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Interpretação e argumentação Anizio Pires Gavião Filho. Mestre em Direito – UFRGS. Doutor em Direito – UFRGS. Professor de Teoria da Argumentação Jurídica e Hermenêutica Jurídica da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP. Procurador de Justiça, RS. Sumário Introdução. 1. Interpretação. 2. Metódica da interpretação? 3. Interpretação e argumentação. Conclusão Resumo Interpretar é atribuir significado. Na interpretação jurídica, o intérprete atribui significado aos símbolos gráficos linguísticos dados nas disposições jurídicas dos textos jurídicos normativos. A norma jurídica é já o texto jurídico interpretado. Interpretação é também aplicação. Interpretação é criação, mas não liberada de critérios. Esses critérios são os argumentos interpretativos. Interpretação e argumentação estão unidas. O significado atribuído ao texto jurídico normativo deve se achar justificado no âmbito de uma argumentação racional. Abstract Interpretation is giving meaning. In legal interpretation the meaning of linguistic simbols is given by interpret. The legal statement is already interpretation. Interpretation is also law application. Interpretation é criacion, but not free from criterea. They are interpretation arguments. Interpretation and legal reasoning work toghether. The meaning given to the text muss to be justified in the field of legal reasoning. Palavras-chave Interpretação jurídica. Argumentação. Hermenêutica. Aplicação do Direito. Raciocínio jurídico. Justificação. Norma. Conceito semântico. Metódica. Critérios de interpretação. Teoria objetiva e teoria subjetiva. Argumentos interpretativos. Interpretação como argumentação. 2 Introdução As mais recentes discussões em torno da aplicação do Direito colocam no centro do debate as questões sobre como devem ser interpretados os textos jurídicos normativos dados, preponderantemente, por intermédio de um corpo legislativo democraticamente escolhido pelo povo, uma vez considerado o Direito da família romano-germânica. Essa questão pode ser analisada sobre diversas áreas, extensões e profundidades. O que é interpretação? A interpretação jurídica é diferente da interpretação literária, da interpretação bíblica ou interpretação de um quadro de El Greco? Qual é a diferença entre a interpretação jurídica de um juiz e a interpretação jurídica de um cientista do Direito? E a interpretação dos textos jurídicos dados na legislação infraconstitucional é diferente da interpretação dos textos jurídicos dados na Constituição? Além dessas questões, podem ser colocadas outras sobre como se dá a interpretação mesma. Existem critérios, regras ou exigências que devem ser seguidas na atividade interpretativa ou o intérprete é livre para atribuir ao texto jurídico normativo o significado ou a unidade de sentido que lhe parecer adequada ou correta? Existem regras para a interpretação jurídica e, se isso, como elas podem ser justificadas? E, na aplicação do Direito, o que conta realmente? O texto jurídico normativo dado importa realmente para a solução dos casos ou o que decisivamente conta é o caso concreto tomado, conforme a avaliação razoável e prudencial dos juízes? Uma determinada interpretação de um texto jurídico normativo pode ser analisada sob o ponto de vista de sua justificação ou fundamentação? Qual é a relação que pode ser estabelecida entre interpretação e argumentação? Além dessas questões, muitas outras podem ser formuladas, o que deixa clara a sempre atualidade das discussões em torno da interpretação e aplicação do Direito. A análise adiante, assim justificada, pretende analisar uma parte dessas questões, fornecendo algumas alternativas à discussão crítica da interpretação jurídica. Em primeiro lugar, propõe-se justificar uma determinada concepção da interpretação. Interpretar é atribuir significado ou unidade sentido a símbolos. Interpretar é também conhecer, interpretar e aplicar simultaneamente. Interpretar um texto literário ou jurídico é atribuir-lhe significado ou unidade de sentido conforme as funções da linguagem. Elas se referem às regras sobre as relações entre as palavras, os significados das palavras conforme elas são usadas e as relações entre as palavras e quem as emprega. Assim, a interpretação jurídica é a atividade por intermédio da qual o intérprete atribui significado ou unidade de sentido ao conjunto de signos linguísticos dados nos textos jurídicos normativos. Desse modo, o texto jurídico normativo é apenas um conjunto de signos linguísticos. As normas jurídicas existem apenas como textos jurídicos normativos já interpretados. Por isso mesmo, um texto jurídico normativo e a norma jurídica que se lhe pode formular não é um objeto pronto e definitivo para sempre. Uma norma jurídica é sempre já concretização de um texto jurídico normativo. Em segundo lugar, pretende-se justificar que essa atividade de atribuição de sentido a um texto jurídico normativo, então entendido como um conjunto de símbolos linguísticos, não é subjetiva, arbitrária e livre de exigências ou de critérios. A atribuição de significado ou de unidade de sentido a um quadro de El Greco requer que sejam observados os critérios mais ou menos universais sobre a interpretação das obras do pintor, considerando-se os elementos do contexto histórico político, social e cultural da sua época. Um intérprete artístico não está autorizado a atribuir ao quadro Enterro do Conde de Orgaz1 os significados que bem entender, 1 Um dos quadros mais célebres de El Greco, que se acha exposto na Igreja de São Tomé, na cidade de Toledo, Espanha. Para uma boa aproximação entre interpretação, literatura e arte, conferir RAZ, Joseph. Between authority 3 conforme sua avaliação discricionária e subjetiva. Assim, também, quanto à interpretação dos textos jurídicos. Cânones, diretrizes, guias, critérios, exigências, regras, pouco importa a designação, a atividade de atribuição de significado ou de unidade de sentido aos textos jurídicos, muito especialmente na atividade de aplicação desses textos jurídicos para a solução de casos concretos pelos juízes, deve observar parâmetros mais ou menos universais, amplamente aceitos, pois somente com isso fica assegurada a sua objetividade e racionalidade. Em terceiro lugar, propõe-se justificar a proposição de que interpretação jurídica e argumentação jurídica estão unidas. A interpretação e aplicação das normas jurídicas é uma atividade argumentativa. Se o intérprete não é livre para atribuir ao texto jurídico o significado ou a unidade de sentido que bem lhe aprouver, o significado ou a unidade de sentido atribuída deve ser fundamentado por intermédio de razões. Os argumentos interpretativos formulados a partir dos cânones da hermenêutica jurídica clássica e dos círculos hermenêuticos são razões que jogam a favor ou contra os significados possíveis que os símbolos linguísticos autorizam formular. Com isso, fica reduzido o espaço da subjetividade e da arbitrariedade na atribuição de significado ou unidade de sentido aos textos jurídicos normativos. and interpretation. Oxford: Oxford University Press, 2009, p.246-254, bem como DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,2000, p. 217-249. 4 1. Interpretação O que é interpretação? A interpretação jurídica é diferente da interpretação literária, da interpretação bíblica ou da interpretação de um quadro de El Greco? Qual é a diferença entre a interpretação jurídica de um juiz e a interpretação jurídica de um cientista do Direito? E a interpretação dos textos jurídicos normativos dados na legislação infraconstitucional é diferente da interpretação dos textos jurídicos dados na Constituição? Existem várias concepções de interpretação, conforme revelam os estudos da hermenêutica filosófica2. Por isso, a pergunta sobre o que é interpretação somente pode ser respondida parcialmente, conforme a extensão do interesse de investigação do intérprete. Assim, então, interpretação pode ser tomada em sentido mais amplo possível3. Nesse sentido, tudo o que é do mundo objetivo e do mundo social a que se pode atribuir um sentido ou significado pode ser interpretado. Uma pedra pode ser interpretada tanto quanto um conjunto de pedras. Um conjunto de pedras pode constituir uma obra de arte, que pode ser interpretada. Uma fotografia pode ser interpretada, assim como um quadro ou uma cena em um teatro ou em um filme. Um conjunto formado por milhares de pessoas caminhando pelas ruas de uma cidade pode ser designado como passeata, expressão cujo sentido ou significado pode ser o de uma manifestação cultural ou uma manifestação política, religiosa ou social. Um sistema de práticas culturais e sociais pode ser interpretado. Os hábitos de uma comunidade indígena desconhecida da civilização ocidental podem ser interpretados e compreendidos. O seu sistema de normas comportamentais e rituais também pode ser interpretado e compreendido. Assim, interpretação leva ao conhecimento e à verdade sobre tudo o que homem pode atribuir um sentido ou um significado. Então, também as ciências naturais são interpretadas e conhecidas. A prova da verdade das formulações das ciências naturais vai depender, antes, da interpretação e da compreensão. Um sentido ou significado deverá ser atribuído a um signo relevante qualquer. O desenho de um ovo em uma folha de papel, o desenho de um número em uma pedra, o desenho de uma flecha em uma pedra, o desenho de um conjunto de números em um quadro, o desenho de um conjunto de símbolos ou gráficos. Cuida-se de interpretação, compreensão e conhecimento do mundo. Em um sentido menos amplo que esse, mas igualmente amplo, tem-se a interpretação que se ocupa de apenas uma parte do mundo. É a interpretação em sentido amplo, que é um subcaso da interpretação no sentido mais amplo possível. Aqui, o interesse está mundo das manifestações dos idiomas dos homens. Ela diz respeito a entender não todas as coisas do mundo, mas apenas as manifestações idiomáticas. Nas ciências humanas, cuida-se de interpretar e compreender os textos, como os religiosos, os históricos, os literários ou os jornalísticos. A interpretação jurídica é deste tipo, pois se ocupa dos textos jurídicos. Os textos jurídicos podem ser os textos das fontes do Direito. As normas do sistema jurídico todo de um determinado ordenamento jurídico são textos jurídicos normativos. Mas também são textos jurídicos os textos dos atos e dos negócios jurídicos. Na atividade dos juízes e dos tribunais são 2 Cf. BLEICHER, Joseph. Hermenêutica contemporânea. Trad. Maria Segurado. Lisboa: Edições 70, 1980; RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2011; STELMACH, Jerzy; BROZEK, Bartosz. Methods of legal reasoning. Springer, 2006; PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad. Maria Luisa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, Ltda., 2011; GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. Trad. Marco Antonio Casanova. Petrópolis: Editora Vozes, 2009; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. 3 Cf. ALEXY, Robert. Interpretação jurídica. In: ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 61. 5 produzidos textos jurídicos. Outros participantes do sistema jurídico também produzem textos jurídicos. Também outros textos não originariamente jurídicos interessam para os juízes e tribunais. Interpretar um laudo pericial para determinar a trajetória do projétil no corpo da vítima ou as declarações de uma testemunha sobre o número de disparos desferidos pelo acusado. Esse é um caso de interpretação descritiva4, que interessa para o juiz enquanto aplicador do Direito, mas o objeto imediato da compreensão não é diretamente um texto jurídico. Em todos os casos de manifestações idiomáticas tem-se interpretação e compreensão. Mesmo nos casos em que não se tenha dúvida quanto ao sentido ou significado de uma manifestação idiomática, tem-se interpretação e compreensão. O aviso proibido fumar colocado na sala de um consultório médico é considerado uma manifestação idiomática de “entender imediato”5. Esse conjunto de signos não dispensa interpretação e compreensão. Somente uma pessoa que conhece a língua portuguesa e sabe que sentido atribuir ao conjunto de signos proibido e fumar poderá compreender o conjunto todo como uma norma que proíbe a conduta de fumar. É obrigatório não fumar. Com essa pré-compreensão, supõe-se que uma pessoa irá apagar o seu cigarro ou abster-se de fumar ao ver referidos signos afixados na parede da sala onde se encontra. Por isso, então, não se deve negar que também o “entender imediato” requer interpretação e compreensão. Mas um caso de “entender imediato” pode se transformar em caso de “entender mediato”. O caso do aviso proibido fumar cigarros na sala de um consultório não pode ser controvertido por alguém que deseje fumar charuto ou cachimbo? O caso do aviso proibido fumar cigarros, colocado na sala de um clube de apreciadores de charutos pode ser controvertido? O fumante de um cachimbo pode sustentar que no aviso tem-se a palavra cigarros e não cachimbos. Então, argumenta que a proibição se dirige aos fumantes de cigarro e não aos fumantes de cachimbo. Pode, inclusive, acrescentar que o cheiro da queima do tabaco de seu cachimbo tem um aroma perfumado e agradável. Por outro lado, o mesmo aviso, quando colocado na sala de um clube de apreciadores de charutos, pode muito bem ser interpretado diferente, se colocado na sala de um hospital. Com isso, quer se dizer que existem inúmeros casos em que as manifestações idiomáticas são indeterminadas, duvidosas ou controvertidas. Elas são tais que autorizam significados ou sentidos diferentes, às vezes, contrários. Nesses casos, a atividade do intérprete é extrair dos signos da manifestação idiomática os significados possíveis e também escolher um entre eles justificadamente. Nesse sentido, então, tem-se que a interpretação em sentido restrito6 se coloca nos casos em que uma manifestação idiomática admite várias interpretações e não há certeza sobre qual é a correta. É o caso quando o texto comporta mais de uma interpretação. A interpretação em sentido restrito é a que ocupa o lugar central na interpretação jurídica. A interpretação jurídica é um caso de interpretação em sentido restrito. Quem diz que nos casos de “entender imediato” (casos fáceis ou casos claros) das normas jurídicas não se trata de interpretação, erra porque não distingue os casos diferentes de interpretação. Onde quer que haja um texto jurídico, há interpretação, ainda que interpretação em sentido amplo. Onde quer que haja um texto jurídico que admite mais de um significado, há interpretação, no caso, em sentido restrito. Como isso, então, deve ficar claro que tanto em sentido amplo como em sentido restrito não hádistinção entre a interpretação de um texto literário, histórico ou religioso, por um lado, e por outro, interpretação de um texto jurídico científico ou de um texto jurídico normativo 4 Cf. GREENAWALT, Kent. Law and objectivity. New York-Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 74. 5 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 62. 6 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 62. 6 positivado em um ato institucional legislativo. A atividade hermenêutica do intérprete das escrituras sagradas ou dos registros históricos e a do intérprete de um texto jurídico são idênticas: atribuição de significado ou unidade de sentido aos textos, que nada mais são do que símbolos gráficos linguísticos dotados de significados ou sentidos para os homens e seu mundo. Não por outras razões, aliás, Schleiermacher e Betti propõem uma teoria geral da interpretação para as ciências humanas em geral7 e o próprio Gadamer diz que a atividade hermenêutica do historiador se identifica com a atividade hermenêutica do jurista, inclusive reconhecendo o caráter exemplar da última8. O caráter diferenciador que pode ser apontado entre a interpretação de um texto literário ou registro histórico e um texto jurídico não está na atividade hermenêutica, mas no texto mesmo. Evidentemente, um texto literário ou um texto religioso não é um texto jurídico. Nem todos os textos jurídicos são textos jurídicos normativos. Mesmo que se reconheça que os textos da dogmática têm caráter normativo – pois dão a conhecer o que em um sistema normativo está ordenado, proibido ou permitido, apenas alguns deles realmente contemplam essa característica. Muitos textos jurídicos da dogmática jurídica são meramente descritivos do sistema jurídico e, nesse caso, não apresentam caráter normativo. O que afirma o caráter diferenciador da interpretação jurídica não está na atividade em si de atribuir sentido ao texto, mas o que e por que alguém se propõe a interpretar um determinado texto. Isso está no caráter institucional da interpretação jurídica, que raramente se faz notar na interpretação literária, mas pode ser sentido mais claramente na interpretação dos textos religiosos ou dos textos históricos. O caráter institucional da interpretação jurídica aparece no que é interpretado e quem interpreta. A interpretação jurídica tem como objeto atos institucionais e como sujeito pessoas investidas de poder9. O caráter institucional pelo objeto está no fato de que o objeto da interpretação jurídica é a lei, aqui entendida como todos os atos normativos dados pelo legislador e também os atos normativos dados por outras autoridades institucionais autorizadas pelo legislador (regulamento, provimento, resolução). Caráter institucional porque a lei é produzida por atos institucionais do Poder Legislativo, especialmente nos casos dos ordenamentos jurídicos codificados do Direito romano-germânico. A lei configura o objeto primário da interpretação jurídica. Também constituem objeto da interpretação jurídica os precedentes da jurisprudência dos tribunais. No Direito anglo-saxônico a interpretação jurídica dos precedentes é central, pois se cuida de Direito predominantemente não legislado, onde a interpretação jurídica tem por objeto a ratio decidendi e a obter dicta dos precedentes10. O caráter institucional pelo sujeito se apresenta quando se trata de interpretação desenvolvida por órgão estatal que tem autoridade, dada pelo ordenamento jurídico, para determinar vinculativamente o sentido ou o significado do texto jurídico11. É o caso do legislador e o do juiz, que realizam a interpretação autêntica do texto jurídico normativo. A interpretação jurídica do legislador é autêntica porque foi ele próprio quem produziu o texto interpretado. A 7 Cf. BLEICHER, Hermenêutica contemporânea…, p. 27-28; SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E., Hermenêutica. Trad. Celso Reni Braida. 2 Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000; BETTI, Emíllio. Teoria generale della interpretazione. Milano: Giuffré, 1990; GADAMER, Verdade e método…, p. 288. 8 Cf. GADAMER, Verdade e método…, p. 482. 9 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica…, p. 63. 10 Cf. MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedente. In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents. Aldershot: Ashgate-Dartmouth, p. 503-517, 1997, p. 506-507. 11 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 63. 7 interpretação jurídica jurisdicional é autêntica porque o juiz ou o tribunal decide vinculativamente e com efeito prejudicial – outro está excluído – o sentido ou significado do texto jurídico normativo. Esse mesmo critério diferenciador vale para analisar a questão sobre a diferença entre a interpretação das disposições jurídicas constitucionais e a interpretação das disposições jurídicas infraconstitucionais12. Quanto à atividade hermenêutica de atribuição de significado ou unidade de sentido a textos jurídicos normativos, não há diferença entre a interpretação constitucional e a interpretação infraconstitucional. O caráter institucional igualmente não aponta traço diferenciador, pois se trata da interpretação de textos jurídicos normativos dados por quem se acha instituído de poder e da interpretação realizada por pessoas investidas de poder. Nos dois casos, está presente o caráter normativo da interpretação jurídica. No sistema jurídico brasileiro, a jurisdição ordinária também interpreta textos jurídicos normativos constitucionais no caso do controle difuso de constitucionalidade e a jurisdição constitucional também diz como devem ser interpretados os textos normativos infraconstitucionais por meio do que se costuma chamar de interpretação conforme a constituição – caso que o tribunal constitucional deixa de declarar a inconstitucionalidade (invalidade) de determinado texto jurídico normativo desde que esse texto seja interpretado no sentido que o tribunal lhe atribui. É possível argumentar que os textos jurídicos normativos constitucionais são diferentes dos dados nas disposições jurídicas infraconstitucionais, especialmente quanto ao grau de indeterminação normativa. Em uma boa parte da dogmática jurídica parece ser de aceitação bastante geral a formulação de que as disposições jurídicas constitucionais são princípios dados por meio de proposições normativas indeterminadas pela abertura semântica e valorativa. Aliás, não por outra razão, a Constituição Federal de 1988 apareceu designada como uma constituição de princípios ou principiológica. É certo que um bom número de disposições jurídicas autoriza formular princípios e que um traço diferenciador dos princípios é a indeterminação normativa. Se isso justifica se designar a Constituição Federal de 1988 como uma constituição princípios, então não erra quem a considera uma constituição principiológica. Contudo, dois aspectos devem ser destacados. O primeiro é que a Constituição Federal de 1988 não é uma constituição de princípios e sim também uma constituição de regras. As disposições jurídicas sobre as divisões de competência entre os poderes e todos os órgãos estatais dadas na Constituição Federal de 1988 são textos jurídicos que autorizam formular regras e não princípios. Na verdade, a Constituição Federal de 1988 tem tanto regras quanto princípios, mas é mais regulatória do que principiológica – trata-se de uma “Constituição de regras”13. O segundo é que a indeterminação normativa não é característica exclusiva dos princípios, mas das normas jurídicas. Os textos jurídicos normativos constitucionais e infraconstitucionais são escritos em linguagem natural e não em linguagem simbólica. Somente a última, como dizem os lógicos, seacha higienizada das imperfeições e confusões criadas pela linguagem natural. A indeterminação normativa decorrente da abertura semântica, da ambiguidade, da vagueza e da abertura valorativa é própria dos textos dados em linguagem natural corrente. Não são poucas as disposições jurídicas infraconstitucionais que apresentam expressões vagas, ambíguas, semântica 12 Cf. ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystifying legal reasoning. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 221. 13 Cf. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado. N. 17. Jan./Fev./Mar. 2009, p. 4. 8 e valorativamente abertas, mas autorizam formular apenas regras e não princípios. É dizer: são regras que apresentam a mesma indeterminação normativa dos princípios. O argumento de que interpretar é atribuir significado ou unidade sentido a símbolos e que, a partir disso, a interpretação jurídica é a atividade de atribuir significado aos símbolos linguísticos que autorizam formular juízos de dever jurídico, não implica assumir que o que é interpretado – os textos jurídicos dados – constitui um objeto pronto, acabado, definitivo e unívoco para sempre no mundo. Um texto jurídico normativo e a norma jurídica que se lhe pode formular não é um objeto pronto e definitivo para sempre. Nesse ponto, a contribuição da hermenêutica filosófica de Gadamer é decisiva ao tornar central o horizonte presente do intérprete e a sua pré-compreensão no momento do ato hermenêutico14. O texto jurídico pode ser o mesmo, mas se outro o momento hermenêutico, novos significados ou sentidos lhe podem ser atribuídos, conforme novas valorações culturais, sociais ou políticas – novo horizonte. Por isso mesmo, ato hermenêutico é também conhecer, interpretar e aplicar simultaneamente. A interpretação não é um ato posterior e complementar à compreensão de algo. Compreender é já interpretar e, por isso, interpretação é uma forma de compreensão de algo. Por outro lado, compreender é aqui sempre já aplicar. Deve-se reconhecer a aplicação como integrante de toda a compreensão. Desse modo, na compreensão sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete15. Essa associação entre o momento da interpretação e o da aplicação na interpretação jurídica, segundo Larenz, conduz ao risco da insegurança jurídica16. É que se o que diz o Direito é somente dado a conhecer no momento da sua aplicação, então se perde completamente a medida do que exatamente em um sistema jurídico normativo está autorizado, permitido ou proibido. A superação dessa crítica pode ser alcançada. Dizer-se que interpretação e aplicação estão unidas simultaneamente no ato hermenêutico não significa que em cada caso o intérprete está livre para atribuir ao texto jurídico normativo o significado ou a unidade de sentido que bem entender, completamente diferentes dos já antes, uma vez, dados. Se o texto é o mesmo e os casos são semelhantes em seus elementos essenciais, o princípio da universalizabilidade determina que se lhe deve atribuir o mesmo significado ou unidade de sentido. Se não for esse o caso, então, razões devem ser apresentadas. Elas podem dizer com a presença de novas valorações ou com a ausência de identidade entre os casos de aplicação do Direito. 2. Metódica da interpretação jurídica O que significa uma metódica da interpretação jurídica? Ao lado dessa questão, podem ser colocadas também outras. Qual é o sentido da palavra metódica? A interpretação de um texto jurídico normativo se deixa dar por meio de métodos? A interpretação jurídica não é uma atividade de pura criação do intérprete e, por isso, então, arte que não se sujeita a qualquer pretensão rigorosa da metodologia? A compreensão, a interpretação e a aplicação das ciências do espírito não são passíveis de verdade, pois não podem ser controladas e verificadas empiricamente e, portanto, não se deixam explicar pelos métodos, que são próprios da racionalidade teórica das ciências naturais? Enfim, como e por que fundamentar uma pretensão de alcançar método à interpretação jurídica? 14 Cf. GADAMER, Verdade e método…, p. 489. 15 Cf. GADAMER, Verdade e método…, p. 489. 16 Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3 Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 297. 9 O ponto de partida para responder essas questões pressupõe saber que sentido está atribuído à palavra metódica. Outra formulação simbólica poderia ser empregada em lugar de metódica, como é o caso da palavra método. Igualmente, a palavra metodologia. Escolheu-se a palavra metódica porque esse é o conjunto de símbolos linguísticos cujo significado melhor corresponde ao conjunto de critérios orientadores da atividade de compreensão, interpretação e aplicação dos textos jurídicos normativos. Exclui-se método porque deve ser recusada qualquer tentativa de identificar a atividade interpretativa dos textos jurídicos normativos com o reducionismo das fórmulas simbólicas da lógica matemática ou da lógica simbólica mesma. Igualmente, deixou-se de lado a designação metodologia, pois o significado que lhe é normalmente atribuído é o de estudo do método. É que se costuma associar qualquer tentativa de analisar a atividade de interpretação dos textos normativos jurídicos a partir critérios e regras – metanormas, que se ocupam de dizer como os textos normativos jurídicos podem ser compreendidos, interpretados e aplicados – à ideia de aplicação de exigências metodológicas estritas da racionalidade lógico-dedutiva das ciências naturais. Não poucas vezes, o argumento é o de que as ciências humanas e, assim, a compreensão, interpretação e aplicação dos textos jurídicos normativos não se deixam fundamentar racionalmente por meio do método. Aqui, à palavra metódica não deve ser atribuído esse significado ou associada a essas ideias. Não se tem ainda disponível nas ciências humanas um modelo metodológico rigoroso absoluto, capaz de assegurar uma única e definitiva compreensão, interpretação e aplicação dos textos jurídicos normativos. Se nas ciências naturais os rigores do método não podem assegurar uma racionalidade absoluta, muito menos nas ciências humanas. A compreensão, a interpretação e aplicação dos textos jurídicos normativos não se reduzem exclusivamente a uma atividade puramente lógica dos juízos teóricos, mas elas não se deixam realizar sem o auxilio de critérios ou exigências mínimas universalmente válidas. Metódica da interpretação jurídica significa não mais do que as exigências mínimas que a atividade de compreensão, interpretação e aplicação dos textos normativos jurídicos deve atender. O atribuir significado às disposições jurídicas deve seguir padrões ou critérios universais, mais ou menos compartilhados pela comunidade jurídica e sociedade geral. Não se trata de reduzir a arte da compreensão hermenêutica aos critérios metodológicos rigorosos e tampouco identificar a compreensão, a interpretação e aplicação dos textos jurídicos normativos ao método lógico dedutivo da racionalidade teórica das proposições descritivas do mundo objetivo. A métodica da interpretação jurídica é muito menos pretensiosa, pois não persegue uma resposta absolutamente correta para cada caso, admitindo a racionalidade possível que a argumentação racional pode alcançar para as questões práticas colocadas para o discurso jurídico. É que não existe uma interpretação “absolutamente correta”, definitiva para todas as épocas, pois uma interpretação nunca será definitiva,seja pelas as mudanças das relações da vida seja pelas mudanças do ordenamento jurídico todo. Uma nova interpretação do texto jurídico normativo não poderá desprezar o contexto do todo dado em um sistema normativo que já não é o mesmo de uma interpretação feita no passado. Uma nova interpretação do texto jurídico normativo não poderá desprezar as novas pautas valorativas. Como toda interpretação está condicionada a sua época, o intérprete não pode desprezar as mudanças da consciência valorativa geral. Além disso, na atividade de interpretação, compreensão e aplicação das disposições jurídicas, as valorações pessoais, as inclinações ideológicas e as visões de mundo entram em jogo. O texto jurídico normativo da disposição do art. 170 da Constituição Federal diz que propriedade deve cumprir uma função social. Será que um intérprete-aplicador forjado no seio 10 dos movimentos sociais do movimento social dos agricultores sem terra vai alcançar a esse texto normativo o mesmo sentido do que o de um intérprete-aplicador de concepções liberais, inspirado pelos valores da livre exploração da terra, originário da aristocracia rural? Não parece que a historicidade, autoridade da tradição e o fato de o intérprete ter consciência desses preconceitos17 bastam a uma interpretação, compreensão e aplicação em termos de verdade (correção) com um mínimo de garantia e controle intersubjetivo. Não por outra razão, o próprio Gadamer parece não dispensar o método. A preocupação de Gadamer com a linguagem é um indicativo disso18. Com isso, está justificado estudar os métodos, desde os clássicos até os contemporâneos da “nova” hermenêutica. É verdade que os métodos ou critérios não garantem muita coisa, mas sem eles a atividade de interpretação, de compreensão e de aplicação das normas jurídicas vai mergulhar no subjetivismo, no intuicionismo e no decisionismo. Assim, os cânones, os métodos, os critérios, as técnicas, os argumentos interpretativos não podem ser dispensados da interpretação, compreensão e aplicação das normas jurídicas. Essas designações têm sido empregadas como livremente intercambiáveis, sem justificações. A referência a cânones remete aos primeiros momentos da hermenêutica clássica e filosófica, bem como à formulação clássica de Savigny19. O emprego de método está inserido na perspectiva da hermenêutica epistemológica, que pretende formular uma teoria metodológica da interpretação jurídica20. Os empregos de critérios e técnicas, influência da análise e da sistematização, representam a ideia de guias ou regras utilizadas para justificar a atribuição de sentido aos textos normativos jurídicos do legislador. Se assim, então, quem sabe mais adequada é a designação argumentos. 3. Interpretação e argumentação A discussão em torno dos objetivos da interpretação jurídica remete a duas formulações teóricas diferentes. A teoria subjetiva diz que o objetivo da interpretação é investigar a vontade histórico-psicológica do legislador. Assim, o texto jurídico normativo deve ser interpretado no sentido que o legislador histórico atribui às palavras empregadas ou conforme o fim que legislador histórico pretendia atingir com o texto jurídico normativo. A teoria objetiva diz que o objetivo da interpretação é investigar o sentido razoável, correto ou justo do texto jurídico normativo dado pelo legislador. Assim, o intérprete deve atribuir ao texto jurídico normativo o sentido que melhor corresponde a sua correção material, especialmente quanto à solução para as situações concretas de aplicação do Direito. Daí, então, podem ser formulados quatro objetivos da interpretação possíveis. Quanto ao tempo da origem-subjetiva, o intérprete deve investigar a vontade fática originária do legislador histórico. Quanto ao tempo da origem-objetiva, o intérprete deve determinar o sentido razoável do texto normativo na data de seu nascimento. Quanto ao tempo da interpretação- subjetiva, a atividade do intérprete é determinar a vontade hipotética do legislador atual. Quanto 17 Cf. GADAMER, Verdade e método…, p. 407-421. 18 Cf. GADAMER, Wahrheit und Methode…p. 566. 19 Cf. SAVIGNY, M. F. C. de. Sistema del derecho romano actual. Trad. Jacinto Mesia y Manuel Poley. Tomo I. Madrid: F. Gongora y Compañia, 1878, p. 150. 20 Cf. STELMACH; BROZEK, Methods of legal reasoning…, p. 175-176. Um interessante catálogo de princípios e canones interpretativos pode ser encontrado em SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading law: the interpretation of legal texts.Thomson/West: St. Paul, 2012. 11 tempo da interpretação-objetiva, o intérprete deve fixar o sentido razoável do texto normativo na data de sua interpretação-aplicação21. Este debate ainda está aberto. Quem sabe não se pode mesmo determinar uma primazia definitiva de uma teoria sobre a outra. Há quem sustente que a teoria objetiva superou a objetiva22. A verdade é que bons argumentos falam a favor das duas teorias. Os princípios da democracia, da divisão dos poderes e da autoridade do legislador democrático jogam a favor da teoria subjetiva. Contra a teoria subjetiva estão argumentos igualmente fortes. Eles dizem que muito dificilmente se consegue determinar a vontade do legislador histórico. Normalmente, podem ser formuladas questões como estas. Como investigar a vontade do legislador histórico? Quem é o legislador histórico? O que fazer quando as intenções do legislador histórico se mostram contraditórias ou ambíguas? Qual é o peso dos trabalhos preparatórios para determinar as intenções do legislador histórico? O texto normativo, uma vez dado pelo legislador, não se desprende das intenções de quem o elaborou? O intérprete- aplicador do texto jurídico normativo não lhe pode atribuir um sentido diferente do intencionado pelo legislador histórico, especialmente em atenção ao tempo do texto e à nova realidade do mundo? A favor da teoria objetiva argumenta-se que a interpretação deve levar a uma resposta correta ou justa quanto ao conteúdo. O sentido a ser atribuído ao texto normativo deve ser aquele que produza uma sentença judicial correta ou justa. Contra a teoria objetiva diz-se que ela leva ao arbítrio e à subjetividade do intérprete-aplicador. Ela leva à arbitrariedade interpretativa. Além disso, ela implica aumento da competência do judiciário em relação ao espaço de conformação do legislador. O juiz estaria usurpando a competência do legislador democraticamente escolhido pelo povo. O resultado seria um ativismo judicial sem limites, não autorizado pela Constituição Federal. O caso seria de carência de legitimidade da jurisdição e de violação do princípio da democracia. Então, qual é a solução para a determinação do objetivo da interpretação? Uma alternativa é uma variação da teoria subjetiva, que toma não apenas a intenção do legislador histórico dado empiricamente, mas também a intenção hipotética do legislador histórico. No lugar da vontade empírica do legislador histórico, coloca-se a vontade presumida do legislador atual ou do legislador racional. O objetivo da interpretação é determinar a vontade do legislador racional ou do legislador atual. Interpretar um texto jurídico normativo é desentranhar o sentido que o legislador racional hoje lhe atribuiria. Esta solução não é satisfatória igualmente. O problema estaria em como controlar racional e objetivamente a determinação do significado ou unidade de sentido que o intérprete afirma como sendo o dado pelo legislador racional. A melhor alternativa está em uma solução unificadora23, que integra os argumentos subjetivos e objetivos. Esta pode ser designada como uma teoria unificadora. É que cada uma das teoriassubjetiva e objetiva acerta e erra parcialmente. Nenhuma teoria acerta integralmente. Nenhuma teoria erra integralmente. A teoria subjetiva acerta quando diz que o texto jurídico normativo é uma criação do homem, expressão de uma vontade dirigida à coordenação de interesses tanto quanto possível justa e adequada às necessidades da sociedade. O texto jurídico normativo já é uma alocação de poder e coordenação de valores, de aspirações e desejos. O texto jurídico normativo é expressão da intenção do legislador democraticamente escolhido pelo povo para por ele se manifestar nessa coordenação de interesses e conflitos. O texto jurídico normativo é resultado de uma discussão pública e, nesse sentido, produto de uma razão pública. Mas a teoria 21 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 69. 22 Cf. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 144. 23 Cf. LARENZ, Metodologia da ciência do direito..., p. 449. 12 objetiva também acerta quando diz que o texto jurídico normativo intervém nas relações da vida muito distantes e diferentes do tempo de seu nascimento. Como fazer-se aplicar um texto jurídico normativo para intervir em situações da vida muito distintas das pensadas pelo legislador histórico? Com o tempo, o texto normativo adquire vida própria, afastando-se das ideias originárias do legislador histórico. O dado pelo legislador não é diferente das outras obras do espírito humano e, como tal, não deve ser tomado como um ser físico ou psicológico, pronto e acabado. Assim, o objetivo da interpretação é determinado pela combinação de elementos subjetivos e objetivos. O objetivo da interpretação de um texto jurídico normativo é determinado pela confluência das intenções subjetivas do legislador histórico com os fins e imperativos jurídicos objetivos do texto mesmo. Quem interpreta um texto jurídico normativo a fim de resolver uma questão prática de seu tempo, traz para hoje uma obra do passado. O intérprete não pode desprezar a intenção do legislador histórico e tampouco a realidade da vida hoje. O objetivo da interpretação é determinar o sentido normativo do texto. Determinar o sentido normativo do que é agora juridicamente vinculante. A determinação desse sentido normativo pressupõe as ideias concretas do legislador histórico e sua adequação à realidade social do seu contexto de aplicação. Essa concepção não é a mesma que outra que diz que o objetivo da interpretação é determinação da vontade da lei. Esta última é uma concepção subjetivista, que cai na vontade de uma pessoa ou de uma pluralidade de pessoas. Ela encerra uma personificação injustificada da lei, que serve para encobrir a tensão entre a vontade do legislador histórico e o conteúdo objetivo da lei, em permanente modificação24. Desse modo, então, uma alternativa também unificadora, mas também diferenciadora25 pode ser formulada. Ela combina os momentos subjetivos e objetivos. A diferença é que ela propõe primazia prima facie (não definitiva) dos elementos subjetivos sobre os objetivos. Ela não impede que o intérprete se afaste da vontade do legislador histórico. Ela cria para o intérprete o dever de dar as razões justificadoras da superação da vontade empírica do legislador histórico. Com isso, então, o foco é deslocado não para se determinar o objetivo da interpretação, mas para definir quais são as melhores razões para justificar e fundamentar uma determinada atribuição de sentido. Essas razões são os argumentos interpretativos. Eles foram inicialmente formulados como cânones ou “regras fundamentais da interpretação” jurídica por Savigny26 sob a influência da hermenêutica epistemológica metodológica de Schleiermacher, que propôs um catálogo de regras universalmente válidas da interpretação – os cânones de interpretação. A hermenêutica de Schleiermacher analisa o processo da compreensão nestas dimensões: interpretação histórica e interpretação psicológica. A compreensão deve recriar a situação histórica e psicológica na qual se encontrava o autor do texto interpretado. O que deve ser compreendido não é apenas a literalidade das palavras e o seu sentido objetivo, mas também a individualidade do autor do texto interpretado27. A Interpretação gramatical é alcançada a partir do conhecimento da totalidade da língua do texto, para o que Schleiermacher formulou 24 cânones de interpretação. Entre eles, dois são mais importantes. O primeiro diz que tudo o que necessita de uma maior determinação em um determinado contexto somente pode ser determinado por referência ao campo de linguagem partilhado pelo autor e pelo público inicial. O 24 Cf. LARENZ, Metodologia da ciência do direito..., p. 447-448. 25 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 69. 26 Cf. SAVIGNY, Sistema del derecho romano actual..., p. 150. 27 Cf. GADAMER, Verdade e método..., p. 291-291. 13 segundo diz que o significado de cada palavra em um determinado passo deve ser determinado por referência a sua coexistência com as palavras que a rodeiam. A interpretação psicológica é alcançada a partir do conhecimento da totalidade da intenção e dos objetivos do autor. Assim, o intérprete deve investigar não apenas o texto, mas também o seu autor. Ler um texto é dialogar com o seu autor e encontrar a sua intenção, buscando compreender o seu espírito e decifrando os símbolos a partir das quais ele expressou seu pensamento. Portanto, a partir de um conhecimento histórico e linguístico adequado, o intérprete pode compreender melhor o autor do que este se compreendeu a si mesmo. O intérprete que segue o conscientemente o fio do pensamento do autor terá de trazer para o nível consciente muitos elementos que ficariam inconscientes neste último – por isso, compreenderá melhor o autor do que este compreendeu a si próprio28. Além disso, Schleiermacher deu grande atenção ao círculo hermenêutico, que diz que a unidade do todo pode ser compreendida a partir das partes individuais, e as partes individuais podem ser compreendidas a partir da unidade do todo29. Com isso, deu início a uma teoria universal da interpretação30. Essas formulações levaram Savigny à formulação clássica dos cânones da interpretação jurídica, configurando os primeiro movimento em direção à metodologia da ciência jurídica. Daí, então, a interpretação gramatical, a interpretação histórica e a interpretação sistemática. O jovem Savigny recusou a interpretação teleológica, que autoriza o intérprete atribuir sentido ao texto normativo jurídico a partir de sua finalidade (ratio legis)31. Nesse momento de sua obra, o pensamento de Savigny aparece associado à concepção positivista legalista da interpretação jurídica, caracterizada pela redução do papel do intérprete a declarar o sentido do texto conforme o significado literal das palavras empregadas pelo legislador, considerado sentido por este atribuído ao texto normativo jurídico. A segunda parte da obra de Savigny aceitou a interpretação teleológica, reconhecendo ao intérprete poder para investigar o fim do texto normativo jurídico em si, mas no âmbito do nexo de significado fornecido por uma global intuição do instituto jurídico ao qual o texto jurídico interpretado se acha incluído32. Não se encontra consenso sobre a totalidade dos cânones da interpretação jurídica e como eles podem ser classificados. Desde a formulação clássica de Savigny, muitos critérios foram discutidos, muito especialmente sobre a interpretação dos textos normativos jurídico- constitucionais. Contudo, permanece ainda aberta a questão sobre qual é a importância dos meios interpretativos formuladospela metodologia jurídica clássica? Os métodos tradicionais de aplicação do Direito somente podem ser compreendidos como pontos de vista auxiliares parciais33. Os cânones de interpretação herdados da tradição não podem mais ser tratados como canônicos da interpretação do Direito, pois carecem de universalidade formal e dignidade lógica. Eles são relativos no tocante ao objeto particular da tarefa individual de concretização. Não há uma ordem hierárquica dos cânones, sequer uma plausível. O aspecto literal-gramatical não consegue decidir entre os vários significados da linguagem comum e da linguagem jurídica e também entre os próprios significados jurídicos. O aspecto histórico aparece multiplamente amalgamado com reflexões genéticas e teleológicas. O 28 Cf. GADAMER, Verdade e método..., p. 299. 29 Cf. SCHLEIERMACHER, Hermenêutica…, p. 47. 30 Cf. STELMACH; BROZEK, Methods of legal reasoning…, p. 176. 31 Cf. SAVIGNY, Sistema del derecho romano actual..., p. 152-153. 32 Cf. STELMACH; BROZEK, Methods of legal reasoning…, p. 184. 33 Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. 2. Ed. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. 14 aspecto sistemático quase nunca pode optar entre os diferentes pontos de vista da sistemática da forma do texto, do sentido e da matéria. O aspecto teleológico não é mais do que um conceito que serve para abraçar valorações de todas as ordens e origens, apontando para um campo ilimitado de possibilidades interpretativas. Ratio, telos, sentido e fim, parecem ser apenas metáforas do que realmente se procura e se deseja no caso individual. As fórmulas teológicas vazias podem servir para encobrir com o véu da linguagem as questões jurídicas concretas. Assim, os pontos de vistas metódicos auxiliares herdados da tradição não são conclusivos. Por isso mesmo, exclusiva e isoladamente, nenhum deles pode decidir para determinar o sentido do texto jurídico normativo. Todos eles devem ser levados em conta para se alcançar a interpretação mais bem justificada de um determinado texto jurídico normativo. Nesse sentido, e uma vez assumido que a atribuição de significado ao texto jurídico normativo deve ser justificada, os cânones da hermenêutica clássica devem ser compreendidos como argumentos interpretativos ou argumentos de interpretação. Razões linguísticas, históricas, sistemáticas e teleológicas, associadas às razões práticas gerais – razões morais, éticas e razões pragmáticas – são razões que jogam a favor ou contra uma determinada atribuição de sentido ou significado a um determinado texto jurídico normativo interpretado e aplicado em uma determinada situação concreta. Conforme o caso, então, os diversos tipos de argumentos – argumentos linguísticos, argumentos históricos, argumentos sistemáticos, argumentos teleológicos e argumentos práticos gerais – têm maior ou menor peso para a determinação do significado a ser atribuído ao texto jurídico normativo. Se cada um dos argumentos interpretativos não se mostra suficiente para exclusivamente determinar o sentido a ser atribuído a um determinado texto jurídico normativo; se não pode ser formulada uma escala de hierarquia justificada entre eles; se eles devem ser reunidos para, conjuntamente, integrar o conjunto de argumentos pró e contra uma determinada atribuição de sentido a uma disposição jurídica, então pode ser colocada a questão sobre como exatamente isso deve ocorrer. Essa questão diz sobre o procedimento argumentativo. Uma primeira alternativa aponta para uma ordenação da atividade interpretativa a partir. A questão que se coloca é se é possível uma ordem na atividade do intérprete? O começo da atividade interpretativa pode ser o significado do texto jurídico normativo dado pelo uso da linguagem corrente ou da linguagem técnica? O fim da atividade interpretativa é alcançado quando determinado o fim do texto normativo e avaliadas as consequências do sentido atribuído ao texto? Há a proposta de uma ordenação da atividade do intérprete34. O ponto de partida é o significado autorizado pelas regras gramaticais, uso da linguagem corrente e “dos modos de expressão técnico-jurídicos”. O próximo passo é dado quando o intérprete deve verificar a coerência interna do sistema, buscando determinar o significado a partir da localização do texto jurídico normativo no sistema e sua conexão com outras partes do texto e do sistema mesmo. O passo seguinte é alcançado pela investigação da situação histórica, antes e depois da regulação normativa, considerando, ainda, a gênese do texto, notadamente o material dos trabalhos preparatórios. Por fim, o intérprete deve investigar os fins de texto e do conjunto todo do qual o texto é parte. Essa ordenação talvez não possa ser formulada. Uma ordenação assim somente pode ser alcançada na justificação de um determinado sentido do texto atribuído pelo intérprete. Portanto, apenas no contexto da justificação e não no contexto da descoberta. É que se deve 34 Cf. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 7 Ed. Trad. J. Batista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 127. 15 distinguir entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. O processo psicológico desenvolvido pelo intérprete está no contexto da descoberta. Nesse contexto, entra em jogo desde a pré-compreensão do intérprete sobre o texto até a consideração das consequências do resultado da interpretação para o caso concreto. Uma ordenação do tipo indicada somente vai ser possível quando da apresentação das razões de justificação de uma determinada atribuição de sentido ao texto jurídico normativo interpretado. Por isso mesmo, então, o ponto de partida deve ser mesmo a pré-compreensão não apenas do texto, mas de toda a situação histórico-concreta da vida. Essa formulação remete à questão sobre a casuística na interpretação e aplicação do Direito35. Ela somente pode ser estudada em outro lugar. Quem sabe, em lugar da ordenação, não seja melhor a união inter-relacional entre os argumentos interpretativos. O argumento linguístico pode ser o ponto de partida e o limite da interpretação. É que o que está além dos sentidos possíveis do texto jurídico normativo, mesmo na mais ampla interpretação, já não é mais apenas interpretação. O caso da interpretação extensiva é ainda um caso de interpretação, pois apenas se toma o texto jurídico normativo no seu significado possível mais amplo. Quando diferentes significados possíveis são autorizados pelo texto jurídico normativo, outros argumentos interpretativos são necessários. Assim, pode entrar no jogo argumentativo o contexto sistemático do texto jurídico normativo em favor da determinação do significado de um termo ou de uma disposição normativa. Ele pode contribuir para se alcançar a concordância material entre diferentes disposições normativas de um sistema normativo todo. Por isso mesmo, em caso de dúvida entre os vários significados possíveis atribuíveis ao texto jurídico normativo, uma disposição deve ser interpretada de modo a entrar em concordância com as outras disposições do mesmo sistema de normativo. As contribuições da dogmática jurídica servem, igualmente, para incrementar essa concordância material. Quando a interpretação linguística e a interpretação sistemática deixam margem a diferentes significados, então o intérprete deve preferir aquela que melhor se ajuste à intenção reguladora do legislador histórico e ao fim da disposição jurídica dada conforme pretendido pelo seu autor empírico concreto. Isso pode ser investigado a partir da situaçãohistórica, do motivo da regulação, das declarações de intenção do legislador, da exposição de motivos, assim como do próprio conteúdo do texto normativo. É que na interpretação do texto normativo o intérprete está vinculado, pelo menos prima facie, aos fins da lei e às valorações do legislador democraticamente legitimado. Se isso não for suficiente, o intérprete deve recorrer aos critérios teleológico-objetivos, ainda que não se possa precisar se o legislador tinha ou não consciência deles. Esses critérios são dados pela “estrutura material do âmbito da norma” e pelos “princípios imanentes do ordenamento jurídico”36. Essa proposta pode ser designada como proposta unificadora37 e também diferenciadora38. Ela não somente combina os momentos subjetivos e objetivos, mas ainda propõe primazia prima facie dos primeiros sobre os últimos. Cuida-se uma primazia prima facie e não definitiva. Ela não impede que o intérprete se afaste da vontade do legislador histórico. Apenas, ela cria para o intérprete o dever de dar as razões justificadoras da superação da vontade empírica do legislador histórico. A determinação da primazia definitiva vai depender de alguns critérios, como o tempo do texto normativo; as modificações das circunstâncias fáticas; as modificações das circunstâncias sociais valorativas; a vontade inequívoca do legislador histórico; 35 Cf. SUNSTEIN, Cass. Legal reasoning and political conflict. New York: Oxford, 1996, p. 121. 36 Cf. LARENZ, Metodologia da ciência do direito..., p. 471-472. 37 Cf. LARENZ, Metodologia da ciência do direito..., p. 449. 38 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 69. 16 o peso dos argumentos sistemáticos e o peso dos argumentos substanciais39. Com isso, então, o foco talvez não esteja em determinar o objetivo da interpretação, mas em determinar quais são as melhores razões para justificar e fundamentar uma determinada atribuição de sentido. Nisso, então, está a união entre interpretação e argumentação. O modelo de primazias prima facie admite que a ordem de hierarquia estabelecida inicialmente por alguma razão pode ser invertida se forem apresentados argumentos em sentido contrário. O problema da hierarquia dos argumentos de interpretação se resolve como uma questão de argumentação. A razão dessa primazia prima facie está em que os elementos subjetivos são mais próximos do princípio da democracia, da divisão dos poderes e da autoridade do legislador que criou o texto normativo. Os meios de interpretação que expressam vinculação com o ordenamento jurídico vigente detêm primazia prima facie sobre os demais. Assim, podem ser formuladas duas regras gerais de primazia prima facie: a regra que diz que os argumentos linguísticos prevalecem prima facie sobre todos os outros e a regra que diz que os argumentos institucionais – argumentos linguísticos, históricos e sistemáticos – prevalecem prima facie em relação aos teleológicos e aos práticos gerais40. A primeira regra estabelece uma relação de primazia prima facie dos argumentos linguísticos sobre todos os outros. O argumento linguístico e o argumento histórico retiram força da autoridade e da legitimidade do legislador41. Trata-se de respeito ao sentido composicional das expressões escolhidas pelo legislador, a fim de que os destinatários das disposições possam compreendê-las a partir de seu sentido imediato e minimizar os custos das disputas sobre as interpretações dos textos jurídicos42. Então, em razão do princípio da segurança jurídica e, com isso, do princípio do Estado de Direito, o dito pelo legislador detém primazia prima facie sobre o querido. A força argumentativa do que o legislador democraticamente legitimado diz no texto jurídico normativo é maior do que a força argumentativa do que o legislador quis dizer com o mesmo texto jurídico normativo. Assim, os argumentos linguísticos prevalecem, pelo menos prima facie, sobre os argumentos genéticos. Os argumentos linguísticos também prevalecem prima facie sobre os argumentos sistemáticos. É correto dizer que os argumentos sistemáticos visam à coerência, o que é elementar para a racionalidade. Contudo, aquilo que deve ser trazido em um sistema de normas é, antes, o decidido e dado pelo legislador democraticamente escolhido. Por isso, então, a primazia prima facie dos argumentos linguísticos sobre os sistemáticos. Entre os argumentos históricos e os argumentos sistemáticos não há uma relação de primazia prima facie que possa ser justificada43. A segunda regra geral estabelece uma relação de primazia prima facie dos argumentos linguísticos, genéticos e sistemáticos sobre os argumentos teleológicos. Novamente, a razão para isso está em que os argumentos institucionais retiram sua força diretamente do sistema jurídico. Aliás, a própria existência do sistema jurídico está fundamentada nas fraquezas das considerações exclusivamente teológico-avaliativas. Além disso, os argumentos puramente teológicos estão mais próximos do que isso definir o intérprete, com o risco do arbítrio judicial, do que o definido pelo legislador democraticamente legitimado. Assim, por exemplo, se uma disposição jurídica encontra uma interpretação claramente retirada do seu texto pela semântica convencional à linguagem corrente e se ela pode ser confirmada pela leitura do texto no contexto 39 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 69. 40 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 74-75. 41 Cf. MARMOR, Andrei. Interpretation and legal theory. 2 Ed. Oxford: Hart Publishing, 2005, p. 133-134 . 42 Cf. MacCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Trad. Conrado Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 126-127. 43 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 74. 17 do sistema jurídico como um todo. Então, os argumentos teleológico-avaliativos estão dispensados44. Bem entendido, cuida-se de uma hierarquia de primazias prima facie. Elas podem ser destruídas se boas razões forem apresentadas. Quem pretende desconsiderar a primazia estabelecida deve estar disposto a suportar a carga da argumentação. Assim, pode ser formulada a seguinte regra da carga de prova. Os argumentos que expressam uma vinculação ao teor linguístico do texto jurídico normativo dado pelo legislador, conforme o uso corrente da linguagem comum ou especializada, à vontade do legislador histórico e ao sentido coerente do sistema jurídico normativo todo, prevalecem sobre outros argumentos, a não ser que possam ser aduzidas razões que concedam primazia a estes outros argumentos interpretativos45. A questão se coloca a partir disso é quais razões podem ser apresentadas para afastar a primazia prima facie? Essa é uma questão que somente pode ser resolvida em uma discussão racional. Os argumentos teleológicos, que normalmente são dados por meio de razões morais, éticas, pragmáticas, desempenham papel decisivo, onde o princípio da universalizabilidade exige que as razões apresentadas em um caso determinado sejam também razões para outro caso semelhante. Cuida-se, portanto, de uma questão que se deixa resolver pela ponderação dos argumentos em jogo. Isso fica claro quando o procedimento de justificação de uma determinada interpretação de uma disposição jurídica é mostrado abertamente. No procedimento de justificação de uma interpretação jurídica, o intérprete apresenta as razões que estão a favor da interpretação que pretende manter e apresenta contrarrazões em desfavor da interpretação que pretende afastar. Com isso, tem-se interpretação como uma questão de argumentação. A justificação do sentido atribuído ao texto jurídico normativo pelo intérprete se desenvolvecom a apresentação de argumentos pró e contra, configurando uma constante competição entre as duas ou mais alternativas de interpretação. Conclusão Estas linhas serviram, então, para justificar uma determinada concepção da interpretação. Interpretação jurídica é a atividade por intermédio da qual o intérprete atribui significado aos signos linguísticos dados nos textos jurídicos normativos. As normas jurídicas existem apenas como significados dos textos jurídicos normativos uma vez já interpretados. Uma norma jurídica é sempre já concretização de um texto jurídico. Isso não implica que o intérprete está autorizado a livre e discricionariamente atribuir ao texto jurídico normativo o significado que bem entender, conforme suas avaliações subjetivas e inclinações morais, culturais, políticas e sociais. Que isso e sua pré-compreensão são elementos centrais para formulação das hipóteses interpretativa não implica que o intérprete não está sujeito a quaisquer parâmetros mais ou menos universais, amplamente aceitos. O contrário comprometeria as mínimas pretensões de objetividade e racionalidade na aplicação do Direito. Interpretação e argumentação estão unidas. Interpretação é uma atividade argumentativa. Os argumentos interpretativos são razões que jogam a favor ou contra os significados possíveis que os símbolos linguísticos autorizam formular. Com isso, fica reduzido o espaço da subjetividade e da arbitrariedade na atribuição de significado aos textos jurídicos normativos. 44 Cf. MacCORMICK, Retórica e Estado de Direito..., p. 138. 45 Cf. ALEXY, Interpretação jurídica..., p. 75. 18 Referências bibliográficas ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystifying legal reasoning. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. ALEXY, Robert. Interpretação jurídica. In: ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado. N. 17. Jan./Fev./Mar. 2009. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 7 Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. BETTI, Emíllio. Teoria generale della interpretazione. Milano: Giuffré, 1990. _____. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BLEICHER, Joseph. 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