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Rodrigo de Almeida Leite Mário Sérgio Falcão Maia DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafi os nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Mossoró, RN 2013 ©2012. Rodrigo de Almeida Leite e Mário Sérgio Falcão Maia. Reservam-se os direitos desta edição à Editora Universitária da UFERSA (EdUFERSA). Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzi- da por qualquer meio, sem a prévia autorização deste órgão/entidade. A violação dos direitos do autor (Lei n. 9610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n. 1.825, 20 de dezembro de 1907. Reitor Profº. Dr. Josivan Barbosa de Menezes Feitoza Vice-Reitor Profº. Esp. Francisco Praxedes de Aquino Editora Universitária da UFERSA (EdUFERSA) Av. Francisco Mota, 572 – Centro de Convivência – Sala 4 Costa e Silva - Mossoró/RN - CEP: 59.625-900 - (84) 3317-8307 http://www2.ufersa.edu.br/portal/divisoes/edufersa - edufersa@ufersa.edu.br Conselho Editorial EdUFERSA Bibº. Esp. Sale Mário Gaudêncio (Coordenação), Bibª. M.Sc. Keina Cristina S. Sousa, Profª. Dra. Auris- tela Crisanto da Cunha, Profª. Dra. Ioná Santos Araújo, Profª. Dra. Karla Rosane do Amaral Demoly, Profº Dr. José Domingues Fontenele Neto, Profº. Dr. Antonio Ronaldo Gomes Garcia, Profº. Dr. Janil- son Pinheiro de Assis e Profº. Dr. Paulo Cesar Moura da Silva Equipe Técnica EdUFERSA Flávia Dayane Fernandes Sousa, Francisca Nataligêuza Maia de Fontes e Nichollas Rennah A de Al- meida Capa Nichollas Rennah A de Almeida Diagramação Eletrônica Gráfi ca Caule de Papiro Rejane Andréa Matias Alvares Bay Revisão Ortográfi ca Profº M. Sc. Rodrigo de Almeida Leite Normalização Bibliográfi ca Bibº. Esp. Sale Mário Gaudêncio (CRB-15/476) Ficha Catalográfi ca Bibª. Esp. Marilene S. de Araújo (CRB-5/1013) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Central Orlando Teixeira L5332d Leite, Rodrigo de Almeida. Direitos humanos em perspectiva : desafi os nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo / Rodrigo de Almeida Leite, Mário Sérgio Falcão Maia – Mossoró, RN : EdUFERSA, 2013. 306 p. ISBN 978-85-63145-04-8 1. Direitos humanos. 2. Direito – Brasil. 3. Direito Internacional. I. Maia, Mário Sérgio Falcão. II. Título. RN/UFERSA/BCOT CDD23: 341.48 SOBRE OS AUTORES RODRIGO DE ALMEIDA LEITE Advogado. Mestre em Ciências Jurídico-Comunitárias pela Uni- versidade Clássica de Lisboa (Portugal). Doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Professor de Direito Consti- tucional e Coordenador do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Ex-Coordenador do Curso de Direito da Faculdade de Ciências e Tecnologia Mater Christi (Mossoró-RN), onde também lecionou Direito Constitucional e Direito Internacional Público e Privado. Membro do Conselho Editorial da Revista “Direito e Liberdade”, da Escola de Magistratura do Rio Grande do Norte. Autor de diversos artigos, tendo publicado a seguinte obra na Espanha, pela Editora CERSA S.A: “El Recurso de Anulación y la Restricta Admisibili- dad de los Particulares en el Marco del Artículo 230.4 TCE: Vías Alter- nativas y Complementarias Para Una Tutela Judicial Efectiva en el Or- denamiento Jurídico Comunitario”. Participou como autor de artigo e co-organizador do livro “Responsabilidade Social e Gestão Ambiental”, publicado pela Editora da UFRN. MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Advogado. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Fe- deral da Paraíba (UFPB). Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Constitucional e Hermenêutica da Faculdade Natalense Para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte (FARN). Ex-Coordenador do Curso de Direito da Fa- culdade de Ciências e Tecnologia Mater Christi. Bolsista do Programa de Doutorado em Direito da UFPE. Atualmente também coordena um Grupo de Estudos sobre Hermenêutica Jurídica no curso de Gradua- ção em Direito da UFPE. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.................................................................................11 PARTE I - JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E AR- GUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMEN- TAL À LUZ DO PARADIGMA NEOCONSTITUCIONALISTA........15 1 INTRODUÇÃO...................................................................................15 2 NEOCONSTITUCIONALISMO E DIREITOS SOCIAIS...............21 2.1 EM BUSCA DE UM CONCEITO E DE CARACTERÍSTICAS BÁSI- CAS........................................................................................................25 2.2 A “INVASÃO” DA CONSTITUIÇÃO................................................28 2.2.1 Consequências relativas aos direitos sociais.....................30 2.3 ALGUMAS QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS......................33 2.3.1 Direitos fundamentais e democracia...................................34 2.3.2 Das razões para mudar, ou em busca de uma razão pós- positivista...........................................................................................38 2.3.2.1 Ponderação e racionalidade......................................................41 2.3.2.2 Concretização da Constituição segundo a teoria estruturante de Fr. Muller..........................................................................................44 2.4 EM BUSCA DE UM MODELO DE DIREITOS SOCIAIS ADEQUA- DO.........................................................................................................46 2.5 A RECEPÇÃO DA TEORIA NEOCONSTITUCIONALISTA NO SU- PREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO......................................56 2.5.1 O papel do judiciário na concretização dos direitos soci- ais..........................................................................................................58 2.5.1.1 A evolução da jurisprudência a respeito do mandado de injun- ção.........................................................................................................71 2.5.1.2 Ponderação...............................................................................77 3 JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE................................................................80 3.1 CONCEITO DE JUSTICIABILIDADE E PRINCIPAIS PROBLEMAS...81 3.1.1 A releitura do princípio da separação dos poderes..........88 3.1.2 A reserva do possível...............................................................90 3.2 A RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE CONTROLE DE CONSTITUCIO- NALIDADE E JUSTICIABILIDADE......................................................92 3.3 MODELOS TRADICIONAIS DE CONTROLE DE CONSTITUCIO- NALIDADE E JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS...........95 3.3.1 O modelo de controle concreto (estadunidense): adequa- ção a justiciabilidade dos direitos liberais...................................96 3.3.2 O modelo de controle abstrato (austríaco): em busca de uma justiciabilidade possível dos direitos sociais.....................102 3.3.2.1 Limites do modelo austríaco na justiciabilidade dos direitos sociais..................................................................................................106 3.3.2.1.1 Limites ideológicos.................................................................108 3.3.2.1.2 Limites técnicos......................................................................112 3.4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE MISTO NO BRA- SIL.......................................................................................................1153.4.1 A comunicação do controle difuso-concreto e concentra- do-abstrato no Brasil......................................................................117 4 A ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDA- MENTAL.............................................................................................120 4.1 O OBJETO DA ADPF....................................................................123 4.1.1 Preceito fundamental............................................................124 4.1.1.1 Direitos sociais fundamentais no Brasil................................131 4.1.1.2 O signifi cado de “descumprimento”........................................136 4.1.2 Ato do Poder Público...............................................................138 4.1.2.1 Atos judiciais...........................................................................144 4.1.3 Atos normativos municipais e estaduais..............................147 4.1.4 Direito pré-constitucional....................................................150 4.2 OMISSÃO ESTATAL E ADPF........................................................153 4.3 LEGITIMAÇÃO PARA USAR ADPF..............................................160 4.3.1 O veto do inciso II, do §2º, da Lei n. 9.882/99....................165 4.4 ESPÉCIES DE ADPF......................................................................168 4.5 A SUBSIDIARIEDADE DA ADPF..................................................173 4.6 A MANIPULAÇÃO DOS EFEITOS DA ADPF (O ARTIGO 11 DA LEI N. 9.882/99).......................................................................................179 4.7 A ABERTURA DEMOCRÁTICA DO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE...........................................................186 4.8 CONCLUSÕES...............................................................................189 REFERÊNCIAS...................................................................................195 II PARTE - A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMEN- TAIS NO ÂMBITO INTERNACIONAL — EM BUSCA DA EFETIVI- DADE DAS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DI- REITOS HUMANOS..........................................................................211 1 INTRODUÇÃO................................................................................211 2 A INTERAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS INTERNACIONAIS E RE- GIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS...............212 2.1 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS..212 2.1.1 Órgãos e Mecanismos de Controle dos Direitos Humanos à Nível Internacional..........................................................................219 2.1.2 A Interação entre os sistemas internacionais e regionais de proteção dos direitos humanos................................................224 2.2 OS DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA......................233 3 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS..248 3.1 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREI- TOS HUMANOS..................................................................................248 3.1.1 A Comissão Interamericana..................................................249 3.1.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos................250 3.1.3 As sentenças da Corte Interamericana de Direitos Huma- nos......................................................................................................252 3.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A ADESÃO DO BRASIL À JU- RISDIÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMA- NOS.....................................................................................................253 4 A EXECUÇÃO DAS REPARAÇÕES INDENIZATÓRIAS NO ÂM- BITO DAS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA NO BRA- SIL.......................................................................................................256 4.1 ASPECTOS GERAIS DA EXECUÇÃO DAS SENTENÇAS NOS “ES- TADOS”...............................................................................................256 4.1.1 A distinção entre sentença estrangeira e sentença inter- nacional e a (des)necessidade de homologação das sentenças da Corte Interamericana pelo STJ....................................................259 4.1.2 O procedimento interno de execução das condenações in- denizatórias......................................................................................265 4.2 MECANISMOS ADMINISTRATIVOS E PROPOSTAS LEGISLATI- VAS REFERENTES À EXECUÇÃO DAS SENTENÇAS DA CORTE IN- TERAMERICANA NO BRASIL...........................................................272 5 O MECANISMO DE SUPERVISÃO DO CUMPRIMENTO DAS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HU- MANOS — EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO SISTEMA............276 5.1 PROCEDIMENTOS DA CORTE INTERAMERICANA PARA A SU- PERVISÃO DO CUMPRIMENTO DE SUAS SENTENÇAS................279 5.2 A EXPERIÊNCIA DO SISTEMA EUROPEU DE DIREITOS HUMA- NOS: A SUPERVISÃO DAS SENTENÇAS PELO COMITÊ DE MINIS- TROS...................................................................................................279 5.3 POR UMA METODOLOGIA COMPARATIVA OBJETIVANDO A PROPOSIÇÃO DE MODIFICAÇÕES AO SISTEMA DE SUPERVISÃO DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇAS DA CORTE IDH..................282 5.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE PROPOSTAS DE MODIFICAÇÃO AO MECANISMO DE SUPERVISÃO DE SENTENÇAS DA CORTE IDH À LUZ DA METODOLOGIA EXPOSTA.................................................285 REFERÊNCIAS..................................................................................292 11 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo APRESENTAÇÃO O trabalho que apresentamos agora é resultante da soma dos nossos esforços individuais. As duas partes que o com- põem foram elaboradas separadamente. A idéia de uni-las surgiu depois de inúmeras conversas onde percebemos a se- melhança dos nossos objetos de estudo de então. Assim foi possível esta empreitada pelo caráter dogmático dos dois estudos e, principalmente, pela identifi cação temá- tica: a preocupação com a efetividade dos direitos humanos sob a ótica jurídica. Mais especifi camente, o trabalho – já no singular – é marcado pela abordagem dos aspectos referentes à justiciabilidade desses direitos no plano do direito nacional e internacional. Desta forma está presente no seu desenvol- vimento aquela que talvez seja a grande questão jurídica dos direitos humanos na atualidade, a relativa tensão entre os discursos de soberania estatal e proteção internacional de direitos. A primeira parte deste livro foi produzida entre os anos de 2007 e 2008 junto ao programa de pós-graduação em ci- ências jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, sendo apresentada e aprovada como dissertação de mestrado na área de concentração em Direitos Humanos do referido pro- grama. Apenas pequenas alterações no texto (na maior parte supressões) diferenciam esta versão da apresentada à banca de professores. 12 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Estão no texto, portanto, marcas do trabalho de um pes- quisador iniciante. No que diz respeito ao estilo, certo “peso” na leitura pode ser notado pelo excesso de citações. Refe- rente ao conteúdo, há na idéia de neoconstitucionalismo a exclusão de autores alemães que hoje certamente estariam presentes como Esser, Engish, Kaufmann, dentre outros. Por outro lado, a segunda parte aborda a questão da prote- ção internacional dos direitos humanos fundamentais, com ênfase na criação de sistemas regionais - especifi cadamente o Sistema Interamericano de Direitos Humanos - por ser o sistema regional que possuijurisdição sobre o Brasil. Nes- te sentido, serão tecidas considerações à luz da doutrina de maior vanguarda no Direito Internacional atual, sobre a exe- cução e a supervisão das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizando-se um estudo aprofundado sobre a execução das sentenças no Brasil, bem como sobre o próprio mecanismo de supervisão do cumprimento destas decisões no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Estes escritos foram desenvolvidos desde o ano de 2007 até 2010, e refl etem um estágio inicial de investigação sobre a Corte Interamericana. Certamente após a conclusão da tese de doutorado que está sendo desenvolvida para apresentação no programa de Doutorado em Direito na Universidade de Salamanca, na Espanha, trará maiores aprofundamentos, e também novas idéias (e quem sabe até idéias contrárias ao aqui exposto). A prática investigativa e a curiosidade sobre os meios políticos e jurídicos que permeiam o tema da execução 13 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos estão nos mostrando novos “insights” sobre o tema, que se- rão brevemente publicados. Ainda sobre o texto da segunda parte, justifi ca-se esta investigação, posto que existe um grande percentual de sen- tenças atualmente em status de “cumprimento de sentença” (em média de 85% a 95%), ou seja, não foram cumpridas in- tegralmente pelos Estados condenados, denotando-se que algo não se encontra perfeitamente ajustado, em termos de efi cácia, no próprio sistema. Este talvez seja o elo de ligação das duas partes, posto que ambas buscam a utilização de novos instrumentos jurídico-políticos na luta pela proteção dos direitos humanos fundamentais, para que estes direitos possam sair do mero aspecto dogmático e fl uir nas vias do judiciário. É na busca pela justiciabilidade destes direitos que parte esta obra, com base no pensamento mais moderno do Direito Constitucional e do Direito Internacional. 15 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo PARTE I - JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SO- CIAIS E ARGUIÇÃO D E DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL À LUZ DO PARADIG- MA NEOCONSTITUCIONALISTA Mário Sérgio Falcão Maia 1 INTRODUÇÃO A partir da segunda metade do século passado, o consti- tucionalismo será caracterizado pela existência de Constitui- ções que tentam, de maneira paradoxal, ultrapassar a dicoto- mia juspositivismo-jusnaturalismo positivando valores. Essas Constituições buscam superar o paradigma positivista sem retornar ao jusnaturalismo, aproveitando o grau de certeza (segurança jurídica) alcançado em tempo de positivismo. Desde então, pode-se falar em uma irradiação da Cons- tituição, baseada na necessidade de se ultrapassar o para- digma liberal-positivista. O novo modelo vai além daquele criado pelas Constituições sociais da primeira metade do sé- culo XX (como o visto no Brasil a partir da Constituição de 1934) adicionando, como aspecto fundamental, a questão da democracia, em uma tentativa de evitar o totalitarismo que foi visto, em alguns casos, em épocas de constitucionalismo social. Esse paradigma social e democrático vem sendo chama- do — a partir de contribuições da Itália e da Espanha — de 16 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA neoconstitucionalismo. É fruto das refl exões relacionadas às construções teóricas do Estado Democrático de Direito. For- ma um todo complexo, composto de idéias originadas nas mais diferentes culturas jurídicas. É característica desse novo momento constitucional a re- formulação de toda a teoria dos direitos humanos fundamen- tais, que passa a se basear na idéia de dignidade humana e, conseqüentemente, na igualdade material. Como não pode- ria deixar de ser, os direitos humanos fundamentais sociais passam por uma reformulação teórica que tenta dar conta da complexidade das questões sociais na atualidade. Dessarte, estão na pauta de trabalho desde as questões econômicas até as questões relativas à estrutura e ao papel do Estado, que se vê enfraquecido em época de capital em virtuoso e livre movimento; em época de especulação monetária. Dentro desse contexto de desenvolvimento teórico, não faltam refl exões sobre a concretização dos direitos sociais constitucionalmente garantidos e sobre o papel do judiciário nesse processo. Isso signifi ca dizer que também se buscam instrumentos de cobrança efi cazes, capazes de realizar as promessas de modernidade positivadas. Atualmente, quando se trata da justiciabilidade de direi- tos nos Estados constitucionais periféricos, o desafi o con- centra-se na garantia de efetividade dos direitos sociais, ou ainda, em uma perspectiva mais ampla, nos direitos coleti- vos lato sensu. Apesar do quadro ainda defi ciente, o processo de aumento da densidade jurídica das normas que, desde o início 17 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo do século passado positivaram nas Constituições os direi- tos sociais, já está bastante claro. Esse amadurecimento jurídico pode ser percebido através de diferentes refl exões — e a partir de diferentes culturas jurídicas —, de autores como Silva (2000), Bonavides (2006), Canotilho (2000) e Alexy (1997). Nesse sentido, uma das questões fundamentais da dog- mática constitucional contemporânea é a da viabilização de instrumentos processuais adequados à justiciabilidade dos direitos sociais. Essa questão é atualmente enfrentada tanto no âmbito internacional, quanto no âmbito interno dos dife- rentes Estados Democráticos e Sociais de Direito, e reveste- -se de fundamental importância, principalmente se se en- tende que a análise do processo (constitucional) ultrapassa a mera questão instrumental, que tem a ver com a própria latitude da defesa e concretização de direitos. Diga-se por sua vez que, até aqui, para se efetuar essa justiciabilidade, tem-se utilizado de estratégia inteligente, mas ainda não ideal: trata-se da utilização de instrumentos jurídico-processuais de perfi l liberal-individualista para a co- brança de efetividade dos direitos sociais. Tal tática baseia-se no argumento da indivisibilidade de direitos. Faz-se necessá- rio, então, buscar instrumentos capazes de levar ao judiciá- r io - principalmente aos Tribunais Constitucionais e seme- lhantes - as questões de caráter coletivo com maior agilidade, sob pena de se aumentar aind a mais a defasagem no que diz respeito ao acesso à justiça em países como o Brasil. 18 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA É, nesse contexto, que foi promulgada a Constituição bra- sileira de 1988, na esteira de todo o desenvolvimento teórico ocorrido depois da Segunda Guerra Mundial. O constituinte brasileiro, atento a essa realidade, constrói uma Constitui- ção material fundada na dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III) e no respeito e promoção dos direitos fundamentais, sendo a Constituição contemplada com um amplo rol dos mesmos, em título próprio (II) e espalhados por todo o texto constitucional. Diferentemente do que acontece em outros sistemas constitucionaispositivos — o da Alemanha e EUA, por exem- plo —, no Brasil, os direitos sociais formalmente compõem o quadro dos direitos fundamentais (Título II, Capítulo II). Além disso, estes, juntamente com os direitos liberais, pos- suem efi cácia reforçada possuindo “aplicação imediata” (Art. 5º, §1º). Pode-se dizer, então, que a Constituição brasileira atual, além de positivar direitos, preocupa-se fundamental- mente também em torná-los efetivos. Indicativa também dessa vontade-necessidade de rea- lizar-se da Constituição brasileira é a presença de diversos instrumentos processuais aptos à realização da cobrança de efetividade de direitos na farmacologia constitucional brasi- leira, como o habeas corpus e o mandado de segurança. Além destes tem destaque os novos instrumentos expressamen- te postos para combater a omissão estatal (responsável em grande parte pela falta de efetividade dos direitos sociais). É esse o importante papel de instrumentos jurídico-processuais 19 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo como o mandado de injunção, a ação direta de inconstitu- cionalidade por omissão e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Esse último instrumento é objeto de estudo deste estudo que se apresenta. Apesar de previsto pelo texto constitucio- nal original, já em 1988, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) somente foi regulamentada através da Lei n. 9.882 em 1999. A ADPF nasce para garantir a efetividade do núcleo (grupo mais importante de direitos) da nossa Lei Maior atual. Esse núcleo foi chamado justamen- te de preceitos fundamentais, em uma construção adequa- da à nova teoria constitucional que entende a Constituição como uma unidade composta de regras e princípios. Assim, a ADPF permite que se acione diretamente o Supremo Tribu- nal Federal brasileiro em caso de lesão (ou ameaça) a preceito fundamental, resultante de ato do poder publico (Art. 1º, da Lei n. 9.882). A jurisprudência, em torno das particularidades e poten- cialidades do novo instrumento, começa a se formar. Porém, pode-se afi rmar que apesar de alguns casos paradigmáticos, a relação entre a ADPF e a justiciabilidade dos direitos sociais ainda não foi sufi cientemente aprofundada nem no âmbito da doutrina, e nem no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O objetivo deste trabalho é, portanto, verifi car a existên- cia de elementos contidos na Constituição brasileira de 1988 e na Lei n. 9.882 que permitam afi rmar-se a adequação desse 20 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA instrumento processual de cobrança a um uso específi co: a concretização dos direitos sociais contidos na Constituição brasileira atual. Para isso, foi necessário primeiro investigar e analisar as bases teóricas que serviram de lastro ao trabalho de pes- quisa, ou seja, foi necessário pôr todo o referencial teórico à luz do qual foram analisados os aspectos legais-processuais. Trata-se da análise do neoconstitucionalismo como uma construção teórico-fi losófi ca que tenta dar conta da realida- de do Estado Democrático de Direito contemporâneo. Nesse sentido, merece destaque a tentativa de conceituar esse novo paradigma, atentando principalmente para a construção de uma nova teoria dos direitos humanos fundamentais sociais e para o papel da ponderação na concretização desses direi- tos. Em seguida, passou-se a verifi car, de maneira geral, a re- lação existente entre justiciabilidade dos direitos sociais e controle de constitucionalidade. Para tanto, buscou-se con- ceituar justiciabilidade e apontar os principais problemas teóricos a serem enfrentados no sentido de se construírem alternativas ao modelo liberal-individualista (ainda em voga nos dias atuais). Além disso, foi necessário ressaltar a im- portância da justiciabilidade dos direitos sociais via controle de constitucionalidade em tempos de irradiação do direito constitucional. Por fi m, teve-se que analisar a Argüição de Descumpri- mento de Preceito Fundamental em seus vários aspectos, 21 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo sempre com base na lei regulamentadora (9.882) e na Cons- tituição Federal de 1988. Foi esse estudo detalhado que per- mitiu que, ao fi nal, fossem apontados quais os elementos possibilitaram a afi rmação da adequação desse instrumento jurídico à justiciabilidade dos direitos sociais, em outras pa- lavras, foi a partir dessa investigação minuciosa que se pôde chegar aos resultados conclusivos dessa pesquisa. Assim, o trabalho encontra-se estruturado da seguinte forma: 1) neoconstitucionalismo e direitos sociais, 2) justi- ciabilidade dos direitos sociais e controle de constituciona- lidade e 3) Argüição de descumprimento de preceito funda- mental. 2 NEOCONSTITUCIONALISMO E DIREITOS SO- CIAIS Uma história bas tante conhecida: o iluminado homem moderno, em nome da liberdade, igualdade e fraternidade, revoluciona a política e faz nascer um modelo estatal carac- terizado pela separação dos poderes e proteção dos direitos individuais. Tem início a era dos direitos (BOBBIO, 1992), que, inspirada na vontade geral rousseauniana, vai garantir a supremacia da lei e, consequentemente, consagrar o Estado de Direito Legislativo. É difícil entender como esse homem racional comete as barbaridades vistas na Europa e Ásia, no período de guerra 22 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA na primeira metade do século XX. É, a partir do momento de refl exão do Pós-guerra, que começam a ser debatidas as idéias que, mais tarde, seriam agrupadas sob o rótulo — ain- da em construção — de neoconstitucionalismo. As constituições do Pós-guerra, principalmente, aquelas do inicio dos anos setenta do século passado1, trazem, no seu corpo, os refl exos desse momento histórico. Ao contrário das constituições liberais, que atingem o ápice da sua juridicida- de sob o signo do positivismo, as constituições contemporâ- neas caracterizam-se pela sua abertura aos valores, que são positivados. A formalidade das constituições liberais é substituída pela materialidade das constituições democráticas surgidas no Pós-guerra2. Assim, o Estado Legislativo de Direito dá lugar ao Estado Constitucional ou Democrático de Direito, que pretende, de uma maneira paradoxal, ultrapassar o posi- tivismo jurídico, positivando valores, ou seja, aproximando o direito da moral. Nesse sentido, são as contribuições de Dworkin (2002), Alexy (1997) e Canotilho (2000) que permitem entender o direito (e a Constituição) como um todo composto não só de regras, mas também de princípios. Somando a isso, 1 Como exemplos, podem-se citar as constituições da Espanha (1978), Portugal (1976), Brasil (1988) e Colômbia (1991). 2 Essa materialidade já podia ser encontrada desde as constituições sociais do México (1917) e da Alemanha (1919), porém, nesse momento, o positivismo ainda era dominante. 23 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo esses últimos (princípios) possuem uma redação mais aber- ta e atuam como verdadeiras “janelas”, possibilitando o arejamento da pirâmidenormativa do positivismo. Assim, Dworkin (2002) vai afi rmar que uma Teoria Geral do Direito irá assentar-se em uma teoria moral e política mais geral. É, a partir daí, que se pode entender as palavras de Faralli (2006, p. 11), quando afi rma que: […] a crise do positivismo jurídico levou à superação da rígida distinção entre direito e moral e à conseqüente abertura do debate fi losófi co-jurídico contemporâneo aos valores ético-políticos. Essa abertura teve vários re- sultados, dentre os quais os mais signifi cativos parecem ser as chamadas teorias constitucionalistas ou neocons- titucionalismo e a nova teoria do direito natural. Porém, essa necessária ligação entre direito e moral é con- testada dentro do próprio neoconstitucionalismo. Assim, fi ca evidenciada a pluralidade de correntes dentro do pensa- mento neoconstitucionalista. Como exemplo, temos as palavras de Sanchís (2007, p. 268), afi rmando que “frente a lo que piensan algunos consti- tucionalistas, yo no creo que la Constituicíon material o sus- tantiva venga a cancelar la separación conceptual entre de- recho y moral”. Também, nesse sentido, posiciona-se Pulido (2007, p. 302), sustentando que defender a tese do neocons- titucionalismo não signifi ca necessariamente aceitar a idéia de Constituição como um sistema axiológico independente de seu texto. 24 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA A partir dessa diferença fundamental, é possível identifi - car a existência de duas abordagens neoconstitucionalistas, que têm em comum a crítica aos modelos teóricos liberais tradicionais. Maia (2008, p. 216) vai identifi car a primeira corrente como sendo não positivista e tendo como autores principais (na versão que vai chamar de continental) Robert Alexy, Gus- tavo Zagrebesky, Alfonso Garcia Figueroa e Santiago Sastre Ariza. Já a segunda corrente será caracterizada por Maia pela existência de pontos de contato entre o neoconstitucionalis- mo e o positivismo inclusivo3 e cita como autores principais Luis Pietro Sanchís e José Juan Moreso, que dialogam com teóricos italianos vinculados a uma tradição positivista como Paulo Comanducci, Susanna Pozzolo e Ricardo Guastini. Nesse contexto, foi possível repensar a dicotomia moderna ser-dever ser que, juntamente com o “descobrimento” da His- tória (historicismo), levará a humanidade a mais uma refl e- xão crítica em torno do positivismo (STRAUSS, 2000), tendo como momento representativo dessa refl exão o Pós-guerra. Sob essa infl uência pós-positivista, pode-se avançar na formulação de uma teoria do direito, ao mesmo tempo, nor- mativa e conceitual (DWORKIN, 2002, p. 8). Nesse caso, a ciência jurídica despede-se da pretensa neutralidade positi- vista, sai de uma posição contemplativa em relação ao seu 3 A tese central do positivismo inclusivo vai afirmar que, quando os juízes apelam a determinados estândares morais na resolução do caso concreto, eles estão incorporando esses conteúdos morais na composição do direito juridicamente válido. DUARTE; POZZOLO (2006) 25 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo objeto de estudo e passa a ter consciência do seu papel cria- dor. 2.1 EM BUSCA DE UM CONCEITO E DE CARACTERÍS- TICAS BÁSICAS A refl exão e desenvolvimento teórico em torno do neo- constitucionalismo dão-se, inicialmente, na Espanha e na Itália e, atualmente, estão prese ntes também — com bastan- te força— em vários países da América Latina, como o Brasil, a Argentina, a Colômbia e o México. O termo neoconstitucionalismo foi utilizado pela pri- meira vez por Susanna Pozzolo, em 1998, para “denominar um certo modo antijuspositivista de se aproximar o direi- to” (DUARTE; POZZOLO, 2006. p. 77). Carbonell (2007, p. 9-11), após ressaltar a recente tentativa de conceitualização do termo neoconstitucionalismo e a ainda escassa produção de estudos sobre o tema, afi rma que existem pelo menos três níveis de análise a que convêm considerar. O primeiro diz respeito aos textos constitucionais e re- laciona o neoconstitucionalismo à tentativa de explicar um conjunto de textos constitucionais surgidos depois da Se- gunda Guerra Mundial. O segundo refere-se às práticas jurisprudenciais que fo- ram profundamente modifi cadas com a entrada em vigor das Constituições materiais. 26 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Por fi m, remete o autor aos desenvolvimentos teóricos novos, que partem não só dos dois pontos elencados ante- riormente, mas também se desenvolvem em regiões de fron- teira — com o positivismo inclusivo, por exemplo. Ainda, se- gundo ele, é esse desenvolvimento teórico que irá contribuir para explicação e criação do Direito (fenômeno jurídico). Ainda sobre o tema, Sanchís (2007, p. 289) afi rma que o neoconstitucioanlismo é uma nova “cultura jurídica”, ou pelo menos uma “teoria do direito”. Ahumanda (apud PULIDO, 2007, p. 289) diz que o termo neoconstitucionalismo está ligado ao novo paradigma do Estado Democrático de Direito e ainda que o termo faz referência a “un modelo de perfi les todavia confusos que ha obligado a la revisión de la fi losofi a del derecho”. Figueroa (apud PULIDO, 2007, p. 289-290) fala do neo- constitucionalismo como uma nova corrente ou um novo pa- radigma que escapa aos rótulos tradicionais e que é capaz de superar a já esgotada dialética positivismo-jusnaturalismo. Por fi m, Lopero (apud MOREIRA, 2008, p. 21) diz: Na teoria recente parece consolida-se o uso da expressão Neoconstitucionalismo para designar um conjunto de transformações operadas na prática e na compreensão dos ordenamentos jurídicos contemporâneos; inovações que na opinião de alguns autores permitem falar em um novo paradigma do direito. 27 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Pode-se dizer que o neoconstitucionalismo representa um novo paradigma do direito formado a partir de diferentes propostas fi losófi co-teóricas4 e que tem como ponto de par- tida a refl exão pós-positivista, iniciada na segunda metade do século XX. Além disso, deve-se dizer que o eixo de liga- ção dessas diferentes propostas está no Estado Constitucio- nal (Democrático) de Direito, que irá fornecer os elementos capazes de aglutinar diferentes pensamentos formulados a partir de diferentes culturas jurídicas. Assim, deve-se entender esses elementos como verdadei- ros pressupostos do neoconstitucionalismo. Estão relaciona- dos ao protagonismo reforçado das constituições — e, mais especifi camente, dos direitos fundamentais — nas comple- xas sociedades contemporâneas. São eles: a existência de uma (1) constituição material e (2) garantida (SANCHÍS, 2007, p. 213). É, a partir desses dois elementos, que se pode falar no (3) entendimento do direito como composto de regras e princípios, no conseqüen- te (4) uso da ponderação como técnica de interpretação e, fi nalmente, (5) na afi rmação da inexistência de um mundo político totalmente imune à infl uência constitucional, ou seja, pode-se afi rmar que não existe processo político liberto da Constituição. Feito todo este caminho torna-se fácil entender o uso de uma grande variedade de palavras na tentativa de uma 4 Sobre a fragilidade da fronteira existente entre filosofia e teoria do direito em tempos pós- positivistas,ver Rabenhortst (1998, p. 77-94). 28 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA conceituação do neoconstitucionalismo. Este é, na verda- de, um sintoma dessa multiplicidade de propostas agrupa- das sob a mesma denominação. Porém, fi ca claro que, sob esse rótulo, estão reunidas as refl exões teóricas que buscam desenvolver um novo quadro de referências capazes de dar conta das mudanças geradas pelo Estado Democrático de Di- reito. Resta esclarecer qual o signifi cado de “constituição mate- rial” e “garantidas”, aqui utilizadas. Afi rmar a existência de uma constituição material é dizer que vai além de estabelecer competências e de separar os poderes públicos. Já dizer que é garantida signifi ca que se leva a sério o conteúdo constitucio- nal e, conseqüentemente, existem instrumentos de cobrança adequados (em tese ao menos). 2.2 A “INVASÃO” DA CONSTITUIÇÃO A conseqüência mais importante do paradigma neocons- titucionalista é a chamada invasão da Constituição, que consiste em uma irradiação do direito constitucional para áreas às quais, tradicionalmente (no liberalismo), o mesmo não alcançava. Assim, pode-se falar em sobreinterpretação constitucional capaz de proporci onar a evocação direita dos direitos fundamentais (inclusive sem a atuação do legislador ordinário). 29 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Essa sobreinterpretação pode ser entendida como sendo um produto da nova hermenêutica constitucional capaz de conformar “as estruturas reais de poder à matéria constitu- cional jusfundamental” (MOREIRA, 2008, p. 81). Trata-se, em verdade,de uma interpretação extensiva da Constituição a partir da qual são extraídas normas implícitas idôneas para regular qualquer aspecto da vida social e política (GUASTINI, 2005, p. 54). Dessa forma, todo o direito infraconstitucional — civil, penal, processual, etc. — tem de ser reinterpretado de acor- do com a Constituição. É também esse efeito irradiante, que se baseia na supremacia dos direitos fundamentais, que irá ser responsável pelo rompimento da fronteira rígida exis- tente anteriormente entre o jurídico e o político. Em outras palavras, impõe limites e prescreve objetivos para todos, in- clusive para o legislador democraticamente eleito. O início do desenvolvimento teórico desse poder de irra- diação da Constituição deu-se na Alemanha, com o famoso caso Lüth5, apontado por Alexy (2008, p. 72) como um ver- dadeiro Big Bang na expansão de conteúdos materiais cons- titucionais. De fato, desde então, os direitos fundamentais penetraram diretamente nas relações existentes entre 5 O que estava em discussão era a legitimidade de um boicote contra um filme dirigido pelo cineasta Veit Harlan, que tinha um passado nazista. O movimento foi organizado pelo presidente do clube de imprensa de Hamburgo, Erich Lüth, em 1950. A produtora do filme consegue, na justiça, que o boicote termine, porém, Lüth vai interpor recurso (queixa constitucional). O Tribunal Constitucional acolhe o recurso, fundamentando-se no entendimento de que as cláusulas gerais do direito privado têm de ser interpretadas à luz da ordem de valores que fundamentam a Constituição. 30 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA particulares, permitindo a reformulação da dogmática li- beral, que se caracterizava também pela existência de uma fronteira rigorosa de separação entre o público e o priva- do. Outro desenvolvimento fundamental para o neoconsti- tucionalismo, necessário, no desenvolvimento da idéia de irradiação dos direitos fundamentais e diretamente relacio- nados a esse caso, foi a ponderação. O tribunal alemão utiliza da ponderação, para, mais uma vez, ultrapassar o paradigma liberal, no sentido de propor uma alternativa a simples sub- sunção6 — adequada ao tudo ou nada das regras. Apoiando- -se no caráter principiológico/axiológico e na consequente abertura em termos de redação dos direitos fundamentais, a Corte utiliza-se da ponderação, para decidir em um caso concreto de choque de direitos (princípios), qual deles deve prevalecer. 2.2.1 Consequências relativas aos direitos sociais A partir desse novo contexto, pode-se afi rmar que não existe mais conteúdo meramente programático nas consti- tuições e que os princípios, tanto quanto as regras, são juri- dicamente vinculantes. 6 “A perspectiva subsuntiva, ou silogística, entende que a norma geral constitui a premissa maior, dentro da qual o caso concreto coloca-se como premissa menor, possibilitando a decisão.” (ADEODATO, 2007, p. 224) Também interessante perceber essa perspectiva silogística nas palavras de Canelutti (2002, p. 86) quando afirma que “(...) o feito do juiz, como já dissemos, consiste em transformar a lei ditada, em geral, para categorias inteiras de casos, em uma lei especial para o caso particular”. 31 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo No Brasil, essa afi rmação se fundamenta no aprofunda- mento do trabalho teórico de autores como Silva (2000) e Bonavides (2004). Trata-se em verdade de afi rmar a juridi- ci dade das normas programáticas, buscando-se construir um referencial teórico capaz de afi rmar uma efi cácia positiva desse tipo normativo, ou seja, trata-se de ir além da efi cácia negativa, já amplamente aceita no caso das normas progra- máticas, e buscar alternativas de cobrança de efetividade dos direitos sociais. Assim é possível, inclusive, se falar em direitos subjeti- vos decorrentes de uma interpretação e aplicação direta das normas programáticas a exemplo do que acontece, já com relativa frequência no Brasil, quando o judiciário garante o acesso a medicamento e/ou tratamento de saúde para indiví- duos materialmente carentes (RE 271.286). Certamente que para a caracterização dessa situação excepcional, depende-se sempre da análise do caso concreto. Assim, não existe lei que escape ao controle de constitu- cionalidade, como não há o que possa ser considerado como “questões políticas” apenas (GUASTINI, 2005, p. 54). Essa afi rmação ecoa de maneira especialmente profunda sobre a teoria dos direitos sociais fundamentais. Para se entender o porquê, deve-se voltar um pouco na história. As constituições do México (1917) e da Alemanha (1919) — no caso do Brasil, 1934 — tiveram o mérito de positivar, no topo do ordenamento jurídico-positivo, os chamados direitos sociais, cujo conteúdo-base é fruto das 32 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA lutas empreendidas por aqueles que não se benefi ciaram da liberdade formal do Estado Liberal clássico. Portanto, esses direitos que foram gerados no século XIX e paridos no início do século XX dão início ao chamado Constitucionalismo Social, caracterizado pela positivação do compromisso fi rmado entre duas classes antagônicas: a bur- guesia e o proletariado. Essas Constituições são a certidão de nascimento do que se convencionou chamar de direitos de segunda geração, com base na lição de Marshall (1967). Não se pode esquecer, no entanto, que o Constituciona- lismo Social tem início em uma era de prestigio positivista que somente seria realmente abalado em meados do mesmo século (XX). Assim o que se tinha era que uma situação de simbiose entre o positivismojurídico e o Estado liberal, isso apesar da origem deste ultimo ser ligada a toda uma tradição jusnaturalista e iluminista. As normas de direitos sociais, caracterizadas pela fór- mula de compromisso e pela redação aberta e de forte car- ga axiológica, não podiam prosperar em época de direito “puro” (KELSEN, 1996, p. 1); em uma época de formalismo extremo. Foi negada então a juridicidade dos direitos sociais constitucionalmente positivados e afi rmada a sua programa- ticidade. As normas positivadoras do compromisso fi rmado entre a burguesia e o proletariado seriam apenas orientações dirigidas ao legislador, um catálogo de boas intenções. 33 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Portanto, tendo-se como base o novo paradigma neo- constitucionalista, foi possível ultrapassar a programatici- dade e afi rmar a juridicidade das normas de direitos sociais, mediante o prestígio adquirido pelos princípios dentro da di- nâmica do Estado Democrático de Direito. Em verdade, diz- -se que atualmente os direitos fundamentais têm o caráter de princípios e que os princípios, por sua vez, são mandatos de otimização (ALEXY, 2004, p. 13). Desta forma, tendo como ponto de partida essa nova rea- lidade, pode-se recorrer à jurisdição constitucional, que, va- lendo-se da ponderação no caso concreto, busca meios para a realização das promessas constitucionalmente positivadas. 2.3 ALGUMAS QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS As grandes mudanças não se dão sem grandes problemas, grandes obstáculos. Esse parece ser o caso do neoconstitu- cionalismo, que encontra difi culdades, principalmente, pelo papel de destaque reservado ao Judiciário — na maioria dos casos as Cortes Supremas ou Constitucionais – que atua como verdadeiro guardião da Constituição e dos direitos fundamentais. Portanto, a maior parte dos problemas que estão a desafi ar a fi losofi a/teoria do direito contemporânea relaciona-se à legitimidade e racionalidade dessa at uação por parte do Judiciário. 34 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA 2.3.1 Direitos fundamentais e democracia A relação existente entre direitos fundamentais e demo- cracia, no modelo neoconstitucionalista, é caracterizada por uma tensão irremediável (SANCHIS, 2007, p. 287): com efei- to, pode-se afi rmar que, sob o paradigma do Estado Cons- titucional, todos os poderes, incluindo os da maioria, estão condicionados pela lei, por isso, “en el Estado constitucional de derecho no existen poderes soberanos, ya que todos están sujetos a la ley ordinária y/o la constitucional” (FERRAJOLI, 2007, p. 72). Também, nesse sentido, já afi rmava Kel sen (2003, p. 150) que não se pode falar de soberania de um órgão estatal parti- cular, já que essa soberania é, no máximo, da própria ordem estatal. Assim, o que se tem com o reconhecimento da fun- damentalidade de alguns direitos e o conseqüente fortaleci- mento da Justiça Constitucional é o reconhecimento de que até os poderes do parlamento cedem à supremacia da Cons- tituição (BITTENCOURT, 1997, p. 84). Pode-se dizer, então, que a relação democracia/ direitos fundamentais é caracterizada pela existência de uma con- tradição, uma vez que os direitos fundamentais podem ser vistos, ao mesmo tempo, como democráticos (ao garantir direitos garante a existência da própria democracia), e não- -democráticos (pois desconfi am do processo democrático, subtraindo da maioria legitimada poderes de decisão), (ALE- XY, 2008, p. 53). 35 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Com isso, desenha-se a seguinte situação: levar a sério os direitos fundamentais signifi ca garanti-los, e isso pressupõe o fortalecimento da jurisdição constitucional. Todavia um judiciário forte, capaz de impor derrotas às maiorias, apre- senta-se como um problema (contornável, segundo os ne- oconstitucionalistas) para a democracia calcada na idéia de que todo poder emana do povo (Parágrafo único do Art. 1º da Constituição brasileira de 1988, por exemplo). Uma maneira de se resolver essa contradição é perce- bendo a diferença existente entre representação política e argumentativa do cidadão (ALEXY, 2008, p. 53). Destarte, quando se diz que “todo o poder emana do povo”, está-se — implicitamente — reconhecendo que o tribunal constitucio- nal é uma representação popular, diferentemente da repre- sentação política do parlamento. O tribunal constitucional representa o cidadão argumen- tativamente. Essa leitura é possível, se se percebe, de uma maneira realista, o perigo que há, no cotidiano parlamentar, de erros graves serem cometidos pela maioria sob a infl uência do dinheiro e das relações de poder (lobbies, por exemplo) e, em outros casos, de fortes emoções. Considerando-se a situ- ação acima descrita, um tribunal que se dirige contra as deci- sões da maioria não estaria se dirigindo contra o povo, mas justamente o contrário: estaria atuando em nome do povo, contra os seus representantes. Certamente, essa não seria uma representação política, e sim argumentativa, porque o tribunal constataria a falha no processo político, a partir da 36 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA consideração de critérios jurídico-humanos e jurídico-funda- mentais. Essa atuação baseia-se na idéia de que os cidadãos “iriam aprovar os argumentos do tribunal se os mesmos acei- tassem um discurso jurídico-constitucional racional” (ALE- XY, 2008, p. 54). Também se deve afi rmar, com Häberle (2002, p. 44-49), algo de extrema importância para esse estudo: que ao abrir democraticamente o processo constitucional, permitindo “a participação de inúmeros segmentos no processo de inter- pretação constitucional”, a Corte constitucional fortalece-se e ganha em legitimidade no âmbito de uma teoria de Demo- cracia. A partir do pensamento do autor, pode-se dizer que a aparente tensão democracia-direitos fundamentais resolver- -se-ia na medida em que se entende que a democracia é o “domínio do cidadão” e que essa democracia do cidadão esta muito próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da concepção se- gundo a qual “o povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do monarca.” (HÄRBELE, 2002. p. 38). Outra maneira de se resolver essa aparente contradição é perceber a função republicana da justiça constitucional (ZA- GREBELSKY, 2007, p. 100), em uma visão adequada a paí- ses, como o Brasil, que se defi ne como República (Art. 1º da Constituição Federal). Esse caminho parte do resgate do conceito clássico de re- pública como sendo algo de todo o povo, não podendo ser de uma de suas partes, nem mesmo se essa for a maioria. Essa 37 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo concepção clássica opõe-se àquela característica dos séculos XVII e XVIII, que vai entendê-la como o oposto da monar- quia. Portanto, é um termo que “indica una concepción de la vida colectiva”, enquanto que a democracia “es uma especifi - cación que se refi ere a la concepción del gobierno” (ZAGRE- BELSKY, 2007, p. 101). Dessa maneira, é possível entender a atuação do judiciário comorepublicana, e, portanto, em nome de todos. Assim, é possível conciliar a idéia de demo- cracia, ligada, principalmente, ao parlamento e à idéia repu- blicana, dentro de um mesmo sistema constitucional. Desse modo, ao atuar na fi scalização da constituciona- lidade, os Tribunais estariam atuando em nome de todos. Defender a atuação dos tribunais na defesa e concretização de direitos fundamentais não signifi ca, pois, sustentar que o poder judiciário seja superior ao legislativo, mas sim — como disse Hamilton (apud BITTENCOURT, 1997, p. 69) — que o poder do povo é superior a ambos (the power of people is superior to both). A conclusão que se chega ao seguir-se a idéia republicana é a que por mais que se deva questionar os limites da atuação do Judiciário, a mesma, em teoria, é sempre legítima quando o Judiciário atua na defesa e concretização dos direitos fun- damentais positivados nas Constituições contemporâneas em nome do aumento da densidade do principio da dignida- de humana. 38 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Ainda que se deva teorizar sobre os limites dessa atuação do judiciário, não se pode esquecer que menos interessante do que essa atuação do judiciário é entregar a guarda da nova ordem (nacional e internacional) a instituições fi nanceiras subtraídas ao controle democrático, lembrando com Portina- ro (2006, p. 487) que “o risco está, portanto, na transição de uma democracia sob a supervisão de juizes constitucionais a uma sociedade civil de corporações legais[...]”. 2.3.2 Das razões para mudar, ou em busca de uma razão pós-positivista A busca do direito positivo pode ser descrita também como a proc ura da segurança (jurídica) (SICHES, 1965, p. 702-704). Assim, é possível se entender todo o movimento de codifi cação do direito que se dá a partir da França pós- -revolução. Ao transpor os direitos naturais constitucional- mente declarados para os códigos, estava-se, em verdade, em busca de uma segurança que se acreditava ser possível somente a partir do trabalho de um legislador racional, ca- paz de reunir todo o direito (o direito passará mais adiante a ser entendido como sinônimo de lei) em um corpo legislativo simples e unitário. Através do código, então, se superaria a situação de desordem causada pelo acúmulo de normas jurí- dicas produzidas no decorrer do desenvolvimento histórico. Lembre-se ainda que a burguesia revolucionária, rapida- mente, transforma-se em conservadora, que pretende 39 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo proteger e fi xar a liberdade (formal) conquistada. Nesse con- texto, abrem-se as portas para o surgimento do positivismo jurídico, entendido como “aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito que não o positivo” (BOBBIO, 2006, p. 119), que, entre críticas e elogios, reinará até meados do sécu- lo passado e que ainda hoje infl uencia fortemente as decisões jurídicas. Esse positivismo caracteriza-se, dentre outras coisas, pela construção de modelos de aplicação do direito (dogmática) imunes ao questionamento e, conseqüentemente, à mudan- ça. Qualquer mudança a ser inserida no sistema deve, neces- sariamente, partir do legislador. Em outras palavras, trata-se do dogma da onipotência do legislador. Vê-se que essa realidade muda a partir do surgimento do Estado Constitucional de Direito, principalmente, no que se refere ao rompimento da separação rígida entre o jurídico e o político, no âmbito constitucional, e a conseqüente re- confi guração da atividade do Judiciário através da jurisdição constitucional. O destaque já não será mais o legislador (or- dinário principalmente), passa a ser, em verdade, a própria Constituição e seus direitos fundamentais. Certamente essa mudança gera alguma insegurança no âmbito da teoria “geral” do direito construída em época po- sitivista e que associa o Direito e a interpretação jurídica a idéia de subsunção; de dedução. Ganha-se na atualidade em honestidade, já que deixa-se de lado a pretensa neutralidade positivista fortemente ligada, como visto, a ideologia liberal. 40 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Assim, a atribuição dessa tarefa transformadora da juris- dição constitucional traz consigo também a necessidade de uma justifi cação/explicação/fundamentação mais completa e racional das decisões judiciais. Efetivamente, pode-se fa- lar na existência de um constitucionalismo discursivo, que tenta encontrar uma razão possível na argumentação (PE- RELMAN, 2004), ou seja, na fundamentação das decisões ju- rídicas e não mais apenas no “processo interpretativo” como buscou Savigny. Em síntese: considera-se a insufi ciência dos métodos e técnicas da hermenêutica jurídica moderna no enfrentamen- to das complexas questões contemporâneas e a conseqüente ligação, atualmente verifi cada, entre hermenêutica e teoria da argumentação (CAMARGO, 2003, p. 10). Desta forma é possível afi rmar que o esforço de racionalização transfere-se do “interpretar” para o “explicar”. Logo, para que o Judiciário possa fazer uso desse poder de interpretação e realização dos direitos fundamentais, ga- rantidos pela (neo) Constituição, deve explicar muito bem a sua maneira de agir, de preferência, utilizando-se de argu- mentos racionais. Então, com a abertura neoconstitucionalista à contribui- ções de base tópico-retórica, a refl exão e a conseqüente de- cisão em torno dos direitos fundamentais dão-se a partir da análise do caso concreto, ou seja, é a partir da ponderação que se pode decidir. 41 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo 2.3.2.1 Ponderação e racionalidade Como visto, a ponderação tem papel de destaque dentro do modelo neoconstitucionalista. É, a partir dessa técnica de interpretação constitucional, que se realizam os direitos fundamentais. A grande crítica que se faz à ponderação diz respeito à racionalidade do processo, ou melhor, a uma fal- ta de racionalidade (AMADO, 2007, p. 255), que, em última análise, deixaria a realização constitucional nas mãos dos ju- ízes chamados a analisar o caso concreto. Por conseguinte, de acordo com essa crítica, os direitos fundamentais seriam reféns da subjetividade dos julgadores. Na realidade, eliminar toda a discricionariedade das deci- sões judiciais seria uma tarefa impossível. Contudo, isso não diminui a importância da busca de uma racionalidade possí- vel em torno da ponderação. Toda a construção teórica em redor da argumentação ba- seia-se na utilização de argumentos que possam ser aceitos mediante a análise do caso concreto. Esse processo de argu- mentação deve ser “tão racional quanto possível” (ALEXY, 2008, p. 130) e tem o objetivo de formar um consenso ra- cional. Ainda se deve dizer que outra maneira de se rebater essa crítica é taxar os próprios críticos como hiper-racionais, in- capazes de reconhecer o limite da racionalidade mesma (PU- LIDO, 2007, p. 317). 42 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA Alexy (2008, p. 68), buscando defi nir parâmetros para a ponderação, afi rma que esse procedimento racional realiza- -se a partir de um fundamento, que vai chamar de “lei da ponderação” e que pode ser posto daseguinte maneira: “Quanto mais intensiva é uma intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem pesar os fundamen- tos que a justifi cam”. Como conseqüência lógica dessa lei, tem-se que o pro- cesso de ponderação pode ser dividido em três passos par- ciais: no primeiro momento, deve-se comprovar o grau de não-cumprimento ou prejuízo de um princípio. Em seguida, deve-se comprovar a importância do cumprimento do prin- cipio em sentido contrário e, fi nalmente, deve-se comprovar se a importância do cumprimento do princípio, em sentido contrário, justifi ca o prejuízo ou não-cumprimento do outro. Para se fazer entender melhor, o autor utiliza um exemplo colhido junto à jurisprudência alemã, que será utilizado aqui devido à sua clareza. Nesse caso, o que está em jogo é o dever dos produtores de tabaco de colocar em seus produtos refe- rências aos perigos do fumo para a saúde. Primeiro, deve-se construir uma espécie de tabela capaz de tornar possível uma avaliação de intensidade dos argumentos propostos a partir dos diferentes pontos de vista possíveis no caso concreto. No caso específi co, um desses pontos de vista é o dos produtores de tabaco, que classifi cam o dever de colocar nos seus produtos informações ao público como uma interven- ção na liberdade de profi ssão. 43 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Por sua vez, o tribunal vai construir essa tabela de grada- ção considerando essa intervenção (informação nos produ- tos), como sendo leve se comparada à outra grave, que seria a completa proibição do comércio do tabaco. Então, é possível dizer que tudo que estiver fora desses dois extremos repre- senta uma intervenção média. Com isso, está formada uma tabela de gradação triádica, dividida em graus leve, médio e grave. Certamente, essa mesma possibilidade de gradação existe com relação aos fundamentos em sentido contrário. No caso em análise, o fundamento para se colocar as informações no produto está relacionado à proteção da população diante dos perigos à saúde causados pelo tabaco, ou seja, trata-se de uma fundamentação forte, ou, de peso alto. O que, na tabela de gradação, corresponde ao nível “grave”. A decisão do tribunal, que afi rma a necessidade de infor- mação do público sobre os males do cigarro, por conseguinte, não viola a liberdade de profi ssão dos produtores de tabaco, uma vez que o fundamento de uma intervenção grave justifi - ca a intervenção leve. Então, considerando a escalação triádi- ca de gradação, existem nove possibilidades de combinações (grave-leve, média-grave, leve-grave, por exemplo). Dessas possíveis combinações, seis são capazes de orien- tar a decisão imediatamente e três indicam uma situação de empate. Nesse último caso, trata-se de um espaço de pon- deração estrutural que se caracteriza pela ausência de man- damentos ou proibições defi nitivas, delicado e de grande 44 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA importância para a delimitação dos espaços de atuação do Judiciário e do Legislativo. Esse procedimento racional de ponderação vai permitir que a Constituição, com as suas normas de redação aberta e com forte carga axiológica, seja concretizada. Na impos- sibilidade de se defi nir um catalogo de direitos totalmente delineados prima facie, busca-se esse delineamento a partir de um caso concreto. 2.3.2.2 Concretização da Constituição segundo a teoria estruturante de Fr. Müller Müller (2008) é mais um autor pós-positivista que se preocupa com o desenvolvimento teórico a partir e para o Estado Democrático de Direito. Além disso, a teoria estrutu- rante do direito, desenvolvida pelo autor, (re)afi rma a valida- de direta e completa de todos os textos de norma através da Constituição e baseia-se na análise do caso concreto. Então, nesse sentido, o autor pode ser classifi cado como um neo- constitucionalista. No entanto, distancia-se desse paradigma, quando afi r- ma que as críticas feitas até aqui ao positivismo permanecem ainda no mundo positivista, e isso se deve ao fato de compar- tilharem “a ilusão de que os textos nas leis, nas constituições, sejam já as normas” Assim, os críticos do velho positivismo ainda estão presos ao “antagonismo abstrato entre ser e de- ver-ser” (MÜLLER, 2007, p. 270- 302). 45 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Adeodato (2007, p. 238), ao analisar a teoria de Müller, percebe que o autor vai afastar-se da teoria da argumentação (nos moldes da proposta de Alexy, por exemplo), ao declarar que a concretização é diferente de silogismo, aplicação, sub- sunção, efetivação ou individualização concreta do direito a partir da norma geral. De acordo com o autor alemão, esses critérios seriam heranças do positivismo legalista exegético. Assim sendo, assumindo o pensamento de Müller, pode- -se tentar encontrar indícios dessa insufi ciência teórica no conceito de efetividade exposto por Barroso (2001) (neo- constitucionalista brasileiro). Conforme esse último, a efetividade representa a “mate- rialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e sim- boliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social” (BARROSO, 2001, p. 85). Percebe-se, então, que ainda persiste a distin- ção entre ser e dever-ser, ou seja, a dicotomia ser-dever-ser, uma vez que esses elementos não formam um todo único. Também encontramos indícios dessa dicotomia ainda existente nas palavras de Sanchís (2007, p. 278), quando diz que a ponderação tem o objetivo de construir uma regra, para subsumir o caso e que “el ideal de la ponderación es la subsunción”. De fato, concretizar a constituição signifi ca encarar um processo de densifi cação das regras e princípios constitucio- nais, essa densifi cação, por sua vez, tem o objetivo de tornar 46 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA possível a solução de problemas concretos a partir da obser- vação de preceitos constitucionais carentes de signifi cado completo em abstrato (CANOTILHO, 2000, p. 1165). O que o autor alemão vai fazer é desenvolver uma nova concepção de efetivação do direito que abrange, simultanea- mente, os fatores da realidade e da norma, por meio de uma estruturação segundo o âmbito da norma e a idéia normativa orientadora (programa da norma). É, a partir desses elementos, que o jurista vai “conhecer” a norma. Desse modo, pode-se falar em uma teoria da geração do direito (CHRISTENSEN, 2007, p. 240). Nota-se portanto, que enquanto tradicionalmente os autores neocontituciona- listas, a exemplo de Alexy, buscam a solução para a dicotomia moderna no âmbito da fi losofi a (principalmente através da relação direito-moral), Müller com a sua teoria estruturante vai tentar ultrapassar essa dicotomia de uma maneira mais pragmática, transportando a discussão para o campo da teo- ria (estrutura) da norma. 2.4 EM BUSCA DE UM MODELO DE DIREITOS SO- CIAIS ADEQUADO Pós-positivismo, princípios, ponderação, concretização, insegurança, racionalidade, são alguns tópicos encontrados com frequência por aqueles que estudam o direito atual. Essa multiplicidade de questões é fruto da complexidade caracte- rística das sociedades contemporâneas. 47 DIREITOSHUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Como visto, a partir do constitucionalismo surgido na segunda metade do século passado, fez-se necessária uma revisão completa da teoria do direito, que estava adaptada ao modelo liberal. Desde muito tempo, constatara-se a in- sufi ciência da teoria liberal, quando se tratava de dar conta das questões envolvendo os direitos sociais (para não falar nas demais “dimensões” de direitos). Assim, pode-se dizer que existe uma necessidade urgente de se criarem categorias, para se pensar os direitos sociais adequadas à nossa realida- de (COURTIS, 2007, p. 189). Depara-se, então, com a necessária construção de um modelo de direitos sociais, adequado ao constitucionalis- mo contemporâneo, ou seja, deve-se considerar a abertura dos textos que positivam os direitos sociais e, além disso, a passagem da teoria “abstrata” de direito liberal para a teoria aberta ao concreto dos direitos sociais. De fato, percebe-se que a abstração que caracterizava os direitos individuais expressos nas Constituições revolucio- nárias modernas não foi capaz de integrar a idéia de que os seres humanos são indivíduos concretos, situados na história (MARTÍNEZ, 2004, p. 133), assim, a idéia de lei genérica e abstrata iluminista, que tinha como fundamento a suposição de uma sociedade homogênea, formada por homens “livres e iguais”, não faz mais sentido quando se percebe os seres humanos e seus complexos e concretos problemas sociais. Portanto, uma adequada teoria dos direito sociais vai ne- cessariamente ter que se preocupar com a análise dos casos 48 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA concretos a partir dos quais serão entendidas as questões re- lativas a esse ser humano historicamente localizado. Portan- to, torna-se relevante o pensar sobre a ponderação. Na esteira desse pensamento, Alexy (1997, p. 494) vai afi rmar que os direitos sociais defi nitivos que o indivíduo possui só poderão ser conhecidos depois de um processo de ponderação. De acordo com o modelo proposto por esse autor, se, por um lado, não se pode dizer exatamente – de maneira abstrata; válida para todas as situações – quais são os direitos defi nitivos do individuo, por outro, se é capaz de identifi car quais direitos esse indivíduo pode ter, conside- rando que os direitos defi nitivos só podem ser conhecidos depois da análise do caso concreto, após efetuada a ponde- ração. O autor vai estabelecer três condições, para que um direi- to subjetivo social seja garantido defi nitivamente: (1) o prin- cípio da liberdade fática exige a prestação urgentemente, (2) os princípios da democracia e da separação de poderes e (3) os princípios materiais contrários são atingidos em medida relativamente pequena. Ressalta ainda o autor que, quando se trata dos direitos fundamentais sociais mínimos (como o direito ao mínimo existencial), os pré-requisitos acima enunciados já estão sa- tisfeitos, ou seja, o autor entende o direito ao mínimo exis- tencial como um direito subjetivo identifi cável prima facie, independentemente de qualquer ponderação. 49 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo Arango (2005, p. 93), baseado em uma perspectiva sul- -americana, vai enfatizar o caráter de urgência da proteção dos direitos sociais em um quadro caracterizado ainda por várias omissões estatais absolutas. Com base nisso, vai pro- por um modelo dos casos extremos, em que pode haver um prejuízo grave aos princípios da separação de poderes e da democracia (LEIVAS, 2006, p. 113). Arango vai identifi car um direito (subjetivo) como sendo “uma posição normativa baseada em argumentos válidos e sufi cientes, e cujo não-re- conhecimento injustifi cado causa dano àquele que é deten- tor do direito”. Por último, (2005, p. 96), ainda vai tratar do caráter de urgência, afi rmando que: Na maioria das vezes, senão sempre, a importância de um indivíduo, de uma situação ou de um objeto só pode ser estimada em situações extremas. […] esse fenômeno além de ser culturalmente real, é crucial no estabeleci- mento da objetividade de um juízo baseado em valores, que entende as perdas e danos como uma situação con- trária ao que era esperado e só pode acontecer sob pena de violação da Constituição. Entende-se, desse modo, que é a idéia de necessidades bá- sicas7 (em decorrência do principio da dignidade humana), 7 Aqui, prefere-se a expressão “necessidades básicas” a “mínimo existencial”, em decorrência da lição de Potyara (2007, p. 26-27 e 36), que vai afirmar que enquanto o básico “expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta” o mínimo “nega o ‘ótimo’ de atendimento”. Portanto “o básico é a mola mestra que impulsiona a satisfação básica de necessidades em direção ao ótimo.” Além disso, vai retirar afirmar que as necessidades básicas “estão na base da concretização de direitos fundamentais por meio das políticas sociais.”. 50 RODRIGO DE ALMEIDA LEITE - MÁRIO SÉRGIO FALCÃO MAIA aliada à situação de urgência ocasionada, principalmente, por uma omissão por parte do Estado, que justifi ca a existên- cia de direitos sociais subjetivos — mediante a análise de um caso concreto — e sua consequente justiciabilidade. Pode-se ir mais longe e assegurar que a atuação dos Tribu- nais na América Latina na concretização dos direitos sociais seria legitimada por certo desencantamento com a política presente aí, que decorre da existência, ainda na atualidade, da pobreza em larga escala na região. Essa decepção, que legitimaria o Judiciário a atuar na concretização de direitos sociais, é semelhante a verifi cada na Alemanha depois das barbaridades da II Segunda Guer- ra, que, por sua vez, garantiu a legitimidade da própria jus- tiça constitucional materialmente considerada naquele país (ROSENFELD, 2007, p. 261). Assim, a atuação mais incisiva do judiciário latino americano na realização das promessas sociais positivadas encontraria fundamentação na realidade social de extrema desigualdade e pobreza. Garcia (2005, p. 981), como base nas lições de Weber, as- severa que a ambígua expressão “direitos sociais” pode ser enquadrada como direitos subjetivos, mandados constitu- cionais endereçados ao legislador ou princípios diretores e que, nessa ordem, essa escala vai indicar uma ordem decres- cente em termos de densidade normativa e de potencial de exigibilidade. Porém, ainda que se trate de mandados 51 DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA: desafios nacionais e internacionais da justiciabilidade de direitos no âmbito teórico e dogmático contemporâneo constitucionais endereçados ao legislador ou princípios di- retores, é possível que, à luz do caso concreto, origine-se um direito subjetivo, devido à força do princípio da dignidade humana. Até aqui, tem-se visto que a ênfase teórica dá-se sobre os direitos sociais subjetivos e, talvez, seja esse o principal pro- blema a ser enfrentado, quando se trata de pensar um mode- lo teórico adequado aos direitos sociais. É natural que assim seja, uma vez que é necessário que se ultrapasse o individua- lismo característico do direito liberal, cujas respostas não se aplicam aos questionamentos
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