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O pastor e suas ovelhas

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O pastor e suas ovelhas 
C@T - Carlos Alberto Teixeira 
 
A turma está ficando cansada com os excessos decorrentes da tecnologia. Um deles 
é o excesso de zelo com a privacidade. É claro que é necessário estar alerta às 
invasões e ao mau uso de nossos dados sigilosos. Mas não precisamos chegar ao 
extremo de tentar esconder de todos o conjunto completo de nossas informações, 
mesmo porque jamais conseguiremos ocultar tudo. Muito embora o fenômeno ainda 
não tenha chegado às mailing lists nacionais, lá fora o pessoal está relaxando cada 
vez mais, oferecendo livremente informações pessoais em seus perfis públicos de 
usuário: endereços de casa, telefones, aptidões, preferências, tá tudo lá. 
Outra coisa é o excesso de informação. Até o identificador de chamadas lá de casa, 
vulgo bina, eu já desliguei. De que me interessa saber quem me ligou e não deixou 
recado na secretária eletrônica? E se alguém ligar e eu não quiser falar, é só usar a 
velha desculpa de que estou fritando alho e tá quase queimando, depois eu te ligo de 
volta. Sobre o excesso de emails, este é um caso à parte. Já me convenci de que 
jamais serei capaz de me manter em dia com a quantidade de mensagens que 
entram diariamente. 
Pra terminar, existe o terrível hábito do excesso de confiança nos gurus. Sim, a mania 
de confiar exageradamente nos caras de sistemas, os analistas, consultores, 
programadores e assemelhados. São uma raça sem-vergonha, leitora, acredite em 
mim. Falo de cadeira porque sou um deles. Pensam que são donos do mundo e que 
dominam as forças da natureza, os desígnios do destino e os poderes telúricos do 
planeta. Recentemente uma leitora veio com um papo de endeusar a equipe de 
tecnologia da empresa em que trabalha. Perguntei a ela se conhecia o tradicional 
caso do pastor e suas ovelhas. Ela disse que não, então pus-me a lhe contar a 
história: Um pastor está cuidando de suas queridas ovelhas ao longo de uma estrada 
deserta. Os campos que ladeiam a rodovia são verdejantes e o relevo da região é 
monótono, com colinas baixas e suaves. O ambiente é de total paz, o visual 
deslumbrante. Só o que se ouve são alguns balidos e o canto dos pássaros. De 
repente, o pastor começa a ouvir ao longe o som de um potente motor de automóvel, 
aparentemente vindo em alta velocidade. Vai o ruído crescendo e logo um Porsche 
vermelho novinho em folha pára abruptamente cantando pneu perto de onde estão o 
pastor e seu rebanho. 
O motorista, sujeito pintoso e posudo trajando terno Armani, sapatos Cerutti, óculos 
de sol Ray-Ban, relógio de pulso TAG-Heuer/GPS e gravata Pierre Cardin, sai do 
automóvel e olha para o céu. Não há nuvens. Isso é bom, pensa ele. Em seguida, 
dirige-se ao pastor, e pergunta sem rodeios: “Se eu lhe disser quantas ovelhas você 
tem, você me dá uma delas?” O pastor analisa rapidamente o impetuoso jovem e 
depois olha para seu numeroso rebanho. Dá de ombros e responde: “OK”. 
O rapaz estaciona o carro numa manobra rápida, ruidosa, mas precisa. Tira os óculos 
escuros e conecta seu laptop de última geração a um fax-modem-celular. Apesar do 
sol forte, ele demonstra frieza absoluta. Nenhuma gota de suor escorre de sua fronte. 
Sua destreza no teclado é inacreditável e seus movimentos são exatos e calculados 
com precisão. Seu próximo passo é entrar num website oculto da Nasa. Ele informa 
ao sistema as coordenadas geográficas do ponto onde se encontra, com base nos 
dados informados via radiofreqüência pelo seu relógio equipado com Bluetooth. Com 
isto, aciona um satélite em órbita que, mediante uma senha especial, realiza uma 
meticulosa varredura no terreno e invoca nos servidores da agência espacial 
americana uma aplicação de processamento paralelo visando a efetuar a contagem 
dos animais. O sistema devolve uma matriz de comandos criptografados que, no 
laptop do mancebo, abre 14 bancos de dados e 60 planilhas cheias de logaritmos 
neperianos, curvas de Gauss e tabelas-pivô. O pastor permanece observando o 
cidadão, pasmo, sem sequer ousar imaginar a tempestade tecnológica que se 
desencadeia naquela maquineta infernal. 
Depois disso, em poucos segundos, o sujeito imprime um relatório de 150 páginas em 
cores com sua mini-impressora de alta tecnologia. Com os papéis em mãos, respira 
fundo, põe novamente os óculos, vira-se para o pastor e diz, com certa empáfia: 
“Você tem exatamente 1.586 ovelhas aqui.” O pastor se empolga: “Está certíssimo, 
pode ficar com sua ovelha.” O rapaz se levanta e, com uma ginga de príncipe, faz sua 
escolha, pondo o animal cuidadosamente no banco de trás de seu Porsche. 
O pastor franze a testa, olha para o camarada e pergunta: “Se eu adivinhar sua 
profissão, você me devolve o animal?” O sujeito olha para o relógio, faz uma discreta 
careta, examina o homem de cima a baixo e responde: “Sim, por que não?” O pastor 
diz então, na lata: “Você é um consultor de informática.” “Como é que você sabe?”, 
indaga o surpreso janota. “É simples”, responde o pastor. “Primeiro, você chegou aqui 
sem ter sido chamado. Segundo, você me cobrou um valor para me dizer algo que eu 
já sabia, e terceiro, você não entende nada sobre o meu negócio... E agora, poderia 
fazer o favor de me devolver o meu cachorro?” 
C@T - consultor de sistemas, texto publicado no caderno INFORMATICAetc do jornal “O 
Globo’”, 25/nov?2002.

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