparentemente muitas voltas, a veibalizaçãodo paciente guarda contatos "estruturais" com os seus conflitos ínti- mos; estes, origem de seus sofrimentos, razão da sua estada em lerapia e alvo do seu trabalho, não se volatilizam como na atuação, mas ficam presentes, se cer- cam e se revelam nas entrelinhas das ambiguidades e equívocos de sua fala. Como outros modos de expressão tam- bém, esta sempre diz muito mais do que o explicitamente formulado. Em oposi- ção a linguagens infraverbais, preserva este "algo mais", este não-dito e o desen- volve, vinculando-o, pela continuidade do relato, com a história da pessoa, com os seus pensamentos e afetos, e o tira, destarte, aos poucos, do seu sigilo pato- gênico. Eis, novamente, o processo de simbo- lização que configura os objetivos do processo psícoterápico. Passamos, num último subcapítulo, a defini-los melhor. 3.9. A definição dos objetivos psicoterápicos Já tocamos várias vezes na questão dos objetivos que se pretende alcançar em psicoterapia. Poderíamos ter come- çado a delimitação teórica de nosso campo definindo os objetivos, mas dei- 91 xamo-lo para o final, o que nos possi- bilita agora rever uma série de elementos já discutidos, comparando-os com a per- gunta mais fundamental que possamos (e devemos) nos colocar: por que, para que fazer psicoíerapia? Reparamos a amplitude da pergunta e as suas implicações múltiplas, quando analisamos as diversas respostas que en- contramos na literatura. O tema é pas- sível de iodas as interpretações, onde se mesclam facilmente opiniões, preconcei- tos, convicções e ideologias, todos eles imbuídos, inevitavelmente, de elementos subjetivos. Não há dúvida, aliás, que uma definição objetiva esteja fora de a!- cance, porquanto envolve a questão de valores e, por conseguinte, questões éti- cas e filosóficas. Estas correspondem às Weltanschauungen, às cosmovisões ou ideologias entre as quais nós todos nos situamos — embora muitas vezes sem nos darmos conta das nossas escolhas, das suas razões ou justificações e das numerosas influências, sociais c cullu- rais, abertas, sutis ou inconscientes que sofremos e que, de alguma forma, con- tribuem para nos condicionar. Sem querer entrar na discussão do li- vre-arbítrio ou do determinismo — te- mas filosóficos intermináveis — deve- mos, pelo menos, admitir que as nossas opções não são totalmente livres nem, cm seus determinantes, totalmente cons- cientes; todavia, isto não nos parece ser um argumento para não ter que assumi- das, tentando elucidá-las ao máximo e responsabilizando-nos pelas consequên- cias que decorrem delas cm suas apli- cações clínicas. Mas, repetimos, não é possível che- gar-se a uma definição única que, neste âmbito, seria necessariamente uma defi- nição autoritária — e não há autoridade 92 que possa aí impor a sua visão, uma vez que o psicoterapeuta tem que tomar as suas decisões em seu foro íntimo, insti- tuindo-se como a sua própria autoridade. Eis uma lías razões que tornam o exer- cício de sua profissão tão difícil c que acarreta tanta responsabilidade ética: ninguém pode decidir cm seu lugar quan- to aos seus aios terapêuticos, ninguém pode justificá-los (nem, menos ainda, removê-los); apenas ele mesmo poderá assumi-los, deverá assumir-se em suas funções e responsabilidades de psicote- rapeuta. Os objetivos que enumeramos cm se- guida, serão, portanto, os nossos objeti- vos, pelos quais fizemos uma opção pes- soal, em função da nossa imagem do homem e da nossa concepção daqueles valores engajados no trabalho psícote- rápico. Isto, aliás, já transpareceu na de- finição dos conflitos inconscientes como constituindo o material sobre o qual se trabalha em psicoterapiít: refere-se à imagem do homem dividido entre cons- ciência e inconsciente, o que deveras não é a única concepção do homem possível; mas a adolamos porque nos parece am- plamente justificada, tanto pela expe- riência clínica quanto por considerações teóricas. Cabe portanto a cada (futuro) psieo- terapeuta optar pela concepção antropo- lógíca que lhe parecer mais pertinente, escolher uma orientação teórica em con- sonância com a primeira (bem como com os seus valores existenciais pessoais), e definir os objetivos que se pretende (e que se deixam) atingir pelos métodos e técnicas decorrentes. Como primeiro objetivo geral fixaría- mos o ideal de uma libertação da pessoa que, lutando com dificuldades de ordem intrapsíquica e interpessoal, nos consulta à procura de uma solução. Mas "liber- tação" ou "solução" quer dizer o quê? Como consequência da nossa definição dos conflitos intrapsíquicos, torna-se ob- vio que não pode tratar-se de uma mera libertação dos sintomas —- mas libertar de que então? A palavra não é isenta de conotações ideológicas c pode, de fato, ser definida de maneiras bem diversas; digamos, para começar, que pensamos numa libertação interna que permita ao paciente dispor mais livremente de si, superando os en- traves oriundos dos seus conflitos e di- visões pessoais. Isto, no entanto, não significa que uma libertação total seja possível, ou que as suas divisões inter- nas possam ser eliminadas — utopias que cabe afastar da visão tanto do tera- peuta quanto do paciente! Teria a ver, do lado do terapeuta, com presunções (infantis) de onipotência, pelas quais acredita dispor de poderes extraordiná- rios para levar o outro a uma "cura" completa; do lado do paciente, corres- ponderia a uma expectativa irreal de conseguir chegar a um estado paradisía- co sem tensões, sem conflitos e, quem sabe, sem limites. As duas perspectivas, numa tal situação, seriam portanto com- plementares, sendo que em ambas se acredita, magicamente, em um mundo limitado onde o indivíduo poderia, usu- fruir de uma liberdade plena, sem mais ser restringido pela "condição humana". Este não é o sentido da libertação que apontamos como meta do processo psicoterápico. O trabalho incluído neste processo não acabará com o fim da te- rapia, mas continuará no sentido de uma exigência permanente de se enfrentar a si mesmo, de avaliar c de efetuar então as opções que se impõem, com a maior liberdade e com o maior grau de cons- ciência possíveis. "Libertação", em nosso sentido, sig- nifica pois aumentar o campo da cons- ciência — sem nunca chegar a uma ple- na consciência de si ou a um "esvazia- mento" do consciente — e aumentar, por conseguinte, o leque de ações conscien- tes, responsáveis e assumidas; significa ampliar o autoconhecimento para viver menos num faz-de-conta de "como se", de autocamuflagem e de escamoteação dos verdadeiros problemas, tendências e desejos; significa desenvolver aquelas potencial idades que ficaram amordaça- das sob o peso das repressões e inibi- ções; significa ainda, aumentar a capa- cidade de autocontrole e de disposição de si, para poder efetuar as escolhas vi- tais com conhecimento de causa. Não se trata de nenhuma libertação que transformaria o paciente num ser absoluto, soberano e aulo-suficiente — nem, sobretudo, em alguém capaz de sobrepujar-se aos outros, de os dominar ou os dispensar: a libertação que colo- camos como objetivo, não visa tirar o indivíduo da sociedade, do convívio com os outros, mas integrá-lo melhor nela, em consequência de sua maior integra- ção consigo mesmo. Pretende pois apro- ximá-lo dos outros, para chegar, nisso também, a encontrá-los com maior liber- dade do que antes, livre agora das coa- eões internas criadas no decorrer da sua história; não visa, contudo, libertá-lo das coações externas, daquelas que fa- zem inevitavelmente parte da vida so- cial; a meta é levá-lo a enfrentá-las com maior facilidade e mais tolerância. Em outras palavras, ele tem que aprender a respeitar os outros sem se sentir amea- çado por eles (eis um outro aspecto da libertação), admitindo as diferenças para com os outros sem sentimentos de rejei- ção ou de exclusão. Paravoltar à questão dos sintomas mencionada acima: a sua eliminação evi- dentemente faz parte dos objetivos da psicoterapia, mas não exclusiva, nem prioritariamente; pretende-se chegar a outras mudanças, mais profundas ou mais globais que, quando ocorrem, acar- retam também a resolução dos sintomas. Uma tal concepção implica novamente uma determinada visão do ser humano e das suas patologias: os sintomas não são considerados em si como constituin- do "o problema" do paciente, mas como representando-o, enquanto este se situa "alhures". Colocamo-nos, pois, claramente, em oposição à abordagem comportamental, por exemplo, que se restringe explicita- mente a combater os sintomas, conside- rados como efeitos de aprendizagens er- radas; eliminados os sintomas, cessa a intervenção do terapeuta comportamen- tal e o comportamento do paciente fica "modificado". De sorte que não se dis- tingue entre o manifesto e o latente, en- tre o que a pessoa mostra e o que ela "é", nem entre o comportamento e os seus determinantes intrapsíquicos. Sendo esta distinção sem nenhuma relevância (ou sendo mesmo negada), o comporta- mentalismo não fixará outros objetivos além daquele, funcional e facilmente "operacionalkável", de eliminar os sin- tomas: os sintomas suprimidos, o pro- blema apresentado pelo paciente é con- siderado como resolvido. (V. Garfield & Bcrgin)(12). Este exemplo demonstra como a ima- gem do homem — unitária ou dualista, como superfície ou como interioridade — determina os objetivos da interven- ção terapêutica. De fato, a eliminação dos sintomas em si já é um objetivo apre- ciável que, às vezes, pode ser suficiente; mas não nos parece possível reduzir o homem ao seu comportamento, nem, tampouco, a psicoterapia a uma modifi- cação comportamental — opinião ou "crença" na qual se reflete, evidente- mente, a nossa visão do homem, a nossa opção pessoal quanto ao alcance e ao sentido da intervenção psicoterápica. No entanto, na literatura, é comum encontrar a distinção de três tipos de ob- jetivos que podem coexistir, se suceder ou se isolar. Assim Wolberg(ll) (capí- tulo 7) acha pertinente distinguir entre o alivio dos sintomas, a mudança do comportamento e a mudança da perso- nalidade, considerando-os como três ocor- rências possíveis ao longo do processo psicoterápico. Justapor assim estas três mudanças, significa que todas as três são realizáveis e que a opção entre elas é não somente possível, mas ainda necessária, em fun- ção de determinadas variáveis, a definir mais adiante (ver capítulo 6). Eliminar ou aliviar os sintomas aí não se apresen- ta, portanto, como o único objetivo pos- sível, mas como uma das libertações ca- bíveis, entre as quais o psicoterapeuta pode optar, negligenciando consciente- mente as outras opções. Coloca ainda o objetivo da mudança da personalidade (ou da sua "reconstrução") como o obje- tivo mais complexo, mas também o mais difícil a atingir, representando uma es- pécie de ideal que, no entanto, nem sem- pre se deixa realizar. A noção de personalidade é muito discutida, até quanto à sua pertinência. Como conceito, representa um construto difícil de ser operacionalizado, visto que se refere a uma abstração não observá- vel. Ele implica estruturas ou "instân- cias" latentes, sejam elas hereditárias ou adquiridas; implica pois uma visão dua- lista do homem que nem todos os pes- quisadores ou profissionais da área se dispõem a admitir. . . Quanto a nós, colocamos como obje- tivo geral da intervenção psicoterápica a mudança, da estruturação inconsciente desta personalidade. Porém, ao sublinhar esta mudança intrapsíquica como essen- cial para que este processo possa ser considerado como bem-sucedido, enfren- tamos a dificuldade de defini-la: sendo intrapsíquica, ela consiste em quê? Quais seriam os critérios para a sua avaliação? Percebe-se que esta dificuldade não exis- te a respeito da eliminação dos sinto- mas; em abordagens, todavia, que visam objetivos "mais profundos" ou "mais complexos", ela entrava seriamente a avaliação dos resultados, bem como o cotejo das diversas abordagens entre si. Mas não vemos razão, nisto, para abrir mão de objetivos que ultrapassam o alí- vio sintomático, ou mesmo a mudança do comportamento: o ideal de uma li- bertação interna, a mais ampla possível, persiste, podendo mesmo ser considera- do como uma exigência ética. lunto com esta concepção, temos pois que assumir a subjetividade do processo de psicoterapia, da mudança de persona- lidade que nele se almeja, e da avaliação dos resultados. Quem tem que mudar (e tem que querer isto!) é o próprio pacien- te, e cabe a ele alcançar (com a ajuda do terapeuta, c claro), sentir e avaliar as mudanças que nele ocorrem. A dificul- dade, portanto, de fixar e avaliar este objetivo, é inerente à complexidade da tarefa: se nós assumimos esta, temos que assumir também aquela, uma vez que não se deixa contornar como aci- dental. Em outras palavras, a opção que faze- mos tem que ter consistência interna, e ao fazc-la temos que saber os riscos que corremos, a respeito, no caso, do ideal de uma avaliação "científica", isto é, ohjctiva e generalizável: se ela não é possível, cabe desistir do empreendimen- to— ou então criar critérios que, embora subjelivos, tenham consistência interna. Voltaremos a este problema mais adiante, discutindo a avaliação dos re- sultados. Aqui resumimos que, apesar de todos os empecilhos, o objetivo ideal de uma transformação ampla da pessoa (ou de sua "personalidade") deve ser man- tido para atingir aquela libertação autên- tica (embora não máxima) que definimos acima, e que coincide, em nossa visão, com a resolução dos seus conflitos in- conscientes, alcançada pelo próprio pa- ciente. É interessante notar que a ideia de "libertação" da pessoa não é própria à psicoterapia das sociedades ocidentais modernas. Watts (1974) (25), notadamen- te, comparando a psicoterapia ocidental com os procedimentos psicoterãpicos orientais, assinala a proximidade dos ob- jetivos que, em ambos os casos, preco- nizam uma certa libertação interna. A definição dessa libertação, no en- tanto, diverge bastante de um contexto cultural para outro. As psicoterapias orientais visam antes de tudo libertar o espírito dos seus entraves materiais, da- queles que exercem coerção sobre o livre desabrochar espiritual, em consequência da ligação limitadora com o próprio cor- po e com a realidade material que nos cerca. Os métodos e técnicas utilizados aqui representam guias para conceder al- forria aos acometidos dos males terres- tres, mediante a meditação transcenden- tal, a contemplação divina ou êxtase 94 95 místico. A libertação é, portanto, con- cebida como referente ao peso da exis- tência material: despertando a orienta- ção espiritual, a pessoa conseguiria li- vrar-se dos bloqueios decorrentes do seu condicionamento físico e atingir esferas superiores em seu desenvolvimento men- tal. O ideal de uma libertação do corpo, do suporte material da existência, não intervém nos objetivos da psicoterapia ocidental. Nela, pretende-se muito mais integrar corpo e alma da pessoa, melho- rar o ent rosa mento para diminuir (mas não eliminar) os atritos entre ambos e chegar assim a solucionar os conflitos que existem entre estas duas vertentes da existência. No âmbito ocidental, pois, a concepção da libertação coaduna-se com determinados valores, em primeiro lugar com aqueles ligados à pessoa: a libertação será aquela de um sujeito cuja subjetividade e historicidade não são considerados como obstáculos, mas, pelo contrário, como valores a serem realça- dos e assumidos para que se aleance uma integração mais flexível e mais livre de sua personalidade. A grande maioria dos representantes ocidentais não considera o prazer do cor- po, por exemplo, como um obstáculo para o equilíbrio da pessoa ou parao seu desabrochar espiritual mas, pelo con- trário, como uma condição sitie qua non para a sua sã expansão existencial. Esta concepção —• que evidentemente tem evoluído muito desde a Idade Média, e continua a evoluir — determina as di- versas orientações psicoterápicas no Oci- dente e faz com que os seus objetivos gerais acerca da "libertação" tenham um denominador comum, bastante diferente daquele vigente no Oriente. Finalizando, cabe frisar mais uma vez que o fato do psicoterapeuta ter convic- ções próprias que o levam a fazer deter- minadas opções entre as diversas linhas teóricas e os valores que implicam, não quer dizer que ele tenha que deixar-se dominar por elas, transformando-as em ideologias que, mais cedo ou mais tarde, poderá ser tentado a impor aos seus pa- cientes. Uma opção vira ideologia quan- do se apresenta como única, quando se radicaliza e esquece a presença de ou- tras opções cabíveis — quando perde o respeito pela diferença dos outros. Neste sentido, o terapeuta, mesmo fi- cando firme em sua própria postura, tem que oferecer ao paciente a possibilidade de fixar ele mesmo os seus objetivos, tem que oferecer-lhe as várias opções que se apresentam, para que possa fazer uma escolha pessoal. Esta, sem dúvida, será facilmente influenciada pela "autorida- de" do psicoterapeuta e pela linha teó- rica a qual pertence, em geral conhecida de antemão pelo paciente; não obstante, o terapeuta não deve embriagar-se com esta sua autoridade, mas excrcè-la com humildade, procurando o bem do outro e não a exaltação do próprio poder. Chegamos ao término do nosso deli- neamento teórico. Com ele, definimos um conjunto de elementos teóricos, po- dendo constituir um sistema geral de referências, passível de orientar a nossa reflexão para saber o que possa, o que deva ser uma psicoterapia. Estes elemen- tos dizem respeito aos Ires pólos da re- lação terapêutica (v. capítulo 1) e às suas múltiplas interaçÕes. Parece-nos impres- cindível que estes três pólos — o pa- ciente, 0 psicoterapeuta e a própria re- lação, o processo em que ambos se en- gajam — sejam claramente definidos, para que o (futuro) psicoterapeuta tenha plena consciência das implicações antro- pológicas, psicodinámicas e psicopatoló- gicas da sua prática. No entanto, estas reflexões teóricas devem ser assimiladas pelo aprendiz pa- ra, em seguida, serem esquecidas, por- quanto a prática clínica não consiste em teorizar e nem sequer em aplicações de uma teoria preestabelecida; para que a sua prática clínica seja autêntica e es- pontânea, sem que seja improvisada, ele tem que saber o que está fazendo, para que não se transforme em aprendiz-feiti- ceiro, criando males maiores do que os que pretende curar. A teoria, portanto, deverá estar pre- sente de maneira permanente, mas como um jundo incorporado, assimilado pelo terapeuta para que possa nutrir-se dele durante a sua prática, mas não para que seja reflctida durante o seu exercício profissional. A reflexão teórica se pro- cessa então em dois momentos: durante a formação do futuro psicoterapeuta, quando toma conhecimento das implica- ções amplas da prática psicoterápica; na reflexão sobre a sua prática, quando se trata de proceder a uma elaboração teó- rica acerca das experiências acumuladas e dos novos questionamentos que daí surgem. Os elementos de uma teoria geral da prática psicolerápica aqui apresentados entendem-se pois como um instrumento útil e mesmo indispensável para esta prática c para a pesquisa que dela de- corre, sendo que ambas não se deixam dissociar, se se quer manter um nível de atuação científica e eticamente res- ponsável. As teses desenvolvidas aplicam-se, é óbvio, à área geográfica ocidental, uma vez que é nela que se arraigam os cri- térios científicos e éticos referidos. Elas não têm nenhuma pretensão de univer- salidade. No Oriente, na África ou no Brasil indígena, outros critérios são vi- gentes e norteiam as práticas psicoterápi- cas segundo modalidades culturais pró- prias. Aplicadas pois à "realidade brasi- leira", elas têm valor apenas para a for- mação universitária (e pós-universilária) de psicoterapeutas profissionais que par- tilham da cultura ocidental; o "saber" contido nesta tese não substitui outros saberes, de origem popular, indígena ou afro-brasileÍTa, cujo valor e cujas práti- cas cabe reconhecer e aproveitar para fins terapêuticos, conforme as mais di- vergentes crenças das pessoas que as procuram. Sc a concepção aqui desenvolvida não deixa espaço para práticas mágicas, por exemplo, não significa que estas sejam em si condenáveis, mas tão-somente que não obedecem aos critérios que norteiam o nosso trabalho e a nossa ideia de teo- ria e prática psicoterápieas. Nas considerações esboçadas, evita- mos propositalmente recorrer a termos técnicos ou teóricos específicos. Como se trata aqui de um esboço geral de uma teoria geral da psicoterapia, tais termos, ao nosso ver, não cabem; na medida que isto se faça necessário, eies serão intro- duzidos nos capítuios seguintes. Assim falamos, até agora, apenas de "relação" psicoterápica e não de "transferência", de "material psicológico" e não de sua "perlaboração" ou "interpretação", as- pectos particulares que dependem de 96 uma determinada orientação leórica e das suas técnicas. O único conceito mais teórico que utilizamos foi aquele de "inconsciente", pelo fato de sua utilização ultrapassar a estrita teoria psicanalítica e participar de outras linhas psicoterápicas (se não da cullura geral), o que justifica, ao nosso ver, a sua inclusão em nosso delinea- menlo. Este de modo algum visa uma doutrinação em benefício de uma ou ou- ira linha de atuação, seja ela psicanalí- tiea ou não, mas submete um conjunto de elementos à reflexão do (futuro) pro- fissional, como incentivo para questio- nar-se sobre as implicações da sua prá- tica. Acreditamos que destarte, ele será melhor preparado para ter consciência das dificuldades deste seu trabalho, para adquirir as qualificações desejáveis, e para poder exercer as suas funções de psicoterapeuta. Bibliografia e notas í. Ver a respeito o livro de FRANK, J. D. Persuasion and Healing. A comparative Study of Psychotherapy. (Baltimore & Lon- don, John Hopkíns Press, 1973), onde O auior analisa as influências persuasivas (e moralizantes) operando em praticamente todos os processos de cura, opondo-se ã "desmoralização" sofrida pelos pacientes. 2. Desenvolvemos esta ideia num irabatho es- crito em. comemoração ao centenário d;i "psicologia científica: "A Psicologia Cien- tífica: Realidade ou Mito?", publicado em: Psicologia, Ciência e Profissão (CFP), 1/1, pp. 11-37, 1981. 3- Sobre pesquisas em psicoterapia centrada no cliente, encontra-se amplo material bi- bliográfico nas seguintes obras: — HART, J. T. & TOMLINSON. T. M. (Eds.). New directions in ciient-centered therapy. Boston, Houghton Mifflin, 1970. — WEXLER, D. A. & RICE, L. N. (Eds.). Innovationi in clie/it-centered the- rapy. New York, Wíley, 1974. 4. A respeito do pesquisas em psicoterapia conjugal e da família, baseadas na teoria da comunicação, a seguinle obra oferece uma visão baslanle completa: GURMAN, A. S. & KNISKER, D. R, "Research on mental and family therapy: progress, pers- pective and prospect". Em: GARFIELD & BERGIN (orgs.}. Handbook of Psychothe- rapy and Behavior change: ãtl anpirical analysis. New York, Wiley, Í978. 5. Como obras que discutem as diversas abor- dagens praticadas no "mercado psí" e aces- síveis na língua portuguesa, podemos citar: — COREY, G. Técnicas de Aconselhamen- to e Psicoterapia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1983 (Manual americano e prá- tico, discutindo questões básicas e abordan- do oito linhas psicotfirápicas, comparan- do-as entre si). — FERREIRA, A. E. & CARNEIRO, T. F. (orgs.). Personalidade e Psicoterapia Hoje. Rio de Janeiro,Zahar Editores 1983 (discute cinco abordagens psicoterápicas numa visão americana, sem aprofundá-las). — BROWN, D. & PEDDER, J. Introdu- ção à Psicoterapia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1981 (aborda apenas a linha psi- coiiinániica, numa. visão americana). — FIORINI, H. J. Teoria e Técnica de Psi- coterapías. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976 {título enganador: discute tão-somen- te a psicoterapia breve e as suas aplica- ções). — WOLMAN, B. B. (org.). Técnicas Psi- canaVtticas (3 vol. 1. A Técnica Freudiana; 2. Freudianos e Neofreudianos; 3. As Téc- nicas Não-Frendi anãs e Técnicas Espe- ciais) . Rio de Janeiro, Imago Editores, 1976 (obra já clássica, bastante aprofun- dada, mas com contribuições muito hete- rogéneas). — DEWALD, P. Psicoterapia — Uma Abordagem Dinâmica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1981. —• I.ANGE, R. As bases da Psicoterapia. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984. — RIBEIRO, J. P. Teorias e Técnicas Psi- coterápicas. Pctrópolís, Vozes, 1986. Esta enumeração não se pretende exaustiva. A grande maioria destas obras representam edições meramente comerciais, a ponto de os editores nem se preocuparem em tradu- zir a bibliografia citada: as obras de refe- rência são sistematicamente citadas em in- glês, mesmo quando não foram escritas em inglês (caso das obras de Freud, por exem- plo), ou quando já existem traduções para o português ou para o espanhol. Porém, o que é mai<. grave (com execção do livro de Fiorini), é que tanto a concepção geral ito trabalho psicoterápico como os exem- plos e estudos de casos se referem tão- -somente à realidade americana; especifici- dades culturais c comparações transcultu- raís nem sequer são mencionadas. O valor destas obras para o iniciante brasileiro é assim bastante diminuto, a não ser que se queira aceitar o bram-morminu neo-colo- nialista... 6. BREUER, J. & FREUD, S. Studien iiber Hysterie. Leipzig & Wíen, Verlag Franz Deuticke, 1895. Trad. port.: ESBr., vol. II (1974). 7. JONES, E. Obra e Vida de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. 8. Trata-se de um dos "Artigos sobre Técni- ca", a saber "Zur Einleitung der Behan- dlung" (1913), em: Gcsammclte Werke VIII, 454. Trad. port.: "Sobre o inicio do tratamento", em: ESBr. vol. XII, pp. 164-187. 9. Ver, por exemplo: EYSENCK, H. J. Per- sonality, learning and "anxiety", cm: EY- SENCK, H. J. (org.). Handbook of abnor- mal Psychology (2nd ed.). London, Pitman, 1983; ou ainda a obra recente do mesmo autor, com um título significativo: The De- cline and Fali of the Freudian Empire. Lon- don, Viking Pcnguin, 1985. 10. WOLMAN, B. B. (org.). Handbook of Cli- nicai Psychology. New York, McGraw Hill, 1965. 11. WOLBERG, L. R. The Technique o, Psy- chotherapy. New York, Grune & Stralton, 1967! (2 vol.). Assinalamos que este autor cita, no primeiro capítulo da sua extenua obra, nada menos do que 26 definições di- ferentes sobre psicoterapia, tiradas de obras de autores americanos que se estendem de 1942 até 1965. 12. GARFIELD, S. L. & BERGIN, A. E. (orgs.). Handbook of Psychotherapy and Behavior Change. New York, Wiley, 1978. 13. SCHRAML, W. J. & BAUMANN, U. (orgs.). KlMsche Psychologie. Band I: Theorie und Praxis; Bern, Vcrlag Hans Huber, 19J3*. Band II: Methoden, Ergeb- nisse und probleme der Forschung; id-, 1974. 14. PONGRATZ, L. J. (org.). Klinische Psy- chologie. (vol. 8 do "Handbuch der Psychologie"). 2 Halbbiinde. GÕttingen, Verlag fur Psychologie Hogreffe, 1917 e 1978. 15. SCHNEIDER, P. B. Propédeutique d'une Psycholherapie. Paris, Payot, 1976. 16. FIORINI, H. J. Teoria e Técnica de Psico- terapian. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976. 17. STROTZKA, H. (org.). Psychotherapie: Grundíagen, Verfahren. Indikationen. Miin- chen: Urban & Schwarzenbcrg, 19782. (A opinião citada encontra-se na introdução do organizador do volume, representativo do pensamento do Instituto de Psicoterapia da Universidade de Viena; o autor a cita píira precisamente criticá-la). 18. MELTZOFF, J. & KORNRE1CH, M. Re- search in Psychotherapy. New York, Ather- ton Press, 1970. 19. Um autor como COREY (op. cit. na nota (5) ) ressalta involuntariamente esta passividade, quando recusa a noção de "paciente" por causa da sua "orientação passiva", dizendo que prefere o "uso do termo cliente, ao referir-se à pessoa que re- cebe assistência psicológica", (p. 22). Ora, quem "recebe" assistência não é menos pas- sivo do que o "paciente"; apenas se situa fora do campo médico ou clínico. 20. A título de exemplo da confusão entre psi- coterapia e aconselhamento, podemos citar mais uma vez o livro de COREY (op. cit. na nota (5) )q»e, já pelo título, junta acon- selhamento e psicoterapia. De fato, tenta precisar estas nomenclaturas, mas encontra dificuldades; aconselhamento {operado pelo "orientador" ou "conselheiro", traduções adotadas pelo tradutor brasileiro, v. nota da p. 17 da obra) refere-se, segundo o autor, 99 "ao processo através do qual se dá oportu- nidade aos clientes de explorarem preocupa- ções pessoais", com o objetivo de "auxiliar o indivíduo a descobrir os recursos de que dispõe par;i «ma vida mais produtiva". Psi- coterapia, no entanto, "focaliza processos inconscientes e preocupa-se com mudanças na estrutura da personalidade" (pp. 22-23). Ambas, no entanto, tratam de "crises exis- tenciais particulares", sem referência à psi- copatologia nem ao campo clínico. E o autor acrescenta: "muitas vezes uso estes termos juntos — e às vezes até mesmo to- mando um pelo outro". O aconselhamento, nascido da linha huma- nista-existencial na psicologia americana, evita as referência clínicas e, como aparece no caso citado, nem as atribui à psicotera- pía; invocar as crises existenciais como sen- do situações de conflitos onde aparecem as micro e macropatologias de cada um está fora de moda, poderia chocar,.. Um outro trecho da mesma obra deixa islo claro: "cada vez mais, o aconselhamento e a te- rapia são encarados como veicuios de aulo- -exploraçáo, a fim de assistir pessoas 'nor- mais' na realização mais plena de suas po- tencial idades. Minha clientela é constituída sobretudo POT uma população relativamen- te sadia. . ." (p. 19). Tais afirmações de um profissional não deixam de chamar a atenção — como se o "anormal", o patpló- gico não fizesse parte do campo psicológi- co e psicoterápico. Podem-se encontrar exemplos semelhantes em outros trabalhos sobre aconselhamento. 21. Ver a respeito: ROCHEBLAVE-SPENf.E, A. M. Psicologia do Conflito. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1974. A autora apresenta uma análise histórica da con- cepção conflituosa do homem, em linhas filosóficas, psicológicas e psicanalíticas. 22. Ver a respeito: BUCHER, R. O valor estrutural do "Complexo de Édipo". Aller — Jornal de Estudos Psicodinâtnicos (Bra- sília) 12/1, pp. 25-44; 1982. Neste traba- lho, seguindo as ideias desenvolvidas por E. ORTIGUF.S no seu "Édipo Africano" (Paris, Plon, 1966), analisamos o comple- xo de Édipo em suas implicações psicoló- gicas e antropológicas, no que diz respeito à sua presença na cultura c na clinica de hoje. As abordagens psicológicas do Édipo, focalizando os sentimentos, as atitudes ou as fases genéticas, tentaram contornar a di- ficuldade de FREUD cru fundamentar me- lhor a sua teoria, devido à insuficiência da ideia de simbolísmo social da qual podia dispor em. sua época — contorno pelo qual se pagava o preço do abandono da especificidade do inconsciente, instituído pelo Édipo. É a concepção estrutural, ba- seada no simbolismo social da linguística e da etnologia, que permite a elaboração teó- rica do alcance antropológico do Édipo c da sua conexão com a linguagem. O valor estrutural do Édipo consiste nisso: estrutu- rar o advir do sujeito e a sua convivência em sociedade. 23. Ver a respeito: ARGELANDER, H. Das Etttinterview in der Psychotherapie. Darmstadt: Wisscnschaftliche Buchgescll-schaft, 1970. O autor distingue entre três fontes de informação, objeliva.s, subjetivas e situativas e desenvolve a partir daí con- siderações interessantes sobre a dinâmica e a "psico-lógica" que intervêm nesta "situa- ção de diálogo descomum". 24. Concernente à noção de desejo na psica- nálise, Indicamos: — GARCTA-ROSA, L. A. Freud e o In- consciente. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1984, em particular os capítulos III (O Discurso do Desejo: A Interpretação de Sonhos) e VI (O Desejo). — CARIOU, M. Freud e o Desejo. Rio dá Janeiro, Imago Editores, 1974. 25. A este respeito, consulte-se com proveito; WATTS, A. W. Psicoternpiii Oriental e Ocidental. Rio de Janeiro, Record, 1974. 26. A respeito da importância da linguagem no desenvolvimento humano, consulte-se com proveito — LADRIÈRE, J. A Articulação do Sentido. São Paulo, EDUSP, 1978. — ORTIGUES, E. Le Dhcours et !e Sym- bote. Paris, Aubier-Montaigne, 1962. — LEMAIRE, A. Jacques Lacan — Uma Introdução. Rio de Janeiro, Editora Cam- pus, 1979. (Sobretudo partes 1 e 2). 1Capítulo 4 As diversas relações psicológicas e psicoterápicas Após a nossa tentativa de delinear teo- ricamente, islo é, como princípios gerais e sem referência direla à prática, a re- lação psicoterápiea como ela "deveria" funcionar, cabe-nos agora a tarefa de comparar estes princípios com a realida- de clínica que nos circunda. Todavia, 86 o nosso esboço geral lem alguma per- tinência, implica certas consequências: não devemos nos ater apenas a compa- ração com aquilo que exíslc ao nosso redor, mas proceder também a uma ava- liação das diversas relações psicológicas e/ou psicoterápicas, para ver até onde elas correspondem à nossa definição. Não se traia nislo de uma petitio prin- cipiam, mas da mais coerente aplicação possível das ideias e desenvolvimentos anteriores à atuação clínica do profissio- nal em psicologia, para que esta corres- ponda aos critérios mínimos de cientifi- cidade c ética que chegamos a definir. Com efeilo, exislem em nosso "mer- cado psi" muitas atuações diferentes c que nem sempre se coadunam com os princípios que discutimos. Não preten- demos incriminá-las, afaslando-nos de qualquer veleidade moralista. Não obs- tante, faz-se mister proceder a esta com- paração e avaliação no interesse de itma delimitação clara das diversas formas de atuação clínica, bem como das suas pos- síveis interfaces ou, ao confrário, oposi- ções. Trata-se de reconhecê-las quando existem, em proveito de desempenhos coerentes e responsáveis, já que não é possível mesclar quaisquer princípios ou, pior ainda, querer abrir mão deles total- menle. Neste sentido, pois, podemos dizer que a relação psicoterápiea que idealizamos, corresponde a uma relação extrema ou "pura" que nem sempTe está presente nas diversas relações psicológicas. Dis- tinguiremos uma série de nove relações interpessoais. Veremos que somente a úl- tima combina plenamente com as nossas esiipulações sobre a relação psicoterápi- ea como sendo uma "relação interpes- soal subjetiva". Apoiamo-nos nesta aná- lise na obra de Schneider(l), mas dis- 100 101 Capítulo 6 O processo psicoterápico Repetidas vezes falamos já do proces- so ou dos processos que se desenvolvem nas diversas relações psicológicas ou psi- coterápicas. Cabe agora definir o que emendemos por processo especificamente psicoterápico — especificidade que, es- peramos, ficou clara a partir das carac- terísticas estipuladas para que haja rela- ção interpessoal subjeíiva. Para proceder a esta definição, nada melhor do que analisar as implicações "processuais" des- tes três termos, bem como de todos os lermos invocados anteriormente na ten- tativa de esmiuçar os ingredientes da re- lação psicotenípica. 6.1. Definição de "processo" e sua aplicação à psicoterapia No capítulo 3, propusemos alguns de- lineamentos do campo psicoterápico, a serem completados agora com vistas à mais precisa apreensão possível daquilo que efetivamente "se passa" na prática clínica. Refletir sobre a noção de "pro- cesso", comumente usada hoje em dia, nos oferece esla oportunidade. De fato, se esta noção se tornou corriqueira pa- ra designar as diversas práticas psicoló- gicas, não quer dizer que o seu sentido e as suas implicações sejam realmente claros. É o caso notadamente dos famo- sos "processos de mudança", vocábulo que se alastrou e se impôs para caracte- rizar o conjunto das "intervenções" obje- tivando modificações, seja do comporta- mento, seja de determinadas atitudes ou mesmo da "estrutura da personalidade". Para que não se torne, pois, um chavão impertinente, faz-se mister defini-lo ade- quadamente. Semanticamente, a noção de processo c complexa e implica desdobramentos que merecem a nossa atenção. Deixan- do de lado os aspectos jurídicos ou físi- cos, salientamos, em primeiro lugar, o aspecto dinâmico: processo é algo ativo, algo em marcha, em curso para uma de- terminada meta. Por conseguinte, inclui uma determinada temporalidade, uma du- ração ou um prazo, isto é, uma "su- 137 cessão de estados" que comporta uma conotação evolutiva e, de fato, já algu- ma referencia a mudanças. De acordo com o Aurélio, processo representa "uma sequência de estados de um sistema que se transforma", o que envolve, além das noções de evolução e de mudança, aque- la de um conjunto organizado ("sistema") que sofre alterações dentro de uma certa continuidade. A este conjunto perten- cem fatos que detém uma certa unidade, incrementando fenómenos caracterizados por um certo ritmo, uma regularidade mais ou menos previsível e uma lógica (evolutiva) interna. Um processo não é, pois, um fenóme- no aleatório. Ele obedece a leis que de- terminam sua ocorrência e a regras que presidem o seu desenrolar efetivo. Ele se deixa estimular, desencadear ou dirigir mediante determinados métodos ou téc- nicas — deixa-se pois manipular de fo- ra, embora se desenvolva segundo uma lógica própria, que limita o impacto da manipulação externa. Por conseguinte, sua evolução detém uma certa autono- mia, relativa, c verdade, mas que é pre- ciso respeitar se se quiser atingir mu- danças autênticas — isto é, mudanças que se coadunam intrinsecamente com a natureza íntima do conjunto sistémi- co que sofre a intervenção. Aplicando estas considerações abstra- tas agora ao ser humano, portador dos processos de mudança em pauta, pode- mos dizer, cm primeiro lugar, que o con- junto organizado, que inicia movimentos sequenciais, consiste na unidade bío- psicossocial do homem. Para que uma mudança seja autêntica, essa unidade, portanto, tem que ser respeitada em suas características íntimas, ou seja, antropo- lógicas, no sentido mais amplo. Encon- 138 tramos, assim, mais uma vez a impor- tância da imagem do homem, subjacen- te ao imenso leque de intervenções rea- lizadas sobre o homem; deixamos para a reflexão de cada um estimar até que ponlo estas diversas intervenções respei- tam tanto a complexidade quanto a dig- nidade humanas, provocando aqueles processos de mudança prelensamentc be- néficos para e l e . . . Em seguida, podemos dizer que, no ser humano, a dinâmica dos seus pro- cessos psíquicos (porque podemos tratar apenas destes, e não dos processos bio- lógicos ou sociais, embora interdepen- dentes) pressupõe todo o movimento exis- tencial do conjunto histórico de sua vi- da. Ela está inserida, pois, inevitavelmen- te, entre os pólos ontológico e ônlico de sua existência e participa da transitorie- dade que o caracteriza como ser finito e histórico (v. acima, 5.3.). Isto deverá ser levado em conta quanto ao acompa- nhamento (ou eventualmente à direção) desles processos era psicoterapia. Vere- mos mais adiante as propriedades des- ta transitoriedade nas três fases especí- ficas do seu desenrolar. Fará que haja realmente um processo na psicoterapia, nos sentidos dinâmico,evolutivo c modificador, esta, sustenta- mos, tem que se engajar como relação interpessoal subjeliva. Melhor: esta rela- ção tem que obedecer a certas regras (mínimas) para que se inicie aquele pro- cesso que chamamos (por falta de uma palavra mais adequada) de "curativo". Esmiuçando, chegamos então à con- clusão (óbvia, mas a ser reafirmada com força) de que este processo só será de- sencadeado se: 1.°, se estabelecer uma relação (psicológica) entre os participan- tes que se comunicam; 2°, se esta rela- ção não se limitar a contatos superficiais, como trocas òe informações, amenida- des sociais ou conversa de passatem- po, mas tornando-se realmente "interpes- soal", possibilitando intercâmbios pro- fundos (embora assimétricos); 5,°, se chegar a tocar e mobilizar a subjetivida- de de cada um, propiciando o aflora- mento do material conflituoso subjetivo do paciente e proporcionando atitudes de intervenção adequadas da parte do terapeuta. Sc estas três condições são reunidas — e pode custar muito para se chegar a isto •— então um processo curativo pode iniciar-se. Podemos falar assim de pré-requisitos formais, indispensáveis pa- ra que haja processo de mudança, isto é, para que haja um processo verdadei- ramente psicoterápico que leve a mudan- ças profundas, que provoque alterações incisivas na existência da pessoa, na ma- neira de se enxergar a si mesma, de per- ceber os outros e de descobrir (novos) sentidos de vida. . . De maneira menos formal, podemos afirmar que somente haverá processo psicoterápico, se existir uma disponibili- dade de ambas as parles para trabalha- rem juntas e para se engajarem pessoal- mente, com um máximo de abertura e de sinceridade por parte do paciente, com um máximo de aceitação e de serie- dade profissional por parte do psicote- rapeuta. Embora respeitando os papéis específicos de cada um, esta disponibili- dade básica para se relacionar em pro- fundidade tem que estar presente em am- bos para que se chegue a um acordo e, em seguida, a um contrato. Este acordo, no entanto, é dificulta- do por causa de uma premissa que ra- ramente está preenchida: não basta es- tar disposto a se relacionar, mas tem que se ser também capaz de fazê-lo! E isto, o paciente na maioria das vezes não o é; pelo contrário, é por causa das suas dificuldades em se relacionar com ou- trem, da sua "carência relacional" que procura em geral a ajuda da psicotera- pia. . . Esta capacidade, no entanto, nun- ca falta totalmente, como já frisamos, e se deixa desenvolver, mediante estimula- ções pertinentes por parte do terapeu- ta; a partir de uma disposição básica de se trabalhar (isto é, de se questionar a si mesmo) e de um mínimo de "rcla- cionabilidade", o trabalho (mas talvez não ainda o processo) psicoterápico po- de iniciar-se e pode lentamente crescer, um volume de trocas e qualidade de con- teúdos. Preenchidos, pelo menos parcialmen- te, estes pré-requisilos básicos, é que o acordo pode ser selado, de modo infor- mal, primeiro, e mais formal em segui- da (sob forma de "contrato terapêutico", ver b.2.). Este acordo consiste no con- sentimento mútuo em trabalhar juntos, cada um dando o melhor que puder pa- ra que este trabalho seja bem-sucedido. Este "bem-sucedido", no entanto, refe- re-se aos objetivos a serem alcançados na reta final da terapia; cabe portanto defini-los no interior do acordo que se esboça, para que ambos concordem quan- to ao rumo geral que tomará o trabalho. Este se desenvolverá dentro de um de- terminado campo de realidade, que tem, sem dúvida, uma consistência própria, cspaço-iemporal, mas que não consiste em uma redoma — não deve consistir nisto para não correr o risco de afastar o paciente demasiadamente do seu am- biente habitual. Em suma, para não alie- ná-lo mais ainda, visto que já denota di- 139 fículdfldes específicas cm se relacionar em sua vida cotidiana. Apresentado deste modo, percebe-se que o processo psieolerápico não perten- ce a uma realidade radicalmente "ou- tra", isolada do "resto" da vida do pa- ciente. Ele não visa subtraí-lo dos seus afazeres comuns, oferecendo-lhe um am- biente particularmente aconchegante ou acomodador, nem a prometer-lhe facili- dades nas tarefas de manter <; desenvol- ver os diversos aspectos de sua integra- ção social. O que nele e graças a ele se torna possível, é o auloconjwnto do paciente; aí ele estará protegido das con- sequências nefastas que um tal confron- to poderia acarretar se ocorresse em uma vida comum, mas nem por isso estará vacinado quanío ao sofrimento que ele implica. De fato, se o campo de realidade do processo psicoterápico oferece uma cer- ta proteçào contra invasões alheias, ele não é um campo asseplizado, e muito menos um campo cor-de-rosa, mas pro- priamente um campo de batalhas, a se- rem travadas peio (e contra) o próprio paciente. . . Há processo, de fato, a par- tir do momento em que o acordo entre os dois existe, em que há um entendi- mento recíproco para proceder a este confronto — a partir do momento, pois, em que há disposição para verbalizar "tudo", inclusiva o mais recôndito e o mais subjetivo, e, de oulro lado, em ou- vir tudo, em aceitar todo e qualquer ma- terial proveniente do paciente, sem dis- criminação, sem preconceitos e sem jul- gamentos. Mas se é desta forma que o processo pode iniciar-se, ele consíte em quê? Eis pois a definição do processo psicoterá- pico que estamos devendo: ele consiste no desenvolvimento deste autoconfronto, ritmado segundo as possibilidades do próprio paciente, ou seja, nas sequências dinâmicas do seu trabalho contínuo de se revelar a si mesmo, de se entregar, de se abrir, de se questionar e se esqua- drinhar para chegar à meta geral, aque- la, simultaneamente, de se libertar dos seus conflitos mais íntimos, de se conhe- cer melhor e de melhor se integrar con- sigo mesmo. Parece-nos difícil definir melhor o que "é" o processo psicoterápico. A defini- ção que apresentamos é ampla e descri- tiva, mas baseia-se em todas as nossas re- flexões anteriores acerca da "essência" do trabalho que, nela, idealmente se efe- tua. "Processo", pois, está intimamente ligado a esta noção de "trabalho" que já discutimos repelidas vezes -— o que significa que., na ausência deste traba- lho (na mera "curtição", por exemplo), não se instaura aquele processo pelo qual o material conflituoso 6 tocado e elaborado, segundo encadeamentos pró- prios a cada psicoterapia, naquele "cami- nhar juntos" tão singelo que a torna efetíva e eficiente. Vejamos então o que "se passa" nas diversas fases que se deixam distinguir, esquematicamente, em todas as psicote- rapias. 6.2. A fase inicial do processo psicoterápico Muito se tem escrito sobre a fase inicial da psicolerapia, cm particular so- bre as entrevistas iniciais. Como a lite- ratura sobre entrevistas psicológicas é abundante(l), ressaltamos aqui apenas alguns aspectos que nos parecem rele- 140 vantes quanto à situação clínica de tais entrevistas, aspectos não ou insuficiente- mente abordados nas publicações do gé- nero. Discutiremos três aspectos: a entrevis- ta clínica propriamente dita, a questão do psicodiagnóstico, o contrato terapêu- tico. Um quarto aspecto, capital, aque- le da indicação para psicoterapia, me- rece ao nosso ver um capítulo a parte. Os primeiros contatos entre um psi- coterapeuta e um candidato à psicotera- pia nem sempre têm as características formais de uma entrevista clínica. É pos- sível tratar-se de um encontro ocasional ou meramente informativo. Mas, se o candidato insistir em seus desígnios, eles terão que chegar a uma entrevista mais formal, de caráter exploratório, aprofun- dado e subjetivo. Eís talvez a proprie- dade decisiva para que uma entrevista psicológica possa ser considerada como clinica: que atinja a dimensão subjetiva do candidato (que doravante podemoschamar de paciente), ultrapassando o ní- vel da polidez social ou aquele da obje- tividade, desejável em entrevistas de se- leção ou outras. Eis, evidentemente, a nossa visão da entrevista clínica. Outras abordagens en- fatizam a necessidade de se chegar a um máximo de dados objetivos, recusan- do ou negligenciando os fatores subjeti- vos e a interação entre os atores. Valo- rizar este ou aquele fator, corresponde a uma opção do profissional, realizada cm função do seu credo pessoal. De fato, em toda entrevista deixam-se distinguir três tipos de informação (v. Argelander) (2), sempre presentes, mas cuja utilização depende dos valores e in- teresses do entrevislador. Trata-se de in- formações objetivas, subjetivas e situa- tivas. As informações objetivas relacionam-se com fatos: dados pessoais, biográficos, acontecimentos da história de vida, ca- racterísticas salientes da personalidade etc. Estes dados se deixam comprovar e podem ser estabelecidos com relativa pre- cisão. O reconhecimento, no relato do paciente, de certas constelações de da- dos, repetições, ciclos, periodicidades e conexões, permite determinadas inferên- cias psicológicas. Estas, baseadas na ex- periência clínica e no saber teórico do praticante, correspondem a hipóteses acerca da origem e do sentido da pro- blemática apresentada pelo paciente. Tais indagações evidentemente são plu- rívocas, embora com um grau variável de pertinência lógica, dependente das combinações efetuadas entre os dados (certos) e as inferências (conjecturais). A imagem da personalidade, a afeiçoar a partir das informações objetivas, cons- titui mais uma reconstrução, um "cli- chê" do que uma imagem fiel e perso- nalizada do paciente. As informações subjetivas contidas no relato do enlrevistante referem-se a vi- vências, experiências, recordações e im- pressões subjetivas, sem nenhuma possi- bilidade de comprovação objetiva. Os dados invocados são incertos. O que con- ta são as significações pessoais que o paciente lhes atribui. A categoria de cer- to ou errado é aqui inoperante, uma vez que não existem critérios externos para julgar: o paciente "senle" que tal ou tal evento de sua vida tem para ele tal ou tal significação, e sobre significações pessoais não cabe discutir. Ademais, as significações que as constelações do pas- sado detém para ele fazem precisamente 141 parte da problemátíea pela qual está à procura de uma ajuda e de uma mu- dança; cabe ao processo de terapia pro- mover esta mudança, a ponto de alíerar as significações que atribui a sua vida, mas não cabe ao enirevistador discuti-las. Não se trata, pois, de querer conven- cê-lo quanto a inadequação de sua visão de si mesmo, de sua vida e do mundo — disto ele próprio frequentemente tem consciência, sem que consiga mudá-la. Somente a investigação em conjunto per- mite esclarecer os ponfos conflitantes desta sua visão e a não convergência do objetivo e do subjetivo, da quaí resulta a sua psicopatologia pessoal. Esta é ta- refa não das entrevistas iniciais, mas da psicoterapia a seguir. As informações subjetivas, portanto, não são comprovadas, mas elas são uní- vocas: para o paciente, "é isso aí" que está sentindo (por exemplo, que sua mãe nunca o limou. . .) , c não há dúvida quanto à realidade subjetiva desta sua queixa; porém, eis todo o problema do estatuto desta realidade "interna", ou se- ja, da "realidade psíquiea"(3), entroniza- da por Freud como campo de atuação clínica da psicanálise, mas também da psicoterapia como nós a entendemos. Mais uma vez, pois, a valorização do subjetivo (ou não), das suas significações, desejos e fantasias, decorre da opção pes- soal do profissional — só que não se po- de negar a importância das significações pessoais para o próprio paciente sem que lhe seja feita violência. . . As informações situaiivas são ligadas ao eenário, à situação ambiental, ao con- lexto global da entrevista. Elas contêm poucos dados, são dominadas pela vivên- cia atual, "aqui e agora" e, deste modo, não se podem reproduzir, sendo que ca- 142 da situação de entrevista (ou cada ses- são de terapia) é inevitavelmente única. Para que se possa falar em informações, faz-se necessária sua captação, o que se torna possível através da personalidade do enirevistador, da sua experiência clí- nica e de sua perspicácia quanto às men- sagens infraverbais transmitidas pelo pa- ciente, além ou aquém dos seus propó- sitos explícitos. Tais informações, quan- do perceptíveis, são produto dircto da in- teração que se estabelece, e contém in- dicações valiosas sobre a capacidade re- lacional do paciente. Todavia, tais indicações também não devem ser superestimadas, uma vez que a situação de uma primeira entrevista é altamente constrangedora, podendo sus- citar bloqueios diversos e, por conseguin- te, dificultar a expressão mais livre e es- pontânea do paciente. As Ires fontes de informação são com- plementares e, de fato, indispensáveis se se quer chegar a uma imagem abrangen- te, tanto da pessoa quanto de sua pro- blemática. Quando cias são integradas, a fidedignidade e o valor das informa- ções crescem, permitindo que o entrevis- tador tire conclusões pertinentes quanto ao diagnóstico e à indicação terapêu- tica. Voltando à questão das dificuldades do paciente em se "abrir" e se "entre- gar" nas primeiras entrevistas: insiste-se muito, hoje em dia, sobre a importância da habilidade do entrevistador, de sua empatia, de seu calor humano para aju- dá-lo a superar inibições ou reticências. Este aspecto nos parece bastante relati- vo, representando mais uma duvidosa faea de dois gumes do que um instru- mento realmente eficaz. Sem dúvida, o entrevistante tem que ehegar a superar suas dificuldades, mas não pode ser for- çado, e nem sequer "seduzido", para que consiga isto, A entrevista clínica corresponde a uma situação "livre", on- de os bloqueios do paciente merecem res- peito, tanto quanto as suas verbaliza- ções. Não se trata pois de invadi-lo com o intuito de "ajudá-lo" ao máximo; a ati- tude de uma expectativa prudente é mais adequada, ficando-se à sua disposição, respeitando os seus silêncios e tentando entender os sentidos das difieuldades que apresenta. No entanto, a decisão quanto a uma atitude mais ativa ou mais passiva, mais intervencionista e "ajudante", ou mais de expectativa, dependerá de uma deci- são mais fundamental, teórica e tecnica- mente, a saber, quanto a uma aborda- gem diretiva ou não-diretiva. Este últi- mo termo fez sucesso a partir da divul- gação das ideias de Rogers (4) sobre a importância da "não-diretividade" no tra- to com o cliente (posteriormente trans- formada cm "terapia centrada no clien- te"). Contudo, historicamente (mas tam- bém teoricamente), a não-diretividade im- plica mais, a saber, o afastamento que Freud operou da sugestão e da hipno- se (5), à procura de um instrumento mais eficaz (e mais ético) de intervenção psi- coterápica. Bem antes de Rogers, a não-dirclivida- de correspondia pois à mudança profun- da introduzida por Freud, coincidindo (ver 3.2.) eom a preocupação por uma aiuação psicoterápica científica. Até ho- je, então, a opção pela abordagem di- retiva ou não significa uma opção em termos teóricos, antropológicos e éticos, com conseqiiêneias cruciais para a intera- ção entre psicoterapeuta e paciente — consequências estas que se delineiam já nas entrevistas iniciais, de modo que a linha teórica adotada determina necessa- riamente a condução destas. Em termos gerais, defendemos, por- tanto, a concepção da não-diretividade, como sendo a mais adequada para a atuação do psicólogo clínico na entre- vista. Contudo, existem várias maneiras de praticá-la, em concordância com a personalidade do profissional, com a si- tuação concreta da entrevista (pacifica, agressiva, angustiante...), com a pro- blemática, a idade,a especificidade do paciente e assim por diante. Deste mo- do, não parece possível, nem desejável, estabelecer regras sobre a forma de atuar nas entrevistas iniciais •—• além daquela, fundamental, de estar disposto a ouvir o outro. Como, concretamente, esta dispo- sição se exterioriza, eom maior ou me- nor participação, distãneia, calor ou in- tervenção, cabe a cada profissional de- cidir, sendo que esta sua decisão vai sem dúvida mudar de uma entrevista para ou- tva, mesmo com um arcabouço teórico firmemente estabelecido. Um aspecto particular das dificuldades que enfrenta o paciente nas entrevistas iniciais decorre da questão da confiança. No início, esta raramente é total, mas condicionada pela expectativa geral quan- to à pessoa do psicoterapeuta, quanto à sua competência, sua seriedade ou sua reputação. O crescimento desta confian- ça não pode ser forçado; o terapeuta tem que merecê-la, o que não é uma questão de sedução, nem de empatia, nem de sugestão. Nenhum artefato será capaz de conquistar a confiança de ma- neira duradoura; ela será determinada pela autenticidade da postura do tera- peuta — e esta não se deixa adquirir mediante técnicas de treinamento, de 143 persuasão ou de "relações humanas". Neste sentido, o aprendizado técnico do candidalo a terapeuta encontra limites, estabelecidos pelas características pes- soais necessárias para o exercício destas funções (ver 3.6.). Se é verdade que nin- guém nasce psico terapeuta, não é menos verdade que a autenticidade de sua pos- tura corresponde a uma questão de per- sonalidade que não st; deixa adquirir. Na atitude do entrevistador (ou do te- rapeuta) diante do entrevistante, a dis- posição de aceitá-lo integralmente, de ou- vi-lo e de trabalhar com ele futuramente é fundamental. Idealmente, pois, o clí- nico não deveria operar nenhuma sele- çfio entre os candidatos a terapia. Não deveria ter preferência, preconceitos ou ideias preconcebidas que poderiam en- viesar a sua disposição em aceitar to- dos aqueles que o procuram. Mas um tal ideal de perfeição e de abertura in- condicional não existe: o clínico é um ser humano, com todas as suas falhas e defeitos. Estes nunca se deixam elimi- nar totalmente, mas ele tem que ter cons- ciência deles, tem que se conhecer me- diante o longo processo de sua formação pessoal, e tem que aceitar os próprios li- mites. .. Se é possível treinar esta disponibili- dade, ela encontra limites na fronteira de sua personalidade, ou seja, no ser humano que ele é •— mas estes limites são elásticos, e cabe a ele alargá-los na medida do possível, para que possa real- mente colocar-se à disposição dos pa- cientes que o consultam. No entanto, "colocar-se à disposição do outro" não significa ter que se envol- ver com ele. As nossas reflexões sobre distância e dependência deixaram isto claro. Toda disposição autêntica em 144 aceitar o outro é criadora de uma rela- ção humana autêntica, base, como já vis- lumbramos, de todo processo terapêuti- co verdadeiro. Se há em toda relação troca de afetos e envolvimento afetivo, isto se efetua sempre muito mais do pa- ciente para o terapeuta, sendo que este, para poder dirigir o trabalho dos dois, tem que controlar a sua própria afetivi- dade, mesmo que esta esteja tocada pro- fundamente. Não se traia pois de "mer- gulhar fundo" a dois para que haja um "pleno encontro humano", mas de ga- rantir a assimetria com vistas à inicia- ção de um processo psieoterápico que confronte o paciente consigo mesmo; ao invés de querer implementar gratifica- ções para ambos, a postura do entrevis- tador-terapeuta é responsável pela imple- mentação de condições de possibilidade para um futuro trabalho terapêutico. Uma vez assegurada a disposição bá- sica, faz parte das funções do entrevis- tador, alem de ouvir atentamente —• sem querer fazê-lo demonstrativamente, como para demonstrar que "está dispos- to" a aceitar tudo —- a escuta seletiva, operando a triagem entre os vários tipos de material aos quais já nos referimos. Assim, a discriminação entre o conscien- te c o inconsciente, entre o real e a fan- tasmático, entre o presente e o passado é indispensável para discernir a proble- mática do paciente, em suas vinculações íntimas com sua personalidade c sua his- tória de vida. Se esta escuta deve operar ao longo do processo psieoterápico, ela se reveste de uma importância particular nas en- trevistas iniciais, pois tem que levar o entrevistador a um diagnóstico, um prog- nóstico e uma indicação terapêutica. Para estabelecer o diagnóstico, a inves- tigação da história de vida do paciente é fundamental. Com efeito, é através da ilnamnese, não somente dos seus distúr- bios psicopatológicos, mas do conjunto das suas vivências, que vai ser possível chegar a uma visão abrangente, impor- tante em particular quanto à concatena- çao entre o desenvolvimento histórico do paciente (e dos conflitos que aí se arraigam), e os seus sintomas e queixas. Há várias maneiras de praticar esta anamnesc: sistematicamente, superficial- mente ou dinamicamente adaptada aos relatos do próprio entrevistante. Os três tipos de informação mencionados ofere- cem, juntos, pistas para proceder a esta investigação, em combinações variáveis segundo as atitudes diretivas e não-dirc- tivas do entrevistador. Contudo, mesmo optando prioritariamente pela concepção não-diretiva, a anamnese requer algumas investigações mais diretivas, sobre a com- posição familiar e os antecedentes, por exemplo, se se quer chegar a uma visão razoavelmente completa. Cada entrevis- tador terá que fazer a sua "mistura" pessoal, no que tange às duas atitudes e suas combinações. Dependendo da linha teórica do en- trevistador, o seu diagnóstico será descri- tivo, nosográfico ou estrutural, será ba- seado mais nos sintomas apresentados ou nos conflitos inferidos, ou será mes- mo inexistente... De fato, é possível justificar, median- te certas acrobacias argumentativas, a inexistência de um diagnóstico ao final de uma avaliação inicial, apresentando-o como desnecessário ou supérfluo. Po- rém, ao proceder desta forma, esquece-se da importância de um procedimento ri- goroso, tanto na avaliação diagnostica quanto na condução da psicoterapia a se- guir; esquece-se que para que haja um plano terapêutico possível, precisa-sc de indicações nítidas e de visões, se não cla- ras, pelo menos bem delimitadas; esque- ce-se, afinai, que não existe nenhuma psi- colerapia abrangente, capaz de tratar to- dos os pacientes e todas as problemáti- cas como se dispusesse de uma chave universal, de uma panaceia para todos os males oriundos da soltura da caixa de Pandora. Uma tal crença, além de frisar a irres- ponsabilidade, decorre de uma superes- timação dos próprios poderes, o que mui- to tem a ver com a onipoténeia infan- til, mas pouco com uma atitude madu- ra e reflexiva de discernimento — além de descobrir, muitas vezes, uma falta grosseira de competência clínica. Em nosso entender, pois, o diagnósti- co necessariamente faz parte do pensa- mento clínico, também em psicologia. Não vemos nisto nenhuma contamina- ção pelos ideais médicos, mas uma con- sequência lógica da nossa definição da atividade psicoterápica como pertencen- te ao campo clínico — que ultrapassa as aplicações da medicina, como insisti- mos acima (ver 3.4.). Como concrela- mcnle este diagnóstico se efetua, depen- derá de cada linha teórica e dos crité- rios estabelecidos pelo seu rigor inter- no, razão pela qual não insistimos sobre os diversos procedimentos possíveis. No âmbito da psicologia clínica, este diagnóstico será sempre um psicodiag- nóstico. Todavia, esta palavra tem uma conotação especial, uma vez que se tor- nou sinónimo de "diagnóstico por testes psicológicos"(6). Estes representam hoje uma ampla área de pesquisa e de apli- cação, eslendendo-sc da psicometria aos145 (estes projetivos e às situações lúdicas. De maneira informal, a entrevista inicial faz parle do psicodiagnóstico, visto que consiste na investigação e exploração da problemática e da personalidade do con- suitante, com afenção especial dirigida para a anamnese. Mas, como não recor- re a instrumentos particulares para che- gar aos seus objetivos, não se encaixa nas técnicas formais desenvolvidas a par- tir de pressupostos teóricos próprios. A discussão destas técnicas de exame ou avaliação psicológica ultrapassa nos- sos propósitos. Remetemos à abundante literatura especializada no assunto. Enfatizamos tão-somente que estas téc- nicas, quão válidas que sejam, não ultra- passam o valor de instrumentos auxilia- res na tarefa de investigação clínica. Elas nunca substituem as entrevistas pes- soais, com todos aqueles ingredientes que constituem a sua riqueza humana. Como esta riqueza subjetiva é sempre prejudicada pelas falhas que fazem par- te desta mesma situação, o recurso a técnicas especializadas sem dúvida se justifica — mas eis uma questão pes- soal a ser decidida pelo profissional in- dividualmente. A resposta a esta questão dependerá, mais uma vez, da linha teó- rica adotada, de sua personalidade, dos seus interesses e da situação particular deste ou daquele paciente. Uma coisa, no entanto, nos parece óbvia: com ou sem técnicas psicodiag- nósticas, a avaliação inicial nunca deve- ria desembocar em uma wtulação do pa- ciente. Diagnosticar não consiste em ro- tular, mas numa reflexão sobre a pro- blemática apresentada. Esta reflexão po- derá ser reducionista — embora não o seja necessariamente — mas tem que abarcar, tanto quanto possível, a globa- 146 lídade da existência do paciente, passa- da pelo crivo dos critérios da avaliação clínica. Indicação terapêutica e prognóstico dependerão da pertinência desta refle- xão, assegurada quando baseada em ali- cerces teóricos firmes e solidamente assi- milados. Bstes representam a melhor ga- rantia para que não se chegue a um mero ato de rotulação. Como último elemento da fase inicial do processo psicoterápico, faz-se neces- sário discutir a questão do contrato. Se o acordo entre ambos representa a con- dição sitie t/ua non para que se inicie um processo psicoterápico -— acordo que nunca é puramente intelectual, mas tam- bém afetivo, tocando profundamente a dimensão da identificação —, o contra- to representa a face externa deste enten- dimento mútuo. Ele visa regularizar o trabalho a ser empreendido pelos dois, em uma sintonia que inicialmente já po- de ser grande, mas que precisa de um enquadramento solidamente estabelecido para aturar as tormentas a vir, ou seja, para continuar a servir como base afe- tiva da relação terapêutica. O contrato estipula certas condições do tratamento, as condições mínimas, por assim dizer, espaço-temporais e so- ciais. Toda terapia de fato dcsenvolve- -se dentro de uma determinada tempo- ralidade e dentro de um espaço, físico e afetivo. Determina-se onde a psicotera- pia será efetuada, em que lugar e em que ambiente. Fixar um ambiente físico estável c importante para a familiariza- ção e o crescimento da confiança do pa- ciente, uma vez que é vivido como uma extensão do próprio corpo. Neste senti- do, representa um importante elo de liga- ção afetiva entre o terapeuta c o pa- ciente. A sua estabilidade é fundamental pa- ra o aprofundamento do processo; cada mudança de lugar, ou mesmo de cená- rio, de decoração, da disposição dos mó- veis, pode induzir reações contraprodu- centes por parte do paciente. Tais rea- ções (por exemplo, sob forma de atua- ções) sem dúvida se deixam trabalhar, mas podem atrasar o desenvolvimento do processo, ou servir de pretexto para regredir, para justificar reticências parti- culares e assim por diante. Em casos mais graves, mudanças do espaço físico são vividas como perdas importantes ou como mutilações do pró- prio corpo. De fato, o espaço físico nun- ca é "neutro", mas toca sempre a ima- gem inconsciente do corpo c, como pro- longamento, determinadas fantasias con- dicionadas por esta. Para não estimular tais fantasias — que sempre envolvem também o corpo do terapeuta — é im- portante que o espaço físico não seja de- masiadamente aconchegante: ele tem que sè-lo suficientemente para o paciente po- der sentir-se à vontade, graças a um am- biente discreto e acolhedor, mas não de- ve querer oferecer conforto ou luxo que faça esquecer a exigência de trabalho, em proveito de "curtições" regressivas quaisquer, O segundo fator a ser determinado tange ao aspecto temporal. Podemos dis- tinguir uma micro e uma macrotempo- ralidade. A primeira diz respeito à fixa- ção das sessões: horário, duração, inter- valos, frequência. Determinar estas mo- dalidades, de fato, é uma banalidade, mas detêm significações importantes pa- ra o paciente prestes a iniciar a sua te- rapia. Este início comporta algo de an- gustiante para ele, inevitavelmente, uma vez que não sabe o que vai acontecer, qual o procedimento, as "normas" do "fa- zer psicoterapia"; não sabe, em suma, o que "se passa" nas sessões que o es- peram. Fixar horários contribui, junto com a garantia do ambiente físico estável, pa- ra diminuir esta angústia, criando-se as- sim um continente espaco-temporal se- guro e delimitador. De chofre, as ses- sões transformar-se-ão em algo mais fa- miliar, algo "seu" de que poderá se apro- priar progressivamente. Por outro lado, fixar a duração das sessões de psicotera- pia — da maneira mais flexível possível — as insere no campo da realidade, coti- diana do paciente: ele sabe que depois de meia hora ou hora inteira, voltará aos seus afazeres comuns, que não ficará "preso", nem será totalmente entregue aos cuidados do psicoterapeuta, com to- das as fantasias que esta entrega pode comportar. A continuidade com a sua vida habitual será pois assegurada, as fantasias de ser entregue aos poderes ocultos de um ícrapeuta-curandeiro con- tidas. . . Simultaneamente, pela fixação da frequência das sessões, será definido o ritmo do trabalho a empreender, esta- belecendo aquela continuidade intermi- tente da qual o processo terapêutico de- pende para deslanchar. A definição da macrotemporalidade coloca outros problemas, ligados mais aos objetivos da psicoterapia. Fies dizem respeito ã duração global da terapia a iniciar, questão à qual ninguém pode responder com precisão. Com exceção da terapia breve, o termino da ação tera- pêutica não pode ser previsto, nem pelo mais experiente psieoterapeuta. Se a per- gunta do paciente sobre a duração de 147 sua terapia c compreensível, ela não se deixa responder (a não ser aproximada- mente: dois a três anos, por exemplo) e tem que ser devolvida para ele, como símbolo do risco que tem que correr entranhando-se em psicoterapia. Como esta não deixa de corresponder a uma certa aventura, o final não se deixa pre- ver, nem quanto à data, nem quanto à configuração que a existência da pessoa passará a adotar naquela altura. Esta indefinição da duração pode as- sustar o paciente. Cabe tranquilizá-lo a respeito da continuidade da sua vida ha- bitual ao longo do processo terapêutico: este não fará parar sua vida, não repre- senta um período morto em sua trajetó- ria existencial e nem um desperdício quanto ao tempo global de sua existên- cia. É muito importante, pois, que o vín- culo com a sua realidade cotidiiina seja mantido. Só paulatinamente o processo psicoterápico introduzirá mudanças nes- ta sua realidade, muitas vezes até imper- ceptíveis "a olho nu", sendo elas mais senlidas do que observáveis. Recusando-se a responder à pergunla da duração do tratamento, o psicotera- peuta recusa-se também a endossar a po- sição de um saber universal ou mágico que o outro lhe atribui. Querer respon- der com exatidão sobre a duração, sig- nificaria postular-secomo vidente, o que pode ser uma tentação, mas que tem que ser evilada, aceitando-se (e enfatizan- do-o diante do paciente) os limites do exercício da profissão, em oposição a qualquer pretensão de paranormalidade. No contrato, devem ser disculidos mais alguns fatores, de cunho mais social ou de conveniências. Assim a questão das ferias, das interrupções eventuais da te- rapia, das faltas, voluntárias ou involun- tárias, e das possibilidades de reposição. Isto tem a ver com o pagamento, ques- tão de alta relevância para o profissio- nal, mas que faz sofrer o paciente; nem por isso deve ser omitida. Cabe discutir abertamente o pagamento das sessões, tanlo o preço quanto as modalidades, para evitar dúvidas futuras, mas tam- bém para situar o assunto desde o início com clareza, impossibilitando (ou pelo menos dificultando) qualquer manipula- ção futura. O princípio fundamental a ser respei- tado na fixação do pagamento é que a psicoterapia tem que custar algo ao pa- ciente. Como qualquer outra situação de serviço profissional, ela implica uma treca entre alguém que dá e outro que recebe. Que a situação psicoterápica se- ja específica quanto ao conteúdo do ma- terial inlercambiado, não muda nada neste princípio, mesmo se encontramos sérias dificuldades em definir o que, de fato, é dado e recebido. Enquanto rela- ção interpessoal subjetiva, as trocas efe- tuadas têm a ver com material afetivo íntimo, mas c precisamente o pagamen- to que a distingue da relação amorosa. Ouírossim, a retribuição paga, além de caracterizar a relação profissional de trabalho, tem ainda o significado de ate- nuar a dependência do paciente, de lhe permitir desvendar mais facilmente sua problemática pessoal c de diminuir seu sentimento de culpa — sempre presen- te —- de receber atenção e afeto sem o merecer. A psicoterapia tem que custar algo, também para que seja valorizada pelo próprio pacienlc. Porém, este argumen- to, se é válido, tem que ser relatrvi- zado. Ele não significa que a terapia tenha que custar necessariamente muito caro, como entendem alguns. O que de- termina os preços que o psic o terapeuta cobra dos seus pacientes, deve ter a ver com o sen senso de responsabilidade so- cial e com a sua ética, e não com uma exigência, construída artificialmente, se- gundo a qual a terapia "tem que custar caro". Em nosso entender, pois, o psico- lerapeuta deve levar em conta as possibi- lidades financeiras dos candidatos à psi- coterapia, isto é, deve cobrar honorários de maneira flexível. Dentro de certos li- mites (uma vez que ele tem que viver do seu trabalho), é necessário que se adapte às dificuldades reais dos pacien- tes — sem evidentemente cair no outro extremo, aquele de oferecer seus serviços gratuitamente ou de se deixar manipu- lar ou chantagear pelos seus pacientes. Dentro do conjunto da realidade so- cial, o mundo da psicoterapia constitui uma parcela muito pequena. Não se po- de esperar dos seus representantes uma revolução desta realidade, mas achamos que o idea! da acessibilidade da psico- íerapia a todos deve ser manfido, apesar de todas as práticas que se inscrevem contra este ideal. Pelo menos o psicoterapeuta deve ter consciência dos problemas que o cer- cam, para não afastar toda c qualquer problemática social dos seus pacientes, como se fossem meros pretextos ou ela- borações fantasmáticas: nem tudo é mun- do interno; o mundo externo existe e faz sentir a sua presença de maneira vi- rulenta, a ponio de impedir muitos can- didatos de realizarem sua vontade de in- gressar em psicoterapia. O processo psicoterápico, dissemos acima, implica um certo sofrimento, do qual o pagamento evidentemente faz par- te. Pelo alo de pagar, quitamos as dívi- das contratadas com os outros — a co- meçar pelos pais, representados, eles tam- bém, pela figura do terapeuta. Pagar, portanto, significa não receber de mãos vazias, mas retribuir as dádivas da vida inteira e inscrevê-las no rol das antece- dências assumidas. Porém, o sofrimento ultrapassa, é cla- ro, o ato cie pagar. Angústias, medos e pânicos mais profundos assaltam o pa- ciente no decorrer do processo psicoterá- pico. Isto é inevitável se se quer apro- fundar a sua problemática e tocar nos seus conflitos íntimos. Mas ele tem que ser preparado para isto, tem que saber que não é uma sinecura que o espera, que os sintomas possam, inicialmente, aumentar em intensidade (como podem fambém, pelo contrário, desaparecer), que o processo será flutuante, com altos e baixos imprevisíveis, e que não se dis- põe de uma receita tranquila quanto a um prosseguimento "normal". A extensão desta preparação — que faz parte da fase inicial e do contrato — varia de um para outro, mas ela deve corresponder a certas exigências míni- mas para assegurar a entrada no pro- cesso. Faz parte deste preparo a instru- ção para o trabalho a iniciar, necessá- ria — aqui também em termos mínimos — para que o paciente saiba como si- tuar-se na terapia, o que fazer — seja tão-somente naquele sentido cio "dizer tudo e fazer nada" a que já nos referi- mos. Como o conteúdo destas instruções é determinado pela orientação teórica de cada praticante e pelas técnicas que esta condiciona, desistimos de apresentá-las aqui em detalhes. 148 6.3. A fase de trabalho A fase de trabalho, ou fase interme- diária, representa a fase do processo pro- priamente dito. Aí se desenvolvem as interações psicológicas que se organizam em um conjunto dinâmico de investiga- ção, de elucidação, de recordação e de "perlaboração", com vistas ao reconhe- cimento e à resolução dos conflitos ínti- mos do paciente (no caso de uma psico- terapia descobridora). Mesmo partindo dos sintomas, no iní- cio do processo ou nas sessões cotidia- nas, o objetivo será sempre de cingir as razões destes sintomas, ou seja, os seus determinantes inconscientes. Mas islo le- va tempo, porque numerosos obstáculos opõem-se à aproximação dos núcleos conflituosos, tanto as famosas "resistên- cias" do paciente quanto os diversos mecanismos de defesa que o protegem. Não entramos em discussão detalhada destes mecanismos e resistências (7). Am- bos são "normais" e se manifestam em todas as relações terapêuticas, nutridos, em parte, pelas concepções antropológi- cas arcaicas que referimos no primeiro capítulo. A proteção que eles asseguram à pessoa, c, de fato, ambígua: eles a protegem contra a interferência do ma- terial conflituoso em sua vida cons- ciente e, simultaneamente, protegem tam- bém diretamente estes conflitos para que não sejam revelados ou tocados. Eis, em suma, a função da resistên- cia no processo psicoterápico: opor-se a mudanças que poderiam colocar em xe- que o precário equilíbrio conseguido através de compromissos entre as ins- tâncias que se incompatibilizam. Se c por causa da precariedade deste equilí- brio que a pessoa procura ajuda pela 150 terapia, ela também está temerosa quan- to às incidências dos desvelarncntos, paulatinamente realizados, sobre seu equilíbrio instável. Cabe ao psicotera- peuta e ao enquadramento da situação terapêutica oferecer uma segurança afe- tiva suficiente para superar estes temo- res e resistências, sem, no entanto, cair no extremo de um aconchego que eli- mine os sofrimentos psíquicos •— e as motivações para mudar — mediante gra- tificações tranquilizadoras. Estas, sem dúvida, podem fortalecer o equilíbrio preexistente, mas impedirão mudanças mais profundas e mais radicais; impe- dem, em suma, a procura persistente de um novo equilíbrio. Falamos acima de "perlaboração", neologismo criado por Freud para desig- nar o trabalho incessante e repetitivo da travessia do material conflitante (8). Se esta noção se aplica mais especificamen- te à psicanálise, ela serve também para designar o amplo trabalho de elaboração do material subjetivo que caracteriza a fase processuaida psicoterapia. Em psicoterapia, esta elaboração pro- cessa-se de modo diferente daquela da psicanálise, mas algumas semelhanças merecem ser assinaladas. Em ambos os empreendimentos, efetua-se um determi- nado trabalho psíquico, como já vimos várias vezes. Sem este trabalho, não ha- verá eficácia terapêutica em profundida- de, isto é, não se irá além de melhoras sintomáticas. Tampouco haverá cessação das repetições, neuróticas ou compulsi- vas, que esterilizam a vida do paciente. Mas esta eficácia somente surgirá se o trabalho se inscreve na relação psicote- rápica, seja esta definida como transfe- rência, em psicanálise, seja como relação interpessoal subjetiva, em psicoterapia. Em outras palavras, a perlaboração pres- supõe as inleraçõcs no interior desta re- lação: ela não se pratica sozinha, em- bora subentenda funções e papéis bem definidos para ambos os atores. Assim, é o paciente que "trabalha" a sua própria problemática para, com o tempo, chegar a esvaziar a insistência repetitiva das formações oriundas dos seus conflitos inconscientes. Se o psico- terapeuta participa deste trabalho, cie o faz de maneira indircta, utilizando cer- tos recursos para incansavelmente relan- çar o paciente cm sua tarefa de autu-en- frentamento e desvelamcnto. Entre estes recursos, cabe citar a in- terpretação, arma capital — tanto em psicanálise quanto em psicolerapia — para superar as resistências c para pro- vocar o confronto do paciente consigo mesmo. Em um sentido estrito, a perla- boração seria então a tarefa específica do paciente, em seguida a uma interpre- tação pertinente, tenha esta sido aceita ou recusada: em ambos os casos, ela suscita resistências, a serem elaboradas, para que o efeito da intervenção ultra- passe a aceitação intelectual ou a recusa defensiva. Voltaremos à especificidade da inter- pretação mais adiante. Queremos discutir aqui algumas junções do psicoierapeuta que se relacionam diretamente com o processo e a perlaboração. Em primeiro lugar, cabe a ele dirigir este processo. Isto não quer dizer dirigir o paciente, mas o trabalho efetuado pelos dois. Pa- ra isto, ele tem que controlar a distância para que seja adequada ao trabalho; tem que ficar vigilante para que a depen- dência do paciente não atrapalhe dema- siadamente o prosseguimento do mesmo; tem que aumentar o apoio, por uma pre- sença mais afetiva ou mais aliva, quando o outro atravessa fases mais difíceis; tem que assegurá-lo quanto ao sentido do trabalho, quanto à necessidade de ter paciência consigo mesmo ou com o an- damento da própria terapia. Desta forma, sua direção, firme, se- gura c flexível ao mesmo tempo, tem que controlar todos os parâmetros que intervêm no processo e dos quais o pa- ciente não tem consciência, ou não a tem inteiramente. Esta tarefa é com- plexa, e é grande a responsabilidade do terapeuta pelo andamento do processo. Ele tem que fazer o possível para que este "ande para a frente", manejando os diversos parâmetros, na medida em que se apresentem e que determinadas intervenções se tornem necessárias. Porém, se ele é responsável, não quer dizer que seja onipotente para conseguir, em todas as situações, garantir o pros- seguimento. No trabalho clínico, nem to- dos os parâmetros se deixam controlar, e muitas vezes as situações são tão adver- sas que mesmo o terapeuta mais expe- rimentado vem a falhar. Portanto, ele tem que tentar dirigir este trabalho da melhor maneira pos- sível. Mas tem que saber também, de antemão e com humildade, que não exis- te certeza de conseguir cumprir esta sua tarefa. Contingências múltiplas interfe- rem e a dificultam, razão pela qual sua cautela é essencial para que não superes- time seus próprios recursos — o que poderá aumentar estas dificuldades mais ainda, pela sua própria cegueira diante delas. As noções de direção e de controle do processo psicoterápico são, portanto, bastante relativas. Em particular, elas nada têm a ver com direlividade ou con- 151 trolc no sentido de manipulação de de- terminadas variáveis, segundo os proce- dimentos das técnicas comportamentais. De fato, trata-se mais de uma questão ética do que técnica, a saber, aquela da responsabilidade profissional quanto à condução do tratamento. Se o psicote- rapeuta não é onipotente para condu- zi-lo de modo perfeito, cie tem que saber, por outro lado, que pode errar, que existem erros e falhas graves pelos quais tem que se responsabilizar — e que é preciso prevenir, na medida do possível, por um senso agudo de autocrítica e de permanente avaliação da própria condu- ta. A supervisão por colegas mais expe- rimentados é imprescindível para dimi- nuir ao máximo tais falhas humanas e, se ocorreram, para tirar lições delas para o futuro. Uma outra função a ser preenchida pelo terapeuta na fase u*e trabalho, já foi chamada de "função de espelho", A expressão não nos parece muito feliz, uma vez que evoca o narcisismo e a re- lação imaginária enganosa. Não é disto que se trafa nesta função, embora toque à dimensão da identificação. Porém, o paciente não tem que se identificar com o psicoterapeuta — querer induzir isto seria uma pesada falha ética, pelo fato de assim se apresentar ao outro como modelo. O sentido é muito mais de o paciente conseguir se identificar consigo mesmo através da presença do terapeu- ta, que funciona então como um espelho refletindo a imagem do primeiro. A presença refletora do profissional deve permitir que o paciente possa re- fletir sobre si mesmo, adquirindo assim, aos poucos, no desenrolar do processo — que sempre também é um processo identificatório —, maior consistência e uma configuração própria na qual ele mesmo possa confiar. Reconhecendo 1 figura do psicoterapeula como sendo confiável, segura c estável, ele conseguirá se reconhecer e conler a sua desorien- lação, suas angústias, temores c inse- guranças. Esla função, portanto, muito tem a ver com uma função de apoio (identifi- catório). Mas ela intervém em todas as relações psicológicas, não somente na relação de apoio. Nesta, ela se torna es- sencial para confortar o paciente em suas dificuldades particulares; nas outras relações, ela representa a base da inte- ração de confiança enírc os dois atores, enquanto dimensão humana comparti- lhada pelos dois. Ela se consiitui, pois, na mola mestra do processo, c é a con- dição sine qua non para que se efetue um trabalho psíquico entre ambos. A função explicativa tem que intervir quando surgem determinados obstáculos no processo, de cunho bem real. Esta função difere fundamentalmente daquela da interpretação, porque não visa con- teúdos inconscientes, mas situações con- cretas que se levantam como empecilhos para o prosseguimento do trabalho. Ex- plicar certos funcionamentos, certos pragmatismos importantes para a vida social, familiar ou profissional, não sig- nifica, no entanto, abandonar a reserva terapêutica e ingerir-sc nos afazeres do paciente; ou melhor, pode significar isto, mas não necessariamente, dependendo da sutileza da explicação e do caráler im- positivo, "catedrático" ou não, cia inter- venção. Se a explicação faz parte do processo terapêutico, ela deve inserir-se como uma parte deste percurso, sem a pretensão de um alcance totalízante (e muito menos totalitário), mas visando um ponto limi- Indo, cuja compreensão escapa ao pa- ciente. Levantado o obstáculo — que, de fato, pode referir-se tanto à própria terapia quanto à realidade externa —, cabe novamente deixar espaço para ou- tras funções, ligadas a atitudes mais re- servadas, mais de expectativa e menos de intervenção. Isto significa que "ordinariamente", o terapeuta não se situa em uma posição de saber, não intervém afirmativamente, não é assertivo em suas colocações, mas antes de tudo indagativo: questionando o paciente a respeito do material mais diverso que levanta,o primeiro tem que operar indagações sulis que levem o outro a so questionar a si mesmo, a se perscrutar, ou, melhor ainda, a se tocar em seus pontos nevrálgicos, colocando assim em movimento novo material as- sociativo c aproximando-se mais um pou- co dos seus conflitos pessoais. Percebe-se pois que a intervenção ex- plicativa deve ser uma exceção; senão, ela corre o risco de fixar o psicotera- peula em uma posição de saber (mais ou menos imperativo), que pode ser con- fortável para ele (ou para ambos), mas que corre o risco de paralisar o pro- cesso. Uma quarta função geral, presente ao longo da fase de trabalho, refere-se às decisões a serem tomadas pelo respon- sável pela direção tío tratamento. Isto, mais uma vez, nada tem a ver com dirc- tividade. A função de decisão participa de todas as intervenções: cm qualquer momento, a respeito de qualquer tipo de intervenção, o psicoterapeuta tem que decidir, em seu foro íntimo, o que vai fazer e como vai fazê-lo. Pode decidir- -se a ficar calado, a falar isso ou aquilo. a indagar, perguntar, interpretar, expli- car, cortar. .. Em oulras palavras, em qualquer momento ele tem. que saber o que está fazendo, e tem que se respon- sabilizar pelo que está fazendo. Os momentos decisórios permeiam, pois, o processo em permanência. Mas eles se tornam mais cruciais na medida em que abordam questões de relevo, co- mo o corte da sessão, propostas de mu- dança de ritmo, de frequência, de ho- norário ou até de tipo de terapia (pas- sando, por exemplo, para uma terapia de apoio ou, ao contrário, para uma psicoterapia mais descobridora). Quanto a intervenções interpretativas, é de suma importância julgar a sua opor- tunidade, julgamento que somente o próprio psicoterapeuta poderá fazer. As- sim sendo, ele está totalmente só nesta sua responsabilidade decisória: ninguém pode ajudá-lo ou substituí-lo, e a nin- guém ele pode recorrer (a não ser a pos- teriori, na supervisão, para prestar con- ta de sua decisão). Esta solidão no tocante às decisões a serem tomadas pode tornar-se uma tor- tura, em particular para o iniciante, ou quando problemas pessoais o afligem (por exemplo, após entrada prematura, despreparada, no exercício da profissão). Ela toca ao âmago da dificuldade de ser psicoterapeuta, por causa da responsabi- lidade intransferível que marca suas atua- ções, mesmo em seus aspectos mais roti- neiros. A entrada na rotina pode aplacar o que esta responsabilidade tem de tor- turante — mas a rotina não deve trans- formar-se em um refúgio defensivo para suportar inquietações inerentes à profis- são. Estas nunca se deixam totalmente eliminar, fazendo parte da dignidade hu- 152 153 mana do seu trabalho, da sua alteza e dos seus limites. Na fase de processo, o trabalho que visa à elucidação do material inconscien- te conflituoso pode proceder de duas for- mas (9). Ele pode desenvolver-se dentro de uma abordagem históríco-genélica, com o propósito de reconstruir a cons- tituição histórica dos conflitos e dos sin- tomas subsequentes. Passo a passo, pre- tende-se assim seguir fielmente a trama das dificuldades cía pessoa, com todas as suas ramificações, até chegar àque- les momentos iniciais, traumáticos ou não, que podem ser considerados como responsáveis pela evolução psicopatoló- gica posterior. Nesta reconstituíçao, os eventos reais, oriundos da realidade ex- terna, observável, são investigados e ava- liados quanto ao seu impacto na vida psíquica c relacional do paciente, para que, rememorados através do processo psicoterápico, possam ser remanejados, perdendo então o seu poder patogènico. A abordagem estrutural segue um ca- minho diferente. Não dá muito valor à realidade externa c à sequência dos even- tos reais, mas atém-se à realidade psí- quica do sujeito. Tenta discernir aí as formações relativas dos acontecimentos esternos, as elaborações defensivas, os desejos, fantasias, reivindicações e ex- peclativas que cercam os conflitos e pro- duzem os sintomas. Tenta ver, pois, co- mo a pessoa se situa hoje diante dos seus próprios conflitos, constituídos his- toricamente, mas permanentemente atua- jizados em sua vida fantasmática. Desta forma, prefende-se levá-la a mu- dar seu posicionamento diante dos con- flitos antigos, mediante o cíesvelamcnto das fantasias implicadas. O trabalho 154 aplicar-se-á portanto aos desejos incons- cientes, aos benefícios alcançados e aos movimentos defensivos, para, desta for- ma, induzir mudanças profundas nas constelações intrapsíquicas do sujeito. Em ambas as abordagens — na maio- ria das vezes a serem combinadas entre si — o importante é que os conflitos, inconscientes ou não, recebam novas significações para o paciente. Através do trabalho contínuo, ou seja, da perlabo- ração, ele desenvolverá melhores condi- ções para perceber certas ligações entre materiais psíquicos dispersos; persislin- do em seu autoconfronto, ele chegará a visões mais do conjunto do que parciais, e poderá assim, aos poucos, superar as divisões de sua realidade interna em compartimentos estanques. A meta essencial do processo psicofe- rápico, pois, é restabelecer a comunica- ção interna, reconstituir as ligações inter- rompidas entre as parcelas conflitantes, eliminar estes compartimentos artificiais e alienantes e abrandar assim o seu im- pacto patogènico na vida concreta do paciente. Se este conseguir atribuir no- vas significações, pessoalmente elabora- das e assumidas, a "pedaços" anterior- mente isolados de sua personalidade, cie poderá se reestruturar c se libertar das suas calcificações patológicas — o que constitui o objetivo mais amplo da psi- coterapia. Esperamos ter transmitido uma ideia, senão clara, pelo menos aproximativa do processo psicoterápico e da obra que se efetua, idealmente, na fase do trabalho. Na medida em que este alcança êxito, aproxima-se da fase final da terapia, que discutiremos a seguir quanto às suas in- cidências práticas, clínicas e teóricas. 6.4. A fase final do processo psicoterápico O fim da psicoterapia faz parte inte- grante do seu procedimento e está pre- sente, como ideia e como fantasia, des- de os primeiros contatos. Como já vi- mos, a perspectiva do término da rela- ção interpessoal subjeliva a diferencia de outras relações subjetivas, como aque- las de amor e de amizade. Ela represen- ta um objetivo a atingir que define todo o desenrolar e marca todas as interações entre ambos os atores: quão profundas sejam, estas sempre terão matizes de pro- visoriedade, sendo a sua transiloriedade inscrita no próprio projeto que lhes deu origem. Isto não é o caso de outras relações psicológicas, como aquelas de manuten- ção ou de certas terapias de apoio, inde- finidas quanto à duração. Estas, eviden- temente, também serão confrontadas com limites, mas eles serão mais flexí- veis, visto que a separação final não es- tá nitidamente explicitada como um dos objetivos do trabalho em conjunto. O sentido destas relações c outro, o que produz repercussões na profundidade e na intensidade das interações — mais superficiais e muito menos subjetivas •— e nas posturas respectivas. Desta forma, o curso do trabalho será muito diferente e com ele a temporalidade na qual mer- gulha o processo, isento da referência direta ao nosso ser-para-a-morte, ou se- ja, da referência a mortalidade e à fini- tude como fazendo parte das represen- tações-metas diretas da psicoterapia pro- priamente dita. Isto significa que nesta, a fase final tem conotações sombrias, vinculadas a evocação, inevitavelmente, não somente do fim da terapia, mas do fim da vida. A separação da terapia, isto é, da figura do psicoterapeuta, prefigura, pois, quer queira quer não, a separação final. A este respeito, fais-sc com muita perti- nência de um trabalho de luto, necessá- rio para elaborar a perda que constitui o rompimento com oterapeuta. Este trabalho de luto — noção introduzida por Freud, que o opõe ao processo me- lancólico IÍO) — com certeza se pro- longa depois da psicoterapia; para que seja bem-sucedido, para que a perda se- ja elaborada de tal maneira que o (ex)- paciente consiga desligar-se do seu ape- go ao terapeuta, desfazendo o seu in- vestimento libidinal a ponto de tornar- -se capaz de investir em novos "obje- tos" de valor e de amor — para isto, pois, a separação tem que ser prepara- da, o que é precisamente a tarefa da fase final da terapia. Mesmo presente desde o início, a pers- pectiva da separação c sempre inquie- tante, podendo atingir certos paroxismos, dependendo da fase e da temática do trabalho empreendido; mais uma deter- minada fase é regressiva, mais a ideia da separação transforma-se em espectro de abandono, cujo veneno o psicotera- peuta tem que saber destilar. Se a an- gústia do paciente chega a um tal clímax, evocando, por exemplo, experiências de abandono infantil, cabe ao terapeuta as- segurá-lo quanto ao prosseguimento do trabalho, quanto à permanência e esta- bilidade do vínculo entre os dois c quanto à sua "fidelidade" —• sem nunca perder de vista, nem para ele, nem em suas intervenções, que o término da re- lação é pautado como elemento essen- cial e que não adianta "fazer como se" esta fosse eterna. 155 Em outras palavras, a questão da se- paração é delicada e exige um manejo de muita sensibilidade, mas também de muita firmeza por parte do psieotera- peuta. Eie representa o guardião da me- ta que norteou o início do processo e da qual não deve se desgarrar nos mean- dros da perlaboração que constitui a sua trama; a ideia do fim da terapia e da separação apresenta-se, pois, como o fio vermelho ao longo do qual o processo se desenvolve, com toda aquela dinâmi- ca específica que caracteriza a proble- mática subjeliva do paciente. Se este processo é às vezes altamente angustiante, o terapeuta não pode se deixar coniaminar pelas aflições da pes- soa que se confiou a ele —- não para ficar juntos "mima boa", com a fantasia de um vínculo perene, vacina antiaban- dônica para sempre, mas para que con- duza àquele trabalho libertador que o paciente almeja, mas ao qual também resiste, e que implica a separação como pedra de toque da autonomia conquis- tada. O ideal a atingir é que ambos con- cordem quanto ao prazo final. Esla con- cordância, no entanto, raramente será unívoca; muitas vezes, o psicoterapeuta tem que exercer uma certa pressão pa- ra que a ideia de terminar a terapia faça o seu caminho, seja elaborada e final- mente aceita. Ocorre então, com frequên- cia, que a fase final reproduz o con- junto do processo já percorrido, reven- do-se o principal material que fez a sua trama com o propósito de chegar Q uma "síniese final". Mas esta não deve ser a proposta do terapeuta: o desejo de uma síntese (asseguradora da futura estabi- lidade. . .) é compreensível, mas cabe ao próprio paciente tentá-la, em confor- 156 midade com a sua procura de um des- fecho global. O psicoterapeuta sabe que esta sín- tese nunca será total, que ela é propria- mente impossível, pe!o falo de não ha- ver terapia completamente terminada. O material subjelivo, íntimo, é inesgotável. Ele fará parte da vida do paciente tam- bém depois cio término da terapia, e cabe a ele continuar a elaborá-lo permanen- temente, embora sem a presença do ou- tro. Toda síntese, pois, será sempre pro- visória e incompleta... Acontece lambem com alguma fre- quência que, na fase final, os sinlomas passam por uma recrudescência. Não há nada nisto para se assustar: representa apenas uma das manifestações do medo e da apreensão do paciente diante da perspectiva de encerrar a sua terapia (ou ainda, de continuá-la doravante sozi- nho.. .) . Trabalhar esta apreensão e a falta de confiança em si mesmo que ela demonstra, faz parte da fase final. De fato, D aumento dos sinlomas, em intensidade ou frequência, ou até o sur- gimento de sinlomas novos, devem ser entendidos como expressão de um recuo, de uma revolta diante do encerramento iminente da terapia. A recrudescência de sintomas simboliza então a recusa da separação e a regressão defensiva dian- te da perspectiva, ressentida como amea- çadora, cie perder o vínculo afelivo com o ajudante — cuja relativização muitas vezes não foi suficíentemeníe praiicada para que se consiga cogitar uma vida sem a assistência dele. Nestes casos, a fase final poderá pro- longar-se bastante. A aceitação da sepa- ração não pode ser forçada; ela tem que ser conquistada pelo próprio paciente. Mas para chegar lá, ele tem que traba- lhar consigo mesmo, o terapeuta exer- cendo a sua pressão interpretativa (mas não persuasiva) para facilitar este tra- balho. Se a fase de perlaboração foi pro- funda o suficiente, isto é, se se chegou realmente perto da fase final, então a recrudescência dos sintomas se deixa aproveitar para efetuar uma "revisão geral" com vistas ao encerramento do trabalho. O luto sem dúvida é doloroso e angustiante, mas ele faz parte, inte- gralmcme, deste mesmo trabalho, e sòb nenhum pretexto se deixa escamotear. Isto significaria renegar os princípios que o guiaram, significaria abdicar da posição de terapeuta, ou ainda, não con- fiar no trabalho realizado... Uma outra situação apresenta-se com menor frequência, a saber: o paciente insiste para terminar a sua terapia ape- sar da opinião contrária do terapeuta. Aí, este tem que fazer jogo limpo e dizer as razões pelas quais acha o en- cerramento prematuro. Contudo, não deve querer persuadir ou mesmo forçar o outro a permanecer em terapia; se este quer demonstrar a sua auto-suficiêneia, pondo a suposta autonomia adquirida à prova, ele tem que poder fazê-lo, em- bora informado sobre o eventual preço a pagar. É esta informação que o terapeuta tem que transmitir, mas respeitando as decisões do primeiro. De qualquer for- ma, tais divergências fazem parte da fa- se final e se deixam trabalhar, na maio- ria dos casos; em particular, cabe pro- mover a conscienlização do paciente, quanto a atitudes de auto-afirmaçao ou de desafio pelas quais pode tentar bar- rar o confronto com um material sub- jetivo particularmente penoso ou resis- tente; superadas tais barreiras, o cami- nho para a verdadeira fase final será mais livre. Pode acontecer que a interrupção da psicoterapia seja forçada por razões ex- ternas: mudanças na vida do paciente, viagens, dificuldades económicas, pres- sões diversas. . . Nestes casos, estas ra- zões devem ser questionadas, nas ses- sões restantes, quanto a sua objetivida- de; elas podem funcionar mais como pretextos para fugir da terapia, mas po- dem também ser verdadeiras. Em ambos os casos, esta elaboração final apressada terá como função transmitir ao pacien- te, através deste questionamento, certas reflexões para que o acompanhem como um víático, seja para confortá-lo a res- peito da separação sofrida, seja para que continue a se interrogar ele mesmo so- bre as razões de sua partida. Em casos de razões de força maior, o apoio efetivo e a maior proximidade do terapeuta de- verão tentar compensar a perda a sofrer, não no sentido de suprimi-la, mas de torná-la mais tolerável. Cabe discutir uma última eventuali- dade, rara, mas que ocorre: a situação onde o próprio psicoterapeuta se opõe ao término, apesar de se ter percorrido todo o caminho da perlaboração e o pro- cesso ter madurado o suficiente para en- cerrar-se. Sem dúvida, o fim de uma te- rapia sempre é unia perda para ambos, mas é claro que o "agente" deve ser capaz de aturá-la — c até bem melhor do que o paciente — e de não precisar da presença contínua do "seu" paciente. Falhas na preparação profissional e pes- soal, ou ainda na supervisão que efetuou (ou não), serão responsáveis por um tal estado de apego, implicando problemas éticos sérios.Acreditamos não ser necessário insis- tir mais sobre a gravidade de tais casos: 157 O paciente nao pertence ao profissional, e tampouco o procurou para satisfazê- -lo; ele se confiou ao profissional porque confiou nele — e esta confiança seria Iraída com a dita evolução, nem sem- pre isenta de conotações sadomasoquis- tas, mascaradas pelas dependências recí- procas. . . Mais uma vez desponta aí o problema crucial dos limites, presente du- rante todo o processo, mas emergindo com maior acuidade na fase final, colo- cando à prova o senso ético e a respon- sabilidade profissional, senão a abnega- ção do psicoterapeuta. 6.5. Momentos cruciais do processo psicoterápico Se é verdade que o essencial do pro- cesso psicolerápico, no sentido da elabo- ração dos conflitos íntimos do paciente, se desenrola no interior deste, de manei- ra não observável, não é menos verdade que determinados momentos se destacam neste processo. Eles merecem uma dis- cussão ã parte, sem que seja possível entrar em um exame pormenorizado dos principais elementos que nele apontam. Isto vale em particular para a inter- pretação. Muito tem sido escrito sobre ela, seja no âmbito da técnica psieana- Iítica, seja em crítica literária ou em fi- losofia (11). Não nos interessa aqui o sentido técnico de que a interpretação se reveste na psicanálise. Tomada em seu sentido global, de revelação da signifi- cação latente do material relatado pelo paciente, ela se destaca como um mo- mento particular na elaboração deste, embora acompanhando todo o curso do trabalho, em decorrência da atitude ge- ral, "interpretativa", do psicoterapeuia. 158 Sem querer entrar nos meandros da discussão filosófica ou literária sobre a hermenêutica e seus segredos, ressalta- mos que esta atitude gera! do terapeuta refere-se, implicitamente, à sua concep- ção da divisão do ser humano entre a sua superfície, onde se apresenta o seu comportamento observável, os seus sin- tomas e as suas queixas, e o seu "nú- cleo", seja este definido como for. Sem esta distinção entre um manifesto e um latente, não faz sentido falar em inter- pretação — muito embora seja verdade que mesmo o cientista mais aferrado na defesa do empirismo e dos princípios neopositivistas, não pode abrir mão do recurso à interpretação, quando determi- na a significação dos fatos constatados. Interessa-nos aqui, pois, a interpreta- ção como instrumento de trabalho para elucidar os conflitos pessoais, sobretudo inconscientes, do paciente, isto é, como ferramenta para ultrapassar o manifesto e atingir o desconhecido. Este, vincula- do à historicidade do sujeito e tornado inconsciente em função dos seus próprios mecanismos defensivos, detém um poten- cial particularmente patogênico pela pressão e interferência constantes que exerce em sua vida consciente. A operação de desmascaramento des- te desconhecido operante e de sua inci- dência no sofrimento da pessoa, se ela constituí toda a trama da perlaboração, conhece, não obstante, momentos singu- lares pela intensidade da vibração afe- tiva e pela revelação de significações la- tentes insuspeitadas. Por uma interven- ção interpretativa feliz do terapeuta, o outro conseguirá atribuir significações a fatos que anteriormente não as tinham; consegue vislumbrar vínculos enírc cons- telações aparentemente (e defensivamen- te) desvinculadas; consegue entrar em contato com material conflitante incons- ciente de que nunca tinha cogitado; con- segue operar certas reconstruções nas se- quências esquecidas de sua história pes- soal; consegue reestrulurar-se para che- gar a um funcionamento psíquico mais integrado c menos segmentado em com- portamentos estanques. . . Mas para que se chegue a tais mo- mentos "felizes", é necessário um árduo trabalho preparativo. Interpretações "ge- niais" são raras, como é raro o efeito imediato de uma intervenção pertinente. O que é preciso é a perlaboração con- tínua do material emergente, dirigida pelas indagações interpretativas inciden- tais do psicolerapeuta, emitidas em fun- ção de sua percepção de ocorrências sig- nificantes nas peripécias das verbaliza- ções do sujeito. Lembramos aqui nossos comentários acima (ver 3.7.) acerca dos deslizes que as intervenções do terapeuta tendem a introduzir nas seqiiências relatadas pelo paciente, deslizes que já tem uma função interpretativa iatu sensu. De fato, pelo seu aspecto de deslocamento do foco de atenção, eíes aludem a algo além do con- teúdo manifesto no discurso, algo que se relaciona com o material latente sobre o quai se quer induzir um reparo dife- renciador. Conseguindo isto, induzem-se brechas nas atitudes defensivas, levando o paciente a se questionar mais sobre eventuais significações latentes de sua fala. Neste sentido, a interpretação rara- mente é afirmativa; ela corresponde mais, dentro do processo psicolerápico, a uma hipótese de trabalho lançada de modo indagativo para talear o terreno incerto das constelações inconscientes conflitantes. Ela exige, pois, muita cau- tela e perspicácia, bem como muita pa- ciência por parte do terapeuta: precipi- tada, ela não surfirá efeito, mas poderá acirrar as oposições e defesas do pa- ciente, capaz de reagir com indignação diante de certos deslizamentos insinuan- tes que achar provocantes ou impertinen- tes. A interpretação deve ser proposta no momento oportuno, no momento kairos —• a oportunidade sagrada e cheia de graças da qual falam os gregos — mas para que ocorra, tem que ser preparada através de mil indagações, questiona- menlos e interrogações. Portanto, ela se- rá fruto mais do labor contínuo do que da intuição fulgurante do terapeuta; es- ta pode ocorrer, mas mais vale não contar com ela e persistir na tarefa da perlaboração, até que a interpretação fe- liz, amadurecida pelo longo trabalho que precedeu, venha a calhar, apropositada dentro do contexto evolutivo da cons- cicnlização do paciente, sendo para ele relevante quanto às dificuldades cujas raízes ignora. No entanto, a interpretação não deve pretender uma aprovação entusiasta da parte do paciente: é mais importante to- car fundo do que suscitar entusiasmo. O efeito de uma intervenção pertinente poderá surgir "só depois" (12), através de mudanças na conduta da pessoa, atra- vés de reações inesperadas, de material novo que surge, de oposieÕcs exacerba- das ou, pelo contrário, de concordâncias livremente consentidas. A tomada de consciência, de fato, não é essencial; ela pode ocorrer aos poucos, muito mais tarde ou nunca. . . Ela não é o critério decisivo de uma mudança na estruturação intrapsíquica, tendo um 159 valor mais acidental (embora gratifican- te, em geral, para ambos) no caminho do autoconhecimento crescente e da li- bertação progressiva dos conflitos que dividem o paciente. Integrar-se é mais importante do que tomar consciência, se bem que podem se completar. . . A interpretação consiste em uma ati- vidade verbal que se refere às verbali- zações do pacienle, seja àquilo que ele relatava imediatamente antes, seja a co- locações disseminadas sobre um longo trecho do trabalho. Portanto, ela não se aplica ao compor- tamento observado. Se o terapeuta achar necessário intervir quanto a aspectos do comportamento que chamam a sua aten- ção — no caso de atuaçôes, por exem- plo — ele recorrerá a outros tipos de intervenção, como o questíonamento di- reío ou indírefo, a injunção, a explica- ção ou mesmo a advertência... O leque das intervenções do terapeu- ta é assim bastante amplo; cabe a cada um desenvolver o seu estilo pessoal de intervir, conforme sua orientação teóri- ca, experiência clínica c pessoal, ponde- rações e intuição. Não é possível estabe- lecer regras fixas para isto: aqui tam- bém o terapeuta está só, e tem que se responsabilizar pelas decisões que está a tomar. Não obstante, dentro deste leque amplo,a interpretação detém o privilé- gio de visar o latente, além ou atrás do manifesto, de ser capaz de tocá-lo e de servir assim de alavanca para levantar o material conflitante, de forma a enca- minhá-lo lentamente rumo aos objetivos da psic o terapia. Um outro momento essencial do pro- cesso psicoterápico diz respeito à iden- tidade do paciente. Disseminado sobre o curso do processo — a ponto de poder falar também de uma "temática" — o trabalho sobre a identidade conhece às vezes momentos particularmente dramá- ticos ou particularmente fecundos, cujo aproveitamento é capital para a sua oti- mização. Identidade, de fato, implica identidade sexual, mas nem sempre é a identifica- ção com o próprio corpo sexuado e com o papel sexual que está no primeiro pla- no da problemática. Isto é o apanágio mais do neurótico, e deverá ser traba- lhado então no contexto das dificulda- des de identificação com o pai do mes- mo sexo, sejam estas "edipianas" ou não, c das sequelas de constelações pre- coces desfavoráveis ou mesmo traumá- ticas. A identidade, em um sentido mais amplo, refere-se à imagem que a pessoa tem de si mesma, passando pela imagem de corpo e implicando sempre o inves- timento narcísico do "amor próprio". Este, quando radicalmente insuficiente, provoca os diversos quadros de distúr- bios narcísicos, podendo ir de afecções psicossomáticas até as psicoses mais graves. Em todos eles, a questão da identi- dade, ou seja, a insegurança quanto à própria identidade, está no primeiro pla- no. Esta insegurança poderá tornar-se especialmente aguda quando, no proces- so psicoterápico, a questão da origem desta falha narcísica estiver sendo toca- da. Este toque poderá ser sentido como se se mexesse em uma ferida sempre aberta, mas encoberta graças a uma cí- catrização precária, embora autoproteto- ra. Porém, se se quiser trabalhar o pro- blema de fundo desta insegurança de identidade, tocar nesta ferida será im- prescindível. Somente assim será possí- vel aumentar a segurança quanto a si mesmo; para chegar a ser quem ele é, o paciente tem que saber, tem que des- cobrir quem ele é, tem que aprender a se amar, a se valorizar, apesar e contra iodas as experiências anteriores que lhe inculcaram a certeza do contrário. No momento ou na fase onde se tra- balha mais intensamente toda esta pro- blemática, a figura do psicoterapeuta, ou seja, a identificação com ele, pode auxiliar o paciente como uma muleta momentânea para suportar o confronto com as suas feridas identificatórias. Mas não significa que o terapeuta tenha que se apresentar como um modelo: ele nun- ca é, nem deve querer ser um modelo para o seu paciente, mas uma muleta na qual este poderá se apoiar quando precisar, e uma tela na qual se refletirá à procura de si mesmo. Se a identidade é determinada pelo outro, ela será autêntica apenas no caso de ser conquistada, assimilada e inte- grada pela própria pessoa. Uma vez a identidade reconhecida e consolidada, o terapeuta tem que se retirar, tem que desaparecer abrindo mão de sua função de referência, para que o outro consiga verdadeiramente ser quem ele é, acredi- tando em si, se apreciando e se valori- zando. Este trabalho em geral é demo- rado; somente quando levado a cabo com paciência e perspicácia, é que o processo pode progredir rumo à inde- pendência do paciente. Um terceiro momento crucial refere-se a ocorrências mais amplas, podendo emergir em toda e qualquer psieoterapia: a emergência de urna crise durante o processo. Elas são tão corriqueiras que se pode dizer que jazem parte do pró- prio desenrolar psicoterápico. Se ela re- prcsenla um momento difícil e doloroso a passar, ela não é nenhuma anomalia, mas o índice de se ter atingido um ponto crucial —• ou precisamente, um ponto crítico. Em outras palavras, ela significa que, provavelmente, o trabalho dos dois tenha ido fundo, tenha tocado conste- lações altamente significantes do histó- rico do paciente, tenha mexido numa ferida meio aberta e provocado, assim, angústia e pânico, pela veemência das próprias reações ou pelo susto de uma descoberta insuspeitada. Estas reações podem diferir muito de um caso para outro. Uma das mais co- muns, além da angústia, é a reaçuo de- pressiva, a ser atravessada até se ver luz no final do túnel. De fato, a depres- são acompanha uma boa parte do tra- balho terapêutico, à medida que ideais superdimensionados são aos poucos re- duzidos a tamanhos mais adequados e mais condizentes com as possibilidades reais — redução esta que sempre está sendo vivida como uma perda, apesar do cará ter irreal daquele ideal. Esta fase do trabalho, por assim di- zer "iconoclásiica", é propriamente de- primente, porque toda perda acarreta de- pressão, às vezes severa, a ser elaborada cm conjunto. Ela pode ainda se repetir, como já vimos, no final da terapia, que representa, neste sentido, um outro mo- mento crítico. O que importa cm tais momentos, é que o psicoterapeuta não se deixe conta- minar pelo desânimo do seu paciente, dirigindo o trabalho — que deve con- tinuar — com compreensão, mas tam- bém com firmeza, para que os fatores responsáveis pela depressão possam ser reconhecidos c descartados, em proi da reconstrução adequadamente dimensio- 160 161 nada dos ideais e valores do paciente. Os objetivos de libertação dos conflitos internos incluem a necessidade de atra- vessar momentos depressivos, se aquela quiser ser duradoura. As crises durante a psicoterapia po- dem conhecer outras razões, em parti- cular razões externas. Se não é possível influenciá-las, cabe ficar atenlo à sua in- cidência na vida intrapsíquica e sobre o "ânimo" do paciente; em conformidade com as oscilações dus fatores externos, o terapeuta terá que oscilar na distância que mantém para com o paciente; ele po- derá mesmo ser levado a passar para uma relação mais de apoio, sabendo que pode se tratar de uma mudança momentânea que não implica o abandono dos obje- tivos inicialmente pautados. De qual- quer forma, ele tem que tentar discri- minar permanentemente os fatores ex- ternos reais, apresentados pelo paciente como obstáculos, ou mesmo como impe- dimentos para a lerapia, e os fatores invocados como pretextos para dissimu- lar crises de origem interna, vinculadas com a própria terapia. Um outro aspecto de crise relaciona- -se com a questão da confiança no psi- coterapeuta. Esta pode passar por pro- vas particularmente tenazes, de origem externa (por exemplo, comentários sobre ele ou calúnias) ou, com maior frequên- cia, interna. Neste caso, a dificuldade, percebida pelo terapeuta ou verbalizada pelo pa- ciente, deverá ser abordada com tato e cautela. Nem sempre, enlrctanto, se deixará resolver: a confiança, quando estremecida, custa a ser restabelecida; a própria falta de confiança — mesmo se funciona como pretexto ou desculpa para evitar o autoconfronto — boicota qual- 162 quer tentativa de melhorar as bases do trabalho. Sc uma tal crise chega a se extremar, vale mais propor ao paciente a interrupção da terapia, deixando aber- to o retorno posterior. Este raramente acontecerá; na maioria dos casos será melhor recomendar a continuação com outro profissional, da escolha do pa- ciente. Quando falamos aqui em crise, a en- tendemos em um sentido diferente da- quele de Moffat (13) ou de BelJak (14). Nós nos referimos a crises durante o tra- balho psicoíerãpico, enquanto esles dois autores se referem a situações de emer- gência, resultantes de crises existenciais internas e/ou externas. Estas exigem abordagens especializadas, em cuja dis- cussão não entramos. Um quarto e último momento crucial durante o processo psicoterápico diz res- peito à tomada de consciência. Já assi- nalamos acima qye esta não é indispen- sável para que haja efeilo terapêutico. No entanto, a conscientização caracteri- za momentos privilegiadosde toda psi- coterapia. Ela nunca será total, mas per- tence ao processo de desvelamento, no sentido do paciente ser, no final, mais consciente de si. Ele "se conhecerá me- lhor", sendo o autoconhecimento um dos objetivos da terapia. Se a conscientização — chamada por aiguns de insight (15) — não é responsá- vel pelos efeitos terapêuticos, ou pelo menos não por todos, ela merece um des- taque particular. Tomar consciência, em geral, se faz de maneira surpreendente, embora precedido por um longo traba- lho em profundidade; ela pode ser mo- mentaneamente angustiante, ou suscitar um efeito depressivo mais demorado, mas representará sem dúvida uma aqui- sição importante. Todavia, de forma alguma ela coin- cide com o final da psicoterapia: as to- madas de consciência devem ser inte- gradas na vivência do paciente, devem contribuir para mudanças profundas e não se prestar a deleites superficiais, no sentido "agora sei, e basta!" Além disto, as conscientizações não representam va- cinas contra recaídas, contra novos mer- gulhos em trevas, "fossas", depressões e desánimos; elas correspondem a momen- tos de luz dentro de um processo no qual se alternam com muitas sombras — am- bos fazem parte dele. Mas a luz continua sendo um incentivo para aturar e atra- vessar as sombras. .. Apresentamos sumariamente como en- tendemos o processo psicoterápico, seu desenrolar, seus ingredientes, suas fases. Não pretendemos ter esgotado o assun- to. Este processo não deixa de ter algo de misterioso, de insondável, tanto quan- to a própria símbolização. O seu efeito não reside na tomada de consciência, nem no desaparecimento dos sintomas, nem em mudanças de atitudes ou con- duta. Tudo isto pode ocorrer, e de fato ocorre em geral, mas não representa a "essência" deste processo. Ele se passa a nível inconsciente, questionando o nosso entendimento científico, a nossa vontade de dissecar e explicar tudo, o nosso desejo de saber . . . Ele se passa entre os dois, mola e fruto das intera- ções e trocas que perfazem o conjunto da elaboração psicoterápica. Mesmo o psicoterapeula mais perspi- caz e mais experimentado deve concor- dar quanto ao caráter insondável daqui- lo que acontece entre ambos os prota- gonistas, e que não se deixa codificar satisfatoriamente. Mas será que é preci- so codificá-lo, explicá-lo pormenorizada- mente? Em termos de transmissão do know-how psicoterápico, isto parece de- sejável — mas nem tudo se deixa trans- mitir de modo operacionalizado, quando se trata de seres humanos e de suas complexidades psíquicas e sociais. Eis mais um dos limites, mas também uma das riquezas do trabalho de psico- terapia, sobre o qual o candidato a este exercício profissional deve meditar antes de fazer as suas opções. Os estudos teó- ricos, as discussões técnicas e as super- visões no início de sua carreira poderão orientá-lo. Mas ele tem que admitir — e tem que correr o risco -— de contar, em primeiro lugar, com a sua própria pes- soa, sem poder recorrer a instrumentos externos seguros e eficazes em todas as situações. E tem que admitir que para entender o mistério destes processos, tem que começar pelo autoquestionamento, sem nunca poder abrir mão de le . . . Bibliografia e notas 1. Citamos algumas obras sobre entrevistas psicológicas em geral: ASSUMPÇÃO, T. M. L. Estruturação da Entrevista Psicológica. São Paulo, Ed. Atlas, 1977. LODI, J. B. A Entrevhia. Teoria e Práti- ca. São Paulo, Livraria. Pioneira, 1974. Rf BEIRO, J. P. Teorias e Técnicas Psicote- rápicas. Pctrópolís, Vozes, 1986 (o capí- tulo sexto trata da entrevista). ZARO, J. & ai. I/itroituçiio à Prática Psi- coterapêuiica. São Paulo, EPU-EDUSP, 1980 {a segunda parte trata da entrevista clínica). 163 ABUCHAEM, J. O Processo Diagnóstico no Adulto, na Criança e no Adolescente (Tomo 2). Porto Alegre, Ed. Lszzatto, 1987 (ver o Tema n,° 6). 2. ARGELANDER, H. Das Erstinterview in der Psychotherapie. Darmstad: Wissens- chaftliche Buchgesellschaft, 1970. (O autor analisa especificamente a entrevista inicial na situação clínica.) 3. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. Vo- cabulário da Psicanálise. São Paulo, Mar- tins Fontes, 1970. (Ver artigo sobre Reall' ilade Psíquica.) 4. ROGERS, C. Psicoterapia e Consulta Psi- cológica. Lisboa, Moraes Ed., 1974, 5. FREUD refata esta mudança em várias obras suas, de cunho autobiográfico; ver. por exemplo: Contribuição à História do Movimento Psicanalílico (1913); Edição Standard Brasileira, XIV, pp. 16-82. Rio de Janeiro, Imago, 1976. 6. Historicamente, vale mencionar que o livro no qual H. RORSCHACH apresentou o leste que desde então tem o seu nome, leve exatamente este título: Psycliodiagnostik (1921). Assinalamos que o vol. 6 do Hand- buch der Psychologie, intitulado Psycho- logische DiBgnOStik (Gòttingen: Verlag fiir Psychologie, 1981), (em mais de mil pági- nas, o que transmite uma certa ideia sobre o desenvolvimento desta disciplina. 7. Ver a respeito: LAPLANCHE, J. & PON- TAL1S, J. B. Vocabulário da Psicanálise, verbetes sobre Resistência e Mecanismos de Defesa. K. Idem, verbete Perlaboração, 9. Mencionamos a respeito o trabalho, aplicá- vel também á psicoterapia e hoje ainda atual, de A. GREEN, A Psicanálise diante da oposição da história e da estrutura (1963), em: Psicanálise: Problemas Meto- dológicos. Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 100-112. 10. Ver Vocabulário da Psicanálise, item Tra- balho de Luto. Ver fambem o trabalho ori- ginal de FREUD a respeito: Luto e Melan- colia (1917). 11. A obra de referência a respeito constitui sem dúvida o livro de RICOEUR, P, Da Interpretação. Ensaia sobre Freud. (1965) Rio de Janeiro, Tmago, 1970. 12. Esta noção de "só depois" ou de "poste- rioridade" representa uma noção teórica e técnica importante na obra de Fieud, mas que passa muitas vezes despercebida, em consequência de traduções inadequadas. Ela se refere a concepção da causalidade psíquica inerente á psicanálise, a saber, que determinadas experiências ou impressões podem ser transformadas em função de experiências posteriores, a partir das quais o sujcílo reinterpreta as significações das primeiras. Ver a respeito o Vocabulário da Psicanálise, verbete Po.iterioridade. 13. MOFFAT, A. Terapia de Crise (Teoria temporal do psiquismo). São Paulo, Cortez Editora, 1933. 14. BELLAK, L. & SMALL, L. Psicoterapia de Emergência e Psicoterapia Breve. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980. 15. Insight e "tomada de consciência" têm acepções semelhantes, mas preferimos o "úl- timo termo, ou então, ''conscientização", por ser português. Além disto, o termo in- glês não rende Iodas as implicações e ri- quezas do lermo alemão Einskht, muito comum nesse idioma, onde não detém ne- nhuma conotação técnica especial. Esfa lhe foi atribuída depois pelos autores ingleses, sem nenhuma indicação de Freud neste sentido. Capítulo 7 A questão da indicação para psicoterapia A indicação corresponde a um mo- mento privilegiado da investigação preli- minar. Finalizando as entrevistas iniciais, cabe tirar as conclusões das diversas mo- dalidades utilizadas nesta investigação, a saber, além das entrevistas propriamente ditas, a anamnese, o psicodiagnóstico, exames complementares (somáticos ou psicológicos). A partir dos dados assirr. colhidos, lemos que elaborar uma avalia- ção geral que possibilite uma síntese. Esta deve permitir uma indicação que, para ser pertinente, tem que levar em conta uma série de fatores, em particular três: o estado psicopatológico do pacien- te, a sua motivação, determinados fato- res secundários (1). A partir daí, será possível esboçar um prognóstico, com toda cautela é claro... Antes de discutir estes três parâmetros, uma palavra sobre os diversos procedi- mentos passíveis de levarem à indicação terapêutica. Ao falar de "indicação tera- pêutica", não há dúvida quanto à refe- rência,a saber, o modelo médico. Este tenta objetivar ao máximo a sua coleta 164 de dados, para chegar a um diagnóstico com provável, idealizando o mais objetivo tratamento possível. Este procedimento, aplicado tanto em medicina velerinária quanto em medicina humana, deixa total- mente de lado o aspecto do sujeito, o seu sofrimento subjetivo, os seus motivos, os seus desejos, a sua globalidade psicosso- mática. Portanto, o critério diagnóstico, quão importante que seja, é insuficiente para a indicação em psicoterapia, porque negli- gencia as dimensões subjetivas da proble- mática a ser "tratada". Por esta razão, outros critérios devem ser levados em conta, embora todos eles contenham ar- madilhas de unilateralidade. Isío vale em particular para aquele procedimento que se esforça em conside- rar (e satisfazer), em primeiro lugar, as "necessidades" do cliente, a começar pelas suas necessidades afetivas. Se este critério prevalece, toda demanda emanen- te de um cliente em potencial será aten- dida, sem questionar o estado psicopato- lógico, sem testar a motivação profunda, 165 sem sequer indagar sobre a pertinência de uma psicoterapia. Nestas circunstân- cias, o cliente terá muita dificuldade cm se engajar, em se motivar para o trabalho, para a penosa tarefa de perlaboração. Isto, no entanto, não excluirá a "curti- ção" do aqui e agora, onde uma série de necessidades afetivas podem encontrar sa- tisfação, de ambos os lados, cora gratifi- cações recíprocas, mas com pouca elabo- ração psicoterápica. Porém, se esta não está operando, não seria isto decorrente de uma indicação improcedente, ou de ela ter sido descartada em benefício de outros objetivos? O critério de "benevolência absoluta" do terapeuta, portanto, não é o mais ju- dicioso para proceder a uma indicação pertinente. O seu contrário o é lampouco, a saber, o que podemos chamar de mo- delo conformista da "seleção" do pacien- te. Aí, os pacientes são aceitos para psi- coterapia não em função da demanda que apresentam, mas da demanda do próprio terapeuta, isto é, do seu interesse pessoal em trabalhar (ou não) com um determinado candidato à terapia. Se este interesse é importante, ele não pode constituir-se em critério único para o ingresso em psicoterapia; senão, cor- re-se o risco de transformar a etapa de avaliação e indicação em uma simples se- leção, destinada a atender às necessidade.; do terapeuta, afetivas, financeiras, cientí- ficas ou outras. Desta forma, cie operaria a seleção para que possa desenvolver o seu trabalho, em conformidade com o pa- ciente "ideal" previamente idealizado, mas em detrimento dos pacientes "reais" que a ele se apresentam. Se porventura um candidato corresponder à idealização arquitetada, ele terá a sorte de ser "sele- cionado" •— mas pairará sempre uma dú- vida sobre a aceitação plena e incondicio- nal da sua pessoa concreta, o que pode- rá pesar muito no desenrolar futuro da relação. Por outro lado, podemos nos questio- nar se esta "aceitação plena e incondicio- nal" existe, se ela é humanamente possí- vel. Acreditamos que não: ninguém é totalmente transparente para si mesmo, nem totalmente "bom" frente ao outro, razão pela qual cabe desconfiar tanto da própria bonança, no acolhimento aparen- temente pleno do paciente, quanto do próprio egoísmo, disfarçado sob argu- mentos mais ou menos astuciosos, quanto a interesses científicos ou técnicos par- ticulares. Percebe-se que o ideal do procedimen- to indicatório consiste em um acordo ne- gociado, levando em conta todos os as- pectos acima mencionados. Somente pela conjugação das considerações sobre diag- nóstico, sobre interesse (ou demanda) do candidato e interesse do psicoterapeuta, será possível promover um processo ade- quado de indicação e de prognóstico e, por conseguinte, de ingresso {e de pros- seguimento) em uma terapia. Sem a inte- ração destes elementos, a indicação será enviesada demasiadamente para permitir um jogo equilibrado entre os diversos en- foques e interesses — jogo este que se prolongará durante toda a psicoterapia e que deve dispor, desde o início, de condi- ções ótimas para desencadear o processo de elaboração rumo aos objetivos pro- postos. Para que esta interação seja efetiva, é claro que elementos essenciais como con- fiança, simpatia ou até empatia recípro- ca devem estar presentes. Todavia, estes não se deixam criar artificialmente; se a tonalidade prevalente é de antipatia —• unilateral ou mútua —, deve-se desistir de querer iniciar um trabalho em con- junto. Esta situação ocorre com uma certa frequência e não deve ser escamoteada pelo terapeuta, quando a percebe; melhor será então encaminhar o candidato a outro profissional, invocando as razões que ihe parecerem mais plausíveis — sem mentir, mas também sem ferir desne- cessariamente a susceptibilidade do outro. O "entusiasmo terapêutico" raramente corresponde a uma postura adequada e madura diante do paciente; ele decorre facilmente de uma superestimação de si mesmo, ligada a ideias (juvenis) de oni- polência (terapêutica) e de auto-suficién- cia, que não se coadunam com os meios reais, isto é, limitados, dos quais dispõe o terapeuta em sua atuação profissio- nal. O desejo de ser um "grande tera- peuta", se não um "terapeuta perfeito", é compreensível, mas é contraproducente e contém mais armadilhas do que meios eficazes de intervenção. Isto dito, não se quer dizer que a "fé" do clínico em seu trabalho não seja im- portante: ele tem que acreditar no que faz, tem que ter consciência por que optou pela sua profissão, mas tem que ficar realista e demonstrar permanente autocrítica. Não é verdade, em nosso en- tender, que "toda psicoterapia é boa, desde que o psicoterapeuta seja bom", como já foi afirmado. Primeiro, é difícil definir o que é um "bom" psicoterapeuta e, cm seguida, é certo que mesmo os "me- lhores'' terapeutas conhecem fracassos, independentemente de sua atuação (ou ainda, cometendo erros), tão grande é o número de variáveis que intervêm no complexo jogo destas inleraçôes. Nem to- das esías variáveis se deixam controlar — o psicoterapeuta não é demiurgo, nem taumaturgo, mas uma pessoa humana li- mitada. Como tal, tem que se esforçar ao máximo, mas sem perder a modéstia. Passamos em seguida a enumerar as principais variáveis que participam do processo indicatório. 7.1. O eslado psicopaíológico Colocamos a questão da psicopatolo- gia em primeiro lugar, em conformidade com a nossa definição do campo psico- tcrapèutico como fazendo parte do cam- po clínico. E pertinente distinguir aí entre as queixas apresentadas pelo paciente, a sintomatologia e as estruturas psicopato- lógicas subjacentes. Em nosso entender, é insuficiente refe- rir-se apenas à sintomatologia enumerada pelo primeiro ou percebida pelo terapeu- ta. Inúmeros são, hoje em dia, os quadros assintomáticos (os chamados "transtornos de personalidade"), devido à evolução "metablética"(2) dos distúrbios psicopa- tológicos e de suas expressões. Além dis- to, é sempre interessante reparar, no dis- curso do paciente, nas eventuais discre- pàncias entre as suas queixas e os seus sintomas; ele pode, por exemplo, enume- rar estes últimos sem se queixar deles. Considerá-los como sinónimo seria pre- cipitado. Por outro lado, a consideração das es- truturas subjacentes — nas quais acredi- tamos — nos parece de suma importân- cia para uma primeira triagem, segundo as grandes categorias nosográficas, e para uma avaliação correta quanto à indicação da abordagem psicoterápica e da condu- ta {ou estratégia) terapêutica a adotar. Nesta primeira operação de triagem, ainda grosseira, cabe distinguir entre as 166 167 categorias nosográficas de neurose, psico- se e psicopatia. Isto não significa querer excluir a categoria da "normalidade", mas como a sua definição continua alta- menteproblemática, e como a delimita- ção entre neurótico e normal é fluida, não faz muito sentido discutir aqui esta categoria, supostamente a mais co- mum. . . Ademais, ao discutir sobre a indicação para psicoterapia, supõe-se ain- da que pessoas "normais" raramente consultam à procura de psicoterapia; se isto ocorrer, no caso de artistas por exem- plo, não se correrá grandes riscos, aplicando o "princípio de cristal" de Freud (3), em assimilá-los aos neuróticos, o que não terá nada de pejorativo se pen- sarmos na presença de micro, se não de macropatologías na vida (íntima) de todos n ó s . . . De maneira muito esquemática, pode- mos formular que os diversos quadros neuróticos são mais indicados para psico- terapias profundas (ou "descobridoras"), com exceção das chamadas neuroses "atuais" e de distúrbios leves; que os es- tados psicóticos podem ser trabalhados psieoterapicamente, mas sob formas de terapias de apoio ou de manutenção, pa- ralelamente com terapias medicamento- sas; que os quadros de psicopatia não são acessíveis (ou raramente) à abordagem psicoterápica, requerendo então medidas sócio-educativas. A distribuição diferen- cial destes quadros, aliás, é ilusírada pela piada bem conhecida em cursos de psico- patología, segundo a qual o neurótico procura terapia por ele mesmo, enquanto o psicótico é levado pela família e o psi- copata pela polícia.. . Se esta distribuição é procedente, ela exige diferenciações bem mais acuradas. Em particular, os estados psicopatológi- 168 cos nunca podem ser discutidos de ma- neira abstraía, isto é, sem referência à personalidade do paciente, à sua motiva- ção e aos fatores secundários (ver abai- xo). Estes elementos juntos fornecem o relevo concreto de sua problemática. Se o diagnóstico considera — fiel ao modelo medico — unicamente o quadro psicopa- tológico, investigado da maneira mais objetiva possível, cie é insuficiente para uma indicação adequada; somente o con- junto das variáveis que dizem respeito ao paciente (e não somente à sua "doença") poderá nos fornecer uma base mais segu- ra para indicar a psicoterapia que parece adequar-se mais ao seu caso. Mesmo as- sim, esta indicação será sempre conjectu- rai e nunca objetiva, exata ou precisa. Erros de indicação, portanto, são sempre possíveis e, de fato, acontecem com fre- quência, também porque delimitações ní- tidas não existem, como já vimos, entre as diversas formas de psicoterapia. Não obstante, faz sentido discutir as indicações prioritárias que decorrem da consideração da psicopatologia. Iniciamos pelas neuroses, de longe os quadros mais frequentes pelos quais se procura psico- terapia. No entanto, cabe distinguir entre as neuroses atuais (ou traumáticas, ou ainda, as "reações neuróticas") e os con- flitos neuróticos ("desenvolvimentos neu- róticos" ou "psiconeuroses"). As primeiras são limitadas no tempo e obedecem a uma causalidade dircta entre um evento patogêmco ("traumático"), re- lativamente circunscrito, e os sintomas subsequentes, aparecendo logo em segui- da àquele evento. Tais quadros represen- tam uma boa indicação para breves psico- terapias de apoio, focalizando as reações desmedidas quantitativas e/ou qualítati- vãmente ao evento, sem pretender qual- quer aprofundamento. Nesta abordagem, tenta-se então (e em geral se consegue) provocar uma "rea- ção catártica" pela qual as tensões oriun- das do choque traumático são descarre- gadas. O quadro evidentemente se com- plica, se uma tal reação neurótica se enxerta em uma personalidade já razoa- velmente neurotizada, caso em que se deve pensar em uma psicoterapia mais prolongada, após a remoção dos sintomas atuais — se a pessoa o desejar... Quanto aos conflitos neuróticos, eles se caracterizam pela sua historicidade, ou seja, correspondem a desenvolvimentos problemáticos desde a infância (embora possivelmente com intervalos de latÊn- cia). Eles representam as indicações clás- sicas para psicoterapias aprofundadas, isto é, descobridoras, idealizando o obje- tivo de uma resolução ampla dos confli- tos (inconscientes) com vistas a uma li- bertação, ampla ela também, dos entraves criados em consequência daqueles confli- tos ou das lutas defensivas que desenca- deiam. Para que ocorra a perlaboração (e a simbolização) de maneira satisfatória, precisa-se em geral de um prazo bastante grande; porém, certas problemáticas, mesmo já de longa duração, se deixam resolver por psicoterapias breves especí- ficas, quando indicadas (ver os critérios de Malan (4), por exemplo) e quando bem conduzidas. Não entramos aqui nes- ta discussão, que foge ao nosso tema geral. Não se pode querer prescrever, de ma- neira concreta, indicações de determina- das formas de psicoterapia para determi- nadas perturbações neuróticas. Aventa- mos tão-somenfe que quanto mais grave ou mais cronificado um quadro neuróti- co, mais ele requer uma terapia aprofun- dada e, em geral, prolongada; ao contrá- rio, formas de terapia que não visam um aprofundamento da problemática, ou que nem sequer se questionam sobre eventuais conflitos profundos envolvidos, preferin- do desenvolver a atuação ao nível do "aqui e agora", do corpo, das poteneiali- dades ignoradas da pessoa, de sua racio- nalidade inoperante, dos seus sistemas de interaçao deficientes, ou mesmo, símples- menle, das carências afetivas apresenta- das — todas aquelas terapias pois que trabalham mais a superfície e os contatos cotidianos do cliente, podem ser indica- das para o tratamento de problemáticas neuróticas não demasiadamente graves, ou seja, que não hipotecam demasiada- mente o funcionamento psíquico e a in- tegração social do portador. É muito comum, hoje em dia, distin- guir entre neuroses sintomáticas (grandes histerias, hipocondrias, fobias, neuroses obsessivas...) e neuroses sem sintomas caracterizados (neuroses de caráter, per- sonalidades neuróticas, transtornos de personalidade. . . ) . As segundas, sem dú- vida, estão aumentando nas últimas dé- cadas, sendo que as mudanças sintomáti- cas exigem também mudanças terapêuti- cas, em particular no que diz respeito a perturbações narcísicas (5). Contudo, em nosso entender, as mudanças dos quadros psicopatológicos em geral requerem mais mudanças técnicas, no interior de formas psicoterápicas já constituídas, e não têm repercussões dirctas sobre a questão da indicação — a não ser no sentido, já mencionado, de eles tenderem cada vez mais para a cronificação, o que evidente- mente afeta também a indicação. 169 Neste contexto das mudanças sintomá- ticas e até nosográficas, cabe lembrar logo os estados depressivos, hoje em fran- ca ampliação. As suas formas são múlti- plas, as suas "causas" controvertidas, as suas terapêuticas também.. . A indica- ção principal é aquela da psicoíerapia de apoio, em particular nas fases depressivas agudas. Este apoio, no entanto, pode evo- luir para um trabalho mais aprofundado — aproveitando os intervalos menos mar- cados pela depressão — visando à ela- boração do problema de dependência {ou simplesmente, dos elementos neuróti- cos . . .) que, em geral, caracterizam a per- sonalidade depressiva. Mas qualquer que seja a inclinação do terapeuta, nunca deve-se esquecer a importância da medi- cação an ti depressiva. Isto vale ainda para as "depressões mascaradas" ou camufladas, isto é, sotna- tizadas, bem corno para o amplo leque das afecções chamadas psicossomáticas. Nestas últimas, porém, será muitas vezes indicado iniciar o trabalho terapêutico por uma abordagem corporal, incluindo sobretudo relaxamento, sob suas mais di- versas formas. Dependendo dos resulía- dos (e, como sempre, da motivação em continuar e aprofundar), pode-se passar paulatinamente para uma forma mais psi- coterápica, ou até mudar de terapeuta, se parecer conveniente. As queixas que focalizam problemas sexuais exigem uma atenção particularpor parte do entrevistador. Ele tem que distinguir entre sintomas sexuais ligados a desenvolvimentos neuróticos, e distúr- bios sexuais isolados. Porém, é duvidoso que existam realmente tais distúrbios iso- lados, isto é, sem ligação com conflitos de ordem neurótica — a não ser que se 170 trate, evidentemente, de problemas orgâ- nicos. Eis que a indicação para uma terapia especificamente sexual, ou para uma psi- eoterapía "geral", depende da demanda do paciente. Se ele coloca em foco apenas o distúrbio sexual, de alguma forma des- conectado do conjunto de sua vida, ele será mais inclinado por uma terapia se- xual (comportamcntal, bioenergética, cor- pora l . . . ) ; caso contrário, interessar-se-á por uma abordagem mais ampla, para trabalhar os conflitos subjacentes às quei- xas sexuais. Estas serão então consideradas como sintomas quaisquer, isto é, não essenciais em si, mas representantes dos desenvolvi- mentos conflituosos remontando à infân- cia. Não é supérfluo, aliás, lembrar que segundo as concepções da psicanálise, as perturbações sexuais mantém uma relação íntima com as neuroses; estas, em suas mais variadas ramificações, sempre afe- tam a esfera sexual, ou melhor, psicos- sexual da pessoa, o que produz facilmen- te sintomas ao nível da função sexual. Disfunções sexuais não neuróticas sem dúvida existem, mas elas nos parecem re- presentar uma minoria. Diante de conflitos conjugais e familia- res, a indicação que se impõe, teorica- mente, é a terapia conjugal ou familiar — se os protagonistas o desejam. Se não há um consenso a respeito, a psicoterapia re- cai em geral sobre o membro da família diagnosticado como paciente, em detri- mento da interação entre todos os mem- bros ou entre os cônjuges. Cabe ao entre- vistador incentivar, quanto possível, a aceitação de uma forma de psicoterapia grupai (de base analítica, sistémica ou mista), a não ser que os cônjuges ou outros membros da família se pronun- I ciem consciente mente (primeiro) para terapias individuais. A ideia de uma abordagem em conjunto pode caminhar, durante os processos individuais, e um dia desembocar em uma demanda ex- plícita. Os diversos quadros de deficiências fí- sicas e mentais, congénitas ou adquiridas, são indicações seguras para terapias de reabiliiação ou para treinamentos educa- tivos, em particular na linha comporta- mcntal. Avaliações cuidadosas deverão, no entanto, apurar a origem e a extensão destas deficiências, e investigar se não se irata de pseudo-afecções, notadamente em crianças e adolescentes, necessitando então de abordagens propriamente psico- terápicas. As jarmacodependências de todos os tipos, inclusive de álcool e de fumo, sem falar dos medicamentos, raramente são boas indicações para abordagens "clássi- cas", isto c, rigidamente estruturadas, com frequências e procedimentos rituali- zados. Tais pacientes poderão chegar a tais tipos de terapia em uma fase poste- rior, mas no início, será necessário ofere- cer-lhes uma assistência mais envolvente, mais afetiva do que técnica — sem no en- tanto perder de vista o objetivo terapêu- tico. Em consequência das oscilações da motivação destes pacientes, as psicotera- pias — com ou sem período de desintoxi- cação hospitalar — raramente lerão uma continuidade dírcta, mas serão intermi- tentes, o que exigirá uma grande flexibili- dade e disponibilidade da parte do psico- (erapeuta(ó). Numerosos são hoje em dia os "estados limítrofes'", denominação bastante cómo- da que dispensa dacidir quanto ã neurose ou psicose. . . Digamos que se trata de personalidades desestruturadas, com uma grande fragilidade narcísica, com uma im- portante problemática de identidade e com descompensações periódicas, depres- sivas ou de despersonalização. A indica- ção psicolerápica, se não a melhor, pelo menos a menos eontra-indicada, é aquela de uma psicoterapia interpessoal subjeti- va a longo prazo, passando por várias etapas de reconstrução da imagem de si (o sei}), até possibilitar um funcionamen- to mais integrado da personalidade{7). Os estados psicóticos, em seguida, representam tradicionalmente indicações para o tratamento psiquiátrico. Porém, muitos pacientes psicóticos podem apro- veitar, além da terapia medicamentosa, de um acompanhamento psicoterápico. Neste é possível focalizar aspectos parti- culares das dificuldades enfrentadas, como as crises de angústia, a falta de co- municação com os outros, o apragmatis- mo, problemas profissionais etc. Eviden- temente, este acompanhamento terá que se restringir às fases de acalmia, sendo que nas fases de surto, prioridade terá que ser dada à medicação ou mesmo à internação. Em muitos casos de psicose, a aborda- gem familiar é a mais indicada, sobretu- do quando o clínico percebe a presença de ligações simbióticas que, no seio da família, exercem um efeito psicotizante sobre um dos membros. A terapia fami- liar tentará, em tais casos, provocar uma redistribuição dos papéis na família e das interações que estes determinam, para tirar o paciente do seu papel de bode ex- piatório, ou seja, de "paciente diagnosti- cado". Em outros casos, embora raros, será possível desenvolver psicoterapias profundas a longo prazo, removendo ou, 171 pelo menos, tornando tolerável o núcleo psicótico do padente. Quanto às diversas formas de psicopa- tia, elas não representam, tradicional- mente, boas indicações para psicoterapia, a começar pela falta de interesse em se engajar em um tratametnto, ainda que a curto prazo. Como a grande dificuldade do psicopata — delinquente ou não — consiste em respeitar a lei, cie será sem- pre rebelde contra qualquer autoridade, inclusive aquela, muito relativa é verda- de, do psicoterapeula: ele não será incli- nado • se questionar a si mesmo sobre os problemas que enfrenta na vida, mas procurará sempre respostas fora dele para se justificar, isto c, para acusar os outros, as autoridades, a sociedade... Este quadro, no entanto, muda, quan- do elementos neuróticos (ou mesmo psí- cólieos) participam da conduta psicopata, situação na qual um interesse pela abor- dagem psicoterápica pode surgir, a partir de sentimentos de culpa, de traços obses- sivos ou perversos que incomodam, ou ainda, de crises de angústia ou de com- pulsividade que conduzem a atos anti- -sociais. Mas tais casos "limítrofes" são mais raros e não mudam a dificuldade ge- ral de propor — ao invés de impor — um tratamento a esta clientela muito espe- cial. Passamos assim, rapidamenle, em re- vista, os grandes quadros psicopatológi- cos, cuja diferenciação mais acurada não nos compete aqui. Para definir indicações psicoterápicas com pertinência, o entre- vistador clínico tem que dispor de conhe- cimentos aprofundados em psicopatolo- gia, bem como de uma experiência clínica ampla. Esta só se adquire com o tempo, de sorte que a realização de estágios, de supervisões e de práticas interdisciplina- res é indispensável para desenvolvê-la. Acrescentamos apenas a observação se- guinte: todo quadro psicopatológico, mes- mo com o maior comprometimento orgâ- nico — como no caso de psicoses exóge- nas, ou de alcoolismo, por exemplo — é passível de melhora através de psicotera- pias adequadas, de apoio ou de manuten- ção, desde que estas sejam conduzidas com cautela, com modéstia e pleno co- nhecimento dos seus limites, seja tão- -somente como forma terapêutica auxiliar. Impregnado deste espírito, o psicotera- peuta será capaz de oferecer ajudas mais eficientes e mesmo mais duradouras, até em casos considerados como desesperado- res, do que movido por ambições gran- diosas ou pelo furor sanandi de querer curar a Iodos... 7.2. A motivação do paciente Se o estado psicopatológico represen- ta um fator objetivo que pesa na indica- ção, a motivação se constituí em um fator subjetivo cuja avaliação decidirá sobre a indicação efetiva.Considerando somente o primeiro falor, chegaremos a uma indicação, talvez ideal, mas inevita- velmente abstraía e totalmente insuficien- te para engajar uma psicoterapia. Esta, ninguém pode prescrever ou encomendar para ouíra pessoa, à distância ou magica- mente; é o próprio sujeito que tem que querer fazê-la, uma vez que consiste em um tratamento subjetivo, que o paciente não recebe, mas faz. A sua motivação é, portanto, fundamental para uma indica- ção pertinente e realista. Podemos discernir vários tipos de mo- tivação com características defensivas, ca- muflando hesitação, ambivalência, ou simplesmente receio em se engajar na "aventura" psicoterápica. Enumera- mos quatro tipos, seguindo aqui as ideias de Schneider(8). Em primeiro lugar, certos paeientes apresentam uma motivação somática, isto é, baseada em achaques físicos (pressão alta, distúrbios digestivos, cardiopatia ete), cuja relação com conflitos psicoló- gicos não se deixa evidenciar. Muito pelo contrário, estes são negados, não existin- do então nenhuma razão para pensar em uma psicoterapia. Tais pacientes (ou "doentes funcionais") procuram, por con- seguinte, mais o clínico geral ou algum médico especialista — mas, após várias consultas c andanças, são com frequência encaminhados para uma psicoterapia, sem que sejam pessoalmente motivados ou mesmo capacitados para um tal em- preendimento (ver acima, 3.6.). Em alguns destes casos, porém, é pos- sível suscitar um interesse pelíi aborda- gem psicológica, sensibilizando o pacien- te para a dimensão intrapsíquica e para eventuais conflitos ali alojados, Como já frisamos, esta sensibilização será facilita- da iniciando-se o trabalho com uma abos- dagem corporal, na linha do relaxamento; mesmo assim, no entanto, "Ia será bem- -sucedida somente em uma minoria de ca- sos: a remoção da mera motivação somá- tica e de sua couraça defensiva é uma tarefa árdua. Como não é possível con- vencer alguém da inadequação de sua própria convicção, se esla lhe serve para fins defensivos, faltam instrumentos ade- quados para mudar a motivação, no sen- lido de suscitar um interesse ou mesmo uma demanda por psicoterapia. A motivação intelectualizada represen- ta um outro obstáculo para um ingresso prometedor cm psicoterapia. Aí, o pacien- te apresenta-se com uma demanda psico- lógica muito bem formulada e até super- claborada, mas carece de uma verdadeira motivação interna, de um "desejo" em se "submeter" a uma psicoterapia. Às ve- zes, ele quer impressionar o outro com os seus conhecimentos psicológicos ou com proezas de auto-análise, às vezes quer francamente competir com o terapeuta, tentando convencê-lo de dispor de uma visão adequada ou mesmo perfeita dos seus próprios conflitos (explicando, por exemplo, longamente, o complexo de Édipo do qual estaria padecendo. . .). fi claro, no entanto, que não basta ter uma visão intelectual ou racionalizada das próprias dificuldades psicológicas para engajar-se em uma terapia, uma \cx que esta não consiste em uma discussão teó- rica. Em tais casos, é aconselhável fazer várias entrevistas para testar a motivação do sujeito, para descobrir se existe um desejo pessoal em se questionar e cm des- vendar o que a intelectualízação encobre — ou se existe a convicção de já dispor de todas as respostas, tornando qualquer questionamento supérfluo. Neste caso, a psicoterapia será contra- -indicada; na primeira eventualidade, a intelectualização se deixa contornar ou neutralizar aos poucos, com um manejo hábil da relação psicoterápica, mas para que isto seja possível, exige-se muita ex- periência da parte do psicoterapeuta — até para não cair ele mesmo na armadilha da discussão teórica. Podemos falar de motivação deslocada, quando a pessoa se apresenta sob pres- são ou para agradar a uma outra pessoa. Tais candidatos "querem" fazer psicole- rapia, mas nas entrevistas percebe-se que a motivação é superficial, adquirindo al- 172 175 guma consistência apenas em consequên- cia da ligação afetivu com a pessoa inci- tadora. Com esta, descobre-se existir uma dependência acentuada, problemáti- ca sem dúvida a ser trabalhada em tera- pia, mas que arrisca, por si mesma, im- possibilitá-la, uma vez que se tem de colocar em questão o laço de depen- dência. Em tais casos, pois, a demanda não é autêntica, mas é oriunda da oulra pes- soa. Tomando consciência desta situação deslocada, o paciente pode chegar a ma- nifestar sua motivação pessoal ou pode desistir da ideia, até que o parceiro a inculque novamente. .. Hm quarto lugar, cabe falar da pseuáo- motivação, ocorrendo quando a. pessoa é mandada por uma autoridade. Ela aceita, então, submeter-se a uma psicoterapia em obediência a este mandato, ou simples- mente porque espera obter algumas van- tagens com esta sua "docilidade". Porém, não existe um desejo pessoal em enga- jar-se em uma terapia — ou melhor, acei- ta-se esta "submissão", mas por interes- ses que não são passíveis de uma elabo- ração psicoterápica. Esta, tomo já vimos, não consiste cm uma passividade submis- sa, razão pela qual, a rigor, ninguém "se submete" a uma psicoterapia, mas a jaz, aíivãmente, junto com o psicoterapeuta, mas também, de alguma forma, "diante"' dele, mas nunca "abaixo1' dele. No caso de uma pseudomotivação, não há conflitos psicológicos reconhecidos, base indispensável para uma motivação pessoa! e uma demanda de terapia. Na maioria das vezes, também não há um so- frimento pessoal; se este existe, ele não é reconhecido, é negado ou, ainda, é atri- buído a outros, seja em suas causas, seja em seus efeitos. Desta maneira, o ingres- so em psicoterapia formalmente c possí- vel; sem a cautela do entrevistador, tais ingressos chegam realmente a se efetuar, mas à revelia daquelas condições que, imprescindíveis, permitirão o desenvolvi- mento e aprofundamento da relação psi- coterápica. A partir de uma reflexão descritiva, é fácil distinguir estes quatro tipos de mo- tivações defensivas. Contudo, na prática, esta distinção se torna mais difícil, uma vez que não existe motivação "pura": todo pedido de psicoterapia contém algu- ma ambiguidade, hesitação e ambivalên- cia, decorrente do medo diante da in- cógnita que representa a psicoterapia — medo que coexiste mesmo com as mais apuradas motivações, as mait, cons- cientes e as mais decididas para se ques- tionar, se enfrentar e se descobrir. Mas os conflitos psicológicos profundos são te- nazes e não se deixam pôr em xeque por disposições conscientes; aqueles acompa- nham estas, são sublíminarmente perce- bidos c provocam medo e recuo, apesar de toda a "boa vontade" de entrar em te- rapia. Cabe, pois, ao entrevistador, ope- rar com discernimento circunspecto a avaliação da demanda do paciente, levan- do em conta o grau de motivação, bem como o peso dos benefícios (primários e secundários) que tira de sua problemá- tica psicopatológica e de suas atitudes de- fensivas, já mais ou menos incorporadas ao seu caráter e ao seu modo de vida. Se, nesta avaliação, nenhum dos quatro tipos mencionados se sobressai, a motivação pode ser considerada como válida e sufi- ciente para um ingresso em psicoterapia. E possível traçar uma outra diferencia- ção entre tipos de motivação, tocando desta vez às expectativas do paciente para com a terapia, e sobretudo para com a figura do terapeuta. Em todas as motivações humanas, in- tervêm elementos infanlis. Contudo, se estes prevalecem, estamos diante de um pedido de psicoterapia impregnado pelo pensamento mágico. Aí, o terapeuta é co- locado em uma posição de onipotência e onisciência, a partir da qual se espera que transmita ao paciente parte de seu saber e de seu poder. A atitude do paciente será passiva e submissa, embora ávida de ''receber' do outro —• mas de rece- ber o quê? No extremo, de receber tudo, e em particular de receber a "cura" de Iodosos males e achaques que o perse- guem. Percebe-se como esta expectativa é infantil, como ela acredita no poder mágico do terapeuta e como ela conta com a intervenção milagrosa daquele todo-poderoso. . . Poderá ser grande então a tentação deste de entrar neste círculo, onde se lhe atribuem poderes tão extensos e tão grati- ficantes, e onde lhe é oferecido um pedes- tal do qual poderá influenciar ou sim- plesmente dominar os outros. Portanto, ele não deverá sucumbir a esta tentação, mas desfazer esta expectativa mágica, através de um verdadeiro trabalho de desmistijicação, tanto do processo psico- terápico quanto da sua própria pessoa — trabalho que se confunde com o trabalho da psicoterapia em si, de lal maneira que não é possível, com certeza, liquidá-la nas entrevistas iniciais. Não obstante, é im- portante avaliar a extensão deste pensa- mento mágico; de alguma forma, ele sempre estará presente. Mas se ele domi- na sobremaneira, o ingresso em psicote- rapia será impossibilitado. Quando predomina o pensamento má- gico, os conflitos afloram dificilmente, porque ficam relegados ao inconsciente: desta forma, haverá engajamento pessoal insuficiente, com pouca motivação paru (se) trabalhar e se tornar autónomo. isto vale ainda para um segundo tipo de expectativa, embora siluando-se aos antípodas do primeiro, a saber, a deman- da racionalizada. Este tipo de paciente vem com uma motivação muito intelec- tualizada: ele já "sabe tudo" e vem mais à procura de uma aprovação, até para que seja dispensado de um esforço de desvelamento maior. Assim, ele tentará convencer o entre- vistador ou o terapeuta de como as suas teorias sobre seus problemas são bem- -fundadas e pertinentes •— pelo que sabe evitar o conflito, apresentando tudo de maneira racional e lógica. Este sistema ra- cional, elaborado de modo defensivo, protege os pontos fracos, até diante de uma intervenção terapêutica cuja necessi- dade pode ser sentida, mas que inspira medo. Cabe testar a solidez destas barri- cadas defensivas, mediante certas inda- gações, colocando em dúvida o bem-fun- dado da argumentação do paciente, lançando mão de uma interpretação "de ensaio" para ver a reação. Desta forma, será possível checar a presença de uma motivação verdadeira (ou não) "atrás" da fachada racional; será possível ver, tam- bém, até que ponto o paciente tem cons- ciência dos seus conflitos, ou se está pelo menos disposto a elaborá-los. Se há uma negação total de tais conflitos, "já resol- vidos", no entender do paciente, não ha- verá base suficiente para ingressar em um trabalho psicoterápico a médio ou a lon- go prazo. Podemos invocar um terceiro tipo de motivação, afeíiva mais do que intelec- tualizada. Ela representa a expectativa 174 175 ideal para o início de um trabalho psico- terápieo, quando combina a consciência da problemática pessoal com a motiva- ção, ou seja, o desejo de "se tratar", de se confrontar consigo mesmo. Neslas con- dições, o trabalho é aceito, apesar de todas as suas exigências, durezas c sofri- mentos; ele é aceito, porque a pessoa tem consciência de sua necessidade e acredi- ta nele, como sendo capaz de levá-la a um maior conhecimento de si mesma e, ademais, a uma libertação, pelo menos parcial, dos seus conflitos. Este tipo de motivação, profunda, re- fletida e decidida — na medida do possí- vel, uma vez que nunca se eliminam todas as hesitações e ambívalências —, merece ser chamado de ajetivo, pela pre- disposição que implica de desenvolver um vínculo afetivo no trabalho com o psicoterapeuta. Ela representa a base da possibilidade de trabalhar juntos, em in- teração e com intercâmbios subjetivos. Se isto não representa uma garantia para que o trabalho seja bem-sucedido, consti- tui pelo menos a base mais segura que se possa encontrar ao nível da motivação inicial. Se o psicoterapeuta consegue delectar a presença deste lipo de motivação, ao menos parcialmente, cie pode proceder com segurança à indicação de uma psico- terapia propriamente dita. Não é raro, aliás, que, em tais casos, já as primeiras entrevistas tenham valor de psicoterapia, graças à intensidade do engajamento do paciente, à densidade humana que as ca- racteriza, c ao material subjetivo que emerge e já começa a ser trabalhado. A transição entre a fase de avaliação e as sessões psicoterápicas se torna então na- lural, à condição, evidentemente, que seja 176 o mesmo profissional que dê continuida- de ao trabalho. 7.3. Fatores secundários que pesam na indicação Discutiremos aqui alguns fatores que não se revestem da importância da moti- vação e do estado psicopatológico, para proceder a uma indicação pertinente, mas que devem ser considerados para comple- tar o quadro de indícios. Mencionaremos quatro fatores: a idade, o nível sócio-cul- tural, a inteligência e a estrutura da per- sonalidade. Se não existe uma idade ideal para se fazer psicoterapia, existem indicações bastante específicas para as diversas fai- xas etárias. Contudo, cabe lembrar mais uma vez que o processo indicatóiio não corresponde a um procedimento exato: ele será sempre aproximativo, conjecturai e, portanto, passível de erros ou pelo me- nos cie imprecisões, É necessário contar com estas que, de fato, são corrigíveis —• à condição do processo ser levado a cabo com competência e seriedade. Há duas faixas de idade onde se mani- festa uma maior demanda de psicote- rapia, a saber, entre 20 e 30 anos, e de- pois entre 40 e 50 anos. A primeira faixa corresponde à idade onde o jovem adulto se fixa profissionalmente e afetivamente Mas, muitas vezes, ao sair de casa e en- frentar o mundo externo, aparecem difi- culdades, até aí escamoteadas e encober- tas pela convivência familiar. Posto à prova fora da família, manifestam-se então inseguranças, inibições, desadapta- ções e outros sinais de conflitos internos, oriundos, em particular, de fortes depen- dências familiares, não (ou insuficiente- mente) resolvidas. A fase do jovem adulto corresponde, pois, a uma nova fase crítica, após a da adolescência. Porem, em oposição a esta, aquela se distingue pela presença de uma autocrítica — às vezes até aguda de- mais — que precisamente faz falta na ju- ventude. Por conseguinte, aumenta a consciência quanto aos próprios proble- mas: as razões destes não são procuradas fora de si, nos outros, ou no sistema so- cial em geral, mas são localizadas dentro de si, condição sine qua non, como já vi- mos, para que haja algum interesse por psicoterapia. Nestas condições, o pedido de psico- terapia c frequente, representando uma boa indicação, cm geral, para uma abor- dagem descobridora — se é que há real motivação para tanto. Psicoterapias de grupo, no entanto, correspondem aí a uma alternativa interessante, uma vez que incluem a possibilidade de novos conta- tos humanos que podem torná-las mais atraentes do que as terapias individuais. Isto, de fato, vale também já para a pró- pria adolescência. Na faixa dos 40 a 50 anos, a situação já c outra, com problemáticas diferentes segundo o sexo. Entre 40 e 50 anos, o homem chega, de regra, ao apogeu de sua vida soeíal c profissional, com poucas perspectivas quanto a progressos ou mu- danças substanciais. Com isto, ele inevi- tavelmente começa a meditar mais sobre a vida, sobre o sentido de sua vida, sobre a sua fase descendente, o declínio, a mor- talidade. .. Os objetivos idealizados e ainda não realizados aparecem então como mais distantes, as possibilidades do futuro diminutas, as expectativas de gran- des sucessos frustradas. . . Tradicionalmente, o sucesso profissio- nal é mais importante para o homem do que para a mulher. Apesar das grandes mudanças que ocorreram a este respeito na sociedade moderna, a mulher continua a ter um vínculo privilegiado com a ma- ternidade e com a educação dos filhos. Ora, é durante a faixa etáriados 40 aos 50 anos que este vínculo aforuxa, que os filhos saem de casa à procura de sua pró- pria realização, social, profissional e afe- tíva. A mulher-mãe se vê então diante da tarefa de dar um novo sentido, um novo conteúdo à sua vida, seja se aconchegan- do mais à unidade conjugal (se não aos afazeres domésticos), seja ampliando os seus contatos sociais. De qualquer forma, esta fase represen- ta para ambos os sexos uma fase de mu- dança, implicando um estreitamento (tan- to real quanto imaginário) do espaço vital e, por conseguinte, frequentemente, uma autodepreciação, cujos efeitos depri- mentes devem ser aturados. Em outras palavras, trata-se de fazer o trabalho de luto pelas perdas sofridas, pelo passado evanescente e pelo futuro que se restringe. Aos sentimentos depres- sivos, juntam-se, então, aqueles de impo- tência, inutilidade e solidão crescentes, com o que aumenta a procura de ajuda psicoterápica. Esta se desenvolverá de modo diferen- te daquela do jovem adulto, visto que será mais difícil chegar a uma reestrutu- raçao global da personalidade, ou seja, à mais ampla resolução possível dos con- flitos profundos. Cabe ao terapeuta ava- liar, nesta segunda fase de grande deman- da, o grau de restrição do campo vital da pessoa, a sua motivação, a menor ou maior flexibilidade de sua personalidade, as suas perspectivas de engajamento futu- 177 ro, para optar seja por uma psicoterapia de apoio, circunscrita à elaboração dos problemas concretos ligados àquela faixa etária, seja por uma psicoterapia desco- bridora e profunda, seja ainda por uma terapia "existencial". Quanto às psicoterapias indicadas du- rante a injância e a adolescência, cabe fri- sar a sua especificidade. Ambas contêm um fator de complicação, que é a presen- ça dos pais, da família, que interferem no desenrolar da terapia ou fazem diretamen- te parte dela. Desta forma, esta terapia será mais complexa (ainda) que aquela do adulto, onde tradicionalmente a famí- lia está ausente •— a não ser no caso de pacientes psicóticos —, participando so- mente através de seus representantes inte- riorizados. A psicoterapia da criança e do adoles- cente corresponde pois a uma especializa- ção, necessária lambem pela intervenção de outros instrumentos terapêuticos do que a verbalização, em particular o brin- car, o dramatizar e outras formas não- -verbais. Como não podemos discutir aqui os ingredientes desta formação especiali- zada, remetemos o leitor à literatura es- pecífica sobre o assunto(9), lembrando que a distinção entre psicoterapias enco- bridoras e descobridoras se aplica tam- bém ao trabalho com crianças e adoles- centes. A /unção pedagógica será sein dúvida maciçamente presente, particular- mente nas técnicas derivadas da teoria da aprendizagem; não obstante, o divisor de águas quanto às duas formas menciona- das continua sendo o reconhecimento (ou não) da presença e da importância de conflitos inconscieníes. Partindo do pres- suposto de que estes estão atuantes já na infância e na adolescência, torna-se claro que eles podem ou mesmo devem ser tra- balhados, cabendo esta opção mais uma vez ao psicoterapeuta, em conformidade com a sua opção teórica e a sua posição ética. As psicoterapias com pessoas mais ido- sas devem adaptar-se às particularidades concretas destas faixas etárias. O que mencionamos a respeito da faixa dos 40 aos 50 anos, vale (mutatis mutandis) tam- bém para idades mais avançadas: a plas- ticidade dos processos psíquicos raramen- te será suficiente para uma terapia pro- funda. Salvo casos especiais, a indicação será prioritariamente para psicoterapias de apoio, focalizando dificuldades especí- ficas (fases depressivas, ansiosas, de agi- tação, doenças. . . ) . Sem dúvida pode ser indicado praticar uma "terapia de manu- tenção", mas, na maioria dos casos, será suficiente um apoio temporário, até que a dificuldade em pauta seja suficientemente contornada, as perspectivas sombrias de- sanuviadas. No que tange à questão do nível sóciu- -cultural, cabe frisar, em primeiro lugar, que ela não deve ser confundida com o nível económico. A condição económica da pessoa intervém eom certeza, uma vez que a classe socialmenfc favorecida tem mais acesso a informações sobre psicote- rapia. Desta forma, cia pode mais facil- mente interessar-se pela perspectiva te- rapêutica, ou mesmo chegar a bater na porta de um psicoterapeuta; mas dispor de informações não implica ainda se sen- tir motivado para iniciar uma psicotera- pia; para isto, precisa-se de outras condi- ções, que mais têm a ver com o nível sócio-cultural da pessoa (c com a sua per- sonalidade, é claro) do que com o seu nível económico ou financeiro. Hm outras palavras, a pessoa não tem que ser abastada, mas tem que ser dife- renciada, para que se inferesse por psieo- terapia. Isto diz respeito não à riqueza material, mas à riqueza interna, no senti- do de dispor daquelas características cuja presença é indispensável para possibilitar uma psicoterapia (v. acima, 3.6.), Esta diferenciação implica, pois, determinadas qualidades humanas, pelas quais a pes- soa detém capacidade introspectiva e in- teresse pela dimensão psíquica da existên- cia — qualidades estas que independem da classe social. De fato, não é raro encontrar pessoas que pertencem à população de baixa ren- da e que demonstram tais qualidades, como também é comum que pessoas oriundas das classes média e alta não as tenham. A dificuldade maior reside no acesso dos primeiros às informações so- bre psicoterapia, e em seguida, aos pró- prios profissionais, para que um desejo de tratamento possa se concretizar. Per- cebe-se, desta forma, como é importante o psicoterapeuta não somente trabalhar em consultório particular, mas também em instituições (ambulatório, clínica social, hospital. . .) , para que seus serviços se- jam acessíveis à população menos afor- tunada. . .(10) Quanto à questão da indicação, o profissional tem que avaliar o nível sócio-cultural do paciente com referência a esta diferenciação interna, para con- cluir (ou não) sobre a possibilidade de uma psicoterapia. Nesta avaliação, iníer- vêm aspectos éticos no que tange à res- ponsabilidade (social) do terapeuta. Ele nunca deveria perdê-la de vista, embora não seja possível regulamentá-la: cada um terá que decidir em função de sua própria consciência, se quiser dar a sua contribuição à melhora da justiça so- cial . . . Podem-se tecer considerações semelhan- tes sobre a questão da inteligência. Ela não depende da classe social à qual a pes- soa pertence, mas, mais uma vez, da di- ferenciação interna desta. E clara que um mínimo de inteligência, ou melhor, uma inteligência média é necessária para poder aproveitar uma psicoterapia ou, simples- mente, para interessar-se por ela. No en- tanto, é muito mais uma questão da qua- lidade da inteligência do que do seu grau; não é raro encontrar pessoas intelectual- mente brilhantes, mas com remoto inte- resse por psieoterapia c com remotas chances de poder tirar proveito dela. Isto vale em particular quando se trata de inteligência do iípo operacional, exe- cutiva ou técnica, onde se atribui pouco valor à introspecção ou aos valores hu- manos no sentido afetivo. Uma psicote- rapia, como já vimos, não é apenas um empreendimento técnico ou formal, não se deixa operar por computador, mas implica a capacidade relacional da pessoa. . . Esta esíá afetada também em represen- tantes de uma categoria psicopatológica que muitas vezes dispõem de inteligência aguda, mas que os desserve quando se trata de se questionar a si mesmos, a sa- ber, as personalidades paranóicas. A sen- sibilidade afetiva c até uma certa humil- dade são sem dúvida mais importantes, para a indicação psicoterápica, do que uma inteligência superior, visto que a su- perestimação de si mesmo não prepara para um ingressoprometedor naquela re- lação interpessoal subjetiva que se trata de desenvolver. No caso de pessoas que apresentam um baixo grau de inteligência — estados limites ou franca debilidade mental — não se trata de indicações para psicotera- 178 179 pia, a Vo ser, evidentemente, os casos t!e pset dodebilidade. Uma avaliação por- menorizada, sobretudo com crianças, per- mitirá na maioria das vezes decidir esta questão. Se a deficiência é realmente "pseudo", islo é, devido a razões neuró- ticas ou depressivas (ligadas em geral ao contexto familiar), então a indicação para psicoterapia é clara. Se não, a abor- dagem terapêutica terá que focalizar mui- to mais a reeducação do que a psicotera- pia propriamente dita, colocando em obra as técnicas que se coadunam com este objetivo(ll). Em último lugar, a questão da estrutu- ra de personalidade. Todos os fatores que discutimos permitem uma avaliação ape- nas aproximativa, o que é mais nítido ainda neste último item. Certos profissio- nais preferem até nem tocar na questão da estrutura, achando-a supérflua... Não obstante, acreditamos que ela faz sentido e que sua apreciação, mesmo su- mária, é relevante. Em particular, trata-se de avaliar a sua rigidez ou, pelo contrário, a sua flexibi- lidade. Pessoas rigidamente estruturadas, ao nível das chamadas jormações de ca- ráler, encontram muitas dificuldades em se adaptar à situação psícoterápica. Mui- tas -vezes, elas tentam convencer o psico- terapeuta de que elas "têm razão", ten- tando Iransformá-lo em um aliado, ao invés de aceitar a sua imparcialidade (relativa, é verdade) para questionar e enfrentar a si mesmas, com o concurso dele. Um mínimo de flexibilidade é impres- cindível para que o desejo de fazer psico- terapia seja seguido de uma colaboração efetiva. Se a rigidez é forte demais, a simples "boa vontade" fica inoperante, e os dois esbarram permanentemente com a 180 dificuldade de transformar a compreen- são — perfeitamente possível — do ma.- teria! patogénico em aproveitamento pes- soal, ao nível da conduta e de mudanças mais globais da personalidade. Se esta dificuldade aumenta com a ida- de, ela pode estar presente, cm evoluções desfavoráveis, já no início da idade adul- ta, representando um modo particular de defesa ("pelo carãfer") diante dos pró- prios conflitos. Da mesma maneira, per- sonalidades egocêntricas ou "narcísicas" encontrarão grandes resistências em acei- tar as "regras do jogo", em "entregar" o seu material mais íntimo, em "entre- gar-se" no relacionamento psicoterápico e em se questionar diante do outro, cuja posição "de superioridade" é ressentida como ofensiva e humilhante.. . Estes tipos de personalidade são às vezes denominados de "egonsíntônicos", no sentido de viver em perfeita sintonia com o próprio eu. Nestes casos, o confli- to defensivo foi de alguma forma assimi- lado pelo eu, foi-lhe incorporado para abrandar a oposição entre inconsciente —• fonte ou "Sugar" do material confli- tante — e instância do eu. Chega-se en- tão a uma identificação, a uma convivên- cia íntima com esle material conflituoso, resultante em uma formação (ou defor- mação) de caráter que dificulta ou mes- mo impossibilita a abordagem e a elabo- ração deste material. Desta maneira, a es- fera conflituosa fica bem protegida, c a procura de uma ajuda terapêutica tem, muitas vezes, mais o sentido de fortalecei' esta proteção — se não é para testar, sim- plesmente, a força do terapeuta.. . * * * Após ter discutido os diversos fatores que merecem consideração na questão da indicação à psicoterapia, insistimos mais uma vez sobre o caráter aproximativo e subjetivo deste procedimento. Não exis- tem critérios totalmente objeíivos aplicá- veis a todos estes fatores, de sorte que o psicoterapeuta tem que assumir a sua res- ponsabilidade pessoal no processo indica- tório. Da mesma maneira, não existem meios exatos para chegar a um prognós- tico ecrío, objetivo e fidedigno, o que nem na medicina existe; não obstante, o profissional tem que se questionar a este respeito, planejar a sua terapia, uma vez indicada, e prever pelo menos em gran- des traços o seu desenvolvimento pro- vável. Ressalta-se assim novamente uma das diferenças fundamentais entre medicina e psicologia clínica: na primeira, estando o agente patogénico identificado c o diag- nóstico estabelecido, a terapêutica está se- guramente indicada (fazendo abstração da possibilidade de erros diagnósticos). O procedimento é, portanto, exato e objeli- vo, se bem que na medicina humana, os fatores subjetivos (ou "psicossomáticos") complicam sobremaneira este quadro apa- rentemente simples. Os mesmos fatores, no entanto, se complicam bem mais ain- da na área psicológica, onde não basta identificar os conflitos básicos.. . O engajamento subjetivo, mola mestra do processo psicoterápico, como vimos, é um fator de extrema complexidade, res- ponsável por complicações sem fim, pró- prias da vida humana. Elas participam já do processo de indicação e não se deixam eliminar; o psieoterapeuta tem que ter consciência disto e tirar as conclusões que se impõem: que o erro está mais perto da natureza humana do que a certeza, como a mentira se evidencia mais do que a ver- dade — O que não impede de pro- curá-las. Contudo, não cabe radicalizar a oposi- ção entre medicina e psicoterapia. As di- ferenças existem e são fundamentais, mas existem também pontos de encontro e complementaridades. Isto se verifica em particular no campo da terapêutica, onde a combinação de terapia medicamentosa com psicoterapia é frequentemente indi- cada. Podemos enunciar como regra funda- mental — mas tão raramente observada -— que nenhuma medicação psicotró- pica deveria ser administrada sem um acompanhamento psicoterápico, seja tão- -somente de apoio. A eficácia dos medi- camentos aumenta pela ação conjunta, psíquica e somática, pela qua! a proble- mática que levou à prescrição medica- mentosa está sendo inserida e trabalhada no contexto concreto e global da existên- cia do paciente, ao invés de ser desconec- íada por uma ação unilateral. Além disto, torna-se possível prevenir, desta forma, a ocorrência de dependências iatrogênicas aos medicamentos psic o trópicos, tão co- muns quando o médico ou psiquiatra se limita à mera prescrição. São especial- mente os benzodiazepínieos que induzem facilmente tais dependências, sem falar dos barbitúricos, mais desvastadores ainda. É importante, pois, que o psicólogo clínico tenha algumas noções de psicofar- macologia, para que possa dialogar com os colegas médicos, em verdadeira inter- disciplinaridade, e para que possa reco- nhecer a pertinência de um concurso me- dicamentoso, em particular no caso de es- tados depressivos e de surtos psicóticos. Ademais, cabe discutir, além de tais indicações temporárias, a pertinência de 181 prescrição medicamentosa em estados cró- nicos, durante anos ou mesmo décadas; o acompanhamento psicoterápico corres- ponderá, então, sem dúvida, mais a uma relação de manutenção, paralelamente à ação medicamentosa. Nestes casos, uma alenção particular deverá cuidar da po- sologia, a ser mantida ao nível estritamen- te mínimo, para não entravar a ação psi- coterápica, nem a alividade social e afe- tiva do paeiente. Os bons clínicos sabem disto, mas é necessário enfatizar a importância da co- operação, visto os numerosos abusos ou erros que se constatam. Isto demonstra mais uma vez a complexidade da indica- ção, a ser proferida com senso crítico — que deve resultar de amplos conhecimen- tos clínicos c humanos — bem como de permanente autocrítica. Finalizando, insistimos que é indis- pensável, para uma indicação pertinen- te, que o profissional conheça as diversas linhas e modalidades psicoterápicas. Não precisa ser um conhecedor profundo de iodas as abordagens; ele pode até discor-dar de pressupostos teóricos ou clínicos de algumas delas, mas em certos momen- tos ele tem que se questionar se tal linha não parece a mais indicada para um de- terminado paciente —• c tem que concor- dar, então, humildemente que em outras linhas c "escolas" se possa fazer um bom trabalho também. .. Bibliografia e notas 1. Para o conjunto desta problemática, con- sulta-se tom proveito: MALAN, D. Psicoterapia Individual e a Ciência da Psicodinámica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983; em particular os ca- pítulos 17 a 19, onde o autor exemplifica B sua concepção com casos clínicos. 2. VAN DEN BORG, J. Metablêtka of Leer der Verauderiiigen, Nijkerk, Callenbach, 1958 («.• cd.). 3. Mencionamos o "princípio de cristal" de Frcud já no primeiro capítulo; lembramos aqui apenas que esta metáfora serve de base para a abolição teórica da segrega- ção entre normal e patológico. Freud se refere a esta metáfora explicitíimenle em 1933, na 31." Conferência de Introdução à Psicanálise; Edição Standard Brasileira, vol. XXII; Rio de Janeiro, Imago Editores, 1976. 4. MALAN, D. As Fronteiras da Psicotera- pia Breve. Porto Alegre, Artes Médicas, 1981. 5. LASCH, Cri.: The Cuíiure of Narcisism. New York: Norton, 1979. O autor aí de- senvolve uma análise da América do Norte dos anos setenta, onde a ênfase dada à individualização provoca comportamentos cada vez mais narcísicos, isto é, ligados ao culto da personalidade solipsista, enclausu- rada em sua redoma pessoal. 6. Ver BUCHER, R. c COSTA, P. F. A Abordagem Terapêutica do Toxicómano. Acta Psiquiátrica y Psicológica de América Latina (Buenos Aires) 31/3, pp. 113-130; 1985. 7. O representante mais destacado desta es- cola é sem dúvida HEINZ KOHUT. Ver, entre outras obras: Self e Narcisismo (1978). Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1984. 8. SCHNEIDER, P. B. Propédcutique d'une Psychothérapie. Paris, Payot, 1976. 9. Mencionamos apenas: — WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade (1971). Rio de Janeiro, Imugo Editora, 1975. — CHAZAUD, J. As Psicoierapias da Criança (1974). Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1977. 10. Ver MOFFAT, A. Psicoterapia do Opri- mido. São Paulo, Cortez Ed., 19H0. 11. Ver MANNONI, M. A Criança retarda- da e a Mãe (1964). São Paulo, Martins Fontes, 1985.