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Florianópolis, 2008 Acesso à terra urbanizada implementação de Planos Diretores e regularização fundiária plena Venda Proibida Secretaria Nacional de Programas Urbanos Ministério das Cidades Autores Alexandra Reschke Camila Agustini Claudia Virginia de Souza Cristiane Siggea Benedetto Denise Gouvêa Edésio Fernandes Ellade Imparato Gabriel Blanco José Abílio Belo Pereira Junia Santa Rosa Margareth Matiko Uemura Otilie Macedo Pinheiro Patrícia de Menezes Cardoso Patryck Araújo Carvalho Paula Santoro Paulo Somlanyi Romeiro Pedro Jorgensen Raquel Rolnik Renato Cymbalista Rosana Denaldi Rosane Tierno Sandra Ribeiro Simone Gueresi Equipe editorial Coordenação Geral Celso Santos Carvalho (SNPU/MCidades) Denise Gouvêa (SNPU/MCidades) Renato Balbim (SNPU/MCidades) Coordenadores dos Módulos Otilie Macedo Pinheiro– Módulo I (especialista) Cristiane Benedetto – Módulo II (especialista) Supervisão Editorial Ana Luzia Dias Pereira (SEaD/UFSC) Karine Pereira Goss (SEaD/UFSC) Supervisão Educacional Marivone Piana (SEaD/UFSC) Design Instrucional Dauro Veras (SEaD/UFSC) Marina Cabeda Egger Moellwald (SEaD/UFSC) Projeto gráfico Márcio Judas (SEaD/UFSC) Pricila Cristina da Silva (SEaD/UFSC) Thaís de Almeida Santos (SEaD/UFSC) Victor Américo (SEaD/UFSC) Diagramação André Rodrigues da Silva (SEaD/UFSC) Felipe Augusto Franke (SEaD/UFSC) Pricila Cristina da Silva (SEaD/UFSC) Editoração eletrônica Amanda Chraim (SEaD/UFSC) Rafael de Amaral Oliveira (SEaD/UFSC) Ana Maria Elias Rodrigues (SEaD/UFSC) Juliana Schumacker Lessa (SEaD/UFSC) Ilustração Renata Brandão Miguez (SEaD/UFSC) Revisão Textual Marcelo Mendes de Souza (SEaD/UFSC) Tiragem: 1.200 exemplares 1ª Edição A174 Acesso à terra urbanizada : implementação de planos diretores e regularização fundiária plena / Otilie Macedo Pinhero ... [et al.]; coordenação Celso Santos Carvalho, Denise Gouvêa, Renato Balbim. – Florianópolis : UFSC; Brasília : Ministério das Cidades, 2008. 366 p. ISBN: 978-85-7426-018-1 1. Planejamento urbano. 2. Política fundiária. 3. Administração publica. 4. Terras – Utilização e planejamento. 5. Educação a distância. I. Pinheiro, Otilie Macedo. CDU: 711.4 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Governo Federal – Ministério das Cidades PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DE ESTADO DAS CIDADES Marcio Fortes de Almeida SECRETÁRIO NACIONAL DE PROGRAMAS URBANOS (substituto) Benny Schasberg CHEFE DE GABINETE Sandra Bernardes Ribeiro DIRETOR DE ASSUNTOS FUNDIÁRIOS URBANOS Celso Santos Carvalho Universidade Federal de Santa Catarina REITOR Álvaro Toubes Prata VICE-REITOR Carlos Alberto Justo da Silva Secretaria de Educação a Distância SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Cícero Barboza COORDENAÇÃO FINANCEIRA Vladimir Fey COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA Nadia Rodrigues de Souza SUPERVISÃO DE LINGUAGEM EM EAD Ana Luzia Dias Pereira O Curso a distância “Acesso à terra urbanizada: implementação de Planos Diretores e regularização fundiária plena”, fruto da parceria do Ministério das Cidades com a Universidade Federal de Santa Catarina, faz parte de uma das ações prioritárias do Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, de apoiar os municípios e estados na implementação do Estatuto da Cidade. Nosso desafio é fortalecer a construção da política nacional de desenvolvimento urbano e de acesso à terra urbanizada para todos, rompendo com o quadro de exclusão social e degradação das nossas cidades. Para a execução dessa política, é fundamental ampliar as ações de capacitação em planejamento e gestão urbana e mobilizar entes públicos e a sociedade civil para esta missão. O Ministério das Cidades busca, desta forma, estimular os municípios e os cidadãos a construírem novas práticas de planejamento e gestão democrática. Convidamos, portanto, a todos os alunos deste Curso a serem agentes multiplicadores, disse- minando uma nova cultura urbana mais democrática, includente, redistributiva e sustentável para os municípios brasileiros. Marcio Fortes de Almeida Ministro de Estado das Cidades A Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades enfrenta como desafios estratégicos a implementação dos planos diretores e a ampliação das ações de regularização fundiária. Para implementar a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano em construção, torna-se fundamental reforçar as ações de capacitação, sensi- bilização e mobilização. O Objetivo é estabelecer uma nova cultura urbana para o País, cujas bases estão referenciadas na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Em 2008, pretende-se dar seqüência às ações já iniciadas de capacitação e uma de- las é a realização do segundo Curso à distância “Acesso à terra urbanizada: imple- mentação dos Planos Diretores e regularização fundiária plena”. O primeiro curso, realizado em 2006, ofereceu uma especialização para 900 alunos na temática da regularização fundiária plena. Este segundo, ampliando e incorporando o tema da implementação dos Planos Diretores, pretende aprofundar o conhecimento dos alunos a partir de dois módulos básicos. O Módulo 1 trata da implementação dos Planos Diretores, com seis aulas, enfocan- do principalmente dois desafios básicos no sentido de reverter o nosso modelo de urbanização excludente e predatório, que são: ampliar a oferta de terra urbana urbanizada e bem localizada para moradia de interesse social e implementar nos municípios um processo de planejamento e gestão eficiente e democrático. Para entender os limites e possibilidades de acesso ao solo urbano, esse Módulo co- meça pela análise do processo brasileiro de urbanização, do mercado de bens imo- biliários e da formação dos preços do solo urbano. São apresentadas as conquistas recentes tanto no marco legal quanto nas políticas públicas de implementação dos planos diretores e de ampliação do acesso à moradia e são detalhados os novos ins- trumentos colocados à disposição dos municípios para a ampliação do acesso à terra e de gestão da valorização imobiliária resultante de obras e outras ações do Poder Público. Apresenta orientações também para melhorias na gestão municipal, para que a aplicação de recursos esteja associada à política fundiária e ao controle social, particularmente, como instrumento de implementação dos Planos Diretores. O Módulo 2, com seis aulas, abordará a “regularização fundiária plena”. Apresenta- rá, inicialmente, os conceitos e as bases legais da regularização fundiária de interes- se social nas áreas urbanas e fará uma reflexão sobre a integração da regularização fundiária com o planejamento territorial. Abordará os procedimentos básicos comuns a todos os processos e instrumentos de regularização fundiáriua. Apresentará também uma visão geral e prática sobre os as- pectos que interferem nos procedimentos de registro, especialmente aqueles relacio- nados à retificação de registro dos imóveis ocupados ou parcelados irregularmente. Este Módulo ainda mostrará os procedimentos específicos de regularização fun- diária de ocupações de interesse social em áreas públicas e privadas, diferencian- do as áreas públicas da União, dos estados e dos municípios. Neste Módulo, será também detalhada a regularização dos loteamentos irregulares e clandestinos e a regularização dos conjuntos habitacionais. Assim, O Ministério das Cidades, por meio da SNPU, espera que todos os partici- pantes do Curso à distância“Acesso à terra urbanizada: implementação dos Planos Diretores e regularização fundiária plena” sejam agentes na construção da nova política nacional de desenvolvimento urbano e multiplicadores ativos na imple- mentação dos planos diretores e da regularização fundiária plena. Benny Schasberg Secretário Nacional de Programas Urbanos A segunda metade do século XX foi marcada pela rápida e desordenada migração populacional do campo para as cidades. Tal fenômeno vincula-se ao contexto de mudanças econômicas, políticas, sociais e tecnológicas de abrangência internacio- nal: crescente industrialização; aumento da produtividade agropecuária, com libe- ração de mão-de-obra; investimentos consideráveis, mas sem eqüidade, na infra- estrutura dos centros urbanos; massificação do uso do automóvel, entre outras. Três quartos da população da América Latina já vivem nas cidades. A maioria, em condições precárias. No Brasil a urbanização ocorreu em velocidade muito superior à dos países capita- listas mais avançados. Em 1940, menos de um terço da população vivia nas cida- des. A partir da década de 1950, houve forte migração do campo para os grandes centros, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, mas também para as capitais dos estados. Em 1970 já havia mais gente vivendo em centros urbanos que em áreas rurais. Segundo o censo demográfico do IBGE, em 2000 as cidades concentravam 81,25% dos brasileiros. A acelerada transformação do Brasil em país urbano foi marcada pela desigualda- de de oportunidades, privando a população de menor renda de condições básicas para uma vida digna. Conseqüências do “inchaço” das cidades podem ser acompa- nhadas no noticiário e vividas no cotidiano: violência; desmoronamento de mo- radias em áreas de risco; precariedade no transporte; falta de infra-estrutura para educação, cultura e lazer; problemas de saúde pública pela ausência de saneamen- to básico e pela destinação inadequada de lixo etc. Por diversos motivos, tem sido limitada a capacidade dos municípios de planejar e gerir seu território. Faltam referências regionais e nacionais de planejamento. Falta também, é preciso reconhecer, experiência na construção de projetos com parti- cipação democrática efetiva das comunidades. Por outro lado, nos últimos anos a conjuntura política, administrativa e econômica tornou-se mais favorável a avanços na estrutura fundiária. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade criaram um arcabouço legal para alavancar o desenvolvimento sustentável em áreas urbanas. Há experiências positivas que podem e devem ser disseminadas. O curso a distância Acesso à Terra Urbanizada, promovido pela Secretaria Nacio- nal de Programas Urbanos do Ministério das Cidades em parceria com a Univer- sidade Federal de Santa Catarina, é uma contribuição relevante para enfrentar o problema com soluções factíveis. Nós da UFSC nos sentimos gratificados em dar suporte técnico-pedagógico para qualificar profissionais que colocarão seus co- nhecimentos a serviço da sociedade brasileira. Álvaro Toubes Prata Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina Sumário Módulo I ......................................................................................19 Aula 01 Acesso ao solo urbano: limites e possibilidades ................ 21 Aula 02 O mercado imobiliário e a formação dos preços do solo ................................................... 51 Aula 03 Gestão social da valorização da terra ..................................... 77 Aula 04 Instrumentos de ampliação do acesso à terra urbanizada ........................................................103 Aula 05 Acesso à moradia ........................................................................131 Aula 06 Gestão Urbana Integrada e Participativa e a implementação dos Planos Diretores ..............................161 Módulo II ...................................................................................187 Aula 07 Regularização de assentamentos informais: o grande desafio dos governos e da sociedade ..............189 Aula 08 A regularização fundiária plena: questões comuns a todos os processos .............................213 Aula 09 O registro imobiliário: conceitos e bases legais ...............239 Aula 10 Regularização fundiária de ocupações em áreas públicas ...............................................279 Aula 11 Regularização fundiária de interesse social em áreas privadas ............................................................315 Aula 12 Regularização fundiária de interesse social de loteamentos e conjuntos habitacionais ...........333 Autores .............................................................................................................361 Guia do Curso Você está iniciando o Curso Acesso à Terra Urbanizada: Implementa- ção de Planos Diretores e Regularização Fundiária Plena, promovido pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina. O Curso está organizado em doze aulas que serão desenvolvidas ao longo de doze semanas. Neste Curso você encontrará subsídios para: Identificar os limites e possibilidades de ampliação do acesso à • terra urbanizada. Conhecer e analisar os instrumentos de gestão social da valorização • da terra. Abordar diferentes aspectos relativos à regularização fundiária e • aos planos diretores municipais. Incentivar a elaboração de planos diretores participativos que • visam a função social da propriedade. Aprofundar estudos sobre a questão fundiária na política habita • cional e urbana do país e as formas de acesso à moradia. Divulgar o conhecimento e a compreensão do Estatuto da Cidade. • Buscar alternativas para o mercado de terra, a recuperação de cus • tos e a auto-sustentabilidade na provisão de infra-estrutura básica. Incentivar a elaboração de uma proposta de gestão urbana inte • grada e participativa. Abordar as questões relacionadas à regularização fundiária de assenta- • mentos informais de interesse social, com ênfase em terras públicas. Material impresso Este é o “livro-base” do Curso. Nele você encontrará o conteúdo das doze aulas com as indicações de leituras complementares e das atividades que você vai realizar no Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA), como os fóruns e os chats. Outros quatro livros, elaborados pele MCidades, comple- mentam os conteúdos desenvolvidos neste livro. São eles: Para avançar na Regularização Fundiária. Biblioteca Jurídica de Regularização Fundiária Plena Manual da Regularização Fundiária Plena Regularização Fundiária Plena: referências conceituais O livro-base é composto por dois Módulos, cada um com seis aulas. O Módulo I, Acesso à Terra Urbanizada: Implementação dos Planos Diretores, aborda aspectos relativos à implementação do Estatuto da Ci- dade e do plano diretor municipal. Partindo do processo de urbanização brasileiro, você vai conhecer os limites e as possibilidades de acesso ao solo urbano; o mercado de terras e a infra-estrutura básica sustentável; os instrumentos de gestão social da valorização da terra e de ampliação do acesso à terra urbanizada; o acesso à moradia; e uma proposta de gestão urbana integrada e participativa. O Módulo II, Regularização Fundiária de Interesse Social, aborda con- ceitos, bases legais e exemplos dos procedimentos comuns a todos os pro- cessos de regularização fundiária plena. Recursos didático-pedagógicos O livro-base contém uma série de ícones que sinalizam momentos distin- tos de uma aprendizagem à distância: indicação de leituras complementa- res e de atividades que serão desenvolvidas noAVEA Atividades – Indicação das atividades que você deverá desenvolver, muitas vezes, com seus co- legas. iSaiba mais – Informações mais detalhadas sobre o assunto em questão, muitas vezes, com referências bibliográficas para leituras complementares. @ Link – Indicação de endereços eletrônicos relacionados ao con- teúdo exposto, nos quais você encontrará informações adicio- nais sobre determinados temas. Fórum – Indicação de questões específi- cas que estarão posta- das no AVEA e que de- verão ser debatidas por você e por seus colegas. Música – Indicação de músicas, pos- tadas no AVEA, que serão utilizadas no de- senvolvimento de ativi- dades propostas. Chat – Indicação das temáticas que serão desenvolvidas nos chats virtuais programados para o Curso. Biblioteca Virtual - Indicação dos arqui- vos, com leituras com- plementares, que estão postados no AVEA. Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) O AVEA é um espaço virtual interativo no qual você irá desenvolver as atividades propostas no Curso. É neste espaço, por exemplo, que ficam pos- tados os arquivos e materiais que você utilizará no Curso. É também por meio deste espaço que você vai interagir com os seus colegas, tutores, pro- fessores e monitores. Acesse o AVEA do curso periodicamente para que você saiba quais os temas e horários dos chats programados. Serviço de apoio ao estudante Tutoria Neste Curso, você contará com um(a) tutor(a), que estará à sua dis- posição para orientá-lo(a) a respeito dos procedimentos para a utilização do AVEA e a realização das atividades propostas. O papel do tutores é fundamental na Educação a Distância, pois são eles que mantêm uma co- municação dinâmica e constante com você, motivando-o(a) a participar das atividades do Curso. Eles disponibilizam o material pedagógico, corri- gem as atividades, organizam, divulgam e interagem com você nos chats e fóruns. Enfim, eles estão sempre dispostos a auxiliá-lo em seu processo de estudo, orientando-o(a) individualmente e em pequenos grupos. Monitoria Os monitores(as) são responsáveis pelo esclarecimento de dúvidas admi- nistrativas e relacionadas ao desenvolvimento do Curso, como, por exemplo: atualização de dados cadastrais; • problemas com logins e senhas para acessar o AVEA; • confirmação de horários de • chats; confirmação de dados para organização e envio dos certificados • de conclusão do Curso. É importante saber Cada tutor será responsável por um mesmo grupo de estudantes do início ao fim do Curso. Quando o Curso começar você será contactado, por e-mail, pelo seu tutor. Assim, você será informado sobre seu horário de atendimento. Procure entrar em contato com seu tutor no horário de atendimento, para que ele possa acompanhar seus estudos mais sistematicamente e fa- cilitar a troca de informações. Seu tutor fará contatos periódicos com você para acompanhar o anda- mento de seus estudos. Por isso, é importante manter seus dados cadas- trais e endereço eletrônico atualizados. Processo de avaliação É importante que você participe das atividades propostas no livro-base e indicadas no AVEA para que o seu processo de aprendizagem seja real- mente proveitoso. Além disso, você irá desenvolver as atividades propos- tas nas duas Fichas Tarefa que serão disponibilizadas no AVEA – a primei- ra até o final da Aula 6 e a segunda, até o final da Aula 12. Critérios para a certificação Participar de, no mínimo, três fóruns de conteúdo. • Participar de, no mínimo, três • chats. Entregar, por • e-mail e para o seu tutor, as Fichas Tarefas preen- chidas. Aguarde contato para saber como você desenvolverá estas tarefas e também para saber quais são as datas limites para o envio destas atividades de avaliação. Contato Secretaria de Educação a Distância – Universidade Federal de Santa Catarina Rua Dom Joaquim, 757 - Centro - CEP 88015-310 - Florianópolis – SC Fone (48) 3952.1900 - Fax (48) 3224.8869 http://www.sead.ufsc.br ou http://www.sead.ufsc.br/cidades cidades@sead.ufsc.br Módulo I O Módulo I, com seis aulas, aborda diversos aspectos relativos à implementação do Es- tatuto da Cidade e do plano piretor munici- pal, que tem como maiores desafi os o aces- so à terra urbana e o modelo de gestão dos municípios. Partindo do processo de urba- nização brasileiro, você irá estudar: limites e possibilidades de acesso ao solo urbano; o mercado de terras e a formação do preço do solo urbano; os instrumentos de gestão social da valorização da terra e de amplia- ção do acesso à terra urbanizada; o acesso à moradia; e uma proposta de gestão urbana integrada e participativa. Nesta aula, você verá que o processo de urbanização brasileiro acirrou as desigualdades e privou a população de menor renda de condições básicas para inserção efetiva na cidade. Por diversos motivos, tem sido limitada a capacidade dos municípios de plane- jar e gerir seu território. Faltam referências regionais e nacionais de planejamento. Mas este quadro pode mudar. Você terá a oportunidade de conhecer como a Constituição e o Es- tatuto da Cidade apostaram em uma política fundiária com planeja- mento participativo local, que pudesse ampliar o acesso à moradia digna. A elaboração dos Planos Diretores foi um processo coletivo de reconhecimento do território, de seus limites e vulnerabilidades, e dos interesses confl itantes. Mas nem todos esses planos foram de fato par- ticipativos ou contêm instrumentos para transformar a realidade. Vamos ver a importância de disponibilizar solo urbano em quan- tidade e concondições adequadas para a produção de moradias. E também como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e outros instrumentos, presentes em mais de 70% dos Planos Di- retores Participativos, podem facilitar a integração em defi nitivo dos assentamentos informais populares à cidade e, principalmen- te, possibilitar o uso de vazios urbanos para a produção de novas moradias. Ressaltamos que atualmente há um contexto socio- político favorável e abundância de créditos e subsídios para a po- pulação de rendas mais baixas e alertamos que a aplicação destes recursos só terá efeitos positivos se ocorrer associada à política fundiária, ao controle social e à melhoria na gestão municipal. Aula 01 Acesso ao solo urbano: limites e possibilidades Raquel Rolnik 22 A dura realidade dos moradores da periferia do Recife, em contraste com o lado “cartão-postal” da cidade, foi retratada em canções da banda Chico Science e Nação Zumbi, que, na década de 1990, promoveu uma renovação artística e estética na música brasileira com o movimento cultural manguebeat. Você pode ouvir esta música no AVEA. A CIDADE - Chico Science O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas, Que cresceram com a força de pe- dreiros suicidas. Cavaleiros circulam, vigiando as pessoas, Não importa se são ruins, nem im- porta se são boas. E a cidade se apresenta centro das ambições, Para mendigos ou ricos, e outras armações. Coletivos, automóveis, motos e metrôs, Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade se encontra prostituída, Por aqueles que a usaram em busca de saída. Ilusória de pessoas e outros lugares, A cidade e sua fama vai além dos mares. No meio da esperteza internacional, A cidade até que não está tão mal. E a situação sempre mais ou menos, Sempre uns com mais e outros com menos. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu Tudo bemenvenenado, bom pra mim e bom pra tu. Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu. Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus. Num dia de sol, Recife acordou Com a mesma fedentina do dia anterior. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. A cidade não pára, a cidade só cresce O de cima sobe e o debaixo desce. Aula 01 23 Introdução A urbanização brasileira: expressão territorial das desigualdades Em um dos movimentos sócio-territoriais mais rápidos e intensos de que se tem notícia, a população brasileira passou de predominantemen- te rural para majoritariamente urbana. Este movimento – impulsionado pela migração de um vasto contingente de pobres – ocorreu sob a égide de um modelo de desenvolvimento urbano, que basicamente privou as faixas de menor renda da população de condições básicas de urbanidade ou de inserção efetiva à cidade. Hoje, em nosso País, mais de 80% da população é considerada urbana, em um modelo de urbanização que concentrou 60% desta em 224 municí- pios com mais de 100 mil habitantes, dos quais 94 pertencem a aglomerados urbanos e regiões metropolitanas com mais de um milhão de habitantes. No vasto e diverso universo de 5.564 municipalidades, são raras as ci- dades que não têm uma parte significativa de sua população vivendo em assentamentos precários. De acordo com os dados do Censo Demográ- fico, estão nesta condição aproximadamente 40,5% do total de domicílios urbanos brasileiros, ou 16 milhões de famílias, das quais 12 milhões são famílias de baixa renda, que auferem renda familiar mensal abaixo de cin- co salários mínimos. Considerando os dados apresentados acima, universalizar a condição adequada de moradia – pelo menos no que diz respeito a seus aspectos urbanísticos e de plena segurança fundiária – implicaria, por um lado, ur- banizar, introduzindo melhorias urbanísticas e habitacionais em pelo me- nos 10,2 milhões de domicílios, e, por outro, produzir 6 milhões de novas unidades para substituir moradias extremamente precárias e superar o adensamento excessivo. A natureza deste desafio fica mais clara quando se analisa a distribuição destes déficits por renda. O universo dos assentamen- tos precários é marcadamente também o território da pobreza nas cidades. Embora existam loteamentos irregulares ou sem infra-estrutura completa de renda média e alta, a grande concentração da precariedade está nas fai- xas de baixa renda. Para provisão de novas moradias, este porcentual é de 83% do total; para água potável e afastamento do esgoto, é de 60%; apenas Definição da ONU do que é um assentamen- to precário: trata-se de um assentamento contíguo, caracteriza- do por condições ina- dequadas de habitação e/ou serviços básicos. Um assentamento pre- cário é freqüentemente não reconhecido/con- siderado pelo poder público como parte in- tegral da cidade. Cinco componentes refletem as condições que carac- terizam os assentamen- tos precários: status residencial 1. inseguro; acesso inadequado 2. à água potável; acesso inadequado 3. a saneamento e infra-estrutura em geral; baixa qualidade 4. estrutural dos do- micílios e adensamento ex-5. cessivo. Em um assentamento precário, os domicílios devem atender pelo menos uma das cinco condições acima. 24 para tratamento de esgoto em áreas que já possuem esgoto coletado, este percentual diminui, já que esta carência é mais generalizada. Mais de 70% dos esgotos gerados nas áreas urbanas não recebiam, em 2002, qualquer tipo de tratamento (Ministério das Cidades - Cidades para Todos, 2004). Assentamentos irregulares A ilegalidade é também uma das marcas da cidade brasileira, para além das metrópoles. Embora não exista apreciação segura do número total de famílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habi- tacionais irregulares, loteamentos clandestinos e outras formas de assenta- mentos marcados por alguma forma de irregularidade administrativa e pa- trimonial, é possível afirmar que o fenômeno está presente na maior parte da rede urbana brasileira. A pesquisa Perfil Municipal (MUNIC-IBGE 2000) revela a presença de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil habitantes e em 80% das cidades entre 100 mil e 500 mil. Até nos municípios com menos de 20 mil habitantes, os assentamen- tos informais aparecem em mais de 30% dos casos. Estimativas realizadas pelo Ministério das Cidades, a partir de cruzamentos de dados censitários, indicam que mais de 12 milhões de domicílios, habitados por famílias com renda mensal até cinco salários mínimos, encontram-se nesta condição. BRASIL URBANO 80% dos brasileiros vivem nas cidades 60% moram em municípios com mais de 100 mil habitante Quatro em cada 10 domicílios são assentamentos precários 16 milhões de famílias vivem em assentamentos precários Há assentamentos irregulares em quase todas as cidades com mais de 500 mil habitantes e em 80% das cidades entre 100 mil e 500 mil Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os assentamentos irregulares se multiplicaram em terrenos frágeis ou em áreas não passíveis de urbanização, como encostas íngremes e áre- as inundáveis, além de constituírem vastas franjas de expansão periférica sobre zonas rurais, eternamente desprovidas de infra-estruturas, equipa- mentos e serviços que caracterizam a urbanidade. Ausentes dos mapas e cadastros de prefeituras e concessionárias de serviços públicos, inexisten- tes nos registros de propriedade nos cartórios, estes assentamentos têm uma inserção no mínimo ambígua nas cidades onde se localizam. Modelo dominante de territorialização dos pobres nas cidades brasileiras, a con- Aula 01 25 solidação destes assentamentos é progressiva, eternamente incompleta e totalmente dependente de uma ação discricionária do poder público – já que para as formas legais de expressão de pertencimento à cidade estes assentamentos simplesmente não existem. A presença deste vasto contingente de assentamentos inseridos de for- ma ambígua na cidade é uma das mais poderosas engrenagens da máquina de exclusão territorial que bloqueia o acesso dos mais pobres às oportu- nidades econômicas e de desenvolvimento humano que as cidades oferecem. Essa situação de exclusão é muito mais do que a expressão da desigualdade de renda e das desigualdades sociais: ela é agente de reprodução dessa desigualdade. Em uma cidade dividida entre a porção le- gal, rica e com infra-estrutura e a ilegal, pobre e precária, a população que está em situação desfavorável acaba ten- do pouco acesso a oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, as oportunidades de crescimento circulam nos meios daqueles que vivem melhor, pois a so- breposição das diversas dimensões da exclusão incidindo sobre a mesma população fazem com que a permeabili- dade entre as duas partes seja muito pequena. Além disso, este modelo alimenta, de forma permanente, relações políticas marcadas pela troca de favores e manutenção de clientelas, li- mitando o pleno desenvolvimento de uma democracia verdadeiramente includente. Finalmente, o modelo condena a cidade como um todo a um padrão insustentável do ponto de vista ambiental e econômico, já que im- põe, para o conjunto da cidade, perdas ambientais e externalidades muito difíceis de recuperar. Esses processos geram efeitos nefastos para as cida- des, alimentando a cadeia do que poderíamos chamar de um urbanismo de risco, que atinge as cidades como um todo. Caos no transporte Ao concentrar todas as oportunidades em um fragmento da cidade e estender a ocupação a periferias precárias e cada vez mais distantes, esse urbanismo de risco vaiacabar levando multidões para trabalhar nessa parte da cidade e devolvê-las a seus bairros no fim do dia, gerando, assim, uma necessidade de circulação imensa, o que, nas grandes cidades, tem gera- do caos diário nos sistemas de circulação. E quando a ocupação das áreas Para refletir e debater Como a exclusão territorial e a de- sigualdade se manifestam na sua cidade? De que forma isso se reflete no cotidiano dos habitantes e no seu próprio? Acesse o espaço Fóruns de Conteúdo, no AVEA do nosso Curso, e participe do Fórum em que discutiremos essas questões. Com- partilhe sua opinião com os seus colegas! O conhecimento que você tem sobre o seu município é fundamental para que pensemos juntos sobre as reais necessida- des de desenvolvimento do nosso País! 26 frágeis ou estratégicas do ponto de vista ambiental provoca enchentes ou erosão, é evidente que quem vai sofrer mais é o habitante desses locais, mas as enchentes, a contaminação dos mananciais, os processos erosivos mais dramáticos, enfim, atingem a cidade como um todo. Além disso, a pequena parte melhor infra-estruturada e qualificada da cidade acaba sendo objeto de disputa, de cobiças imobiliárias. A escassez de áreas de maior qualidade leva às alturas os preços de terra dessas áreas, mas os preços de terras periféricas sobem também, pois se coloca em cur- so um motor de especulação imobiliária que não existiria com essa força se a qualidade urbana fosse mais distribuída pela cidade. E, logicamente, quanto maior o preço da terra, menor a capacidade de o poder público intervir como agente no mercado (ROLNIK 1997). O drama da multiplicação desses habitats precários, inacabados e inse- guros vem à tona quando barracos desabam, em conseqüência de chuvas intensas, e quando eclodem crises ambientais, como o comprometimento de áreas de recarga de mananciais, em função de “ocupação desordenada”. Na ausência desses episódios, no entanto, parece “natural” o apartheid que partiu nossas cidades em “centros” e “periferias”. O primeiro é o am- biente dotado de infra-estrutura completa, no qual estão concentrados o comércio, os serviços e os equipamentos culturais, e onde todas as residên- cias de nossa diminuta classe média têm escritura devidamente registrada em cartório. Já a “periferia” é o lugar feito exclusivamente de moradias de pobres, precárias, eternamente inacabadas e cujos habitantes raramente têm escrituras de propriedade. São usuais, nos momentos em que voltam à mídia os dramas das “pe- riferias” e das “favelas”, as análises que culpam o Estado por não ter plane- jado, por não ter política habitacional ou mesmo por ter “se ausentado”. Entretanto, é flagrante o quanto o planejamento, a política habitacional e de gestão do solo urbano têm contribuído para construir este modelo de exclusão territorial. Hoje, as áreas “de mercado” são reguladas por um vasto sistema de normas, contratos e leis, que tem quase sempre como condição de entra- da a propriedade escriturada, fruto da compra e venda. São essas as bene- ficiárias do crédito e as destinatárias do “Habite-se”. Os terrenos que a lei permite urbanizar, assim como os financiamentos que a política habitacio- nal praticada no País tem disponibilizado, estão reservados ao restrito cír- culo dos que têm dinheiro e propriedade da terra. A política habitacional Palavra originária da lín- gua africânder, apartheid refere-se à segregação e discriminação político- econômica contra a po- pulação não-branca na África do Sul durante a maior parte do século XX. Por extensão de sentido, qualquer tipo de segre- gação (Dicionário Hou- aiss; Merriam-Webster; Encyclopedia Britannica). Aula 01 27 de interesse social tem reforçado a exclusão dos mais pobres, ao localizar estes conjuntos em periferias distantes e precárias. Para as maiorias, sobram os mercados informais e irregulares, em terras que a legislação urbanística e ambiental não disponibilizou para o mercado formal: áreas de preservação, zonas rurais, áreas non-edificandi, parcelamentos irregulares. Clientelismo Invisíveis para o planejamento e a legislação, as “periferias” e “favelas” do País estão, há décadas, sendo objeto de micro-investimentos em infra- estrutura, que, diante da ambigüidade de inserção legal destes assenta- mentos à cidade, são vividas por beneficiários e concedentes como favores a serem recompensados por lealdades políticas. Este tem sido, inequivo- camente, um dos mecanismos mais poderosos de geração de clientelas nas cidades e regiões metropolitanas. O quadro acima descrito revela a magnitude do desafio a enfrentar – trata-se de um desafio que requer a mobilização de quantidades conside- ráveis de recursos para investimentos dirigidos à melhoria de qualidade do habitat de uma população com baixíssima capacidade de retorno. Por outro lado, o desafio está longe de se resumir a uma equação financeira: a máquina de exclusão territorial tem, como vimos, enorme correlação com a concentração de renda e poder em nossa sociedade. Desta forma, a cons- trução de cidades mais equilibradas, eficientes e justas requer a implemen- tação de políticas urbanas que, além de mobilizarem recursos financeiros, introduzam mecanismos permanentes de acesso à terra legal e formal por parte dos mais pobres, redesenhando a natureza e os instrumentos até ago- ra em vigor no campo da gestão do solo urbano em nossas cidades. Solo urbano e habitação de interesse social: a questão fundiária na política habitacional e urbana do País Parece haver um consenso entre os estudiosos e formuladores de po- líticas habitacionais, no Brasil e na esfera internacional, de que o solo urbano deva ser um dos componentes essenciais da política e que sua dis- ponibilidade em quantidade e condições adequadas para a promoção de Clientelismo é a tro- ca de favores entre quem detém o poder e quem vota (Dicioná- rio Houaiss). 28 programas e projetos de moradia é fun- damental para seu êxito. No entanto, po- líticas de solo voltadas para dar suporte a programas de promoção habitacional raramente escaparam do binômio desa- propriação/localização periférica, muitas vezes através de operações de conversão de solo rural em urbano. Na experiência brasileira, desde os arranjos financeiros formulados nos anos 1960 no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), o componente solo – condicionante da localização dos empre- endimentos, da sua inserção na cidade e do acesso a equipamentos e serviços – foi delegado aos municípios e aos agentes promotores dos conjuntos habitacionais. Mesmo durante os dez anos (1976-1986) em que o Banco Nacional da Habitação (BNH) implementou uma política de terras, esta foi focalizada na aquisição de terrenos, através de financiamentos espe- cíficos para formação de bancos de terras por parte dos agentes do SFH e compras diretas pelo BNH, não chegando a impac- tar de forma significativa a localização e inserção dos conjuntos nas cidades. Embora em alguns períodos, como o início dos anos 80, quando foi criado o Departamento de Terras do BNH, o estoque tenha atendido a quase 50% do total de terras consumidas pelos projetos habitacionais de interesse so- cial em algumas conjunturas, a maior parte da produção se deu em terre- nos comprados no âmbito do próprio financiamento, e geralmente: (...) as aquisições eram feitas quase sempre de forma isolada, mais influen- ciadas pelas ofertas dos terrenos, e destacadamente por seus custos. Em con- seqüência, os terrenos financiados encontravam-se cada vez mais distantes dos centros urbanos, em áreas nem sempre prioritárias para o crescimento físico das cidades, e que exigiam investimentos adicionais por parte do poder público, para o provimento dos serviços necessários (SERPA, 1988, p. 67). i Saiba mais sobre a trajetória da políticahabitacional: ARRETCHE, Marta T. S. “Intervenção do Estado e Setor Privado: o Modelo Brasileiro de Política Habita- cional”. In: Espaço & Debates, ano X, no. 31, 1990. AZEVEDO, S. e ANDRADE, L.A. Habitação e Po- der: da fundação da casa popular ao Banco Nacio- nal da Habitação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 BOLAFFI, Gabriel. A Casa das Ilusões Perdidas: aspectos socioeconômicos do Plano Brasileiro de Habitação. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 1977. BONDUKI N. Origens da habitação social no Bra- sil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. MARICATO, Ermínia T. M. Indústria da Construção e Política Habitacional. São Paulo: Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP, 1983; MELO, Marcus André B. C. de. “Estruturação intra- urbana, regimes de acumulação e Sistemas Finan- ceiros da Habitação: Brasil em perspectiva compara- da”. In: Espaço & Debates, ano X, no. 31, 1990. NAKANO, Anderon Kazuo. Quatro COHABs da Zona Leste de São Paulo: Territórios, Poder e Se- gregação. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP, 2002. Aula 01 29 Especulação imobiliária Avaliação qualitativa da inserção urbana dos terrenos realizada no âmbito do próprio BNH em 1985 revelou que menos de 10% dos terrenos adquiridos para a construção de conjuntos habitacionais estavam situados dentro da malha urbana ou eram imediatamente contíguos a ela. Estes ter- renos eram dotados de acesso e transporte, e servidos pelo menos por abas- tecimento de água e energia elétrica (SERPA, op. cit., p. 99). Por outro lado, o controle de custos de produção por parte dos agentes financeiros, aliado às limitações dos tetos de financiamento nos programas habitacionais de baixa renda (integralmente voltados para a aquisição da propriedade individual da casa ou apartamento), transformou o preço dos terrenos no principal elemento de sobrelucro para os promotores imobiliários do Sistema. Isso se refletiu também em aumento de preços de terrenos em função do aumento da demanda provocada pela política oficial. Já em 1975, ao avaliar os impas- ses da política habitacional brasileira, assim escrevia Gabriel Bolaffi: O fenômeno só encontra explicação no fato de que uma parte consi- derável da riqueza criada no país transfere-se continuamente dos cofres públicos para aqueles dos proprietários de imóveis, sem que para isso seja necessário qualquer tipo de ação empresarial, nenhum investimento produtivo, nenhuma espécie de risco. O mecanismo que opera esta ilu- sória partenogênese da riqueza é criado e alimentado pelo próprio poder público, quando deixa de cobrar, por meio de impostos adequados, os investimentos que realiza nos serviços públicos, responsáveis pela valo- rização imobiliária. (...) As conseqüências dessa prática governamental não se limitam a uma flagrante iniqüidade tributária, mas transformam a propriedade imobiliária no santuário da especulação parasitária que persegue o lucro sem risco. A demanda de terrenos urbanos adquire uma dimensão especulativa, parcelas consideráveis de terrenos urbani- zados são retidas ociosas, as cidades se espalham, os custos de implanta- ção e operação de serviços públicos se elevam e, sobretudo, se elevam os custos da habitação. (...) A política fundiária no Brasil, cuja principal característica é a ausência de impostos significativos sobre a propriedade imobiliária, se transforma assim no principal mecanismo por meio do qual os capitais provenientes da arrecadação tributária são transferidos aos proprietários de casas e terrenos (BOLAFFI, 1979, p. 66 e 67). Na formulação do modelo de financiamento do desenvolvimento ur- bano do Governo Federal, que em 1964 criou o BNH, o locus de de- finições do ordenamento territorial urbano deveria ser o Plano Diretor municipal. No modelo proposto o BNH, estaria vinculado ao Serviço Fe- deral de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), este encarregado de definir o marco regulatório e financiar a elaboração dos Planos Diretores muni- cipais com os recursos do próprio banco, através de um Fundo de Finan- 30 ciamento ao Planejamento. Esta proposta, assim como parte do modelo de construção de uma política nacional de habitação e urbanismo, fazia parte das propostas do Seminário Nacional de Habitação e Reforma Ur- bana, realizado em 1963 no contexto dos debates das grandes reformas sociais nacionais: agrária, da saúde, da educação, da cultura, entre outras. Entretanto, o contexto político nacional mudara radicalmente entre 1963, quando o seminário foi realizado, e 1964, quando, por meio de um golpe, uma junta militar assumiu o poder (MARICATO, 2001). A construção de cidades mais justas requer políticas urbanas de aces- so à terra, bem localizada, legal e formal por parte dos mais pobres. O modelo proposto – a promoção de um sistema de planejamento local que daria suporte às intervenções no campo dos investimentos urba- nos – opunha-se frontalmente a todo o sistema de planejamento e execu- ção orçamentária montado no País, baseado na concentração de recursos nas mãos do Governo Federal, depois da reforma tributária de 1966/67 (MONTE-MÓR, 2006), limitando as possibilidades de avanço na capaci- dade de gestão e financiamento dos governos locais. É neste momento também que o BNH assume a gestão dos recursos do FGTS, tornando-se o maior banco de segunda linha do País, encarregado de arrecadar recur- sos financeiros para em seguida transferi-los a agentes privados interme- diários, transformando-se, assim, no locus da política habitacional e de desenvolvimento urbano. Visão setorialista x visão globalista No início dos anos 70, no bojo do processo de elaboração do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), um capítulo foi dedicado à Política de Desenvolvimento Urbano. Naquele momento, segundo um dos planeja- dores envolvidos na tarefa, era evidente o embate de duas concepções: “uma procurando lidar com o espaço brasileiro como uma totalidade manifesta no terri- tório e outra com uma visão segmentada do urbano, entendida como a somatória da habitação, do transporte, do saneamento básico, da gestão administrativa, das finanças. Visão que propiciava de imediato uma ação sobre a política urbana dos distintos grupos de interesse em cada um destes setores. Esta visão, setorialista, foi a vencedora e a globalista, portanto geográfica, foi derrotada” (SOUZA, 1999). Em 1974, o SERFHAU é extinto e toda atividade de planejamento na área de desenvolvimento urbano no âmbito do Governo Federal se con- substancia no planejamento setorial, basicamente através do Plano Nacio- Aula 01 31 nal de Habitação Popular (PLANHAP) e do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), que se tornam marcos re- ferenciais de atuação do BNH, com me- tas quantitativas de produção na área de habitação e saneamento. A combinação perversa de uma gestão local frágil e de uma enorme con- centração de recursos em um banco, cuja atuação foi estruturada por uma visão setorialista e cuja implantação estava sob responsabilidade dos agentes intermediários, transformou a elaboração de Planos de Desenvolvimento Urbano em meros documentos acessórios de justificação de investimentos setoriais, paralelos e externos à própria gestão local, definidos e negociados em esferas e circuitos que pouco ou nada tinham a ver com esta. Soma-se, nas cidades, o enorme poder econômico e político dos pro- prietários de imóveis, sobretudo daqueles cuja atividade econômica está diretamente ligada ao mercado imobiliário, tanto de sua produção como de seu financiamento e gerenciamento dos ativos. Empreendedores imo- biliários, empreiteiros de obras públicas e concessionários de serviços dia- logam permanentemente com os executivos e legislativos municipais, e sobre estes exercem grande pressão e influência. Zoneamento Quanto mais se instalavam no espaçodas cidades as contradições e a desigualdade, mais restrita se tornava a intervenção do planejamento, que permanecia lidando com modelos ideais, pressupondo um território sem tensões ou conflitos. O instrumento que hegemoniza a prática do planeja- mento nesse período é o zoneamento, que significa a divisão do conjunto do território urbanizado (ou a ser urbanizado) em zonas diferenciadas, para as quais são aplicados parâmetros de uso e ocupação específicos. Essa estra- tégia baseia-se na idéia da definição de um modelo de cidade ideal, traduzi- do em índices como taxas de ocupação, coeficientes de aproveitamento, tama- nhos mínimos de lotes, etc. – linguagem construída no interior da lógica de renta- bilidade econômica do solo e, portanto, diretamente ligada à lógica do mercado. iA meta do PLANHAP era a extinção do chamado “déficit habitacional”, com a construção de 2 mi- lhões de moradias para famílias com renda até três salários mínimos. iA história da chegada do zoneamento ao Brasil, e da sua utilização cada vez mais autônoma enquanto instrumento de planejamento urbano, está contada em Planejamento e Zoneamento (Sarah Feldman, Tese de doutoramento, FAUUSP, 1996). 32 Os planos e projetos continuaram a ser feitos, mas na vida cotidiana das cidades o planejamento se explicitava apenas sob a forma de zonea- mento, ficando os ambiciosos planos quase sempre na gaveta dos órgãos públicos. É curioso lembrar que a década de 1970, de grande crescimento da informalidade, das favelas e dos loteamentos clandestinos, é também a década dos grandes planos diretores, dos planos metropolitanos, que se propunham a dirigir e articular todas as políticas setoriais sob a batuta do planejamento urbano. A adoção de padrões urbanísticos exigentes e de difícil compreensão e a alta complexidade dos planos fazem parte de um quadro de hegemonia de uma visão tecnocrática na legislação urbanística. Isso significa o trata- mento da cidade como um objeto puramente técnico, no qual a função da lei seria apenas a de estabelecer os padrões satisfatórios de qualidade para seu funcionamento. Ignoram-se, dessa forma, qualquer dimensão que re- conheça conflitos e a realidade da desigualdade das condições de renda e sua influência sobre o funcionamento dos mercados imobiliários urbanos. Diante da primazia da tecnocracia, míngua a esfera da política, ou seja, a permeabilidade da lei a processos e pressões vindos dos diversos setores da sociedade, cuja atuação visa à intervenção nos campos da tomada de decisão. Dificultando a explicitação de forças e setores excluídos da legali- dade, a regulação acaba contemplando aqueles que já estão contemplados, ou seja, a minoria de alta renda. A tecnocracia, ou a impermeabilidade à política, na verdade favorece a captura dos mecanismos legais por parte dos mais poderosos. A combinação destas condições é o conhecido quadro de ausência de políticas fundiárias redistributivas ou de ampliação de acesso à terra para moradia popular em nível federal sequer como conteúdo do plane- jamento e gestão locais. Este quadro permaneceu inalterado, tendo sido impactado, nos anos 80, pela falência do BNH e pela queda no nível de investimentos no setor, e, do ponto de vista político, pelo movimento pela redemocratização do País, do qual os movimentos sociais urbanos consti- tuíram parte de sua base popular. Planejamento urbano e democracia Nos anos 80, a democratização do País veio acompanhada de avanços no campo da política urbana, especialmente no reconhecimento do direi- to à moradia e à cidade, no incremento dos processos de participação ci- Aula 01 33 dadã e na incorporação dos mais pobres como interlocutores das políticas urbanas. Entretanto, este movimento em direção às periferias não foi ime- diatamente acompanhado pela formulação e revisão de uma nova política de desenvolvimento urbano em nível federal. Do ponto de vista do finan- ciamento, nas décadas de 80 e 90, os investimentos foram extremamente limitados, em função do ajuste estrutural que limitava o gesto e o endivi- damento público. Tampouco se formulou uma estratégia territorial para o País, restringindo o debate sobre o território ao tema das desigualdades regionais e grandes projetos de infra-estrutura e logística. A gestão municipal reproduziu os modelos do período autoritário, que desconsideram as necessidades da maioria dos moradores, com inequívocos impactos sócio-ambientais. Se em nível nacional a proposta de um ordenamento territorial como suporte a um projeto de desenvolvimento para o País não conquistou es- paço nas estratégias de crescimento econômico, na escala dos municípios o imediatismo e pragmatismo da gestão promoveram a hegemonia de práticas voltadas para resultados imediatos, com grande capacidade de resposta a pressões e demandas, sem que questões estruturais, como a forma de organização física das cidades, fossem enfrentadas. Desta forma, a gestão municipal acabou por reproduzir os modelos da cultura urbanística herdada do período autoritário. Um modelo que des- considera as necessidades da maioria dos moradores, que segrega e diferen- cia moradores “incluídos” na urbanidade formal e moradores dela excluí- dos, com inequívocos impactos sócio-ambientais para a cidade como um todo. Trata-se de um modelo baseado na expansão horizontal e no cresci- mento como ampliação permanente das fronteiras, na subutilização tan- to das infra-estruturas quanto da urbanidade já instaladas e na mobilidade centrada na lógica do automóvel particular. No epicentro deste modelo – e sua interface com a questão habitacional –, está a questão do solo urbano. A trajetória da reforma urbana É possível localizar, na década de 80, um momento de amadurecimen- to de um discurso inovador em torno da política urbana, que ocorreu no bojo do processo de redemocratização do País e que se tornou conhecido como Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Este movimento foi ar- ticulado em torno dos nascentes movimentos sociais de luta por moradia, parte dos novos atores políticos que surgiam no País naquele momento, 34 pressionando por reformas em várias áreas do Estado. Os novos movi- mentos sociais foram atores fundamentais no processo da redemocrati- zação brasileira nos anos seguintes e foram um fator fundamental para a criação de um tônus político para a negociação e aprovação de uma série de mudanças institucionais posteriores. Articulados a novos movimentos sociais, encontravam-se setores técnicos de várias áreas, como advogados, arquitetos e urbanistas, engenheiros, além de técnicos de prefeituras e segmentos de universidades. A articulação desses atores potencializou a discussão de novos temas, como a politização do debate sobre a legalidade urbanística e a necessidade de abertura da gestão urbana para novos atores sociais, sob um marco participa- tivo. Isto configurou um discurso para a reforma urbana, que buscava intervir na formulação de novas políticas públicas, in- cludentes, no nível local (ROLNIK, 1997). A crítica ao status quo do planeja- mento urbano e da regulação urbanística vinha sendo feita também no seio das gestões municipais comprometidas com a revisão dos paradigmas de construção da política urbana, inicialmente de maneira tímida e, a partir de meados da década de 80, cada vez mais articulada. Tratava-se, portanto, de uma trincheira dupla na disputa: por um lado, na esfera nacional, o Movi- mento pela Reforma Urbana lutou pela criação de um novo marco regulató- rio para a política urbana, conforme relatado adiante. Por outro lado, o mo- delo descentralizador-municipalista adotado pela Constituição significou também maior autonomia para que os municípios experimentassem novos instrumentos de planejamento e gestão urbana, mesmo antes da aprovação do Estatuto da Cidade (ROLNIK; CYMBALISTA,2000. RIBEIRO; SANTOS JR., 1997. BONDUKI, 1996). Os grupos que empunharam a bandeira da reforma urbana propuseram, no âmbito local, instrumentos que superassem a idéia da legislação como obje- to puramente técnico, explorando suas múltiplas alianças com as desigualdades da sociedade e elaborando instrumentos urbanísticos que jogassem o peso do Estado e da regulação a favor – e não contra, como de costume – da democra- tização do espaço da cidade. O tema da política fundiária foi particularmente importante neste debate. A questão do acesso ao solo urbano para as popula- ções de menor renda já vinha sendo formulada desde a emenda popular pela reforma urbana em duas vertentes: do reconhecimento dos direitos de pos- Na Biblioteca Virtual do nosso Curso, está dispo- nível o texto “Instrumentos urbanísticos contra a exclusão social: introdução”. In: ROLNIK, Raquel e CYMBALISTA, Renato (orgs.), Instrumentos urba- nísticos contra a exclusão social. Revista Pólis 29. São Paulo: Instituto Pólis, 1997. Aula 01 35 se e de integração à cidade daqueles que constituíram as favelas e ocupações, e do combate à retenção especulativa de ter- renos. Em nível local, experiências como o Programa de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (PREZEIS) em Recife, o Profavela, em Belo Horizon- te, as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), em Diadema, todos iniciados na década de 80 ou início da década de 90, estão entre as primeiras aplicações práti- cas dessa nova abordagem. Mobilização social e mudanças As potencialidades desse novo arranjo de forças políticas evidenciaram- se na imensa mobilização social prévia à Constituição de 1988, que logrou inserir no texto constitucional um viés marcado pelos direitos humanos e ci- dadania. Especificamente na área da política urbana, a mobilização resultou em uma proposta de reformulação da legislação através da Emenda Popular da Reforma Urbana, encaminhada ao Congresso Constituinte em 1988 pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que resultou no capítulo de Política Urbana da Constituição (artigos 182 e 183). Nele estavam contidas propostas que procuravam viabilizar novos instrumentos urbanísticos de controle do uso e ocupação do solo, para que se pudesse, entre outros obje- tivos, possibilitar o acesso à terra, democratizando o solo urbano. Após a aprovação da Constituição Federal de 1988, a luta pela renovação dos instrumentos de regulação urbanís- tica, da política urbana e do planejamen- to territorial continuou percorrendo o caminho duplo das lutas nos âmbitos local e nacional. Vários setores – agrega- dos principalmente em torno do Fórum Nacional da Reforma Urbana – perma- neceram na luta pela conclusão do pro- cesso, que era a regulamentação do capí- Acesse a Biblioteca Virtual do nosso Curso e leia um balanço dessas primeiras experiências em MOURAD, Laila Nazem. Democratização do aces- so a terra em Diadema (Dissertação de Mestrado, PUC-Campinas, 2001). Sobre a experiência de Recife, veja: MIRANDA, Lívia, O PREZEIS do Recife: 15 anos da cons- trução de uma política habitacional de interesse social no município. Rio de Janeiro: Observatório das metrópoles/ IPPUR/FASE/UFPE/Finep; e ARAÚJO, Adelmo. O prezeis enquanto instrumento de regulação urbanística. Revista Proposta no 61. Rio de Janeiro: FASE, 1994. iPara saber mais, leia OSÓRIO, Letícia (ed). Estatuto da Cidade: Novas perspectivas para a reforma urba- na. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002; DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio (orgs.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). São Paulo: Malheiros Editores, 2002; ROLNIK, Raquel (org.) Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: CAIXA/Instituto Polis/Senado Federal, 2002. 36 tulo de política urbana na Constituição. Já em 1990, surge o Projeto de Lei 5.788/90, que tramitou por mais de uma década no Congresso, sendo intensamente discutido e alterado, resultando posteriormente no Estatuto da Cidade, ao qual nos referire- mos em seguida. Estatuto da Cidade Os primeiros anos do século XXI marcaram um novo momento no progressivo movimento de construção de uma institucionalidade para a política urbana no País. Em 2001, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, co- nhecida como Estatuto da Cidade, insti- tuindo as diretrizes e os instrumentos de cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, do direito à ci- dade e da gestão democrática das cidades. A produção técnica em torno do Estatu- to foi efervescente, tanto no campo jurí- dico quanto do planejamento urbano. Por meio da Constituição e, principal- mente, do Estatuto da Cidade, foi redefi- nida a função do Plano Diretor municipal, obrigatório para as cidades com mais de 20 mil habitantes e aquelas integrantes de regiões metropolitanas e aglomerados ur- banos. Antes utilizados majoritariamente como instrumento de definição dos inves- timentos setoriais necessários ou desejá- veis para os municípios, o Plano Diretor transformou-se na peça básica da política urbana do município, responsável pela de- finição de critérios para o cumprimento da função social da propriedade. Na prática, o Plano Diretor ganhou a missão de estabele- O website do Fórum Nacional da Reforma Urbana traz am- pla variedade de informações pertinentes ao tema deste curso: histórico, legislação, conflitos urbanos, movimentos sociais participantes, eventos, fóruns regionais, referências nacionais e internacionais, entre outras. Acesse http://www.forumreformaurbana.org.br e fique por den- tro destas informações (endereço acessado em 01/04/2008). @ i Leia mais em ROLNIK, Raquel (coord.). Estatuto da cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos, pp. 21-22. i Você pode se aprofundar no debate sobre o tema por meio destas leituras: DALLARI, Adilson. A e FERRAZ, Sérgio (orgs). Estatuto da Cidade: co- mentários à lei federal 10.257/2001; Instituto Polis/ Caixa Econômica Federal: Estatuto da Cidade; guia para implementação pelos municípios e cidadãos; OSÓRIO, Letícia M (org.) Estatuto da Cidade e re- forma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Fabris Editores, 2002. RIBEIRO, Luiz César e CARDOSO, Adauto. Reforma Urbana e Gestão Democrática. Promessas e desafios do Estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Edi- tora Revan/FASE 2003. O site www.estatutodacidade.org.br traz ampla varieda- de de informações: o texto da Lei, análises, banco de experiências, material didático nas mais diversas mí- dias, cursos, etc. (endereço acessado em 01/04/2008). Aula 01 37 cer os conteúdos para a definição dos direitos de propriedade no município e as sanções por seu não cumprimento. Em 2003, no âmbito do governo Lula, foi criado o Ministério das Cida- des, antiga demanda da articulação pela reforma urbana, com o horizonte de retomar a agenda de uma política urbana nacional, integrando os seto- res de habitação, saneamento ambiental e transportes em um mesmo órgão. A opção do primeiro grupo dirigente do Ministério foi formular esta política de forma federa- tiva e participativa, mobilizando os três ní- veis de governo e os distintos segmentos da sociedade civil para esta finalidade. No mesmo ano, foi realizada a I Con- ferência Nacional das Cidades, que resul- tou na eleição da primeira composição do Conselho Nacional das Cidades. A primeira Conferência, que contou com mais de 2.500 delegados eleitos a partir de conferências em mais de 3 mil muni- cípios e em todos os Estados, aprovou, entre os princípios que deveriam orien- tar a construção da política urbana: a promoção do direito à cidade, o desenvolvimento social, econômico e ambiental, o combate àdesigualdade social, racial, de gênero e regio- nal; diretrizes e instrumentos que promovam a integração da políticas urbanas por meio das políticas de habitação, saneamento ambiental, transporte e mobilidade, considerando o Estatuto da Cidade e a Cons- tituição; garantia da participação da população e dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos e projetos de desenvolvimento urbano e, diretrizes e orientação que ga- rantem que os investimentos públicos sejam aplicados no enfrentamento das desigualdades sociais e territoriais (Ministério das Cidades. Primeira Conferência Nacional das Cidades. Brasília, novembro de 2003). O Ministério das Cidades e a Campanha Nacional dos Planos Diretores Participativos A avaliação do impacto da ação do Ministério das Cidades nas políticas de desenvolvimento urbano do País no período 2001-2004 é trabalho que ainda precisa ser feito. Aqui, a proposta é avançar na sistematização de @ O site do Ministério das Cidades disponibiliza informações detalhadas sobre a política urbana, tais como notícias sobre obras prioritárias, ações de governo, cursos e outras informa- ções úteis. http://www.cidades.gov.br (endereço acessado em 01/04/2008). iO primeiro ministro das Cidades foi Olívio Dutra, que havia sido prefeito de Porto Alegre e em cuja gestão foi implementada a primeira experiência de orçamento participativo municipal. O conceito de construção e controle social das políticas urbanas foi, então, também aplicado para a construção da política nacional. 38 informações sobre uma das vertentes de ação do Ministério: a Campanha Nacional pelos Planos Diretores Participativos, especificamente na verten- te que pretende aliar a política habitacional, o tema do solo urbano e a política de desenvolvimento urbano. Considerando a obrigatoriedade e o prazo definido pelo Estatuto – outubro de 2006 – para a aprovação destes Planos, em setembro de 2004 o Conselho Nacional das Cidades aprovou uma resolução no sentido da realização de uma Campanha Nacional pelo Plano Diretor Participativo, destinada a sensi- bilizar, apoiar e capacitar equipes técnicas das prefeituras e setores da sociedade civil para viabilizar a construção de 1.683 Pla- nos Diretores Participativos nos municí- pios brasileiros que tinham a obrigação de fazê-lo até outubro de 2006. A estratégia adotada então pelo Ministério foi, por um lado, apoiar fi- nanceiramente os municípios para a elaboração de seus PDPs, e, de outro, disseminar, através de instrumentos de difusão e capacitação, uma nova concepção de Plano Diretor Participativo e seu processo de elaboração voltado para a construção de pactos sócio-territoriais entre os diferentes interesses presentes na cidade, em torno da definição da função social das diferentes áreas do município, urbanas ou rurais, privadas ou públicas. Para poder construir um material de referência para os Planos, foi reali- zado um seminário nacional, em conjunto com a Câmara dos Deputados, através da Comissão de Desenvolvimento Urbano, promovendo o debate e aprofundamento de temas polêmicos no processo de planejamento, por meio de trabalhos em grupos, com representantes da área técnica, acadê- mica, gestores municipais, movimentos populares e entidades profissionais. O resultado foi processado e sistematizado na publicação “Plano Diretor Participativo: Guia para Elaboração pelos Municípios e Cidadãos”. Jun- tamente com vídeos, cartilhas, cartazes e folders, a publicação constituiu um “Kit do Plano Diretor Participativo”, que serviu como material de apoio aos técnicos municipais e demais segmentos sociais na condução de seus processos de elaboração de PDPs. O Ministério das Cidades disponibiliza informações detalhadas sobre esta campanha e materiais de divulgação. Confira em http://www.cidades.gov.br (em Secretarias Nacionais → Programas Urbanos → Programas → Programa de Fortaleci- mento da Gestão Municipal Urbana → Campanha Plano Dire- tor Participativo). (Endereço acessado em 01/04/2008.) @ O livro está disponível na Biblioteca Virtual do nosso Curso. Aula 01 39 A Campanha foi estruturada através de uma Coordenação Nacional composta por instituições integrantes do Conselho Nacional das Cidades e por Núcleos Estaduais constituídos por representações de entidades pro- fissionais nacionais – por exemplo, o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREA), a Federação Nacional dos Engenhei- ros, a Federação Nacional dos Arquitetos, as quatro federações de mo- vimentos sociais de luta pela moradia e associações de bairro (UNLM, MNLM, CMP e CONAM), secretarias ou órgãos estaduais, Universidades, representantes locais da Caixa Econômica Federal (CEF), entre outros, com grande variação de composição em cada Estado. O Governo Federal destinou recursos financeiros, provenientes de vá- rios ministérios, para apoio direto a cerca de 550 municípios, aproximada- mente 30% do total dos municípios “obrigatórios”. Somaram-se recursos provenientes de governos estaduais, particularmente nos estados do Para- ná, Goiás, Bahia, Mato Grosso, Espírito Santo e Pernambuco. Além disto, recursos foram investidos nas atividades de capacitação e sensibilização em todas as regiões do País. Essas atividades utilizaram o “Kit do Plano Diretor Participativo” como material didático, além da realização de 388 oficinas presenciais que atingiram mais de 21 mil pessoas em 1.349 municí- pios. O programa também ofereceu bolsas para equipes de universidades, em convênio com o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), para projetos de assistência técnica aos municípios; formou e divulgou um cadastro de profissionais de cada região do País com experiência na capacitação ou na elaboração de Planos Diretores e implementação do Estatuto da Cidade; criou a Rede do Plano Diretor, hoje com mais de 20 mil endereços eletrôni- cos de todo o País, espaço de informação, reflexão e crítica que se tornou um canal de discussão e troca de experiências; inau- gurou, no mês de março de 2006, o Banco de Experiências do Plano Diretor Partici- pativo no sítio do Ministério das Cidades, que conta hoje com mais de 100 registros. @ A relação completa das organizações participantes da Coorde- nação Nacional, com nomes, telefones e endereços eletrônicos dos representantes, está disponível em http://www.cidades.gov. br (Endereço acessado em 01/04/2008). @ Propomos que você acesse o Banco de Experiências do Plano Dire- tor Participativo em www.cidades.gov.br/planodiretorparticipativo. Na aula 6, você terá orientação para analisar e refletir sobre o Plano Diretor do seu município 40 Desta forma, foi possível apoiar de maneira direta ou indireta, o uni- verso dos municípios “obrigatórios”, principalmente disseminando e fo- mentando a renovação conceitual e metodológica dos Planos a partir do Estatuto da Cidade. Três eixos estruturaram o conteúdo da Campanha Nacional do Plano Diretores Participativos: Inclusão territorial (assegu- rar aos pobres o acesso à terra urbanizada e bem localizada, garantindo também a posse da moradia de áreas irregulares ocupadas pela população de baixa renda); Justiça social (distribuição mais justa dos custos e dos be- nefícios do desenvolvimento urbano); e Gestão democrática (participação efetiva da população na política urbana). O tema do solo urbano e, particularmente, da inserção territorial dos pobres na cidade esteve, portanto, presente em toda a estratégia de sen- sibilização e capacitação adotada pela Campanha. Dentre as trincheiras de disputa abertas pelos novos Planos Diretores, aquela que talvez seja a mais identificada com a agenda da reforma urbana é a busca por viabilizar melhor localização para os pobres nas cidadese melhorar suas condições de vida. As oportunidades para que isso seja atingido por meio dos Planos Diretores Participativos são várias: a inclusão dos segmentos vulneráveis nos processos de discussão sobre • as análises e propostas; a eleição da regularização fundiária e da oferta de terras urbanas infra- • estruturadas para os mais pobres como eixos dos PDPs; a inclusão de instrumentos de democratização do acesso à terra como • as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), o Parcelamento, a Utili- zação e Edificação Compulsória, o IPTU Progressivo no Tempo; a integração da estratégia fundiária com as políticas habitacionais; • a delimitação de perímetros urbanos, procurando estancar a expansão • periférica, entre outros. Aula 01 41 O fato de estarmos tratando de um processo muito recente impede que avaliações mais definitivas sobre o impacto dos novos PDPs sejam fei- tas. Por outro lado, já é possível identificar alguns movimentos analíticos que devem ser acompanhados nos próximos anos. Considerações finais Desde as diferentes fases do período de atuação do BNH e do Sistema Financeiro da Habitação, as alterna- tivas de moradia promovidas ou financiadas pelo setor público foram majoritariamente produzidas nas franjas ou fora das cidades, em situações muito próximas à pro- dução do setor informal. Além de distantes e precárias, a abertura destas frentes de expansão urbana sobre solo rural tem sido um dos grandes indexadores dos merca- dos de terra nas cidades, encarecendo-a na medida em que, no processo de transformação do rural em urbano, reside um dos processos mais agudos de valorização imobiliária. (SMOLKA, 2003). Ao longo desta história, tem sido limitada a capacidade dos municípios de es- tabelecer planejamento e gestão de seu território em função de sua baixa capacidade política de impor limites para a ocupação urbana e captar a valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos. A Constituição brasileira e o Estatuto da Cidade apostaram na implementação de uma política fundiária que, baseada em processos de planejamento partici- pativos locais, pudesse ampliar o acesso à terra urbanizada e bem localizada para a moradia, rompendo com o modelo extensivo e excludente de promoção de novas periferias. Os municípios, em sua grande maioria, elaboraram seus Planos Di- retores, e, em grande número desses Planos, os temas da moradia, do solo urbano e dos instrumentos de política fundiária estão presentes. Há que se apontar, entretanto, as limitações e fragilidades destes processos de planejamento locais. Em primeiro lugar, eles foram elaborados em sua grande maioria sem referências ou marcos de planejamento regionais e, muito menos ainda, nacional. Esta questão é particularmente importante Estamos chegando ao final da pri- meira aula deste Curso. Propomos a você as seguintes atividades: Leia as Considerações Finais.1. Sintetize a aula em um texto curto.2. Anote os pontos que mais chamam a 3. atenção ou despertam dúvidas. Participe de um chat para debater os 4. temas da aula. Informe-se com o seu tutor sobre os horários disponíveis e como proceder. No módulo 2, você conhecerá o passo a passo para avançar na Regularização Fundiária. 42 e problemática no caso das regiões metropolitanas ou na relação do plane- jamento local com as bacias hidrográficas que transcendem as fronteiras municipais. Este é um limite da ação exclusivamente focada no município, utilizada na Campanha pelos Planos Diretores Participativos, fruto mais das contingências – prazo de 2006 definido pelo Estatuto da Cidade e a necessidade de que este não se transformasse imediatamente em “lei que não pega” antes mesmo de ser experimentado – do que propriamente de uma opção radicalmente descentralizadora. Em muitos casos, os processos participativos reduziram-se a encena- ções burocráticas “para cumprir a lei”, sem investimentos políticos por parte do governo ou da sociedade civil. Em grande número de municípios, a elaboração dos Planos represen- tou um processo coletivo de reconhecimento do território, de seus limites e vulnerabilidades físico-ambientais e dos interesses conflitantes que atu- am sobre ele. Evidentemente, em muitos casos, os processos participativos reduziram-se a encenações burocráticas “para cumprir a lei”, sem investi- mentos políticos por parte do governo ou da sociedade civil. Da mesma forma, será necessário verificar em quais casos os dispositivos e normas que constam dos Planos Diretores Participativos refletem processos que efetivamente buscam aliar a política urbana e a habitacional, e interferir na oferta de terras para os mais pobres, e em quais casos os instrumentos cons- tam dos Planos apenas para cumprir obrigatoriedades da Constituição, do Estatuto da Cidade e das resoluções do Conselho Nacional das Cidades. Particularmente as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que es- tão presentes em mais de 70% dos PDPs, podem abrir possibilidades para a regularização fundiária e melhoria das condições urbanísticas e habita- cionais em favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos e conjuntos habitacionais populares existentes nas cidades do País. O combate aos va- zios urbanos e imóveis ociosos, por meio da Utilização, Edificação e Par- celamento Compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo e Desapropriação sanção, também pode abrir possibilidades para aproveitar as glebas, lotes e edifícios desocupados para a produção de moradias populares. Caso os PDPs combinem esses instrumentos com ZEIS demarcadas nesses imóveis, são maiores as possibilidades de ampliação do acesso ao solo urbano para aquelas moradias. Os PDPs podem, simplesmente, definir áreas adequadas do ponto de vista urbano e sócio-ambiental para a expansão urbana e im- plantação de empreendimentos habitacionais de interesse social. Ou então, por meio de uma política de regularização fundiária plena, podem integrar de forma definitiva os assentamentos informais populares à cidade. Segundo dados da Pesquisa CONFEA/ Ministério das Cidades (2007), que captou jun- to aos municípios “obri- gatórios” a presença de instrumentos de gestão do solo urbano, proces- sos participativos, entre outros temas. Aula 01 43 A implementação desses instrumentos de política fundiária, que en- trelaçam a política habitacional à política urbana, é um desafio tão grande ou maior do que a elaboração dos Planos Diretores Participativos e sua aprovação nas Câmaras Municipais. Para isso, os municípios enfrentarão uma série de obstáculos, tais como: a fragilidade e a baixa capacidade de gestão das secretarias e órgãos • responsáveis; a resistência em mudar procedimentos de trabalho; • as pressões constantes de interesses privados ligados ao processo de • valorização da terra urbana sobre legislativos e prefeitura; a cultura política do acordo negociado fora de esfera pública. • A visão setorialista das políticas é também um forte obstáculo a ser supe- rado: a ação do município no território permanece dividida em componen- tes estanques – habitação, saneamento, mobilidade –, que constroem seus processos de planejamento e gestão de forma independente. Na maior parte dos municípios, os Planos Diretores Participativos foram construídos nessa mesma lógica, como um Plano “Setorial” da secretaria de urbanismo ou pla- nejamento do município, e não como Plano de articulação entre setores. A aula 5 e o módulo II vão mostrar como os recursos disponíveis hoje para urbanizar favelas e construir moradias podem fortalecer a implementação do Estatuto das Cidades. Tais dificuldades tornam-se mais graves quando se consideram as pers- pectivas de uso dos recursos do Fundo de Habitação de Interesse Social (FNHIS), que vão exigir a instituição de Conselhos e Planos Municipais e Estaduais de Habitação,
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