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<p>A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO</p><p>AULA 3</p><p>Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo</p><p>2 2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Freud não conceitualizou, especificamente, o tema do sujeito, mas, como</p><p>vimos, concebeu a estrutura da subjetividade da qual se pôde derivar um sujeito</p><p>com uma especificidade bastante original, para dizer o mínimo. Para ser mais</p><p>justo, promoveu mais do que uma revolução, uma verdadeira subversão da</p><p>subjetividade humana.</p><p>Coube ao psicanalista francês Jacques Lacan especificar na descoberta</p><p>freudiana isso que dela decorre, essa subversão do sujeito. Para fazê-lo, foi</p><p>necessário, antes, que denunciasse justamente sua obliteração, pela corrente</p><p>que se seguiu, pois, após a morte de Freud, a psicanálise foi progressivamente</p><p>se tornando um saber objetivo e objetivante.</p><p>Iniciaremos pelo desvio teórico e prático que acometeu o pós-freudismo</p><p>para situarmo-nos em relação ao retorno a Freud, proposto por Lacan. Em</p><p>seguida, enveredaremos pelo início do ensino de Lacan, situando sua</p><p>experiência clínica no que diz respeito ao Eu e ao registro do Imaginário.</p><p>Seguiremos pelos ditos “tempos áureos” do autor, o “Lacan do Simbólico”,</p><p>para especificar em alguns dos textos dessa época a estrutura do que chamou</p><p>de significante. Esse percurso nos indicará o lugar específico que o sujeito, tal</p><p>como especificado por Lacan, ocupará na teoria psicanalítica.</p><p>Na seção Na Prática, refletiremos sobre as incidências mais imediatas do</p><p>advento do significante para a estruturação da subjetividade para retomarmos,</p><p>na seção Finalizando, um pouco do conteúdo aqui esboçado.</p><p>TEMA 1 – A OBJETIFICAÇÃO DA PSICANÁLISE</p><p>Desde a morte de Freud, a medicina em geral e a clínica psiquiátrica em</p><p>particular passaram por mudanças significativas. O horror vivenciado por duas</p><p>guerras mundiais apresentou à humanidade sua face mais nefasta, seu potencial</p><p>de destruição convertido em ato.</p><p>Freud havia trazido às luzes algumas nuances das motivações mais</p><p>intoleráveis que jamais haviam sido pautadas e que subjazem ao espírito</p><p>humano. O Id, com seu Aqueronte de pulsões acéfalas e imorais, a perversidade</p><p>nelas contidas, enfim, tudo aquilo que a psicanálise havia exposto e que se</p><p>desencadearam com eloquência durante o período das guerras; tudo isso</p><p>3 3</p><p>convinha que a ciência médica e a psiquiatria em especial tratassem de não</p><p>tratar, ou seja, de recalcar.</p><p>Convinha que se reconstruísse o mundo e nele o humano sob outro viés,</p><p>o do positivismo, e os tempos áureos da clínica psiquiátrica foi dando lugar a</p><p>uma nova, em que o pragmatismo e a eficácia que tanto marcaram a prática</p><p>médica em tempos de guerra, “se estenderam à época da reconstrução</p><p>europeia, acabaram por ficar e tornaram-se os novos princípios que haveriam de</p><p>nortear o exercício da clínica médica” (Cabas, 2009, p. 99),</p><p>Os primeiros antidepressivos e antipsicóticos também foram sintetizados</p><p>nesse período, início dos anos 50, e intensificaram a promessa de cicatrização</p><p>dos males humanos, relegando a clínica como um mero conjunto de técnicas,</p><p>sem efeitos imediatos e anestésicos o suficiente, para cicatrizar as feridas das</p><p>guerras.</p><p>Exigiu-se da psicanálise aquilo que se exige da clínica médica, a saber,</p><p>uma explicação etiológica e causal, o mais objetiva possível.</p><p>Dessa maneira, a psicanálise perdeu o lastro freudiano que ainda lhe</p><p>restava e pendeu para a via explicativa. E aí, como se levitasse, livre</p><p>de suas âncoras, alçou voo e estabeleceu-se como uma teoria</p><p>universal. Válida para tudo e em todos os casos. Em outras palavras,</p><p>“assumiu um tom ao mesmo tempo triunfalista e cientificista</p><p>incompatível com os argumentos radicais sobre o mal-estar na</p><p>modernidade”. Mas, para encarnar esse propósito, para realizar essa</p><p>função de representar um saber universal, indubitável e explicativo,</p><p>teve que cortar as amarras que a prendiam à referência subjetiva. Essa</p><p>saída lhe permitiu explicar o mundo dos objetos nos mais íntimos</p><p>detalhes e com toda a objetividade, mas lhe impôs o caminho da</p><p>objetivação cientificista. (Cabas, 2009, p. 101)</p><p>Essa “virada” cientificista e sua consequente perda da referência subjetiva</p><p>chegou a soar bem aos ouvidos positivistas, e fez com que os psicanalistas</p><p>obtivessem êxito no seio científico da época, participando das discussões e do</p><p>métier acadêmico dando o tom para o que veio a se tornar a máxima tão</p><p>difundida de que Freud explica. Entretanto, no que concerne à especificidade da</p><p>descoberta freudiana, ela foi absolutamente negligente, senão hedionda. Pois</p><p>Freud, muito mais do que explicar, implica, e implica o sujeito e a subjetividade</p><p>sem a qual a psicanálise fica relegada a um mero compêndio de saberes</p><p>inócuos, que tomam o indivíduo como um objeto do que o acomete.</p><p>4 4</p><p>TEMA 2 – O “RETORNO” A FREUD</p><p>Coube a Lacan denunciar esse desvio do que chamou da Psicologia do</p><p>Eu, pois, a famosa frase com que Freud definia sua prática, de que “Onde o Isso</p><p>era, Eu devo advir”, segundo Cabas (2009, p. 100) foi traduzida como “O Eu</p><p>deve suplantar o Isso”, ou seja, o sentido da cura deveria ser o de municiar o Eu</p><p>não para a assimilação e subjetivação do Isso, mas para sua erradicação, para</p><p>a exclusão de toda a esfera inconsciente, o que condenava todo o campo aberto</p><p>por Freud à uma perda irreparável.</p><p>Lacan propôs Um Retorno aos fundamentos freudianos, sublinhando que</p><p>o objeto da psicanálise é o inconsciente.</p><p>Não surpreende, pois, que diante desse quadro a reação tenha sido</p><p>tão radical quanto imediata. Porque foi justamente o propósito de fazer</p><p>face a tão malfadado desfecho que impulsionou Lacan a formular seu</p><p>projeto. A advogar em favor de um retorno aos fundamentos —</p><p>entenda-se, freudianos. Tampouco há de surpreender que o primeiro</p><p>passo tenha sido a crítica frontal e sistemática do impulso à objetivação</p><p>ou da tendência objetivante. A contrapartida foi a insistência em</p><p>sublinhar o valor que tem a subjetivação e a assunção subjetiva na</p><p>descoberta freudiana. Nesse sentido, todo o esforço de Lacan</p><p>consistirá em destacar a tese capital da elaboração de Freud, segundo</p><p>a qual a psicanálise é uma prática voltada em primeira instância para</p><p>o reconhecimento do inconsciente e, no fim, para a subjetivação do</p><p>Isso. Donde cabe concluir que o “retorno a Freud” é um projeto de nítido</p><p>cunho epistêmico forjado para lutar em prol da reintrodução da função</p><p>do sujeito na elaboração analítica.</p><p>Porque o fato é que é nesse contexto que Lacan introduz a palavra que</p><p>faltava, a palavra que Freud esboçou, mas não chegou a fixar. A</p><p>palavra Sujeito. (Cabas, 2009, p. 101-102)</p><p>Obviamente que a mera introdução de uma palavra não resolveria a</p><p>situação. Foi necessário então que Lacan especificasse o valor do conceito</p><p>introduzido bem como sua especificidade em relação aos diversos usos que dela</p><p>se faziam em outros campos. Lacan o fez em uma referência, como veremos</p><p>mais adiante, à linguagem.</p><p>TEMA 3 – O EU E O IMAGINÁRIO</p><p>No Congresso Internacional de Zurique, em 1949, Lacan apresenta O</p><p>estádio do espelho como formador da função do eu, em que inicia dizendo que</p><p>a experiência que a psicanálise fornece da função do eu, “nos opõe a qualquer</p><p>filosofia diretamente oriunda do Cogito” (Lacan, 1998, p. 96).</p><p>5 5</p><p>Nesse texto, Lacan irá fixar o momento em que o infans, aquele que não</p><p>fala, aproximadamente por volta dos seis até os dezoito meses de idade, com o</p><p>suporte de um adulto, apreende sua imagem no espelho, não obstante sua</p><p>descoordenação motora.</p><p>Pois a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem</p><p>a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, numa</p><p>exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte do que</p><p>constituída, mas em que, acima de tudo, ela lhe aparecesse num relevo</p><p>de estatura que a congela e numa simetria que a inverte, em oposição</p><p>à turbulência de movimentos com que ele experimenta animá-la.</p><p>Assim, essa Gestalt,</p><p>cuja pregnância deve ser considerada como</p><p>ligada a espécie, embora seu estilo motor seja ainda irreconhecível,</p><p>simboliza, por esses dois aspectos de seu surgimento, a permanência</p><p>mental do [eu], ao mesmo tempo que prefigura sua destinação</p><p>alienante; é também prenhe das correspondências que unem o [eu] à</p><p>estátua em que o homem se projeta e aos fantasmas que o dominam,</p><p>ao autômato, enfim, no qual tende a se consumar, numa relação</p><p>ambígua, o mundo de sua fabricação. (Lacan, 1998, p. 98)</p><p>Essa fixação antecipatória da imagem vem oferecer um suporte ao que</p><p>até então fora vivenciado como traumático, no sentido de que as demandas que</p><p>atravessavam seu corpo lhe eram sentidas primeiro, como desprazerosas, e</p><p>segundo como parciais, pois parciais são as pulsões. Uma imagem, portanto,</p><p>que se imprime e que prefigura uma unidade até então inexistente e constituinte,</p><p>com efeitos decisivos sobre o organismo, como o atestam os estudos de</p><p>etologia, citados como exemplos por Lacan (1998, p. 98).</p><p>Uma experiência transformadora, portanto, e formadora, na medida em</p><p>que “o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da</p><p>insuficiência para a antecipação” (Lacan, 1998, p. 100). Desde então é que a</p><p>subjetividade irá dispor dessa capacidade do registro Imaginário, de organizar o</p><p>caos, de conferir unidade ao que é parcial, de conferir sentido ao que não tem.</p><p>A seu modo, é um antecedente da função subjetiva. Quer dizer, captura</p><p>o sujeito no fascínio da identificação espacial e organiza seus</p><p>fantasmas em uma matriz que vai da imagem fragmentada a uma</p><p>forma ortopédica — logo, uma figuração da sua totalidade. Dessa</p><p>maneira, acaba sendo algo assim como uma espécie de laboratório</p><p>onde se funda uma identidade alienante — uma armadura — cuja</p><p>rigidez marca de maneira decisiva todo o desenvolvimento mental</p><p>(Cabas, 2009, p. 120)</p><p>Essa imagem, mediada pelo outro, irá se precipitar sobre a parcialidade</p><p>das pulsões, como uma miragem de contornos imprecisos, acolhendo os</p><p>“semblantes sociais que permeiam a vida coletiva: o Ideal de Eu. Tudo isso sob</p><p>a estrita condição de manter a vida pulsional longe dessa esfera” (Cabas, 2009,</p><p>6 6</p><p>p. 120). Esfera, diga-se de passagem, precária, haja vista que a insistência da</p><p>imagem por fixar-se denota justamente a falta de uma materialidade que lhe dê</p><p>suporte nessa presunçosa função subjetiva. Essa materialidade à qual a</p><p>subjetividade pode ser referida é uma só, a pulsional, acéfala e imperiosa.</p><p>Assim,</p><p>No fundo, o ponto em pauta na formação do Eu se reduz a um</p><p>recobrimento imaginário do real. Do que se deduz que a operação</p><p>equivale a uma tentativa de enodamento, pois esboça um liame que</p><p>concerne o sujeito e situa a problemática inaugural da elaboração</p><p>lacaniana na confluência do real com a imagem. Mas o fato é que esse</p><p>esboço precisa de uma mediação, pois, entre a turbulência real dos</p><p>movimentos que animam o infans e a indeterminação da imagem que</p><p>ora se fixa e ora se esvai há um campo de indefinição. Por tal motivo</p><p>requer a intervenção do simbólico ou — para dizê-lo em termos</p><p>freudianos — a presença do inconsciente. (Cabas, 2009, p. 121)</p><p>TEMA 4 – O SIMBÓLICO</p><p>No contexto de 1950, em que a cura analítica fora distorcida ao ponto de</p><p>visar instrumentalizar o Eu, por exemplo, medindo-o, como aponta Lacan, “pela</p><p>capacidade de suportar uma frustração” (Lacan, 1998, p. 251); termos basais</p><p>como inconsciente e sexualidade foram cada vez mais perdendo espaço para</p><p>uma concepção adaptativa do sujeito. Lacan chega mesmo a apontar a que</p><p>ponto a inspiração norte-americana chegou no que tange ao desvio da</p><p>psicanálise “para a adaptação do indivíduo ao meio social (Lacan, 1998, p. 246).</p><p>Nesse contexto foi que ele reintroduziu aquilo que fora crucial quanto a</p><p>interpretação em psicanálise, a saber, que ela incide sobre a linguagem, que se</p><p>trata, portanto, de uma operação simbólica.</p><p>Pois a descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza</p><p>do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de</p><p>seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser.</p><p>Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a</p><p>experiência à ruína. (Lacan, 1998, p. 276)</p><p>Assim, em 1953, Lacan introduz um importante capítulo de seu ensino,</p><p>proposto como um retorno à Freud, isto é, à letra freudiana, aos seus</p><p>fundamentos que haviam sido obliterados pela corrente que preconizava o</p><p>fortalecimento de ego, a despeito de neuroses que padeciam, muitas vezes, de</p><p>um ego já demasiadamente forte, conforme nota de rodapé do texto Função e</p><p>campo da fala e da linguagem em psicanálise, de 1953 (Lacan, 1998, p. 251).</p><p>7 7</p><p>Esse texto, como afirma o próprio Lacan, inaugura o seu ensino e reafirma</p><p>o que seu aforismo visava consolidar, que o inconsciente é estruturado como</p><p>uma linguagem.</p><p>Afirmamos, quanto a nós, que a técnica não pode ser compreendida</p><p>nem corretamente aplicada, portanto, quando se desconhecem os</p><p>conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que</p><p>esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num</p><p>campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala. (Lacan,</p><p>1998, p. 247)</p><p>Lacan isolou o que chamou de simbólico, na teoria freudiana, a partir dos</p><p>textos “canônicos em matéria de inconsciente” A interpretação dos sonhos, Os</p><p>Chistes e sua relação com o inconsciente e A Psicopatologia da vida cotidiana,</p><p>em que as formações do inconsciente seriam absolutamente manifestas por vias</p><p>linguageiras (Lacan, 1998, p. 526).</p><p>Para isolar esse segmento da teoria freudiana, que denominou de</p><p>simbólico, Lacan se apoiou em Ferdinand de Saussure, criador da moderna</p><p>ciência da Linguística, tendo em vista, contudo, a questão do sujeito do</p><p>inconsciente.</p><p>O encontro de Lacan com Saussure deve ser compreendido no quadro</p><p>da busca de cientificidade para a psicanálise, almejada por Lacan de</p><p>modo muito particular, ou seja, ao situar de maneira nova a questão do</p><p>sujeito do inconsciente. Lacan pretendeu dar um contorno sólido à</p><p>crítica freudiana do sujeito racional da filosofia clássica e é por isso que</p><p>seu procedimento visa “demonstrar o caráter ilusório da consistência</p><p>do sujeito cartesiano”. (Jorge, 2008, p. 69)</p><p>Veremos que uma diferença capital entre a concepção saussuriana de</p><p>significante e a de Lacan reside exatamente nesta questão, a questão do sujeito,</p><p>pois, na sua definição de significante, Saussure, que criava uma ciência, excluiu</p><p>de seu sistema o sujeito.</p><p>TEMA 5 – O SUJEITO E O SIGNIFICANTE</p><p>O conceito de significante, tal como resgatado por Lacan, remonta ao</p><p>linguista suíço F. de Saussure que, no Curso de linguística geral, resgatava,</p><p>inclusive, postulações dos antigos estoicos no que diz respeito ao signo</p><p>linguístico. Esse signo, para Saussure, nada mais era do que uma unidade</p><p>indissociável entre um significante, ou seja, uma imagem acústica (Se) e um</p><p>conceito, o significado (So). Essa relação entre os dois se dá, para Saussure,</p><p>8 8</p><p>por uma arbitrariedade puramente convencional, o que explicaria, por exemplo,</p><p>que uma mesma imagem acústica, possa, em diferentes idiomas, ter diferentes</p><p>significações.</p><p>Significado (So)</p><p>Significante (Se)</p><p>O sistema de signos, para Saussure, resumidamente, se dispõe numa</p><p>relação de valor, que “revela, por um lado, que os elementos que compõem o</p><p>signo são interdependentes entre si e, por outro, que o signo não pode ser</p><p>isolado do sistema do qual faz parte e do qual é igualmente interdependente”</p><p>(Jorge, 2008, p. 77). Ou seja, o valor da significação depende das inter-relações</p><p>que os signos tomam uns com os outros, num sistema fechado, portanto, que</p><p>nos remete ao estruturalismo, do qual F. de Saussure também foi um dos</p><p>pioneiros.</p><p>Lacan, por sua vez, vai introduzir nesse sistema algo que aqui nos é</p><p>importante, ou seja, o sujeito, pois, no texto Função e campo da fala e da</p><p>linguagem em psicanálise, bem como em</p><p>A instância da letra no inconsciente ou</p><p>a razão desde de Freud, ambos inseridos nos Escritos, ele irá conferir, nessa</p><p>equação saussuriana, a primazia do significante.</p><p>Lacan isola na descoberta freudiana do inconsciente aquilo que</p><p>denomina de primazia do significante para o sujeito e, assim, inverte o</p><p>algoritmo do signo linguístico saussuriano (significado/significante),</p><p>escrevendo S/s: significante separado do significado por uma barra</p><p>resistente à significação: “O inconsciente é, em seu fundo, estruturado,</p><p>tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o</p><p>significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado,</p><p>mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito</p><p>caracteriza a linguagem enquanto tal é o sistema do significante</p><p>enquanto tal”. Se para Saussure o sentido provém do valor oposicional</p><p>entre os diversos signos, para Lacan, trata-se, no advento do sentido,</p><p>da inclusão do sujeito representado entre significantes. (Jorge, 2008,</p><p>p. 80)</p><p>Ora, Lacan irá representar diferente o signo linguístico, primeiro,</p><p>invertendo os termos. O S de significante vai para cima, no lugar preponderante</p><p>de numerador em relação ao s de significado que vai para baixo, no lugar do</p><p>denominador. O significante passa a ser grafado com S maiúsculo para denotar</p><p>Signo</p><p>9 9</p><p>sua primazia em relação ao significado, e também some o círculo que dava</p><p>unidade ao signo.</p><p>S</p><p>s</p><p>A linha que os separa os dois termos passa a sugerir não mais a relação</p><p>indissociável entre os dois lados de uma mesma moeda, como no caso anterior,</p><p>mas uma barra de resistência à significação, que confere, portanto, uma cisão</p><p>entre eles, atribuindo uma autonomia no que diz respeito ao significante, no</p><p>advento da significação, “Pois o significante, por sua natureza, sempre se</p><p>antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão (Lacan,</p><p>1998, p. 505).</p><p>A definição recorrente que Lacan dá sobre o significante é a seguinte: o</p><p>significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante, e vejamos</p><p>nisso pelo menos duas coisas bem importantes. A primeira é a inclusão do</p><p>sujeito do inconsciente na trama do simbólico, a segunda é a binariedade</p><p>estrutural do significante. O significante é bífido, bipartido, ele é um-dois, e o</p><p>sujeito comparece no intervalo entre os dois, nesse lugar ex-cêntrico, que não</p><p>se circunscreve por inteiro, mas desliza pela cadeia de significantes.</p><p>Do fato de que um significante vem a ser aquilo que representa um sujeito</p><p>para outro significante depreende-se, pois, que o sujeito não pode representar a</p><p>si mesmo, como tampouco pode um significante, por si, representar um sujeito.</p><p>Ou seja, o sujeito do inconsciente será localizado aí, nesse ponto, entre dois</p><p>significantes, o que não se confunde com o Eu, sede imaginária das</p><p>identificações alienantes, unitárias e completas. Tampouco se confunde com o</p><p>indivíduo que, aliás, etimologicamente falando, remete ao indivisível.</p><p>Ao contrário, tal como uma cabeça de Janus, o sujeito se especifica</p><p>por sua divisão constituinte, sendo determinado pelo simbólico</p><p>justamente enquanto barrado, dividido pelos significantes que o</p><p>constituem — daí Lacan escrever S para designar o sujeito. Lacunar,</p><p>evanescente, o lugar do sujeito é o lugar do corte, da escansão, da</p><p>ruptura, ao passo que o eu representa precisamente a configuração de</p><p>uma unidade, uma completude constituída imaginariamente. (Jorge,</p><p>2008, p. 96)</p><p>10 10</p><p>Notamos, assim, que o retorno à Freud que Lacan procede é preciso, na</p><p>medida em que especifica esse lugar que o sujeito ocupa, possibilitando que</p><p>sobre ele se opere uma escuta precisa, bem como intervenções cirúrgicas. Ao</p><p>grafar o sujeito do inconsciente como S, Lacan está destacando o</p><p>atravessamento que a linguagem promove sobre o ser, delimitando o lugar do</p><p>sujeito, impingindo a este seu lugar irremediavelmente fora da cadeia,</p><p>lateralmente referido, porém, dela participando desde esse lugar ex-cêntrico.</p><p>Ao fazê-lo, também especifica o registro do simbólico como o registro do</p><p>duplo sentido (Jorge, 2008, p. 46), imprescindível para a estruturação</p><p>inconsciente e para a produção de sintomas,</p><p>Pois, para admitir um sintoma na psicopatologia psicanalítica, seja ele</p><p>neurótico ou não, Freud exige o mínimo de sobredeterminação</p><p>constituído por um duplo sentido, símbolo de um conflito defunto, para-</p><p>além de sua função, num conflito presente não menos simbólico, e se</p><p>ele nos ensinou a acompanhar, no texto das associações livres, a</p><p>ramificação ascendente dessa linhagem simbólica, para nela detectar,</p><p>nos pontos em que as formas verbais se cruzam novamente, os nós</p><p>de sua estrutura, já está perfeitamente claro que o sintoma se resolve</p><p>por inteiro numa análise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado</p><p>como uma linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada.</p><p>(Lacan, 1998, p. 270)</p><p>Voltaremos ao tema do simbólico como duplo sentido em outra ocasião.</p><p>Por ora, nos cabe já verificar que essa estrutura de duplo sentido do registro do</p><p>simbólico é tributária dessa estrutura binária do significante, de sua característica</p><p>de representar o sujeito para outro significante e assim por diante.</p><p>Trata-se, portanto, de uma cadeia simbólica em que sempre se pode</p><p>inserir um significante sem, contudo, apreender definitivamente o sujeito que lhe</p><p>subjaz. O sujeito é causado por esse atravessamento que a linguagem</p><p>engendra, dividindo-o indefinidamente numa cadeia de significantes</p><p>autorreferenciada. Do que se pode depreender que não há um significado no</p><p>final, senão, uma questão, a questão do sujeito.</p><p>Que a experiência clínica nos demonstra que o deciframento analítico</p><p>dos conteúdos manifestos não desemboca na descoberta de um</p><p>significado propriamente dito. Mas ainda. Que o deciframento mostra –</p><p>como no caso Dora – é que não há um significado material, concreto</p><p>ou efetivo na latência dos sintomas. Pelo contrário, o que há é um</p><p>enigma. Um enigma encarnado não apenas nos dizeres da paciente,</p><p>mas inscrito em seu corpo, como o atestam os sintomas periódicos da</p><p>fragmentação histérica que a afetavam. E é esse enigma que percorre</p><p>o corpo da jovem e atravessa sua vida e suas escolhas que Lacan</p><p>denota como sujeito e dota de uma grafia peculiar: S. (Jorge, 2008, p.</p><p>96)</p><p>11 11</p><p>O sujeito, portanto, não é apreensível de forma direta, pelas vias do</p><p>simbólico, mas comparece indiretamente referenciado por ela, justamente nos</p><p>tropeços da língua, nas formações do inconsciente, inventariadas por Freud nos</p><p>livros “canônicos”, e só emerge enquanto questão, como uma presença estranha</p><p>ao Eu, que o destitui enquanto entidade unitária que preside todas as ações e</p><p>intenções.</p><p>Sua emergência, portanto, é sentida em forma de angústia.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Uma simples questão pode nos encadear na esteira da impossibilidade</p><p>significante no que diz respeito ao sujeito. No filme Melhor é Impossível, de 1997,</p><p>estrelado por Jack Nicholson, há uma cena interessante e engraçada em que o</p><p>protagonista, um neurótico obsessivo compulsivo pergunta para uma pessoa</p><p>quem ela é. A pessoa responde com seu nome, ao que ele a surpreende: “Não</p><p>perguntei qual é o seu nome, mas quem você é”. A pessoa, já um pouco</p><p>desconcertada começa então a falar o que faz ou gosta, e ele segue dizendo</p><p>que não está perguntando sobre o que ela gosta ou faz, mas quem é.</p><p>Isso se dá, naturalmente, porque a ordem dos seres e das palavras são</p><p>heterogêneas, ou seja, as palavras remetem-se umas às outras sem que se</p><p>possa efetivamente circunscrever o sujeito em si.</p><p>Tal como o poema de João Cabral de Melo Neto, em que Severino vai</p><p>inserindo significantes para nos dizer quem é, sempre demonstrando a</p><p>impossibilidade de fazê-lo, até que culmina: “Mas, para que me conheçam</p><p>melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida,</p><p>passo a ser o Severino que em vossa presença emigra”.</p><p>Ou seja, o sujeito, o sujeito propriamente</p><p>dito, emigra, evade-se diante da</p><p>precariedade da linguagem, não se identificando com seu nome nem com</p><p>quaisquer insígnias que sobre ele venham a se dispor. O sujeito é uma questão</p><p>que não se apreende pelas vias do simbólico, senão, pela falta que faz a cadeia</p><p>derivar.</p><p>12 12</p><p>FINALIZANDO</p><p>Vimos que a psicanálise, em meados dos anos 1950 já tinha perdido</p><p>significativamente sua referência subjetiva em prol de um cientificismo</p><p>objetivante, que explicava os fenômenos nos moldes da medicina da época. Nos</p><p>Estados Unidos, a coisa foi ainda mais longe, de um modo tal que o Eu foi</p><p>tomado como o centro das atenções, e a psicanálise passou a ter por objetivo,</p><p>nas palavras de Lacan, uma adaptação do sujeito ao seu meio social.</p><p>Coube a Lacan denunciar esse desvio do que chamou da Psicologia do</p><p>Eu, pois, a famosa frase com que Freud definia sua prática, de que “Onde o Isso</p><p>era, Eu devo advir”, segundo Cabas (2009, p. 100) foi traduzida como “O Eu</p><p>deve suplantar o Isso”, ou seja, o sentido da cura deveria ser o de municiar o Eu</p><p>não para o acolhimento e subjetivação do Isso, assimilando-o, mas para sua</p><p>erradicação, seu deslocamento, para a exclusão de toda a esfera inconsciente e</p><p>pulsional, o que condenava todo o campo aberto por Freud à uma perda</p><p>irreparável.</p><p>Lacan propôs assim um retorno à Freud, e esse retorno consistiu na</p><p>introdução e especificação da esfera subjetiva, ou seja, do sujeito do</p><p>inconsciente tal como entrevisto na experiência freudiana, no que ele se constitui</p><p>em relação à linguagem.</p><p>Lacan iniciou, contudo, pela crítica e aprofundamento do registro do Eu</p><p>relacionando-o ao estádio do espelho, momento constituinte desse registro que</p><p>é o do Imaginário e que irá configurar a matriz do Eu, sede das muitas</p><p>identificações alienantes subsequentes.</p><p>Desde o momento em que o infans apreende sua imagem no espelho, a</p><p>partir de então, essa imagem, mediada pelo outro, irá se precipitar sobre a</p><p>parcialidade das pulsões, como uma miragem de contornos imprecisos,</p><p>acolhendo inclusive seus substitutos sociais que permearão a vida coletiva sob</p><p>a forma de um Ideal de Eu. Essa imagem, ou as muitas imagens que aí virão a</p><p>se somar terão como finalidade a manutenção da vida pulsional o mais longe</p><p>possível.</p><p>Porém, essa imagem é muito precária para o fazer completamente, pois</p><p>carece de materialidade que lhe dê suporte nessa função subjetiva.</p><p>Materialidade essa que só pode ser pulsional. Assim, o Simbólico, isto é, o</p><p>13 13</p><p>registro psíquico do inconsciente vem em suplência para amarrar a estrutura,</p><p>com vistas a recobrir o Isso e as pulsões.</p><p>É como se Lacan começasse por esmiuçar o Eu e o registro do Imaginário</p><p>que vinha tomando conta da direção do tratamento em psicanálise, como que</p><p>para pôr uma lente sobre sua maquinaria e demonstrar as vísceras de uma</p><p>imagem alienante e alienadora, que em si mesma não poderia dar respaldo a</p><p>emancipação do sujeito frente às suas questões. Ele toma o Eu em seus</p><p>fundamentos e demonstra o que dali se poderia tirar.</p><p>Em seguida, demarca que a experiência psicanalítica é da ordem das</p><p>relações do ser humano com o registro do Simbólico, que as formações do</p><p>inconsciente se dão pelas vias linguageiras e que, portanto, no seu retorno à</p><p>Freud, o que Lacan visa especificar é justamente a posição que o sujeito ocupa</p><p>nesse registro, ou melhor, a posição que esse registro vem a conferir a ele, o</p><p>sujeito.</p><p>Lacan se apoia, assim, no linguista F. de Saussure para extrair da sua</p><p>ciência a materialidade do registro simbólico que fora desbravado por Freud.</p><p>Isola assim, do signo proposto por Saussure, o significante, dando a ele a</p><p>primazia em relação ao significado. Se para Saussure o signo consistia numa</p><p>relação indissociável entre significante e significado, Lacan irá destituir o signo</p><p>de sua unidade incidindo sobre o significante a primazia. Ou seja, é sobre a</p><p>imagem acústica, o significante, que o inconsciente advém, de modo que é sobre</p><p>as palavras, mais rudimentarmente falando, que opera o psicanalista com sua</p><p>escuta e suas intervenções.</p><p>Ao definir o significante como aquilo que representa um sujeito para outro</p><p>significante, Lacan introduz o sujeito na cadeia simbólica, conferindo a ele um</p><p>lugar excêntrico, lateralmente referido, porém, inserido na estrutura,</p><p>condicionando-a. Seu lugar será entre os significantes, na medida em que só</p><p>pode ser referido por um significante para um outro significante.</p><p>Essa definição circular denota duas questões muito importantes, a</p><p>primeira é a inclusão do sujeito do inconsciente na trama do simbólico, a segunda</p><p>é a binariedade estrutural do significante. O significante é bífido, bipartido, ele é</p><p>um-dois, e o sujeito comparece no intervalo entre os dois, nesse lugar ex-</p><p>cêntrico, que não se circunscreve por inteiro, mas desliza pela cadeia de</p><p>significantes.</p><p>14 14</p><p>Do fato de que um significante vem a ser aquilo que representa um sujeito</p><p>para outro significante, depreendemos que o sujeito não pode representar a si</p><p>mesmo, como tampouco pode um significante, por si, representar um sujeito. Ou</p><p>seja, o sujeito do inconsciente localizado aí, nesse ponto, entre dois significantes,</p><p>não se confunde com o Eu nem com o indivíduo.</p><p>Se Lacan grafou o sujeito do inconsciente com S, isso se dá porque o</p><p>sujeito é atravessado por ela, que o causa, assim, dessa forma dividida. Na</p><p>cadeia significante, sempre se pode inserir um significante sem, contudo,</p><p>apreender definitivamente o sujeito que lhe subjaz. O sujeito é causado por esse</p><p>atravessamento que a linguagem engendra, dividindo-o indefinidamente numa</p><p>cadeia de significantes autorreferenciada, que resiste à significação. Do que se</p><p>pode depreender que não há um significado no final, senão, uma questão, a</p><p>questão do sujeito.</p><p>15 15</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do</p><p>sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.</p><p>JORGE, M. A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. 5. ed. Rio</p><p>de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.</p><p>LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.</p>