Buscar

Direito litúrgico, direito legal - A POLÊMICA EM TORNO DO SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS NAS RELIGIÕES AFRO-GAÚCHAS - Marcelo Tadvald

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 19 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 19 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 19 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007129129129129129
La seule innocence possible: celle de l’instant
(Georges Bataille)
As leis são injustas pelo simples fato de serem leis
(Montaigne)
A IMPORTÂNCIA DO SACRIFÍCIO NA LITURGIA
RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA
imolação de animais consiste em uma prática corriqueira nas reli-
giões afro-brasileiras, à exceção de algumas denominações conhe-
cidas como “linha branca”1. Nas demais, basicamente, são imolados
animais chamados de “dois pés” (aves como pombas e galináceos)
e de “quatro pés” (ovinos, suínos, bovinos e caprinos). O sacrifício
MARCELO TADVALD
Resumo: a partir do sacrifício ritual de animais praticado em certas religiões
de matriz afro-brasileira, este trabalho discute a polêmica surgida no
Rio Grande do Sul depois da aprovação do Código Estadual de Prote-
ção aos Animais, em 2003, que colocou em risco o livre exercício de
certas práticas religiosas realizadas por estas religiões alocadas neste
Estado. Através destes fatos se tornou possível desenvolver uma reflexão
acerca de certas condições e particularidades do campo jurídico, perce-
bido aqui de forma mais ecumênica.
Palavras-chave: Antropologia da religião, religiões afro-brasileiras, direito e
poder, Rio Grande do Sul
A
DIREITO LITÚRGICO, DIREITO LEGAL:
A POLÊMICA EM TORNO DO SACRIFÍCIO
RITUAL DE ANIMAIS NAS RELIGIÕES
AFRO-GAÚCHAS
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 130130130130130
desses animais possui um investimento simbólico e litúrgico im-
prescindível para a teogonia e liturgias próprias do contexto reli-
gioso afro-brasileiro.
Dado que as religiões afro-brasileiras são religiões de iniciação, e não de
conversão, a imolação de animais é parte integrante desse processo
e serve também para realizar uma comunicação e troca de benefí-
cios religiosos entre os adeptos e as entidades (serviços e “traba-
lhos”, oferendas e agradecimentos, etc), sempre obedecendo a regras
específicas e sofisticadas, ditadas pela tradição e marcantes nesses
rituais. Somado ao transe possessivo, o sacrifício de animais con-
siste em um dos pilares destas religiões (Goldman, 1984). Não
obstante, o sacrifício deve sempre ser reconhecido enquanto um
fenômeno social que mobiliza diferentes atores com fins específi-
cos, social e legitimamente construído. As trocas simbólicas advindas
desse fenômeno são parte integrante do código de sentido ofereci-
do por tais religiões para seus adeptos.
Nas imolações realizadas nas religiões afro-brasileiras, o destino mais
peculiar da carne do animal consiste na alimentação, que também
pode ser percebida como parte do ritual. Não por acaso se utiliza
o termo ioruba ebó para se referir ao sacrifício, expressão que pode
ser traduzida por “comida” ou “comer”. A transformação do ani-
mal sacrificado em alimento também agrega uma dinâmica maior
de solidariedade entre os atores envolvidos no ritual, pois todos
podem usufruir o banquete, mesmo que levem um pedaço da car-
ne para casa. Na visão de diversos adeptos, este ato permite que se
espalhe o axé (uma espécie de energia, que pode ser traduzida em
termos maussonianos de mana) para muitos lugares e entre várias
pessoas. Conforme o pai-de-santo (babalorixá) Babá Dyba de
Yemanjá, de Porto Alegre: “em África, tudo que se consumia de
alimento se compartilhava com a divindade. Não existia uma se-
paração entre o homem e a divindade. Sagrado e profano não eram
dissociados. [...] Tudo é compartilhado. Isso é o que define o que
é axé. Solidariedade” (ÁVILA, 2006, p. 65-6). Por isso, a cozinha
de um terreiro pode ser considerada um dos locais mais importan-
tes deste espaço, talvez abaixo somente do pegi, o altar onde, den-
tre outras coisas, são realizadas as imolações. A cozinha é em um
lugar sagrado, portanto.
Nesses rituais, existem animais específicos para serem imolados para orixás
específicos e por motivos específicos. Até hoje, são rituais marca-
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007131131131131131
dos por uma aura de mistério, pois dificilmente um terreiro os
realiza de forma pública, e aqueles que eventualmente assim o fa-
zem, raramente deixam não iniciados presenciarem todos os even-
tos do ritual. Na qualidade de pesquisador, presenciei alguns destes
rituais e descreverei a seguir brevemente um deles com o intuito
de chamar a atenção para alguns elementos simbólicos que são
recorrentes nestes eventos. Conforme dito anteriormente, as reli-
giões afro-brasileiras são religiões de iniciação, portanto, de práti-
ca. O ritual de imolação que descreverei consiste exatamente em
um ritual de iniciação de três filhos-de-santo ocorrido em um ter-
reiro porto-alegrense, onde possuo boas relações com o babalorixá
responsável que na ocasião havia me convidado para participar.
Aprontado o pegi, cada filho-de-santo, individualmente, passou pelo mesmo
processo. Diversos “aprontados” entoavam cânticos, sendo que al-
guns deles se encontravam incorporados de suas respectivas enti-
dades. O clima era de extrema tranqüilidade e deferência para com
o evento em si. Para cada filho-de-santo, foram imolados três pombos
brancos. O sacrifício deste tipo de animal (“dois pés”) é conhecido
por bori. Os animais eram de extrema beleza e não se mostraram
em momento algum agitados. Na palavra de um interlocutor da-
quela noite, “seus espíritos (dos pombos) sabiam da importância
do que iria acontecer, por isso as aves permaneciam tranqüilas”.
Um por um, ajudantes traziam os animais que eram degolados
pelo babalorixá sobre a cabeça de seus “filhos”. O sangue era pas-
sado, além da sua cabeça, nos pulsos e na nuca, através do fluído
que escorria da cabeça decepada dos animais. Enquanto passava a
cabeça pelo corpo do filho-de-santo, o babalorixá entoava cânticos
que transmitiam paz e serenidade para o processo que se iniciaria
naquele momento, pois que os “iniciantes” deveriam observar al-
guns dias de retiro, no mais absoluto silêncio e meditação, para
completar o ritual. Durante todo o retiro, os iniciantes deveriam
usar uma espécie de turbante, em realidade um pano branco que
enrolava consigo, na cabeça dos “iniciantes”, a cabeça de um dos
pombos imolados. O sangue (axorô) é um elemento crucial e a ele
são atribuídos diversos sentidos. Quanto mais sangue, mais sagra-
do é o ritual, e existem diversos rituais de iniciação, até o ritual
final de “aprontamento”. O bori é um dos primeiros. Este presen-
ciado, em particular, permitiria que os filhos-de-santo se “purifi-
cassem” o suficiente para começar a “trabalhar” no terreiro,
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 132132132132132
incorporados de suas entidades. Seus corpos e sua mente estariam
prontos para “trabalho” tão sagrado:
o volume de sangue e outros materiais presentes no sacrifício é expressivo;
desta forma, os deuses são constrangidos, obrigatoriamente, a responder
ao apelo feito pelos homens, a estabelecer a referida relação de comunicação.
Os deuses são ‘forçados a comer... é a sua carne’, ou seja, é a parte que
lhes cabe neste repasto divino/ profano (ÁVILA, 2006, p. 22).
Tal aspecto estabelece, inclusive, uma dinâmica de dádiva entre deuses e
humanos (MAUSS, 1988).
Depois desses eventos, os filhos-de-santo se recolheram para seu retiro, um
dos quartos do terreiro. Confesso que me senti desconfortado com
tudo aquilo, o cheiro do sangue, os animais mortos, etc, mas esta não
era a questão. O ritual em si permitiu a observação de uma liturgia
muito sofisticada e difícil de ser apreendida facilmente por um pes-
quisador, de sorte que fui compondo meu entendimento em eventos
posteriores, como por exemplo, quando me uni naquela noite a ou-
tros “iniciados” que depenavam no fundo do terreiro as aves, a fim de
queimar suas penas e as cabeças restantes em uma grande vasilha. Por
serem pombos, tidos como impróprios para o consumo, não come-
mos os animais, que também foram queimadosem separado.
Existe uma deferência toda especial para com os animais que serão sacri-
ficados. Além da necessidade de contar com espécimes saudáveis,
não raro, a estas são destinadas por parte dos envolvidos no even-
to, atenções e carinhos especiais nos momentos que precedem o
ritual. Não se irá oferecer aos orixás, aos deuses, animais maltrata-
dos ou doentes. Na visão da maioria absoluta dos adeptos, a imo-
lação deve ser realizada com o mínimo de sofrimento possível para
o animal. Nos casos em que se imolam animais maiores (os “qua-
tro pés”), o obé (faca sagrada) deve estar bem afiado e o golpe deve
ser certeiro. Não por acaso, somente babalorixás experimentados,
e que passaram pelos ritos iniciáticos específicos (axé da faca, por
exemplo), têm o direito e o poder de imolar animais. Na grande
maioria das vezes, são sacerdotes treinados que executam essas ta-
refas. O que explica em parte esta deferência especial para com os
animais é a necessidade de humanizar as vítimas animais, pois a
carne mais digna para ser oferecida a um deus é de fato a do ho-
mem. Claro, tudo isto dentro de um plano metafórico.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007133133133133133
Ainda que apresentados de forma ecumênica, o objetivo até aqui foi mostrar
que no ato de sacrifício destes contextos religiosos existe um gran-
de investimento simbólico, pois são considerados momentos sa-
grados, em que prerrogativas da natureza de sofrimento (portanto,
profanas) não devem estar presentes. Contudo, a prática livre de
tais liturgias foi abalada, em 2003, no Rio Grande do Sul, graças
à aprovação, pela Assembléia Legislativa do Estado, do Código
Estadual de Proteção aos Animais. Este evento mobilizou diferen-
tes atores sociais durante os dois anos em que perdurou a polêmi-
ca, e através destes fatos se torna possível desenvolver uma reflexão
acerca de certas condições e particularidades do campo jurídico,
de forma mais geral. Vejamos primeiro os fatos que compuseram
esta polêmica.
DOS FATOS2
O Código Estadual de Proteção aos Animais, aprovado e transformado
em lei em 29 de abril de 2003, e sancionado pelo Governador do
Estado de então, a princípio possuía os seguintes parágrafos que
motivaram a reação das lideranças religiosas afro-gaúchas:
É vedado:
I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer
tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como
as que criem condições inaceitáveis de existência;
IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermí-
nio seja necessário para o consumo.
As lideranças afro-religiosas perceberam que o Código poderia facilmen-
te ser interpretado no sentido de prejudicar seriamente seus ritu-
ais de imolação e, portanto, decidiram se mobilizar contra a referida
lei, capitaneadas especialmente pela Comissão/Congregação em
Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, a CDRAB, criada em no-
vembro de 2002. Sua mobilização teve uma outra importante
motivação: o autor da lei havia sido o deputado estadual Manoel
Maria dos Santos (PTB/ RS), pastor da Igreja do Evangelho
Quadrangular. Como mostraram diferentes estudos3 e de Tadvald,
2005), diversas denominações pentecostais elegeram as religiões
de matriz afro-brasileira como elemento de agressão e de combate.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 134134134134134
Além de outras esferas da sociedade civil, somou-se a esta frente
afro-religiosa o deputado estadual Edson Portilho (PT/ RS), pro-
fessor da rede pública e afro-descendente católico ligado ao movi-
mento negro gaúcho. Portilho apresentou um projeto de lei (PL
N. 282/2003) para estabelecer uma exceção ao artigo 2 do Códi-
go de Proteção aos Animais, permitindo o sacrifício de animais em
cultos de religiões de matriz africana, assim concebido:
Acrescenta parágrafo único ao art. 2. da Lei N. 11.915, de maio de
2003, que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais, no
âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.
Art. 1. - Fica acrescentado parágrafo único ao art. 2. da lei n. 11.915,
de 21 de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Prote-
ção aos Animais, no âmbito do Rio Grande do Sul, com a seguin-
te redação:
Art. 2..........
Parágrafo Único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício
dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.
À parte de toda a polêmica gerada, tal projeto foi aprovado em 29 de
maio de 2003, por 32 votos favoráveis e 2 contrários, um deles
sendo, evidentemente, do deputado Manoel Maria, que afirmou
na ocasião que “nenhum deus do bem ficaria contente com o san-
gue de um animal”. A lei foi sancionada pelo Governador Germano
Rigotto, ainda que este tivesse recebido pressões contrárias de cer-
tos segmentos sociais, como os evangélicos e alguns “ambientalistas”.
Contudo, a polêmica não terminaria por aí. Conforme relatou a
pesquisadora Cíntia Ávila (2006, p. 31):
Em 27 de outubro de 2003 o Procurador-Geral de Justiça, Roberto Bandeira
Pereira, a pedido de entidades de defesa dos animais, protocolou no Tribunal
de Justiça do Estado uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADin)
requerendo a “retirada do ordenamento jurídico” do parágrafo único do
art. 2. da Lei Estadual N. 11.915/2003, ou seja, a lei N. 282/2003,
de autoria do deputado Edson Portilho. A alegação era de que esse dispositivo
é inconstitucional porque trata de matéria penal, de competência legislativa
privativa da União. Além disso, argumentava que o Estado não pode
desrespeitar as normas gerais editadas pela União, relativamente à proteção
da fauna. Por fim, sustentava que o dispositivo ofende o princípio de
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007135135135135135
isonomia, ao excepcionar apenas os cultos de matriz africana. Essa nova
ação judicial mobilizou mais uma vez a comunidade afro-religiosa do
Rio Grande do Sul que, em 18 de abril de 2005, viu vencida a tese da
constitucionalidade da lei. Dos 25 desembargadores que integram o Órgão
Especial do Tribunal de Justiça, 14 votaram pela constitucionalidade da
lei estadual de autoria do deputado Edson Portilho, 10 julgaram procedente
a ação do Ministério Público e 1 votou pela parcial procedência da
ADin. Já o governador do Estado, Germano Rigotto, sancionou tanto o
Código de Proteção aos Animais quanto a lei aprovada na Assembléia,
de autoria do deputado Edson Portilho. [...] A lei 282/2003 foi sancionada
pelo governador com a ressalva de proibição, nos rituais de matriz africana,
do sacrifício de espécies ameaçadas de extinção e de animais silvestres,
assim como a ressalva de que a prática sacrificial não ocorra com requintes
de crueldade.
Ainda que os animais imolados nos rituais não sejam espécimes abrangi-
dos pelo código nacional de proteção da fauna, os religiosos afro-
gaúchos entenderam que o deputado Manoel Maria estava tentando
inviabilizar a morte de animais nos terreiros. Não por acaso, o de-
putado fazia alusão a estas práticas como “cerimônia religiosa e feiti-
ço”. Seu artigo de lei original dizia:
é vedado: realizar espetáculos, esporte, tiro ao alvo, ‘cerimônia religiosa,
feitiço’, rinhadeiros, ato público ou privado, que envolvam maus tratos
ou a morte de animais, bem como lutas entre animais da mesma espécie,
raça, de sua origem exótica ou nativa, silvestre ou doméstica ou de sua
quantidade (ORO, 2005, p. 14, grifo nosso).
É curioso fato de o deputado declarar, à época de toda a polêmica, ter
concebido o Código de Proteção aos Animais como parlamentar, e
não como pastor.
Para além dos segmentos evangélicos, de fato tais práticas não possuem
muito a simpatia do conjunto maior da sociedade, em parte devido
à ignorância, em parte devido à pouca tolerância que qualquer as-
sunto advindo deste campo recebe da sociedade em geral, em parte
devido ao preconceito, em parte devido ao temor que tais rituais
inspiram em muitas pessoas, mesmo porque eles próprios foram
concebidos em tornode uma aura de mistério. De qualquer forma,
os movimentos contrários aos interesses afro-religiosos que se origi-
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 136136136136136
naram em torno do assunto foram percebidos como mais uma for-
ma de intolerância religiosa, aliás, nenhuma novidade para os adep-
tos destas religiões, perseguidos historicamente em todos os cantos
do país, especialmente no Rio Grande do Sul (ORO, 2002).
A mobilização dos afro-religiosos foi retumbante. Fosse nas ruas de Porto
Alegre, na Assembléia Legislativa, no Palácio Piratini (sede do poder
executivo estadual) ou ainda no Tribunal de Justiça do Estado, sem-
pre que debatidas e julgadas as questões pertinentes, os manifestantes
marcaram presença com roupas e adereços religiosos, sem deixar de
entoar cânticos e rezas para que seus orixás fizessem a sua “justiça”.
Isto acabou atraindo os veículos midiáticos do Estado e mesmo do
país, chamando a atenção da opinião pública. Desta forma, a opinião
pública deu voz aos diferentes segmentos envolvidos. Não cabe aqui
transcrever os múltiplos exemplos4, mas o que se observou com mais
recorrência foi o tom preconceituoso e intolerante contido nas decla-
rações daqueles contrários à aprovação da emenda concebida pelo de-
putado Portilho viessem estas declarações dos segmentos evangélicos,
da Sociedade Protetora dos Animais (ainda que não unânimes, mas
em sua grande maioria), ou mesmo da opinião pública em geral, vin-
culada aos meios de comunicação “elitistas” (jornal e sítios da internet)
da afiliada da Rede Globo no Estado, a Rede Brasil Sul (RBS). Foi,
inclusive, sugerido por defensores dos animais que aqueles imolados
nos cultos fossem “anestesiados” previamente, o que gerou mais in-
dignação dos afro-religiosos, em razão de os animais anestesiados pre-
judicarem o pleno andamento mágico e teogônico do ritual. Aliás, os
religiosos perguntavam à época porque os ambientalistas não mani-
festavam essas opiniões e defendiam essas idéias junto aos matadouros
legais e junto à mesa da família gaúcha do churrasco de domingo.
Em 18 de abril de 2005, ficou decidido:
Pelo voto da maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, que a Lei 12.131/04-RS, não é inconstitucional,
mantendo o parágrafo único relacionado ao sacrifício ritual nas religiões
de matriz africana, desde que sem excessos e crueldade, já que na verdade
não há norma que proíba a morte de animais e também a liberdade
de culto permitiria esta prática (ÁVILA, 2006, p. 55-6).
Enfim, a ação fora julgada improcedente. Que reflexões a respeito da lei
e de suas veleidades, volubilidades, inconstâncias e mutabilidade
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007137137137137137
leviana nos ditames e determinações se tornam possíveis a partir
desta polêmica? A seguir apresento algumas sugestões para o en-
tendimento destas questões.
DA LEI
Apesar do adendo à lei proposto pelo deputado Portilho ter sido aceito
pelo voto da maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do
Estado, a votação inspirou reações de empatia e de repúdio por par-
te desses juristas. Conforme mencionado, dos 25 desembargadores
que votaram a lei com o adendo de Portilho (Lei 12.131/04-RS,
que introduziu o parágrafo único ao artigo 2º da Lei 11.915/03-
RS), 14 juristas a aprovaram e 10 foram contrários, sendo que um a
aceitou parcialmente. Dos que votaram contrariamente, a justifica-
tiva girou em torno da noção de exceção, ou seja, que estaria se abrindo
uma exceção à lei para os afro-religiosos. Contudo, a maioria enten-
deu que o direito constitucional de livre exercício de práticas religi-
osas que não atentassem contra a vida humana se impunha, dentro
da prerrogativa de laicidade do Estado brasileiro. Outrossim, cha-
mou a atenção o relatório de um dos desembargadores contrários à
lei. O desembargador Alfredo Foerster citou em seu parecer um
livro de Elisabeth Maschler, chamado De longe também se ama: re-
cordações da vida no sul do Brasil e Alemanha. Em um dos episódios
deste livro, ocorrido nos anos 1950, o Secretário de Cultura convi-
dou um alemão para participar de uma sessão de batuque, o que foi
chamado no livro de “um outro lado do Brasil”. A parte transcrita
pelo desembargador possui, em meu entendimento, claras conotações
de racismo e de preconceito, além de reproduzir um estigma resso-
nante na sociedade elitista com relação às religiões afro-brasileiras5.
Com relação à exceção, noção que ecoou no parecer daqueles juristas con-
trários à lei que garantia a prática ritualística das religiões afro-
gaúchas6, Giorgio Agamben (2005) dedicou especial atenção ao
assunto, em compreender a formatação de estados nacionais em
que tal prerrogativa se torna regra. Em nível geral, esta discussão
extrapola os limites de nosso assunto; contudo, ela fornece noções
muito interessantes para pensarmos nos ditames do plano legal do
direito as questões etnográficas trazidas até aqui, isto porque a
teoria do estado de exceção não é de modo algum patrimônio ex-
clusivo da tradição anti-democrática7.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 138138138138138
Portanto, a noção de exceção trazida pelos desembargadores no caso de
garantir os direitos religiosos nesta polêmica não se aplica ao fórum
legal do direito, pois a exceção e a necessidade são noções com sen-
tidos díspares quando aplicadas à dimensão jurídica. Na verdade,
os religiosos possuem a necessidade religiosa de uma prática ritual,
que em medida maior não atinge qualquer preceito laico da norma
constitucional do estado, e isto não é uma exceção, mas antes, um
direito legal. Para Agamben (2005), a noção política moderna de
exceção consiste em uma tentativa de inclusão na ordenação jurí-
dica da própria exceção, criando uma justaposição entre fato e di-
reito. No momento em que os afro-religiosos querem garantir suas
práticas ritualísticas dentro dos códigos da lei – que consiste, todo
modo, em uma necessidade – eles estão tão somente fazendo uso
de uma prerrogativa que é tida como fonte primária e originária
da própria lei, e não uma exceção. E dado que o conceito de neces-
sidade é absolutamente subjetivo, ele extrapola os limites técnico-
racionais do direito, apesar de ser um de seus elementos constitutivos.
O caso dos manifestantes afro-religiosos gaúchos vivificou exem-
plarmente a máxima do filósofo Balladore-Pallieri, que diz que “o
princípio da necessidade é sempre, em todos os casos, um princí-
pio revolucionário” (BALLADORE-PALLIERI apud AGAMBEN,
2005, p. 47).
A necessidade afro-religiosa de ver seus direitos ritualísticos garantidos
pela lei ecoa, na verdade, um sentido mais íntimo do próprio campo
jurídico. No início do século XX, Weber (2004) já admitia que a
ordem jurídica consistia em uma convenção dada pelo costume,
demarcando a importância do habitual para a constituição do di-
reito e a própria fluidez existente entre a convenção, o costume e o
direito em si. Além disso, “o que se encontra depois do direito não
é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direi-
to, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso,
que se contaminou com o direito, também deve ser libertado de
seu próprio valor” (AGAMBEN, 2008, p. 98).
 Caso o direito de livre exercício dos rituais afro-religiosos fossem coibi-
dos pela nova lei, dificilmente ele se extinguiria, pois que consiste
em algo construído e enraizado graças à tradição e ao próprio cos-
tume, além de se caracterizar como uma necessidade. Do contrá-
rio, dado a figura espectral do direito, a nova lei se caracterizaria
como uma pura vigência sem aplicação (uma “forma de lei”), e a
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007139139139139139
prática ritualística como uma aplicação sem vigência, o que Agamben
(2005) chama de “força de lei”. Conforme o autor (AGAMBEN,
2002), o poder da lei está precisamente na impossibilidadede
entrar no já aberto, de atingir o lugar em que já se está: o já aberto
imobiliza. Mas, enquanto a proibição coloca a figura proibida num
lugar de “outsider”, esta exclusão é na realidade uma inclusão,
uma exclusão inclusiva (ANDREW, 2005). Ademais, a exceção só
se dá quando existe uma união impossível entre a realidade e a
norma, o que não é o caso desta polêmica.
A necessidade afro-religiosa de garantir pela lei seu direito de sacrificar
animais pode, indiretamente, estar relacionada à reflexão
benjaminiana, que diz que a violência não pode existir fora do
direito8. O que os afro-religiosos advogavam era tão somente uma
questão de inclusão no código legal de sua prática tradicional, ou
seja, tornar constituinte (legitimado) sua liturgia constituída (tra-
dicional). Dado que o monopólio da decisão se encontra nas mãos
do Estado, e por mais que a autoridade de hoje seja “porosa”, con-
forme sugeriu Hannah Arendt (2000), vale lembrar que os adep-
tos destas religiões passam historicamente por todo o tipo de
perseguições e mesmo de restrições legais. Apenas para citar um
exemplo, até os anos 1970, todo terreiro carioca precisava possuir
“ficha” na polícia para funcionar “legalmente” (NORONHA, 2003);
assim, o nível de entendimento desses adeptos a respeito desses
eventos e sua mobilização são motivados por um grau mais pro-
fundo de consciência, facilitado por um momento histórico no
Brasil em que bem ou mal ampliou as vozes de grupos “marginais”
da sociedade9. Além disso, os limites da constituição do direito
jurídico perpassam a noção última de subjetividade que lhe é cons-
tituinte. Observemos, por exemplo, o caso da “lei moral” que se
encontra para além da lei de direito, trazida por Hans-George
Gadamer (2004). Para o autor, a lei moral passa pelo senso co-
mum e atua no sentido de impedir a subjetividade privada dos
conceitos. Isto não quer dizer, no entanto, que tais leis não sejam
passíveis de mudança. Ao contrário, a lei moral tem por princípio
o reconhecimento do outro; é, portanto um princípio dialético.
Por outro lado, também em um sistema com uma constituição
escrita a lei pode ser mudada; contudo, ali a mudança ocorre de
forma muito mais difícil, devido aos trâmites racional-burocráti-
cos constituintes desse contexto (ANDREW, 2005).
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 140140140140140
Em síntese, apropriando as idéias de Jacques Derrida (1997) sobre a
questão, o único fundamento da lei é que cremos nela, pois ela
consiste numa ficção legítima. A justiça, por outro lado, se funda
na noção de “verdade”. Mas existe algo mais subjetivo que a idéia
de “verdade”? As “verdades” não seriam meramente pontos de vis-
ta? Ademais, conforme sugere Derrida (1997), a criação ficcional
do direito advém da nossa falta de orientação pela natureza. Por
isso ela aparece como natural, pois é naturalizada por nós, em
nossa falta de natureza. O sujeito se “humaniza” por se vincular às
leis. A lei é uma ficção que substitui a natureza. A justiça é
desconstrução. O direito não é justiça, mas, antes, é um exercício
de cálculo e de conformação. É muito fácil ser convencido em tor-
no da lei. Assim, o que se aprende com esta discussão é a impor-
tância da desconstrução da lei, pois ele não é sinônimo de justiça.
DA SACRALIDADE
Na necessidade sacrificial afro-religiosa está contida a idéia de sagrado.
Não obstante, o sacrifício em si não tem lei (AGAMBEN, 2005).
Portanto, conforme discuti até aqui, a necessidade é subjetiva, e a
subjetividade é a marca da religião. Assim, ao colocar em perspec-
tiva a noção de sagrado e a lei de direito, Agamben (2000, p. 73-
4) sugere que:
Toda tentativa de colocar em questionamento o domínio do direito
sobre o vivente, não é de nenhuma utilidade o princípio do caráter
sagrado da vida, que nosso tempo refere à vida humana e, até mesmo,
à vida em animal em geral. [...] O princípio do caráter sagrado da
vida se tornou para nós tão familiar que parecemos esquecer que a
Grécia clássica, à qual devemos a maior parte dos nossos conceitos
ético-políticos, não somente ignorava este princípio, mas não possuía
um termo que exprimisse em toda a sua complexidade a esfera semântica
que nós indicamos com o único termo ‘vida’. [...] De resto, mesmo
naquelas sociedades que, como na Grécia clássica, celebravam sacrifícios
de animais e imolavam, ocasionalmente, vítimas humanas, a vida em
si não era considerada sagrada; ela se tornava tal somente através de
uma série de rituais, cujo objetivo era justamente o de separá-la do seu
contexto profano.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007141141141141141
No que tange à Grécia clássica, ainda que legitimamente considerada fon-
te cosmológica para as religiões africanas que desembarcaram no
Brasil junto com os escravos, tanto a perspectiva do direito legal,
quanto a própria perspectiva religiosa afro-brasileira já se distancia-
ram, cada qual dentro de seus limites cognitivos, de suas origens
“gregas”. O problema, que inclusive repercute na opinião pública
ordinária, conforme veremos mais adiante, é a “confusão” que estas
prerrogativas éticas, políticas e mesmo religiosas ocasionam em nos-
sa sociedade. Quando falamos, atualmente, em nosso contexto cul-
tural, de sacrifício, não estamos nos referindo à vida humana, tampouco
se deseja abrir tal prerrogativa. Este tipo de receio repercute nossa
própria desconfiança moderna na legitimidade e na constância do
direito legal, na representatividade de nossos juristas e no senso de
“justiça” soberano e estatal do direito. Soma-se a isso o descrédito, o
temor e o preconceito já difundido na sociedade com relação às
religiões afro-brasileiras. Talvez isto possa explicar depoimentos da
natureza que irei reproduzir a seguir, extraídos de uma enquête rea-
lizada na internet por um dos mais prestigiados veículos de comu-
nicação do Rio Grande do Sul, afiliado da Rede Globo de Televisão,
à época da polêmica em torno da aprovação ou não da lei. A pergun-
ta constante no jornal Zero Hora, de 19/04/2005, era a seguinte:
“o Tribunal de Justiça confirmou a lei que permite o sacrifício de
animais em cultos de religiões africanas. A decisão foi acertada? Opine
em zh.clicrbs.com.br”. No sítio, no período de 19 a 20 de abril,
foram registradas 56 manifestações, sendo apenas 10 favoráveis à
nova lei. Das 46 manifestações contrárias, constavam relatos como
os que transcrevo a seguir:
–– Alguém de vocês já viu como eles sacrificam estes animais? Já viram
notícias na TV que alguns sacrificam até crianças...?;
–– É um absurdo [...] Daqui a pouco vão pedir a aprovação de sacrifícios
humanos em rituais de magia negra, e os infelizes dos parlamentares
vão aprovar ainda;
–– É uma vergonha. Daqui a pouco, pelo bem das ‘religiões’ vamos
permitir o martírio de crianças (ORO, 2005, p.20-1).
Em primeiro lugar, é no mínimo falta de responsabilidade e de ética um
veículo formador de opinião pública do porte do grupo RBS pu-
blicar este tipo de comentário, sem contar a disparidade do nú-
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 142142142142142
mero de manifestações das partes (46 contrárias contra 10 a fa-
vor), ou não existe um controle editorial das manifestações indexadas
no sítio? Tal ação está longe de ser tida como democrática para não
dizer ser ela mal-intencionada. Em segundo lugar, durante toda
esta polêmica jamais se falou de pessoas, de um homo sacer tal
como definido por Agamben (2002), mas da idéia de disposição
de uma vida, que, de toda sorte, não é humana, é animal, e de
animais que inclusive estão culturalmente disponíveis para o con-
sumo humano. Portanto, a questão sacra aqui não perpassa a vida
humana, mas antes uma liturgia religiosa.
Não por acaso, Agamben (2002), claramente inspirado em Dürkheim,
apontou para a “teoria da ambigüidade e da ambivalência do sa-
cro”. No respeito religioso existe algo de horror e de temor, e o
própriosagrado pode se referir a coisas fastas e a coisas nefastas, e
ele próprio oscila entre estas duas categorias: “a vida insacrificável
e, todavia, matável, é a vida sacra” (AGAMBEN, 2002, p. 91).
Assim, a vida animal em si não é sagrada. Por mais que alguns
discursos proclamem que o animal é sagrado porque já se encon-
trava em ligação com os deuses ou coisa que o valha, o que é sagra-
do de fato é o ritual que dispõe desta vida animal. O que investe o
animal de sacralidade é o ritual. Sua carne só adquire mana (ou
axé), por causa dele, do contrário qualquer carne animal seria sa-
grada. A vida insacrificável é a do ser humano. Esta sim é matável,
já que sacrificar é absolutamente diferente de matar10. Os investi-
mentos simbólicos atribuídos a ambas as ações são de naturezas
distintas. Por isso, direito e sacrifício correspondem a instâncias
de difícil aproximação.
Nos rituais de sacrifício afro-religiosos, a vítima animal tem a clara fun-
ção de servir como mediadora entre o mundo daqui e o mundo
espiritual, ou seja, cumprindo uma função sagrada. Sem embargo,
sagrados são também o sacerdote sacrificador, o lugar do sacrifício
e os instrumentos utilizados para este fim. Não por acaso, no dis-
curso de diversos religiosos afro-gaúchos, o sacrifício não é tomado
como tal, mas sim como uma sacralização (ÁVILA, 2006), mesmo
porque estas pessoas devem conceber instrumentos simbólicos e
discursivos para lidar com o preconceito e com a perseguição soci-
al a seus credos e liturgias, percebida em rótulos que recebem do
tipo “sacrificadores de animais”.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007143143143143143
CONCLUSÃO: UMA QUESTÃO DE PRECONCEITO
Em O suicídio, Dürkheim (1982) apontava para a necessidade humana
em ser regulada. Talvez, por detrás da necessidade de exercer seus
rituais, os afro-religiosos precisassem da legitimação legal para fazê-
lo, conforme sugeri anteriormente. A verdade é que todas as socie-
dades estão em crise de legitimidade (AGAMBEN, 2002), dado,
inclusive, a ampliação das vozes das “minorias”, o que, de certa
forma, se ainda não coloca em xeque o poder e os interesses dos
grupos hegemônicos, ao menos os força a ter que dialogar publica-
mente com as esferas sociais por eles subjugadas. O direito legal,
tantas vezes constituído e manipulado pelos grupos hegemônicos –
pois é recorrentemente representado por seus “filhos”, encontra
verdadeiros dilemas em função deste conjunto de fenômenos ob-
servados atualmente. A polêmica em torno do sacrifício de ani-
mais no Rio Grande do Sul é apenas um exemplo deste fato.
Em suma, o que permeia toda essa discussão é ainda o preconceito e o
estigma que as religiões afro-brasileiras possuem na sociedade bra-
sileira. Trazidos pelos escravos durante o período colonial, esses
cultos foram sempre percebidos pela sociedade “letrada” e forma-
dora de opinião como primitivos, arcaicos, formas rasas de feitiça-
ria e até mesmo como doença (MAGGIE, 1992). Mas, o que ocorreria
caso fosse proibido por lei o sacrifício ritual nos terreiros gaúchos?
Nada, ou quase nada, de fato. Como dificilmente os adeptos abri-
riam mão dos rituais de imolação, as autoridades não conseguiriam
fiscalizar uma prática tradicional e profundamente difundida no
Estado gaúcho, a qual toma parte uma quantidade substancial de
pessoas (vale lembrar que de acordo com o censo do IBGE de 2000,
o Estado é aquele que possui maior número de adeptos afro-religi-
osos no Brasil, superando locais como o Rio de Janeiro e a Bahia).
Além disso, esta seria apenas mais uma forma de perseguição reli-
giosa para este segmento, que, de certa forma, já se habituou a ter
que lidar com a intolerância. De fato, teriam apenas mais alguma
coisa com que se preocupar. O preconceito neste caso se encontra
para além da questão racial, ou étnica, dado que atualmente os
adeptos dessas religiões pertencem a uma gama muito maior de
grupos sociais. Contudo, o atrelamento destas religiões aos negros
e às classes populares ainda é notório. O preconceito das elites
brasileiras, observado neste caso nos discursos de parte da mídia,
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 144144144144144
de parte dos juristas e de outros grupos sociais, se dirige para além
dos negros: diz, antes de tudo, respeito aos pobres.
Com relação ao direito, conforme a antropóloga Rita Laura Segato (co-
municação pessoal), ele não é a ética da satisfação: não é uma ética
narcisista. Assim, deveríamos fundar nossa ética para além do so-
frimento alheio, ou seja, através da “libertação”, nos posicionando
no lugar de quem está sofrendo, por exclusão, martírio ou qual-
quer coisa que o valha, em cada momento histórico. Ao perseguir
a ética da “libertação”, podemos nos posicionar a partir de como o
outro percebe o mundo, no que o saber do outro nos convoca a
fazer, a pensar, nos colocando a seu serviço. Não é a vontade cristã
que deve pautar necessariamente a nossa ética. Não devemos nos
colocar no lugar do sofrimento do outro: isto seria muita prepotência.
Devemos tentar nos colocar no lugar do saber do outro. Inclusive,
para Derrida (1997), a Antropologia poderia ser reformulada para
a disciplina da hospitalidade, da acolhida. A polêmica em torno
do sacrifício de animais tem muito a nos ensinar sobre isso.
Notas
1 De acordo com Ari Oro (apud ÁVILA, 2006), a expressão “religiões afro-brasi-
leiras” cobre uma variedade de cultos organizados no Brasil e que podem ser
condensados, segundo um modelo ideal-típico, em três diferentes expressões
ritualísticas. A primeira delas cultua os orixás africanos (nagô) e privilegia os
elementos mitológicos, simbólicos, lingüísticos, doutrinários e ritualísticos das
tradições banto e nagô. Neste grupo se encontram o candomblé da Bahia, o
xangô de Recife, o batuque do Rio Grande do Sul e a casa de mina do Maranhão.
A segunda forma ritual, parece ter surgido no Rio de Janeiro no final do século
XIX, inicialmente chamada de macumba, e recebeu mais tarde nomes diferentes
de acordo com as regiões brasileiras, os mais comuns sendo quimbanda, linha
negra, magia negra, umbanda cruzada e linha cruzada. Essa expressão religiosa
afro-brasileira cultua os exus e pombagiras, entidades de intermediação entre os
homens e os orixás. Ambas expressões realizam sacrifícios de animais. A terceira
forma ritual é a umbanda, surgida no Rio de Janeiro, na década de 1920, se
estruturando de forma sincrética, a partir de elementos provenientes das tradi-
ções católica, africana, indígena, kardecista, oriental, centrando-se no culto aos
pretos-velhos e caboclos. Esta não realiza a prática do sacrifício de animais. As
reflexões deste texto dizem respeito, portanto, aos grupos religiosos afro-gaú-
chos da linha nagô.
2 Em linhas gerais, consultei para apresentação destes “fatos” os trabalhos de Oro
(2005) e de Ávila (2006).
3 Ver, por exemplo, os estudos de Oro (1997).
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007145145145145145
4 Para quem desejar se aprofundar no debate, o trabalho de Ávila (2006) realizou
plenamente esta tarefa.
5 Parte do trecho transcrito pelo desembargador é o seguinte: “Logo ouvimos gali-
nhas cacarejando, gansos grasnando, o balir de ovelhas, os berros de cabras e gritos
assustados de pássaros. E, como toque de fundo, o constante soar dos tambores.
Um rancho simples aparece à nossa frente. Diante dele, uma multidão negra
encobre a entrada do pátio. As vozes dos animais ficam agudas e penetrantes.
Felipe, virando-se para nós, fala baixinho: ‘Estes são os animais para o sacrifício’.
[...] Um forte cheiro de suor e de animais nos envolve. O pior era ver no pátio as
pobres criaturas, amarradas, engaioladas, que se debatiam assustadas, como se
pressentissem seu destino, gritando seus medos para a noite. [...] Agora começa a
matança dos animais. Iniciam com os pássaros e as outras aves. Cada uma é
sacrificada em oferenda e gratidão por um pedidoatendido. Hábeis ajudantes com
prática trazem as aves para o centro da quadra e, perante o Senhor do Terreiro,
decapitam-nas com facões afiados. Afora o soar rítmico dos tambores, a matança é
feita em silêncio. Depois dos pequenos chega a vez dos maiores. Assim que são
arrastados para dentro, acalmam-se como que atordoados pelo som ensurdecedor
dos tambores. São decapitados com muita presteza – o facão deve estar afiadíssimo
– e, como parece, sem sofrimento para o animal. O cheiro animalesco do sangue
encobre todos os outros odores. Já se passara quase uma hora desde o começo dos
sacrifícios. [...] Sentimos que o ponto culminante da noite está perto. E assim
acontece: um enorme boi é empurrado para dentro! Também ele parece calmo,
como em transe. Está parado agora em frente do Senhor do Terreiro, que se
levantara. E antes que o boi desse por si, teve sua cabeça decepada por um longo
facão em forma de espada.[...] O sangue jorra em tal quantidade que nós, da fileira
de trás, já pisamos dentro dele. O sangue quente embebe nossas meias até os
tornozelos. Nesse instante o Pai de Terreiro, que caíra em transe, deixa que colo-
quem a cabeça do boi sobre a sua própria [...]. O orixá supremo dança no centro
enquanto o sangue escorre sobre ele tingindo sua bela vestimenta. Não sei como
suportei essa experiência até o fim. Como saí dela, calcei os sapatos e cheguei em
casa não lembro mesmo. Nossas meias provaram na manhã seguinte que fora
verdadeiro o que assistimos” (MASCHLER apud ÁVILA, 2006, p. 59-60).
6 Por exemplo, o parecer da desembargadora Maria Berenice Dias que não via como
afastar a limitação e permitir o sacrifício de animais ‘exclusivamente’ nas religiões
de matriz africana, já que a Constituição Federal, ao garantir e proteger as manifes-
tações culturais e populares, não faria este tipo de ‘diferenciação’ (ÁVILA, 2006, p.
58, grifos nossos).
7 “O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional,
comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em
que todas as determinações jurídicas - e antes de tudo, a própria distinção entre
público e privado – estão desativadas” (AGAMBEN, 2005, p. 78).
8 “O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça
contra a qual é impossível transigir, é a existência de uma violência fora do direito;
não porque os fins de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas ‘pelo
simples fato de sua existência fora do direito’” (BENJAMIN apud AGAMBEN,
2005, p. 84-5).
9 Na voz de uma das lideranças religiosas afro-gaúchas, o movimento do qual faz
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 146146146146146
parte no Rio Grande do Sul se constitui em uma verdadeira vanguarda, pois “o Rio
Grande do Sul é o Estado mais racista do país. Então neste Estado a religião
africana foi muito mais reprimida, muito mais perseguida e os terreiros acabaram
se resumindo aos lares de cada pessoa por uma questão de preservação mesmo.
Então tu vai em uma casa de batuque e ali é uma casa onde a família mora, aí tem
um quartinho reservado aos orixás e a sala que num momento é a sala de visitas,
num outro momento passa a ser a sala onde vai acontecer o momento sagrado”
(Babalorixá Babá Dyba de Iemanjá apud ÁVILA, 2006, p. 46). De fato, o terreiro
que realizei a observação transcrita na primeira parte deste texto, consistia na casa
do babalorixá líder. O quarto usado para o “retiro” dos filhos-de-santo “iniciantes”
não era nada além de um dos quartos da residência, utilizado naquele momento
para tal fim.
1 0 Por isso é que, a título de exemplo, recordo que Agamben (2002) deixa claro que
o holocausto judeu na II Guerra não se tratou de um sacrifício, mas antes de um
extermínio, de uma condição de sacer. Foi uma biopolítica, e não uma questão de
religião ou de direito.
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Ed. da UFMG, 2002.
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.
ANDREW, N. Review of the literature on the “state of exception” and the application
of this concept to contemporary politics. Disponível em: <http://
www.libertysecurity.org/article169.html>. Indexado em: 03.03.2005. Acesso
em: 23 nov. 2006.
ARENDT, H. Entre o futuro e o passado. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ÁVILA, C. A. de. Apanijé (nós matamos para comer): uma análise sobre o sacri-
fício de animais nas religiões afro-brasileiras. TCC (Monografia do Bacharelado
em Ciências Sociais) – Departamento de Antropologia Social, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
DERRIDA, J. Fuerza de ley: el fundamento místico de la autoridad. Madrid:
Tecnos, 1997.
DURKHEIM, É. O suicídio: estudo sociológico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1982.
GADAMER, H.-G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 2004.
GOLDMAN, M. A possessão e a construção ritual da pessoa no canomblé. 984.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social do Programa e Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional) – niversidade Federal do Rio de
Janeiro, 1984.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007147147147147147
TJ CONFIRMA lei do sacrifício de animais. Jornal Zero Hora. Porto legre, 19
abr. 2005.
MAGGIE, Y. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. io e Janeiro:
Arquivo Nacioal, 1992.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988.
NORONHA, L. Malandros: notícias de um submundo distante. Rio de aneiro:
Relume Dumará, 2003.
ORO, A. P. Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra? Debates
do NER, Porto Alegre, p. 10-37, 1997.
ORO, A. P. Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul: passado e resente.
Estudos afro-asiáticos, Brasil, v. 24, n. 2, p. 345-384, 002.
ORO, A. P. O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: análise e ma
polêmica recente no Rio Grande do Sul. Religião e Sociedade, io de Janeiro, v.
25, n. 2, p. 11-31, 2005.
TADVALD, M. O simulacro da alteridade em perspectiva: comentários cerca de
uma análise discursiva de um ritual da Igreja Universal. Debates do NER, Porto
Alegre, v. 6, n. 7, p. 89-97, 2005.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia comprensiva.
Brasília: Ed. da UnB, 2004. v. 1.
Abstract: starting from the ritual sacrifice of animals practiced in certain
religions of Afro-Brazilian matrix, this work discusses the controversy
appeared in Rio Grande do Sul after the approval of the State Code of
Protection to the Animals, in 2003, that put in risk the free exercise of
certain religious practices accomplished by these religions allocated in
this State. Through these facts if it turned possible to develop a reflection
concerning certain conditions and particularities of the juridical field,
noticed here in a general way.
Key words: Anthropology of the religion, Afro-Brazilian religions, right and
power, Rio Grande do Sul
MARCELO TADVALD
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universi-
dade de Brasília. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: marcelotadvald@unb.br

Outros materiais