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PUC Minas Virtual • 1 Categorias de interpretação do fenômeno religioso Deus é o invisível evidente! (Mário Quintana) Da mediação ao encontro com o mistério Prof. Camilo de Lelis, teólogo. Dep. de Ciências da Religião – PUC Minas Vamos desenvolver uma re-flexão a partir da importância das categorias de interpretação do fenômeno religioso. São categorias próprias que precisam ser entendidas no seu contexto cultural e religioso. I Símbolo Tales e Marcos nasceram na mesma região da Grécia. A infância em comum os uniu de forma profunda. Aos 15 anos Marcos é convocado para a guerra em uma terra distante, enquanto que Tales deve partir para uma escola de Atenas. Na despedida os dois pegam um medalhão de argila trabalhada e o quebram ao meio ficando cada um com uma parte. Assim, 20 ou mais anos depois eles poderão se reconhecer pela justa posição das duas partes do medalhão, uma vez que estarão bem diferentes para se reconhecerem. Esta história o que era o símbolo no tempo antigo. Etimologicamente a palavra símbolo vem do grego sym-ballo e remete a algo que une. Diferentemente de símbolo temos a palavra diabo (dya-ballo) que é justamente o que divide e separa. Assim o símbolo é uma das categorias mais antigas de interpretação do fenômeno religioso. É também uma categoria muito presente em nossa vida. Se olharmos atentamente podemos perceber que nossa vida é permeada por símbolos. Uma simples caneta pode ser um forte símbolo recebido de uma pessoa amada. Aquela pequena medalha recebida Título: Categorias Autor: Camilo de Lelis Oliveira Santos Ribeiro PUC Minas Virtual • 2 da mãe, uma carta envelhecida de um avô, uma pracinha naquela pequena cidade que se tornou o ponto de encontro dos amigos ou até mesmo uma pessoa especial podem se tornar símbolos marcantes em nossa vida. Assim como uma caneta lembra, e até trás a presença, de uma pessoa, o símbolo religioso remete ao mistério e faz uma ponte com o próprio Deus. As ciências humanas já perceberam que o ser humano é um animal simbólico. Podemos perceber grandes sistemas simbólicos que marcam presença na história da humanidade. Destacamos quatro destes: • Linguagem A linguagem, principalmente lírica e poética, é um destes grandes sistemas simbólicos. A poesia, por exemplo, consegue dizer aquilo que uma boa explicação racional não consegue dizer. Adélia Prado para expressar a sede humana do infinito e da felicidade disse: “Para meus desejos o oceano é uma gota!”. Da mesma forma a expressão de um apaixonado ao dizer: “eu te amo!” não é tão forte, expressiva e simbólica se ele dissesse a sua amada: “Você não nasceu para mim, você nasceu em mim!”. Nestes casos as palavras se tornam pontes para expressar e acessar o mais profundo dos sentimentos. • A experiência de amor O segundo sistema simbólico é a experiência de amor nas suas mais variadas expressões. Todo amor pede símbolos, seja o amor da amizade, o amor a dois, o amor de mãe e até mesmo o amor por uma causa. Assim o filho que não tem palavras (e às vezes coragem) para dizer que ama sua mãe, lhe oferece uma rosa bonita e perfumada. O gesto de dar a rosa consegue expressar a rica experiência de amor do filho e não impedem as lágrimas daquela mãe feliz. Quanto mais forte a experiência de amor tanto mais simbólica ela será. • A transubstanciação do real na arte Um outro sistema simbólico é a arte. Quando um artista pega um bloco de pedra e trabalha por um longo período, consegue fazer dele uma obra de arte e deixar muitas pessoas encantadas e “viajando” diante de tanta beleza. O real (bloco de madeira) ganha um novo sentido e significado, ou seja, é transubstanciado remetendo seus observadores a outra realidade. Assim toda obra de arte vai re-significar a substância trabalhada e torná-la um símbolo. • O religioso Por fim, temos o quarto e último grande sistema simbólico que é o próprio sistema religioso. O simbólico tem papel fundamental na experiência religiosa, uma vez que esta lida com o mistério, com o transcendente, com aquele que não cabe na razão humana e não se esgota nunca. Então, é impossível uma religião dizer algo de Deus ou se dizer sem o símbolo! Podemos concluir que toda religião é na verdade um forte sistema simbólico que tenta dizer o indizível através do símbolo. Destes quatros sistemas simbólicos mencionados o religioso é o mais forte e expressivo, uma vez que ele além dele ser simbólico em si mesmo, usa dos outros três sistemas. Assim, o religioso usa muito da arte, da experiência de amor e da linguagem. PUC Minas Virtual • 3 Características do Símbolo Depois de percebermos que o ser humano é um animal simbólico vamos caracterizar o símbolo religioso e depois elaborarmos uma definição clara e objetiva. Entre várias, destacamos aqui dez características do símbolo: 1º O símbolo è pré-hermenêutico Isso significa que todo símbolo precisa ser interpretado, senão não pode ser entendido. Hermenêutica é a interpretação de um texto, é o símbolo não é ainda um texto. É um objeto, uma pessoa, algo que é carregado de significado, e por isso precisa ser “retirado” dali o seu significado pela palavra e interpretação. Assim, o símbolo é uma representação de uma ausência que, ao ser interpretado, seu sentido emerge e aponta para o mistério tornando-o acessível. O sinal (signo) é diferente de símbolo e não precisa ser interpretado. Quando vemos um sinal + ou uma → não precisamos interpretá-la pois ele é explicito e objetivo. Exemplo: a cruz pode ser apenas um sinal, ou seja, uma cruz fixada em um templo é sinal de que o mesmo é cristão (e não budista, ou judeu). Este sinal da cruz todo mundo entende, não precisa de uma hermenêutica (interpretação). Mas a cruz pode ser também um símbolo, e para entendê-lo precisamos interpretá-lo. Nem todo mundo entende o simbolismo da cruz uma vez que seu sentido não é dado explicitamente como no sinal. 2º O símbolo é insubstituível pelo logos O símbolo fornece um sentido para a realidade e para a religião que a razão pura não daria conta de fornecer. Não podemos pensar, por exemplo, que o símbolo era importante só no tempo antigo e que hoje, devido aos avanços da linguagem e da técnica, não há mais necessidade do símbolo. Uma boa explicação racional não dispensa e nem substitui o papel do símbolo na experiência religiosa. Sem eliminar ou desfazer da linguagem racional, o símbolo tem um papel importante e determinante no cotidiano de todas as religiões por que ele remete para o mistério, o inexplicável. Quando tudo já está explicado, já está claro, já não há símbolo. Por isso, para citar um exemplo, não há símbolos na explicação do processo de vaporização da água, pois este é claro e sem mistérios. PUC Minas Virtual • 4 3º O símbolo é mediador de transcendência O papel do símbolo é de mediação, ou seja, ele se coloca entre a pessoae o mistério último que chamamos de Deus. Quando observamos um eclipse solar ou pegamos uma fôrma quente de pizza no forno usamos uma lente escura e uma luva, respectivamente, como mediação necessária. Assim é o símbolo. Por que a mediação do símbolo é necessária? Por que não posso acessar Deus de forma direta? As experiências milenares das religiões e dos místicos revelam um Deus grande demais, um mistério profundo que não pode ser encarado. Esta experiência mostra um Deus que é inominável, invisível, irrastreável, inobjetivável, inesgotável, etc. Em outras palavras Deus é o insuportável, ou seja, não pode ser suportado diretamente pelo ser humano. Deus é tanta beleza, tanta luz, tanto amor, tanta bondade e felicidade, que de uma “dose só” nós não suportaríamos. Pode-se encarar o sol de frente sem queimar os olhos? Então, ao se mostrar, Deus se limita. Ao revestirmos um objeto ou pessoa de simbolismo fica possível ao ser humano se comunicar com o mistério, com aquele que é o Absoluto. Para fazer uma analogia, podemos dizer que o símbolo é como a lente de um binóculo ou microscópio que permite ver o que sem ela não se vê. Sem a simbologia a experiência religiosa ficaria enfraquecida na sua recepção e comunicação. Aqui fica claro o papel da imagem na experiência religiosa. A imagem religiosa (seja uma estátua, uma pintura, uma fotografia, um líder religioso ou até mesmo a bíblia) é um símbolo na medida que nos une com o mistério. Caso contrário se torna um ídolo (até a Bíblia). Rever os conceitos de “imagem” e “ídolo” no texto da unidade I. Assim, toda religião e experiência mística precisarão da mediação do símbolo. Até mesmo para comunicar uma experiência religiosa o símbolo tem papel fundamental. Símbolo é mediador! 4º O símbolo é re-velador das dimensões da alma O símbolo ajuda a des-velar a interioridade humana. Ajuda a dizer toda a riqueza e o mistério da psique humana que é carregada de desejos, sonhos, anseios, emoções, sensações e experiência profundas. Quando tiramos fotografias e mandamos um filme, não digital, para a revelação, é porque sozinhos não conseguimos “trazer” aquelas imagens, que já estão ali, para “fora”. O símbolo é como os produtos químicos da revelação fotográfica. Ajudam a dizer, a explicitar o que está no mais secreto de nós mesmos. Nos ajuda a entender as experiências religiosas que acontecem na interioridade humana. Para melhor entendermos isso vamos lembrar uma expressão do grande fenomenólogo Paul Ricoeur: “O símbolo dá em transparência... tão claro e profundo que expressa a vivência humana e sua história.” Assim percebemos que o símbolo tem como função natural revelar, externalizar toda a realidade. 5º O símbolo tem função social e relacional PUC Minas Virtual • 5 O símbolo é gerador de vínculo e pode aproximar pessoas e grupos. Muitas pessoas se reúnem em torno de um símbolo e se identificam com os que usam o mesmo símbolo. Um exemplo bem próximo de nós é a Bíblia. Ela é um símbolo que tem forte função social e relacional. A comunicação mais profunda entre pessoas vai necessitar de símbolos para ajudar nas inter-relações. O símbolo nos solidariza com o cosmos, os outros e o mistério. Ele nos liga com toda a realidade humana e tem a capacidade de agregar pessoas socialmente e fortalecer suas inter-relações. Nas religiões os símbolos exercem este papel com muita clareza e eficiência, uma vez que seus “devotos” são muitas vezes identificados por eles. 6º O símbolo “diz sempre mais do que diz” O símbolo não se esgota e vai além dele mesmo. Isso por que ele é a linguagem do profundo, da intuição, dos sonhos, do amor, da experiência religiosa, etc. Para entendermos o “diz sempre mais do que diz” vamos imaginar uma pessoa que ao tentar ajudar alguém ou a um grupo, percebe que sua ajuda foi além do que imaginava. No símbolo, ao ser interpretado, ele consegue diz muito mais do que “ele tem”, ele expressa tanto que supera sua própria estrutura física e cultural. Assim, a primeira vista parece que o símbolo diz muito pouco, mas logo se percebe que ele é uma janela que consegue mostrar um grande horizonte (horizonte este que é maior que a própria janela). 7º O símbolo é polissêmico Existe no símbolo uma polissemia de sentido, ou seja um mesmo símbolo pode ter diferentes significados dentro de um mesmo grupo ou em diferentes culturas. Assim como as formas de se “experimentar a Deus” são muitas, as formas simbólicas de sua representação são também múltiplas. Podemos tomar como exemplo o fogo. Em todas as culturas o símbolo do fogo está ligado às manifestações de Deus ou às suas invocações. O fogo pode expressar várias interpretações: Destrói, purifica, transforma, aquece, ilumina, etc. Na experiência religiosa Deus é o fogo que “destrói” o mal, “purifica” da culpa e do erro, “transforma” pela conversão e humanização, “aquece” pela sua presença, esperança e promessas de plenitude, e “ilumina” com sua palavra e sabedoria. Desta forma o mesmo símbolo respeita e não enquadra todas as religiões em uma uniformidade. PUC Minas Virtual • 6 8º O símbolo é universal Existem símbolos que possuem o mesmo significado em diversas culturas e religiões. Até mesmo entre culturas que nunca se encontraram ou que eram separadas por grandes oceanos. Assim, percebemos que a maioria dos símbolos são patrimônios da humanidade e participam da mesma interpretação histórica. A universalidade do símbolo fica cada vez mais nítida com os estudos das ciências humanas e as pesquisas de campo ligadas às diversas culturas. Esta universalidade do símbolo é muito importante na nossa sociedade pós- Moderna e globalizada, uma vez que a tolerância religiosa e o ecumenismo se tornam cada vez mais necessários. O símbolo pode ser um primeiro passo para o diálogo inter-religioso e para a paz religiosa no mundo. 9º O símbolo não é inventado No geral, o símbolo é símbolo, ou seja, não se conhece a sua origem. Existem espaços que são mais férteis e que favorecem mais o surgimento de símbolos. Um destes espaços é a manifestação de Deus na natureza e na história da humanidade. Todas essas experiências são geralmente muito ricas de símbolos e estão presentes desde a pré-História. Os sonhos, que expressam muito a interioridade humana, são também espaços “geradores de símbolos”. Não é sem razão que os sonhos estão quase sempre presentes nas manifestações de Deus com os homens. Interessante também é lembrarmos da psicologia junguiana que sempre interpretou os sonhos como símbolos da psique humana. Assim, os símbolos emergem de realidades profundas se tornam norteadores da realidade. 10º O símbolo pode ser extinto A morte do símbolo pode acontecer por processos de racionalização, a saber: a) pelo conceitualismo do século XIX que quer reduzir toda a realidade a verdades verificáveis. Não há espaço para verdades metafísicas e poéticas. Aqui o símbolo se torna apenas um enfeite, uma decoração supérflua e desnecessária; b) pelo dogmatismo que tenta reduzir toda a riqueza e abertura do símbolo traduzindo-o em uma linguagem fixa e racional. É uma tentativa esgotar e enquadrar o símbolo numa fórmula mecânica e definitiva. c) pela psicanálise que iguala o símbolo a um sinal de causa e efeito. Essa tendência “freudiana” reduz tudo a uma sexualidade insatisfeita. PUC Minas Virtual • 7 Assim, o simbolizante se iguala ao simbolizado, fazendo do símbolo apenas o sintoma direto de alguma coisa.D) finalmente, por uma leitura historicista da bíblia que retira toda a riqueza dos símbolos. De uma leitura “ao pé da letra” resta uma “reportagem” difícil de ser atualizada para hoje ou a conversão do símbolo em apenas uma “fábula interessante. O mesmo vale para qualquer texto religioso. Terminada as características já é hora de elaborarmos uma definição mais concisa de símbolo. O símbolo remete a algo desconhecido em si, mas que se faz presente em algo visível e material, onde é capitado por um claro-escuro (lusco-fusco), afastando assim toda pretensão humana de se apossar do mistério. O claro-escuro revela que ao mesmo tempo que o símbolo remete a uma “presença forte”, essa presença não se confunde com o próprio Deus. Se segurarmos o símbolo, não estamos com isso aprisionando Deus em nossas mãos. Com essa definição terminamos a primeira categoria de interpretação do fenômeno religioso: o símbolo. A segunda categoria, tão antiga como este, é o Mito. II Mito “No tempo em que o Senhor Deus fez a terra e os céus, não existia ainda sobre a terra nenhum arbusto nos campos, e nenhuma erva havia ainda brotado nos campos, porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, nem havia homem que a cultivasse; mas subia da terra um vapor que regava toda a sua superfície. O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado. O Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal... O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ’Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente’.” (Gn 2,4b-9,15-17, segunda narrativa do mito judaico da criação). Mito vem da raiz “mythos” e remete a expressão lembrar, pnsar ou expressar verdades. Na verdade a linguagem clássica do século XIX definiu mito da seguinte maneira: � mito é aquilo que não se deixa integrar à realidade; PUC Minas Virtual • 8 � mito é o que não é real; � mito é uma linguagem rústica, antiga e inferior à linguagem moderna que é mais clara e mais sistematizada; � mito é o que não é verdade; � mito é comparado a uma fábula ou folclore. É claro que esta afirmação do século XIX está errada! Isso é para percebermos o que não é mito. Essa linguagem moderna e positivista segue o racionalismo e reduz toda narrativa mítica a “histórias de carochinha”. Para melhor entendermos o que é o mito é preciso localizar seu papel e suas características dentro do universo religioso. Se o símbolo é um objeto, pessoa, lugar ou astro, o que seria então um mito? O mito é um texto e sua índole é narrativa. Geralmente ele é contado e recontado e emerge da grande tradição oral da humanidade. Características do Mito Destacamos então algumas das características do mito: 1º O mito è também pré-hermenêutico O mito precisa ser interpretado de acordo com sua cultura, sua época, sua forma, sua inculturação e importância para tal grupo. Sozinho, sem interpretação, o mito pode ser reduzido a apenas uma história (lenda ou fábula) que tem uma “lição de moral”. 2º O mito, na sua interpretação,deve ser considerado em dois aspectos: linguagem e símbolo O primeiro aspecto é a complexidade e problemática da linguagem. Texto vem de “tecido”, ou seja, é um conjunto de palavras costuradas de tal forma que ganha um gênero literário próprio. Ao observarmos um texto percebemos que ele não é “somente um texto” (todo texto já chega grávido). Um texto tem também um pré-texto e um pós-texto. E não é só isso, pois a interpretação vai considerar também a presença de um contexto, intra-texto, sub-texto, extra-texto, inter-texto, meta-texto e até mesmo um não-texto. Assim, sem entrar em detalhes, podemos perceber a complexidade de um texto e uma narrativa. PUC Minas Virtual • 9 Um segundo aspecto é a riqueza dos símbolos. Se não entendermos o que é um símbolo e seu significado, vamos também ter dificuldade de interpretar o mito, uma vez que este é carregado de simbologia. Portanto, uma boa interpretação do mito depende destes dois aspectos: complexidade da linguagem e riqueza dos símbolos. 3º O mito deve ser entendido na sua própria forma O mito deve ser interpretado na sua forma antropológica e existencial e não na sua forma cronológica. O essencial da mensagem do mito é expressar algo sobre o ser humano (antropológico) e sobre a existência (existencial). Não importa no mito saber quando ele surgiu e se os personagens existiram ou não. Então, todo mito religioso vai estar falando profundamente sobre o sentido da vida humana e sua verdade não depende da existência ou não dos personagens. 4º O mito é uma forma de expressar a verdade O mito é um jeito de dizer uma ou mais verdades de modo narrativo e simbólico. Quando o mito quer dizer uma verdade ele conta uma história. É assim que muitos se assustam (o termo é este mesmo) quando falamos que o texto da narrativa da criação no Gênesis é mítico. Logo perguntam? “então aquilo não e verdade?” “Adão e Eva existiram ou não”! Este tipo de pergunta não deve ser feito. O texto fala de uma verdade, mas se aconteceu aquilo ou não é outra história. 5º O mito tem moldes profundos O mito, a primeira vista, parece uma pequena historinha. Podemos imaginar que o mito é uma pequena flor em um vaso. Podemos imaginar que a flor seja a história. O que não percebemos é que esta flor está plantada em um vaso profundo, seus moldes são densos e de grande extensão. As raízes de um mito bebem em diversas culturas e região. Por isso não devemos subestimar essas histórias ou reduzi-las a lendas culturais. 6º O mito é expressão da humanidade O mito é expressão do “inconsciente coletivo” e dos “arquétipos”. Inconsciente coletivo é a prodigiosa herança da evolução do gênero humano, PUC Minas Virtual • 10 que renasce em cada estrutura individual. Já os arquétipos são centros energéticos do inconsciente coletivo. É assim que o mito consegue expressar tão bem sobre o ser humano e conduzi-lo à sua própria história. O mito se mostra como testemunha simbólica de uma realidade ontológica que inacessível à expressão lógica. Para isso o mito explora a realidade de forma plástica e dramática sem recorrer a uma dialética racional e filosófica. São histórias que dão conta de dizer o mais profundo e originário da humanidade. A partir dessas 6 características já podemos delinear uma definição de mito considerando sua relação intrínseca com o símbolo. O mito é um relato de um acontecimento originário, no qual deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa. Assim, percebemos que todo mito é um relato, que fala das origens, onde o protagonista é sempre deus e fala de uma realidade importante. Estes quatro elementos ajudam a definir o que é um mito. Não existe, por exemplo, mito sobre assuntos banais e que não tem importância para a humanidade. Existem vários tipos de mitos, como porexemplo, mitos trágicos, mitos da criação, mitos de purificação, etc. Mito e símbolo caminham muitas vezes juntos e se ajudam a dar sentido à realidade. A partir do símbolo e do mito podemos falar do rito, como nossa terceira categoria. III Rito “Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse, então: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai falou aos servos: Trazei-me depressa a melhor veste e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também um novilho gordo e matai-o; comamos e façamos uma festa. Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado. E começaram a festa.” (Lc 15, 20 -14.). Mito vem do latim ritusritusritusritus e está ligado ao ato de celebrar, dançar e louvar. Existem ritos civis que se estruturam para a festa ou para a celebração de datas ou pessoas. O rito é uma ação organizada para celebrar, de forma múltipla, as crenças, mitos e experiências de um povo religioso. Podemos entender a importância do rito quando pensamos na força da linguagem gestual e não verbal. Sabemos que o impacto da linguagem verbal é muito pequena. A linguagem gestual e visual é muito mais expressiva. Existem expressões, sentimentos, anseios e orações que só podem ser expressas pelos gestos, pela dança, pelo canto e posturas. PUC Minas Virtual • 11 Características do Rito Três características são importantes para o rito, tanto religiosos como civil: 1º O rito supõe um espaço O rito para ser realizado precisa de um espaço delimitado para tal. Geralmente é um templo ou um lugar constituído para tal. O espaço é preparado e estruturado para facilitar a celebração com suas motivações próprias. Quando o espaço é delimitado ele se torna sagrado, e portanto um símbolo. 2º O rito supõe um mediador O rito como uma celebração rica de conteúdos e movimentos, necessita de um ou mais mediadores. Geralmente as celebrações contam com líderes e uma grande organização interna. Quanto mais complexo é o rito, mais complexa é sua liderança. Junte-se a isso o tempo de duração, o número de participantes, o local escolhido e o horário da celebração ritual. Aqui fica claro a necessidade de mediações nos ritos religiosos. 3º O rito supõe uma doutrina A celebração ritual não elimina o lugar da doutrina, entendida na sua expressão latina doceo (ensinar), como elemento norteador e qualificador da festa religiosa. A doutrina é o corpus de normas que vão ajudar no andamento da celebração. Ela é na verdade a Revelação de Deus explicada, aprofundada e sistematizada. Junto com o corpus temos a tradição, que é a releitura e atualização da mensagem religiosa. Ao falarmos da doutrina não podemos deixar de associar a presença forte, na celebração, dos mitos e dos símbolos religiosos. Os objetos, vestes, pessoas, lugares mostram a presença dos símbolos. O mito se faz presente pela leitura de textos sagrados e explicações religiosas durante a celebração. Portanto o rito é a expressão gestual da fé religiosa que integra em seu corpus celebrante o mito e o símbolo. PUC Minas Virtual • 12 IV A Práxis “De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma. Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem.” (Tg 2, 14 -19.) Práxis, do grego praksispraksispraksispraksis, é uma expressão que não se reduz a uma prática. Práxis é uma ação consciente, um agir maduro e integrado. A práxis religiosa é muito importante por que coloca a religião na realidade e no meio do povo. É quando a fé “arregaça as mangas” e vai à luta para transformar o mundo e lutar pela justiça. É a ocupação da religião e do fiel com as questões humanas, sociais, políticas e de misericórdia. Nesse momento a religião se pergunta pelas questões éticas e pela sua missão no mundo. O texto bíblico diz que Jesus Cristo passou sua vida fazendo o bem, ou seja em uma ação práxica. Se a religião não desenvolve essa práxis ela fica muito platônica e distante das grandes questões que afetam a humanidade. Quando um grupo religioso se fecha em si mesmo se torna uma seita, uma espécie de “gueto” religioso que leva a alienação e fuga do mundo. Essa foi a grande crítica que o sociólogo K. Marx fez a religião de sua época. A expressão práxica da fé é muito importante e pode usar do mito e do símbolo no seu processo de luta e transformação, bem com o rito e sua riqueza celebrativa. V A razão “E dos filhos de Issacar, destros na ciência dos tempos, e aptos para saberem o que Israel devia fazer…» (I Crónicas 12:32) A razão é expressão da inteligência humana e das capacidades que Deus nos deu. Razão vem do latim ratioratioratioratio e remete às capacidades racionais e objetivas do conhecimento humano. Nesta quinta e última categoria de interpretação do PUC Minas Virtual • 13 fenômeno religioso nos deparamos com a questão da consciência crítica. Perceberemos aqui a importância da reflexão para a fé e para as religiões. A experiência judeu-cristã sempre valorizou o estudo e o entendimento dos textos sagrados e das experiências. O divórcio entre a fé e a razão não se sustenta mais numa época de pós- Modernidade. Esse divórcio, que chegou ao ateísmo absoluto com Marx, Freud, Nietzsche e outros, estava baseado no paradigma mecanicista de Descartes, Newton e Galileu no período moderno. Hoje, a partir da teoria da relatividade de Einstein e da física quântica de N. Bohr, a ciência não sustenta mais esse dualismo. Fé e ciência são dois campos distintos e não podem ser confundidos. Cada um tem seu método próprio e devem ser respeitados. Mas não precisam ser inimigas, podem caminhar na mesma direção e até mesmo se ajudarem. O estudo, a teologia e a reflexão são instrumentos legítimos de conhecimento de Deus e entendimento de sua vontade. Este estudo não tem a pretensão de esgotar Deus ou decifrá-lo. Mas sem elas nós caímos no fideismo, que é uma fé bobinha, ingênua e sem plausibilidade. Com posturas de fé como essas muitas pessoas são enganadas e manipuladas. Acreditam cegamente no líder e esperam uma ação mágica de Deus. Por que Deus nos deu Bilhões de neurônios? Por que nos capacitou? Deus não é a inteligência plena? A sabedoria do universo? Uma conclusão final • Ao final dessa reflexão nos deparamos com cinco categorias de interpretação do fenômeno religioso. São elas que “dão conta” de interpretar a mais profunda experiência que o ser humano pode fazer, ou seja, a experiência com Deus. As cinco categorias estão inter-ligadas e são a base de equilíbrio de uma fé adulta, de uma religião madura e séria. O desequilibro está muitas vezes nestas questões internas que fazem parte da estrutura de uma religião. Símbolo, mito, rito, práxise razão: pilastras que sustentam a complexidade, fragilidade e riqueza de uma religião. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. 284p. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Rio de Janeiro, Zahar, 1965. 119 p. LIBÂNIO, João B., BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. PAULUS, J. A. A Função simbólica da linguagem. São Paulo: EDUSP, 1975. PUC Minas Virtual • 14 RIBEIRO, Camilo de Lelis O. S. Jesus Cristo: quem é este homem?. Revista O Paráclito, Dracena-SP: Ed. J. Gráfica, 2002. RICOEUR, Paul. Hermenêutica y estruturalismo. Buenos Aires: La Aurora, 1975. STEPHANO, R. NOVUM TESTAMENTUM: textus graecus. Paris: Ed. Ambrosio Firmin Didot, 1863. TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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