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, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007129129129129129 La seule innocence possible: celle de l’instant (Georges Bataille) As leis são injustas pelo simples fato de serem leis (Montaigne) A IMPORTÂNCIA DO SACRIFÍCIO NA LITURGIA RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA imolação de animais consiste em uma prática corriqueira nas reli- giões afro-brasileiras, à exceção de algumas denominações conhe- cidas como “linha branca”1. Nas demais, basicamente, são imolados animais chamados de “dois pés” (aves como pombas e galináceos) e de “quatro pés” (ovinos, suínos, bovinos e caprinos). O sacrifício MARCELO TADVALD Resumo: a partir do sacrifício ritual de animais praticado em certas religiões de matriz afro-brasileira, este trabalho discute a polêmica surgida no Rio Grande do Sul depois da aprovação do Código Estadual de Prote- ção aos Animais, em 2003, que colocou em risco o livre exercício de certas práticas religiosas realizadas por estas religiões alocadas neste Estado. Através destes fatos se tornou possível desenvolver uma reflexão acerca de certas condições e particularidades do campo jurídico, perce- bido aqui de forma mais ecumênica. Palavras-chave: Antropologia da religião, religiões afro-brasileiras, direito e poder, Rio Grande do Sul A DIREITO LITÚRGICO, DIREITO LEGAL: A POLÊMICA EM TORNO DO SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS NAS RELIGIÕES AFRO-GAÚCHAS , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 130130130130130 desses animais possui um investimento simbólico e litúrgico im- prescindível para a teogonia e liturgias próprias do contexto reli- gioso afro-brasileiro. Dado que as religiões afro-brasileiras são religiões de iniciação, e não de conversão, a imolação de animais é parte integrante desse processo e serve também para realizar uma comunicação e troca de benefí- cios religiosos entre os adeptos e as entidades (serviços e “traba- lhos”, oferendas e agradecimentos, etc), sempre obedecendo a regras específicas e sofisticadas, ditadas pela tradição e marcantes nesses rituais. Somado ao transe possessivo, o sacrifício de animais con- siste em um dos pilares destas religiões (Goldman, 1984). Não obstante, o sacrifício deve sempre ser reconhecido enquanto um fenômeno social que mobiliza diferentes atores com fins específi- cos, social e legitimamente construído. As trocas simbólicas advindas desse fenômeno são parte integrante do código de sentido ofereci- do por tais religiões para seus adeptos. Nas imolações realizadas nas religiões afro-brasileiras, o destino mais peculiar da carne do animal consiste na alimentação, que também pode ser percebida como parte do ritual. Não por acaso se utiliza o termo ioruba ebó para se referir ao sacrifício, expressão que pode ser traduzida por “comida” ou “comer”. A transformação do ani- mal sacrificado em alimento também agrega uma dinâmica maior de solidariedade entre os atores envolvidos no ritual, pois todos podem usufruir o banquete, mesmo que levem um pedaço da car- ne para casa. Na visão de diversos adeptos, este ato permite que se espalhe o axé (uma espécie de energia, que pode ser traduzida em termos maussonianos de mana) para muitos lugares e entre várias pessoas. Conforme o pai-de-santo (babalorixá) Babá Dyba de Yemanjá, de Porto Alegre: “em África, tudo que se consumia de alimento se compartilhava com a divindade. Não existia uma se- paração entre o homem e a divindade. Sagrado e profano não eram dissociados. [...] Tudo é compartilhado. Isso é o que define o que é axé. Solidariedade” (ÁVILA, 2006, p. 65-6). Por isso, a cozinha de um terreiro pode ser considerada um dos locais mais importan- tes deste espaço, talvez abaixo somente do pegi, o altar onde, den- tre outras coisas, são realizadas as imolações. A cozinha é em um lugar sagrado, portanto. Nesses rituais, existem animais específicos para serem imolados para orixás específicos e por motivos específicos. Até hoje, são rituais marca- , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007131131131131131 dos por uma aura de mistério, pois dificilmente um terreiro os realiza de forma pública, e aqueles que eventualmente assim o fa- zem, raramente deixam não iniciados presenciarem todos os even- tos do ritual. Na qualidade de pesquisador, presenciei alguns destes rituais e descreverei a seguir brevemente um deles com o intuito de chamar a atenção para alguns elementos simbólicos que são recorrentes nestes eventos. Conforme dito anteriormente, as reli- giões afro-brasileiras são religiões de iniciação, portanto, de práti- ca. O ritual de imolação que descreverei consiste exatamente em um ritual de iniciação de três filhos-de-santo ocorrido em um ter- reiro porto-alegrense, onde possuo boas relações com o babalorixá responsável que na ocasião havia me convidado para participar. Aprontado o pegi, cada filho-de-santo, individualmente, passou pelo mesmo processo. Diversos “aprontados” entoavam cânticos, sendo que al- guns deles se encontravam incorporados de suas respectivas enti- dades. O clima era de extrema tranqüilidade e deferência para com o evento em si. Para cada filho-de-santo, foram imolados três pombos brancos. O sacrifício deste tipo de animal (“dois pés”) é conhecido por bori. Os animais eram de extrema beleza e não se mostraram em momento algum agitados. Na palavra de um interlocutor da- quela noite, “seus espíritos (dos pombos) sabiam da importância do que iria acontecer, por isso as aves permaneciam tranqüilas”. Um por um, ajudantes traziam os animais que eram degolados pelo babalorixá sobre a cabeça de seus “filhos”. O sangue era pas- sado, além da sua cabeça, nos pulsos e na nuca, através do fluído que escorria da cabeça decepada dos animais. Enquanto passava a cabeça pelo corpo do filho-de-santo, o babalorixá entoava cânticos que transmitiam paz e serenidade para o processo que se iniciaria naquele momento, pois que os “iniciantes” deveriam observar al- guns dias de retiro, no mais absoluto silêncio e meditação, para completar o ritual. Durante todo o retiro, os iniciantes deveriam usar uma espécie de turbante, em realidade um pano branco que enrolava consigo, na cabeça dos “iniciantes”, a cabeça de um dos pombos imolados. O sangue (axorô) é um elemento crucial e a ele são atribuídos diversos sentidos. Quanto mais sangue, mais sagra- do é o ritual, e existem diversos rituais de iniciação, até o ritual final de “aprontamento”. O bori é um dos primeiros. Este presen- ciado, em particular, permitiria que os filhos-de-santo se “purifi- cassem” o suficiente para começar a “trabalhar” no terreiro, , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 132132132132132 incorporados de suas entidades. Seus corpos e sua mente estariam prontos para “trabalho” tão sagrado: o volume de sangue e outros materiais presentes no sacrifício é expressivo; desta forma, os deuses são constrangidos, obrigatoriamente, a responder ao apelo feito pelos homens, a estabelecer a referida relação de comunicação. Os deuses são ‘forçados a comer... é a sua carne’, ou seja, é a parte que lhes cabe neste repasto divino/ profano (ÁVILA, 2006, p. 22). Tal aspecto estabelece, inclusive, uma dinâmica de dádiva entre deuses e humanos (MAUSS, 1988). Depois desses eventos, os filhos-de-santo se recolheram para seu retiro, um dos quartos do terreiro. Confesso que me senti desconfortado com tudo aquilo, o cheiro do sangue, os animais mortos, etc, mas esta não era a questão. O ritual em si permitiu a observação de uma liturgia muito sofisticada e difícil de ser apreendida facilmente por um pes- quisador, de sorte que fui compondo meu entendimento em eventos posteriores, como por exemplo, quando me uni naquela noite a ou- tros “iniciados” que depenavam no fundo do terreiro as aves, a fim de queimar suas penas e as cabeças restantes em uma grande vasilha. Por serem pombos, tidos como impróprios para o consumo, não come- mos os animais, que também foram queimadosem separado. Existe uma deferência toda especial para com os animais que serão sacri- ficados. Além da necessidade de contar com espécimes saudáveis, não raro, a estas são destinadas por parte dos envolvidos no even- to, atenções e carinhos especiais nos momentos que precedem o ritual. Não se irá oferecer aos orixás, aos deuses, animais maltrata- dos ou doentes. Na visão da maioria absoluta dos adeptos, a imo- lação deve ser realizada com o mínimo de sofrimento possível para o animal. Nos casos em que se imolam animais maiores (os “qua- tro pés”), o obé (faca sagrada) deve estar bem afiado e o golpe deve ser certeiro. Não por acaso, somente babalorixás experimentados, e que passaram pelos ritos iniciáticos específicos (axé da faca, por exemplo), têm o direito e o poder de imolar animais. Na grande maioria das vezes, são sacerdotes treinados que executam essas ta- refas. O que explica em parte esta deferência especial para com os animais é a necessidade de humanizar as vítimas animais, pois a carne mais digna para ser oferecida a um deus é de fato a do ho- mem. Claro, tudo isto dentro de um plano metafórico. , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007133133133133133 Ainda que apresentados de forma ecumênica, o objetivo até aqui foi mostrar que no ato de sacrifício destes contextos religiosos existe um gran- de investimento simbólico, pois são considerados momentos sa- grados, em que prerrogativas da natureza de sofrimento (portanto, profanas) não devem estar presentes. Contudo, a prática livre de tais liturgias foi abalada, em 2003, no Rio Grande do Sul, graças à aprovação, pela Assembléia Legislativa do Estado, do Código Estadual de Proteção aos Animais. Este evento mobilizou diferen- tes atores sociais durante os dois anos em que perdurou a polêmi- ca, e através destes fatos se torna possível desenvolver uma reflexão acerca de certas condições e particularidades do campo jurídico, de forma mais geral. Vejamos primeiro os fatos que compuseram esta polêmica. DOS FATOS2 O Código Estadual de Proteção aos Animais, aprovado e transformado em lei em 29 de abril de 2003, e sancionado pelo Governador do Estado de então, a princípio possuía os seguintes parágrafos que motivaram a reação das lideranças religiosas afro-gaúchas: É vedado: I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermí- nio seja necessário para o consumo. As lideranças afro-religiosas perceberam que o Código poderia facilmen- te ser interpretado no sentido de prejudicar seriamente seus ritu- ais de imolação e, portanto, decidiram se mobilizar contra a referida lei, capitaneadas especialmente pela Comissão/Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, a CDRAB, criada em no- vembro de 2002. Sua mobilização teve uma outra importante motivação: o autor da lei havia sido o deputado estadual Manoel Maria dos Santos (PTB/ RS), pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular. Como mostraram diferentes estudos3 e de Tadvald, 2005), diversas denominações pentecostais elegeram as religiões de matriz afro-brasileira como elemento de agressão e de combate. , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 134134134134134 Além de outras esferas da sociedade civil, somou-se a esta frente afro-religiosa o deputado estadual Edson Portilho (PT/ RS), pro- fessor da rede pública e afro-descendente católico ligado ao movi- mento negro gaúcho. Portilho apresentou um projeto de lei (PL N. 282/2003) para estabelecer uma exceção ao artigo 2 do Códi- go de Proteção aos Animais, permitindo o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana, assim concebido: Acrescenta parágrafo único ao art. 2. da Lei N. 11.915, de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul. Art. 1. - Fica acrescentado parágrafo único ao art. 2. da lei n. 11.915, de 21 de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Prote- ção aos Animais, no âmbito do Rio Grande do Sul, com a seguin- te redação: Art. 2.......... Parágrafo Único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. À parte de toda a polêmica gerada, tal projeto foi aprovado em 29 de maio de 2003, por 32 votos favoráveis e 2 contrários, um deles sendo, evidentemente, do deputado Manoel Maria, que afirmou na ocasião que “nenhum deus do bem ficaria contente com o san- gue de um animal”. A lei foi sancionada pelo Governador Germano Rigotto, ainda que este tivesse recebido pressões contrárias de cer- tos segmentos sociais, como os evangélicos e alguns “ambientalistas”. Contudo, a polêmica não terminaria por aí. Conforme relatou a pesquisadora Cíntia Ávila (2006, p. 31): Em 27 de outubro de 2003 o Procurador-Geral de Justiça, Roberto Bandeira Pereira, a pedido de entidades de defesa dos animais, protocolou no Tribunal de Justiça do Estado uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADin) requerendo a “retirada do ordenamento jurídico” do parágrafo único do art. 2. da Lei Estadual N. 11.915/2003, ou seja, a lei N. 282/2003, de autoria do deputado Edson Portilho. A alegação era de que esse dispositivo é inconstitucional porque trata de matéria penal, de competência legislativa privativa da União. Além disso, argumentava que o Estado não pode desrespeitar as normas gerais editadas pela União, relativamente à proteção da fauna. Por fim, sustentava que o dispositivo ofende o princípio de , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007135135135135135 isonomia, ao excepcionar apenas os cultos de matriz africana. Essa nova ação judicial mobilizou mais uma vez a comunidade afro-religiosa do Rio Grande do Sul que, em 18 de abril de 2005, viu vencida a tese da constitucionalidade da lei. Dos 25 desembargadores que integram o Órgão Especial do Tribunal de Justiça, 14 votaram pela constitucionalidade da lei estadual de autoria do deputado Edson Portilho, 10 julgaram procedente a ação do Ministério Público e 1 votou pela parcial procedência da ADin. Já o governador do Estado, Germano Rigotto, sancionou tanto o Código de Proteção aos Animais quanto a lei aprovada na Assembléia, de autoria do deputado Edson Portilho. [...] A lei 282/2003 foi sancionada pelo governador com a ressalva de proibição, nos rituais de matriz africana, do sacrifício de espécies ameaçadas de extinção e de animais silvestres, assim como a ressalva de que a prática sacrificial não ocorra com requintes de crueldade. Ainda que os animais imolados nos rituais não sejam espécimes abrangi- dos pelo código nacional de proteção da fauna, os religiosos afro- gaúchos entenderam que o deputado Manoel Maria estava tentando inviabilizar a morte de animais nos terreiros. Não por acaso, o de- putado fazia alusão a estas práticas como “cerimônia religiosa e feiti- ço”. Seu artigo de lei original dizia: é vedado: realizar espetáculos, esporte, tiro ao alvo, ‘cerimônia religiosa, feitiço’, rinhadeiros, ato público ou privado, que envolvam maus tratos ou a morte de animais, bem como lutas entre animais da mesma espécie, raça, de sua origem exótica ou nativa, silvestre ou doméstica ou de sua quantidade (ORO, 2005, p. 14, grifo nosso). É curioso fato de o deputado declarar, à época de toda a polêmica, ter concebido o Código de Proteção aos Animais como parlamentar, e não como pastor. Para além dos segmentos evangélicos, de fato tais práticas não possuem muito a simpatia do conjunto maior da sociedade, em parte devido à ignorância, em parte devido à pouca tolerância que qualquer as- sunto advindo deste campo recebe da sociedade em geral, em parte devido ao preconceito, em parte devido ao temor que tais rituais inspiram em muitas pessoas, mesmo porque eles próprios foram concebidos em tornode uma aura de mistério. De qualquer forma, os movimentos contrários aos interesses afro-religiosos que se origi- , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 136136136136136 naram em torno do assunto foram percebidos como mais uma for- ma de intolerância religiosa, aliás, nenhuma novidade para os adep- tos destas religiões, perseguidos historicamente em todos os cantos do país, especialmente no Rio Grande do Sul (ORO, 2002). A mobilização dos afro-religiosos foi retumbante. Fosse nas ruas de Porto Alegre, na Assembléia Legislativa, no Palácio Piratini (sede do poder executivo estadual) ou ainda no Tribunal de Justiça do Estado, sem- pre que debatidas e julgadas as questões pertinentes, os manifestantes marcaram presença com roupas e adereços religiosos, sem deixar de entoar cânticos e rezas para que seus orixás fizessem a sua “justiça”. Isto acabou atraindo os veículos midiáticos do Estado e mesmo do país, chamando a atenção da opinião pública. Desta forma, a opinião pública deu voz aos diferentes segmentos envolvidos. Não cabe aqui transcrever os múltiplos exemplos4, mas o que se observou com mais recorrência foi o tom preconceituoso e intolerante contido nas decla- rações daqueles contrários à aprovação da emenda concebida pelo de- putado Portilho viessem estas declarações dos segmentos evangélicos, da Sociedade Protetora dos Animais (ainda que não unânimes, mas em sua grande maioria), ou mesmo da opinião pública em geral, vin- culada aos meios de comunicação “elitistas” (jornal e sítios da internet) da afiliada da Rede Globo no Estado, a Rede Brasil Sul (RBS). Foi, inclusive, sugerido por defensores dos animais que aqueles imolados nos cultos fossem “anestesiados” previamente, o que gerou mais in- dignação dos afro-religiosos, em razão de os animais anestesiados pre- judicarem o pleno andamento mágico e teogônico do ritual. Aliás, os religiosos perguntavam à época porque os ambientalistas não mani- festavam essas opiniões e defendiam essas idéias junto aos matadouros legais e junto à mesa da família gaúcha do churrasco de domingo. Em 18 de abril de 2005, ficou decidido: Pelo voto da maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que a Lei 12.131/04-RS, não é inconstitucional, mantendo o parágrafo único relacionado ao sacrifício ritual nas religiões de matriz africana, desde que sem excessos e crueldade, já que na verdade não há norma que proíba a morte de animais e também a liberdade de culto permitiria esta prática (ÁVILA, 2006, p. 55-6). Enfim, a ação fora julgada improcedente. Que reflexões a respeito da lei e de suas veleidades, volubilidades, inconstâncias e mutabilidade , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007137137137137137 leviana nos ditames e determinações se tornam possíveis a partir desta polêmica? A seguir apresento algumas sugestões para o en- tendimento destas questões. DA LEI Apesar do adendo à lei proposto pelo deputado Portilho ter sido aceito pelo voto da maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado, a votação inspirou reações de empatia e de repúdio por par- te desses juristas. Conforme mencionado, dos 25 desembargadores que votaram a lei com o adendo de Portilho (Lei 12.131/04-RS, que introduziu o parágrafo único ao artigo 2º da Lei 11.915/03- RS), 14 juristas a aprovaram e 10 foram contrários, sendo que um a aceitou parcialmente. Dos que votaram contrariamente, a justifica- tiva girou em torno da noção de exceção, ou seja, que estaria se abrindo uma exceção à lei para os afro-religiosos. Contudo, a maioria enten- deu que o direito constitucional de livre exercício de práticas religi- osas que não atentassem contra a vida humana se impunha, dentro da prerrogativa de laicidade do Estado brasileiro. Outrossim, cha- mou a atenção o relatório de um dos desembargadores contrários à lei. O desembargador Alfredo Foerster citou em seu parecer um livro de Elisabeth Maschler, chamado De longe também se ama: re- cordações da vida no sul do Brasil e Alemanha. Em um dos episódios deste livro, ocorrido nos anos 1950, o Secretário de Cultura convi- dou um alemão para participar de uma sessão de batuque, o que foi chamado no livro de “um outro lado do Brasil”. A parte transcrita pelo desembargador possui, em meu entendimento, claras conotações de racismo e de preconceito, além de reproduzir um estigma resso- nante na sociedade elitista com relação às religiões afro-brasileiras5. Com relação à exceção, noção que ecoou no parecer daqueles juristas con- trários à lei que garantia a prática ritualística das religiões afro- gaúchas6, Giorgio Agamben (2005) dedicou especial atenção ao assunto, em compreender a formatação de estados nacionais em que tal prerrogativa se torna regra. Em nível geral, esta discussão extrapola os limites de nosso assunto; contudo, ela fornece noções muito interessantes para pensarmos nos ditames do plano legal do direito as questões etnográficas trazidas até aqui, isto porque a teoria do estado de exceção não é de modo algum patrimônio ex- clusivo da tradição anti-democrática7. , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 138138138138138 Portanto, a noção de exceção trazida pelos desembargadores no caso de garantir os direitos religiosos nesta polêmica não se aplica ao fórum legal do direito, pois a exceção e a necessidade são noções com sen- tidos díspares quando aplicadas à dimensão jurídica. Na verdade, os religiosos possuem a necessidade religiosa de uma prática ritual, que em medida maior não atinge qualquer preceito laico da norma constitucional do estado, e isto não é uma exceção, mas antes, um direito legal. Para Agamben (2005), a noção política moderna de exceção consiste em uma tentativa de inclusão na ordenação jurí- dica da própria exceção, criando uma justaposição entre fato e di- reito. No momento em que os afro-religiosos querem garantir suas práticas ritualísticas dentro dos códigos da lei – que consiste, todo modo, em uma necessidade – eles estão tão somente fazendo uso de uma prerrogativa que é tida como fonte primária e originária da própria lei, e não uma exceção. E dado que o conceito de neces- sidade é absolutamente subjetivo, ele extrapola os limites técnico- racionais do direito, apesar de ser um de seus elementos constitutivos. O caso dos manifestantes afro-religiosos gaúchos vivificou exem- plarmente a máxima do filósofo Balladore-Pallieri, que diz que “o princípio da necessidade é sempre, em todos os casos, um princí- pio revolucionário” (BALLADORE-PALLIERI apud AGAMBEN, 2005, p. 47). A necessidade afro-religiosa de ver seus direitos ritualísticos garantidos pela lei ecoa, na verdade, um sentido mais íntimo do próprio campo jurídico. No início do século XX, Weber (2004) já admitia que a ordem jurídica consistia em uma convenção dada pelo costume, demarcando a importância do habitual para a constituição do di- reito e a própria fluidez existente entre a convenção, o costume e o direito em si. Além disso, “o que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direi- to, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, também deve ser libertado de seu próprio valor” (AGAMBEN, 2008, p. 98). Caso o direito de livre exercício dos rituais afro-religiosos fossem coibi- dos pela nova lei, dificilmente ele se extinguiria, pois que consiste em algo construído e enraizado graças à tradição e ao próprio cos- tume, além de se caracterizar como uma necessidade. Do contrá- rio, dado a figura espectral do direito, a nova lei se caracterizaria como uma pura vigência sem aplicação (uma “forma de lei”), e a , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007139139139139139 prática ritualística como uma aplicação sem vigência, o que Agamben (2005) chama de “força de lei”. Conforme o autor (AGAMBEN, 2002), o poder da lei está precisamente na impossibilidadede entrar no já aberto, de atingir o lugar em que já se está: o já aberto imobiliza. Mas, enquanto a proibição coloca a figura proibida num lugar de “outsider”, esta exclusão é na realidade uma inclusão, uma exclusão inclusiva (ANDREW, 2005). Ademais, a exceção só se dá quando existe uma união impossível entre a realidade e a norma, o que não é o caso desta polêmica. A necessidade afro-religiosa de garantir pela lei seu direito de sacrificar animais pode, indiretamente, estar relacionada à reflexão benjaminiana, que diz que a violência não pode existir fora do direito8. O que os afro-religiosos advogavam era tão somente uma questão de inclusão no código legal de sua prática tradicional, ou seja, tornar constituinte (legitimado) sua liturgia constituída (tra- dicional). Dado que o monopólio da decisão se encontra nas mãos do Estado, e por mais que a autoridade de hoje seja “porosa”, con- forme sugeriu Hannah Arendt (2000), vale lembrar que os adep- tos destas religiões passam historicamente por todo o tipo de perseguições e mesmo de restrições legais. Apenas para citar um exemplo, até os anos 1970, todo terreiro carioca precisava possuir “ficha” na polícia para funcionar “legalmente” (NORONHA, 2003); assim, o nível de entendimento desses adeptos a respeito desses eventos e sua mobilização são motivados por um grau mais pro- fundo de consciência, facilitado por um momento histórico no Brasil em que bem ou mal ampliou as vozes de grupos “marginais” da sociedade9. Além disso, os limites da constituição do direito jurídico perpassam a noção última de subjetividade que lhe é cons- tituinte. Observemos, por exemplo, o caso da “lei moral” que se encontra para além da lei de direito, trazida por Hans-George Gadamer (2004). Para o autor, a lei moral passa pelo senso co- mum e atua no sentido de impedir a subjetividade privada dos conceitos. Isto não quer dizer, no entanto, que tais leis não sejam passíveis de mudança. Ao contrário, a lei moral tem por princípio o reconhecimento do outro; é, portanto um princípio dialético. Por outro lado, também em um sistema com uma constituição escrita a lei pode ser mudada; contudo, ali a mudança ocorre de forma muito mais difícil, devido aos trâmites racional-burocráti- cos constituintes desse contexto (ANDREW, 2005). , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 140140140140140 Em síntese, apropriando as idéias de Jacques Derrida (1997) sobre a questão, o único fundamento da lei é que cremos nela, pois ela consiste numa ficção legítima. A justiça, por outro lado, se funda na noção de “verdade”. Mas existe algo mais subjetivo que a idéia de “verdade”? As “verdades” não seriam meramente pontos de vis- ta? Ademais, conforme sugere Derrida (1997), a criação ficcional do direito advém da nossa falta de orientação pela natureza. Por isso ela aparece como natural, pois é naturalizada por nós, em nossa falta de natureza. O sujeito se “humaniza” por se vincular às leis. A lei é uma ficção que substitui a natureza. A justiça é desconstrução. O direito não é justiça, mas, antes, é um exercício de cálculo e de conformação. É muito fácil ser convencido em tor- no da lei. Assim, o que se aprende com esta discussão é a impor- tância da desconstrução da lei, pois ele não é sinônimo de justiça. DA SACRALIDADE Na necessidade sacrificial afro-religiosa está contida a idéia de sagrado. Não obstante, o sacrifício em si não tem lei (AGAMBEN, 2005). Portanto, conforme discuti até aqui, a necessidade é subjetiva, e a subjetividade é a marca da religião. Assim, ao colocar em perspec- tiva a noção de sagrado e a lei de direito, Agamben (2000, p. 73- 4) sugere que: Toda tentativa de colocar em questionamento o domínio do direito sobre o vivente, não é de nenhuma utilidade o princípio do caráter sagrado da vida, que nosso tempo refere à vida humana e, até mesmo, à vida em animal em geral. [...] O princípio do caráter sagrado da vida se tornou para nós tão familiar que parecemos esquecer que a Grécia clássica, à qual devemos a maior parte dos nossos conceitos ético-políticos, não somente ignorava este princípio, mas não possuía um termo que exprimisse em toda a sua complexidade a esfera semântica que nós indicamos com o único termo ‘vida’. [...] De resto, mesmo naquelas sociedades que, como na Grécia clássica, celebravam sacrifícios de animais e imolavam, ocasionalmente, vítimas humanas, a vida em si não era considerada sagrada; ela se tornava tal somente através de uma série de rituais, cujo objetivo era justamente o de separá-la do seu contexto profano. , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007141141141141141 No que tange à Grécia clássica, ainda que legitimamente considerada fon- te cosmológica para as religiões africanas que desembarcaram no Brasil junto com os escravos, tanto a perspectiva do direito legal, quanto a própria perspectiva religiosa afro-brasileira já se distancia- ram, cada qual dentro de seus limites cognitivos, de suas origens “gregas”. O problema, que inclusive repercute na opinião pública ordinária, conforme veremos mais adiante, é a “confusão” que estas prerrogativas éticas, políticas e mesmo religiosas ocasionam em nos- sa sociedade. Quando falamos, atualmente, em nosso contexto cul- tural, de sacrifício, não estamos nos referindo à vida humana, tampouco se deseja abrir tal prerrogativa. Este tipo de receio repercute nossa própria desconfiança moderna na legitimidade e na constância do direito legal, na representatividade de nossos juristas e no senso de “justiça” soberano e estatal do direito. Soma-se a isso o descrédito, o temor e o preconceito já difundido na sociedade com relação às religiões afro-brasileiras. Talvez isto possa explicar depoimentos da natureza que irei reproduzir a seguir, extraídos de uma enquête rea- lizada na internet por um dos mais prestigiados veículos de comu- nicação do Rio Grande do Sul, afiliado da Rede Globo de Televisão, à época da polêmica em torno da aprovação ou não da lei. A pergun- ta constante no jornal Zero Hora, de 19/04/2005, era a seguinte: “o Tribunal de Justiça confirmou a lei que permite o sacrifício de animais em cultos de religiões africanas. A decisão foi acertada? Opine em zh.clicrbs.com.br”. No sítio, no período de 19 a 20 de abril, foram registradas 56 manifestações, sendo apenas 10 favoráveis à nova lei. Das 46 manifestações contrárias, constavam relatos como os que transcrevo a seguir: –– Alguém de vocês já viu como eles sacrificam estes animais? Já viram notícias na TV que alguns sacrificam até crianças...?; –– É um absurdo [...] Daqui a pouco vão pedir a aprovação de sacrifícios humanos em rituais de magia negra, e os infelizes dos parlamentares vão aprovar ainda; –– É uma vergonha. Daqui a pouco, pelo bem das ‘religiões’ vamos permitir o martírio de crianças (ORO, 2005, p.20-1). Em primeiro lugar, é no mínimo falta de responsabilidade e de ética um veículo formador de opinião pública do porte do grupo RBS pu- blicar este tipo de comentário, sem contar a disparidade do nú- , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 142142142142142 mero de manifestações das partes (46 contrárias contra 10 a fa- vor), ou não existe um controle editorial das manifestações indexadas no sítio? Tal ação está longe de ser tida como democrática para não dizer ser ela mal-intencionada. Em segundo lugar, durante toda esta polêmica jamais se falou de pessoas, de um homo sacer tal como definido por Agamben (2002), mas da idéia de disposição de uma vida, que, de toda sorte, não é humana, é animal, e de animais que inclusive estão culturalmente disponíveis para o con- sumo humano. Portanto, a questão sacra aqui não perpassa a vida humana, mas antes uma liturgia religiosa. Não por acaso, Agamben (2002), claramente inspirado em Dürkheim, apontou para a “teoria da ambigüidade e da ambivalência do sa- cro”. No respeito religioso existe algo de horror e de temor, e o própriosagrado pode se referir a coisas fastas e a coisas nefastas, e ele próprio oscila entre estas duas categorias: “a vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra” (AGAMBEN, 2002, p. 91). Assim, a vida animal em si não é sagrada. Por mais que alguns discursos proclamem que o animal é sagrado porque já se encon- trava em ligação com os deuses ou coisa que o valha, o que é sagra- do de fato é o ritual que dispõe desta vida animal. O que investe o animal de sacralidade é o ritual. Sua carne só adquire mana (ou axé), por causa dele, do contrário qualquer carne animal seria sa- grada. A vida insacrificável é a do ser humano. Esta sim é matável, já que sacrificar é absolutamente diferente de matar10. Os investi- mentos simbólicos atribuídos a ambas as ações são de naturezas distintas. Por isso, direito e sacrifício correspondem a instâncias de difícil aproximação. Nos rituais de sacrifício afro-religiosos, a vítima animal tem a clara fun- ção de servir como mediadora entre o mundo daqui e o mundo espiritual, ou seja, cumprindo uma função sagrada. Sem embargo, sagrados são também o sacerdote sacrificador, o lugar do sacrifício e os instrumentos utilizados para este fim. Não por acaso, no dis- curso de diversos religiosos afro-gaúchos, o sacrifício não é tomado como tal, mas sim como uma sacralização (ÁVILA, 2006), mesmo porque estas pessoas devem conceber instrumentos simbólicos e discursivos para lidar com o preconceito e com a perseguição soci- al a seus credos e liturgias, percebida em rótulos que recebem do tipo “sacrificadores de animais”. , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007143143143143143 CONCLUSÃO: UMA QUESTÃO DE PRECONCEITO Em O suicídio, Dürkheim (1982) apontava para a necessidade humana em ser regulada. Talvez, por detrás da necessidade de exercer seus rituais, os afro-religiosos precisassem da legitimação legal para fazê- lo, conforme sugeri anteriormente. A verdade é que todas as socie- dades estão em crise de legitimidade (AGAMBEN, 2002), dado, inclusive, a ampliação das vozes das “minorias”, o que, de certa forma, se ainda não coloca em xeque o poder e os interesses dos grupos hegemônicos, ao menos os força a ter que dialogar publica- mente com as esferas sociais por eles subjugadas. O direito legal, tantas vezes constituído e manipulado pelos grupos hegemônicos – pois é recorrentemente representado por seus “filhos”, encontra verdadeiros dilemas em função deste conjunto de fenômenos ob- servados atualmente. A polêmica em torno do sacrifício de ani- mais no Rio Grande do Sul é apenas um exemplo deste fato. Em suma, o que permeia toda essa discussão é ainda o preconceito e o estigma que as religiões afro-brasileiras possuem na sociedade bra- sileira. Trazidos pelos escravos durante o período colonial, esses cultos foram sempre percebidos pela sociedade “letrada” e forma- dora de opinião como primitivos, arcaicos, formas rasas de feitiça- ria e até mesmo como doença (MAGGIE, 1992). Mas, o que ocorreria caso fosse proibido por lei o sacrifício ritual nos terreiros gaúchos? Nada, ou quase nada, de fato. Como dificilmente os adeptos abri- riam mão dos rituais de imolação, as autoridades não conseguiriam fiscalizar uma prática tradicional e profundamente difundida no Estado gaúcho, a qual toma parte uma quantidade substancial de pessoas (vale lembrar que de acordo com o censo do IBGE de 2000, o Estado é aquele que possui maior número de adeptos afro-religi- osos no Brasil, superando locais como o Rio de Janeiro e a Bahia). Além disso, esta seria apenas mais uma forma de perseguição reli- giosa para este segmento, que, de certa forma, já se habituou a ter que lidar com a intolerância. De fato, teriam apenas mais alguma coisa com que se preocupar. O preconceito neste caso se encontra para além da questão racial, ou étnica, dado que atualmente os adeptos dessas religiões pertencem a uma gama muito maior de grupos sociais. Contudo, o atrelamento destas religiões aos negros e às classes populares ainda é notório. O preconceito das elites brasileiras, observado neste caso nos discursos de parte da mídia, , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 144144144144144 de parte dos juristas e de outros grupos sociais, se dirige para além dos negros: diz, antes de tudo, respeito aos pobres. Com relação ao direito, conforme a antropóloga Rita Laura Segato (co- municação pessoal), ele não é a ética da satisfação: não é uma ética narcisista. Assim, deveríamos fundar nossa ética para além do so- frimento alheio, ou seja, através da “libertação”, nos posicionando no lugar de quem está sofrendo, por exclusão, martírio ou qual- quer coisa que o valha, em cada momento histórico. Ao perseguir a ética da “libertação”, podemos nos posicionar a partir de como o outro percebe o mundo, no que o saber do outro nos convoca a fazer, a pensar, nos colocando a seu serviço. Não é a vontade cristã que deve pautar necessariamente a nossa ética. Não devemos nos colocar no lugar do sofrimento do outro: isto seria muita prepotência. Devemos tentar nos colocar no lugar do saber do outro. Inclusive, para Derrida (1997), a Antropologia poderia ser reformulada para a disciplina da hospitalidade, da acolhida. A polêmica em torno do sacrifício de animais tem muito a nos ensinar sobre isso. Notas 1 De acordo com Ari Oro (apud ÁVILA, 2006), a expressão “religiões afro-brasi- leiras” cobre uma variedade de cultos organizados no Brasil e que podem ser condensados, segundo um modelo ideal-típico, em três diferentes expressões ritualísticas. A primeira delas cultua os orixás africanos (nagô) e privilegia os elementos mitológicos, simbólicos, lingüísticos, doutrinários e ritualísticos das tradições banto e nagô. Neste grupo se encontram o candomblé da Bahia, o xangô de Recife, o batuque do Rio Grande do Sul e a casa de mina do Maranhão. A segunda forma ritual, parece ter surgido no Rio de Janeiro no final do século XIX, inicialmente chamada de macumba, e recebeu mais tarde nomes diferentes de acordo com as regiões brasileiras, os mais comuns sendo quimbanda, linha negra, magia negra, umbanda cruzada e linha cruzada. Essa expressão religiosa afro-brasileira cultua os exus e pombagiras, entidades de intermediação entre os homens e os orixás. Ambas expressões realizam sacrifícios de animais. A terceira forma ritual é a umbanda, surgida no Rio de Janeiro, na década de 1920, se estruturando de forma sincrética, a partir de elementos provenientes das tradi- ções católica, africana, indígena, kardecista, oriental, centrando-se no culto aos pretos-velhos e caboclos. Esta não realiza a prática do sacrifício de animais. As reflexões deste texto dizem respeito, portanto, aos grupos religiosos afro-gaú- chos da linha nagô. 2 Em linhas gerais, consultei para apresentação destes “fatos” os trabalhos de Oro (2005) e de Ávila (2006). 3 Ver, por exemplo, os estudos de Oro (1997). , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007145145145145145 4 Para quem desejar se aprofundar no debate, o trabalho de Ávila (2006) realizou plenamente esta tarefa. 5 Parte do trecho transcrito pelo desembargador é o seguinte: “Logo ouvimos gali- nhas cacarejando, gansos grasnando, o balir de ovelhas, os berros de cabras e gritos assustados de pássaros. E, como toque de fundo, o constante soar dos tambores. Um rancho simples aparece à nossa frente. Diante dele, uma multidão negra encobre a entrada do pátio. As vozes dos animais ficam agudas e penetrantes. Felipe, virando-se para nós, fala baixinho: ‘Estes são os animais para o sacrifício’. [...] Um forte cheiro de suor e de animais nos envolve. O pior era ver no pátio as pobres criaturas, amarradas, engaioladas, que se debatiam assustadas, como se pressentissem seu destino, gritando seus medos para a noite. [...] Agora começa a matança dos animais. Iniciam com os pássaros e as outras aves. Cada uma é sacrificada em oferenda e gratidão por um pedidoatendido. Hábeis ajudantes com prática trazem as aves para o centro da quadra e, perante o Senhor do Terreiro, decapitam-nas com facões afiados. Afora o soar rítmico dos tambores, a matança é feita em silêncio. Depois dos pequenos chega a vez dos maiores. Assim que são arrastados para dentro, acalmam-se como que atordoados pelo som ensurdecedor dos tambores. São decapitados com muita presteza – o facão deve estar afiadíssimo – e, como parece, sem sofrimento para o animal. O cheiro animalesco do sangue encobre todos os outros odores. Já se passara quase uma hora desde o começo dos sacrifícios. [...] Sentimos que o ponto culminante da noite está perto. E assim acontece: um enorme boi é empurrado para dentro! Também ele parece calmo, como em transe. Está parado agora em frente do Senhor do Terreiro, que se levantara. E antes que o boi desse por si, teve sua cabeça decepada por um longo facão em forma de espada.[...] O sangue jorra em tal quantidade que nós, da fileira de trás, já pisamos dentro dele. O sangue quente embebe nossas meias até os tornozelos. Nesse instante o Pai de Terreiro, que caíra em transe, deixa que colo- quem a cabeça do boi sobre a sua própria [...]. O orixá supremo dança no centro enquanto o sangue escorre sobre ele tingindo sua bela vestimenta. Não sei como suportei essa experiência até o fim. Como saí dela, calcei os sapatos e cheguei em casa não lembro mesmo. Nossas meias provaram na manhã seguinte que fora verdadeiro o que assistimos” (MASCHLER apud ÁVILA, 2006, p. 59-60). 6 Por exemplo, o parecer da desembargadora Maria Berenice Dias que não via como afastar a limitação e permitir o sacrifício de animais ‘exclusivamente’ nas religiões de matriz africana, já que a Constituição Federal, ao garantir e proteger as manifes- tações culturais e populares, não faria este tipo de ‘diferenciação’ (ÁVILA, 2006, p. 58, grifos nossos). 7 “O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas - e antes de tudo, a própria distinção entre público e privado – estão desativadas” (AGAMBEN, 2005, p. 78). 8 “O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a existência de uma violência fora do direito; não porque os fins de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas ‘pelo simples fato de sua existência fora do direito’” (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2005, p. 84-5). 9 Na voz de uma das lideranças religiosas afro-gaúchas, o movimento do qual faz , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 129-147, jan./jun. 2007 146146146146146 parte no Rio Grande do Sul se constitui em uma verdadeira vanguarda, pois “o Rio Grande do Sul é o Estado mais racista do país. Então neste Estado a religião africana foi muito mais reprimida, muito mais perseguida e os terreiros acabaram se resumindo aos lares de cada pessoa por uma questão de preservação mesmo. Então tu vai em uma casa de batuque e ali é uma casa onde a família mora, aí tem um quartinho reservado aos orixás e a sala que num momento é a sala de visitas, num outro momento passa a ser a sala onde vai acontecer o momento sagrado” (Babalorixá Babá Dyba de Iemanjá apud ÁVILA, 2006, p. 46). De fato, o terreiro que realizei a observação transcrita na primeira parte deste texto, consistia na casa do babalorixá líder. O quarto usado para o “retiro” dos filhos-de-santo “iniciantes” não era nada além de um dos quartos da residência, utilizado naquele momento para tal fim. 1 0 Por isso é que, a título de exemplo, recordo que Agamben (2002) deixa claro que o holocausto judeu na II Guerra não se tratou de um sacrifício, mas antes de um extermínio, de uma condição de sacer. Foi uma biopolítica, e não uma questão de religião ou de direito. Referências AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002. AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2005. ANDREW, N. Review of the literature on the “state of exception” and the application of this concept to contemporary politics. Disponível em: <http:// www.libertysecurity.org/article169.html>. Indexado em: 03.03.2005. Acesso em: 23 nov. 2006. ARENDT, H. Entre o futuro e o passado. São Paulo: Perspectiva, 2000. ÁVILA, C. A. de. Apanijé (nós matamos para comer): uma análise sobre o sacri- fício de animais nas religiões afro-brasileiras. TCC (Monografia do Bacharelado em Ciências Sociais) – Departamento de Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. DERRIDA, J. Fuerza de ley: el fundamento místico de la autoridad. Madrid: Tecnos, 1997. DURKHEIM, É. O suicídio: estudo sociológico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1982. GADAMER, H.-G. 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Through these facts if it turned possible to develop a reflection concerning certain conditions and particularities of the juridical field, noticed here in a general way. Key words: Anthropology of the religion, Afro-Brazilian religions, right and power, Rio Grande do Sul MARCELO TADVALD Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universi- dade de Brasília. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: marcelotadvald@unb.br
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