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43Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Da Carta de Atenas ao Estatuto da Cidade: questões sobre o planejamento urbano no Brasil FROM THE LETTER OF ATHENS TO THE STATUTE OF THE CITY: QUESTIONS ABOUT URBAN PLANNING IN BRAZIL ������ A atualidade do planejamento urbano no Brasil é o tema desta refl exão. Para tanto, estabelecemos uma contextualização da crise desse planejamento, recuperando as infl uências do urbanismo modernista, na tentativa de reconhecer, no que se tem como planejamento urbano alternativo, traços persistentes do antigo paradigma. Alvo principal dos questionamentos é o Estatuto da Cidade (Lei 20.257/01), e seu ambiente de surgimento e atual difusão. Trabalhamos com a idéia de que a alternativa que ora emerge o faz em termos de substituição de um pensamento hegemônico, e se confi gura como um pensamento fraco, ainda carente de legitimidade. A refl exão permite reconhecer traços tanto de um como de outro paradigma, nos limites mostrados pela ainda recente instalação desse estatuto. �� � ���� �� � PLANEJAMENTO URBANO – ESTATUTO DA CIDADE – PLANO URBANO. ������ � The present of Brazilian urban planning is the subject of this paper. Therefore, we contextualize the crisis of this planning, recovering the infl uences of Modern Urbanism, trying to recognize, in an alternative urban planning, persistent traces of the old paradigm. The main object of the questions is the Statute of the City (law 20.257/01), and its environment of emergence and current diffusion. We work with the idea that the appearance of the alternative conception can be a substitution of a hegemonic thought, presenting itself as a weak thought, lacking legitimacy. The refl ection allows the recognition of aspects from both paradigms within the limits shown by the still recent enactment of the Statute. �������� URBAN PLANNING – STATUTE OF THE CITY – URBAN PLAN. ���������� � ������ ��������� �� �� ������� �� �� ���� ������ ����� ��������� ���� ������ ��� Impulso44_art03.indd 43Impulso44_art03.indd 43 27/11/06 19:45:2827/11/06 19:45:28 44 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 INTRODUÇÃO refl exão que trazemos aqui parte da tentativa de compre- ensão dos rumos do planejamento urbano, tomando por base a crise em que ele se encontra em nível mundial, par- ticularizando-se para a situação brasileira. Para tanto, re- constituiremos brevemente o contexto de conformação dessa crise, a partir da difusão das idéias modernistas no planejamento das cidades, destacando os aspectos proces- suais que marcaram-lhe as críticas em âmbito nacional, ex- pressas sobretudo no Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU).1 Dessa forma, nos remeteremos aos autores que qualifi cam e avaliam esse cenário atual e os possíveis avanços de um planejamento nomeado al- ternativo em relação a seu antecessor. Nossa ponderação é centrada na identifi cação do modo de fazer desse planejamento emergente, que pode ser caracterizado por um pensamento fraco, bem como na verifi cação do quanto ele se antepõe à visão hegemônica ou forte, capitaneada pelo ide- ário modernista, ou se continua ainda assumindo suas persistentes nuan- ças. Finalizaremos, detendo-nos no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), procurando identifi car como ele comparece como proposta e as possíveis críticas a suas alternativas, pretendendo tanto perceber se ele se confi gura num pensamento fraco quanto avaliar as conseqüências estimadas com sua recente aplicação para a alteração de rumo e a real contraposição efe- tuada por esse à noção hegemônica do planejamento urbano. URBANISMO MODERNISTA: PARADIGMA EM CRISE, OU A VELHA “NOVA” ROUPA DO REI? O urbanismo modernista caracterizou-se por difundir, a partir do início do século XX até seus meados, os pressupostos da cidade funcio- nal presentes na Carta de Atenas,2 documento formulado com base nas discussões das várias edições do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), do qual Le Corbusier foi seu principal baluarte. En- tre os pressupostos, estava a obrigatoriedade do planejamento regional e intra-urbano, a submissão do solo urbano aos interesses coletivos, a industrialização de componentes e a construção padronizada, a limita- ção do tamanho e densidade das cidades e a edifi cação em meio ao ver- de contínuo. O que balizava tais determinações era o zoning, rigoroso zoneamento de funções apoiado na premissa de um homem-tipo, cujas necessidades são universais. Esse instrumento, carregado de um poder de 1 O MNRU organizou o primeiro Fórum Nacional pela Reforma Urbana, em outubro de 1988, a partir da convocação para o Seminário Nacional pela Reforma Urbana. Articulou os movimentos sociais na constituinte federal, buscando incluir no texto da Carta Magna a questão da política urbana e, nessa, a participação social na gestão municipal. Conseguiu apresentar emenda à constituição (“Emenda Po- pular de Reforma Urbana”), solicitando o tratamento da gestão na cidade da ótica do cumprimento da função social. 2 A Carta de Atenas, divulgada quase oito anos após sua redação, é um texto dogmático e polêmico, formulando exigências e estabelecendo os critérios para organização e gestão das cidades. Foi elabo- rada durante o IV CIAM, num cruzeiro entre Marselha e Atenas, em 1933, e publicada em 1941, por obra de síntese de Le Corbusier. Sua edição brasileira tem interessante prefácio de Rebeca Sherer (LE CORBUSIER, 1993). AA Impulso44_art03.indd 44Impulso44_art03.indd 44 27/11/06 19:45:3027/11/06 19:45:30 45Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 difusão justifi cado na sua capacidade de síntese, alcançou o planejamento urbano em todo o mun- do, inclusive no Brasil. Para Pereira,3 a infl uência do urbanismo mo- dernista fez do zoneamento funcional sinônimo de planejamento urbano. O zoneamento ainda trazia embutida uma concepção tecnocrática que muito se coadunou ao ideário centralizador e ra- cional-tecnicista de desenvolvimento brasileiro e, no caso das cidades, implicou um modelo de planejamento implantado de cima para baixo, à re- velia do que seriam os anseios da população, afi r- mando o caráter coercitivo de seus instrumentos. Esse autor refl ete que, de ferramenta de controle jurídico, o zoneamento passa a ser utilizado como instrumento técnico-projetual, interferindo im- plicitamente no modo de conceber as cidades e re- percutindo na maneira de viver de seus cidadãos. Holston,4 em sua crítica à cidade de Brasília, sintetiza algumas outras conseqüências do zonea- mento modernista que se aplicam às cidades sob o mesmo auspício: concentração do espaço de tra- balho e dispersão do espaço da habitação, uso do solo urbano sustentado em movimento pendular casa-trabalho-casa, alto custo do transporte devi- do aos grandes deslocamentos e modelo centrífu- go de separação das classes sociais, entre outros. A vida oscila entre trabalho e residência, e o espa- ço público é pobre em relações de encontro, ritual e movimento. É como que decretada a morte da rua. Ainda conforme esse autor, uma das justifi ca- tivas para que o modelo dos CIAMs se reproduzisse por tantos lugares do mundo está em seu caráter desistoricizante: a marca do modernismo, disso- ciada de vieses ideológicos, permitiu que surgis- se Brasília, um exemplo emblemático: planejada por um liberal de centro-esquerda, que teve seus prédios projetados por um comunista, construída num período desenvolvimentista e consolidada durante um regime ditatorial autoritário, perfi l ao qual muito se coadunou. Outro aspecto que merece destaque para esse autor, no que se refere ao ideário modernis- 3 PEREIRA, 1999. 4 HOLSTON, 1993. ta de cidade, é a condição de que os urbanistas pudessem dispor do solo conforme seu entendi- mento e, assim, superar os confl itos advindos do interesse do capital privado.A Carta de Atenas vai propor não a expropriação da terra, mas o direito de dispor dela, redefi nindo, porém não abolindo, a propriedade privada do solo. Le Corbusier não explicita as questões jurídicas, mas se compreen- de que ao Estado caberia o controle da alienação do solo. Isso exprime três possibilidades: a crença na racionalidade e no saber técnico para projetar o futuro, o desenvolvimento global sobre todo o território (incluindo o campo) e o fi m dos efeitos perniciosos da especulação imobiliária. Para Sou- za,5 essas idéias-força de ordem e racionalidade ali- nhariam as propostas modernistas ao imaginário capitalista. Esse resgate que empreenderemos aqui da contribuição do paradigma modernista para a cri- se do planejamento urbano nos dias de hoje tem, contudo, mais que um sentido historiográfi co ou contextualizador. Implica a própria refl exão do quanto desse modelo ainda sobrevive nas tenta- tivas de se fazer um outro planejamento urbano. Essa hipótese se baseia na opinião de autores como Souza, para quem: Na verdade, aquilo que do Urbanismo modernista sobreviveu e resiste até hoje na prática de planeja- mento nos mais diferentes países não é tanto a sua estética, mas sim o espírito funcionalista de zonea- mento do uso do solo. Além do mais, a idéia-força central do Urbanismo modernista, a modernização da cidade, é, ao mesmo tempo, embora de modo não tão evidente ou ruidoso, a idéia-força central do “planejamento físico territorial” clássico em geral, o mesmo aplicando-se às demais idéias-força como ordem e racionalidade.6 Dessa maneira, acreditamos que, mesmo nas manifestações ditas mais alternativas a esse paradigma, ainda subsiste muito de seu ideário. Por exemplo, esse caráter modernizador, à base das transformações físicas, é percebido igual ou 5 SOUZA, 2002. 6 Ibid., p. 131. Impulso44_art03.indd 45Impulso44_art03.indd 45 27/11/06 19:45:3127/11/06 19:45:31 46 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 mais fortemente no mainstream do planejamento estratégico, entendendo-o como aquele que en- globa experiências difundidas a partir de Barcelo- na e suas intervenções para os Jogos Olímpicos de 1992 e que vem alcançando repercussão ampla.7 Corrobora ainda, nessa interpretação quan- to à inércia e resistência do paradigma moder- nista, a opinião de autores brasileiros envolvidos com a versão brasileira do enfrentamento da crise – o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), na década de 1980 –, o qual comentare- mos mais a seguir. Entre esses autores está Ma- ricato,8 que alerta para o lugar do planejamento modernista ainda não estar vago nas academias e nos departamentos governamentais. Portanto, ainda não foi convenientemente substituído por qualquer outro modelo, seja na formação de pro- fi ssionais seja nas administrações públicas. Para essa autora, ainda predominam o ponto de vista positivista e a concepção do planejamento neu- tro, enfatizando, sobretudo o papel do Estado, e, assim, continua atual a noção das idéias fora do lugar,9 expressão que denuncia e sintetiza bem o descolamento da realidade por parte do planeja- mento urbano no Brasil. Além da questão de importação de modelos estrangeiros – não rara por aqui, uma vez que o urbanismo brasileiro não costuma ter comprome- timento com a realidade concreta –, também se percebe, por parte do Estado, a tentativa de im- plantação de uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade apenas, de acordo com a raciona- lidade burguesa, confi gurada no controvertido bi- nômio cidade legal/cidade ilegal. Conquanto isso, percebemos que o planejamento urbano vem in- 7 Muitos autores vêm associando ao planejamento estratégico a con- cepção de projeto urbano, ao invés de plano urbano. De acordo com NOVICK (2005), diferentemente dos planos, o projeto urbano daria forma ao espaço sem tentar incidir sobre o conjunto da cidade e, em oposição aos projetos de arquitetura, propõe outra vinculação com o tempo (incorporando-se às largas temporalidades urbanas). Assim, o projeto urbano se apresentaria como o último baluarte do urbanismo frente à planifi cação abstrata e gerencial. Segundo outras opiniões, os projetos urbanos são vértices de projetos gerais para a cidade, pactuados socialmente, ao passo que, para seus críticos, manifestam a legitimação da especulação imobiliária diante da carência de uma arbitragem pública que garanta os equilíbrios sociais e espaciais da cidade. 8 MARICATO, 2000. 9 Expressão cunhada por Francisco de Oliveira diante da exposição de tese de livre docência por Ermínia Maricato. sistindo, seja através de sua pretensa racionalidade normativa, seja em seu caráter até então autocráti- co e centralizador, em responder a problemáticas urbanas que só se avolumam a cada novo plano. Concordamos com Maricato, ao atribuir em parte à academia e, portanto, à formação de profi s- sionais, a grande inércia do paradigma modernista de planejamento. Contudo, não há como negar que, num cenário de democracia representativa ainda recente e de mobilização política popular mais oscilante do que crescente, a crise do mode- lo modernista se deve não só a aspectos intrínse- cos, mas também a outros de ordem exógena, por exemplo, a crise do próprio Estado, que aqui só mencionaremos, sem aprofundar. Da crise – ter- reno fértil – emergem propostas distintas, contu- do, não tão inovadoras assim, nas quais se advoga do desenvolvimento sustentável ao planejamento estratégico,10 passando pelo novo urbanismo, rei- vindicando para si o papel do dito redentor do pla- nejamento tradicional. Para Del Rio, “Metodolo- gicamente, ainda nos encontramos perigosamente perdidos entre paradigmas modernistas, modelos incompletos de planejamento urbano, imposições ‘técnicas’ de engenharia de transportes, práticas políticas, fi siologistas e participação comunitária incompleta”.11 Ainda que num contexto de permanência velada dos ideários de um padrão até então he- gemônico, não se pode deixar de reconhecer o papel, para o panorama atual da política urbana brasileira, da contribuição dos movimentos so- ciais que culminaram com o MNRU. Como apon- ta Souza,12 a reforma urbana tem o mérito de ser uma estratégia largamente construída entre nós, e não simplesmente importada. Da mesma forma, isso torna o Brasil – que, a seu ver, dispõe de um potencial acadêmico muito superior ao da gran- de maioria dos outros países do Terceiro Mundo – privilegiadamente capaz de exportar idéias e ser referência internacional no que tange ao enfrenta- mento dos problemas urbanos. 10 Sobre a tipologização do planejamento, SOUZA (2002), na parte II, desenvolve abrangente apanhado. 11 DEL RIO, 1997, p. 42. 12 SOUZA, 2000. Impulso44_art03.indd 46Impulso44_art03.indd 46 27/11/06 19:45:3227/11/06 19:45:32 47Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Embora esse mesmo autor destaque, em suas obras, a lacuna estabelecida entre o debate promovido pelo MNRU e a Constituição Federal, foi essa que, em 1988, deu o primeiro passo para a conquista de uma política urbana, com um capí- tulo exclusivo garantindo sua regulamentação. A última iniciativa mais signifi cativa foi a do Esta- tuto da Cidade (Lei n.o 10.257, de jul./01), que se fundamenta na Constituição e possui, como esta- belecimentos principais, ordenar as funções da ci- dade e propriedade, defi nir o plano diretor como seu instrumento-base e, mais especifi camente, garantir a ela uma função social. Por isso, regulamenta os chamados instru- mentos de política urbana, entre eles, o direito de superfície, o imposto progressivo e a outorga one- rosa, que poderão estar presentes nos planos dire- tores municipais. Na verdade, esses instrumentos não chegam a ser novidade, mas contam a partir de então com uma lei federal a respaldar-lhes a im-plantação. Sobre isso, Rolnik13 lembra terem sido os movimentos populares urbanos organizados, com o apoio do setor profi ssional dos urbanistas e advogados ligados ao temário da reforma urbana, os que contribuíram para que tanto os instrumen- tos de regularização fundiária quanto os de con- trole sobre a disponibilidade de oferta de terras e de participação popular entrassem nesse novo ideário do planejamento urbano. Até mesmo os autores outrora envolvidos em graus diferentes no MNRU ponderam sobre o teor real das conquistas. É o caso de Maricato,14 que critica a exigência de planos diretores na Cons- tituição de 1988, como se o problema das cidades fosse a falta de planejamento. Em contraponto a essa orientação, a autora aponta a iniciativa de uma Emenda Constitucional de Iniciativa Popular de Reforma Urbana,15 que não incorporou a propos- ta da obrigatoriedade do plano diretor, atentando para a defi nição de instrumentos urbanísticos de controle fundiário e de participação democrática na gestão das cidades. 13 ROLNIK, 2000. 14 MARICATO, 2000. 15 Promovida por seis entidades de categorias profi ssionais ou de mo- vimentos populares e assinada por 130 mil eleitores em todo o Brasil. Souza,16 ao comparar o contexto do MNRU empreendido no Brasil com aquele no qual emer- gem os planos diretores, diz ter havido uma der- rota estratégica. Ela se deve ao fato de os planos privilegiarem as dimensões instrumentais e técni- cas, caindo num legalismo, em detrimento de uma análise social mais ampla, o que redundou na se- cundarização do papel mais democrático do plane- jamento e gestão. Isso é percebido na superênfase dada aos instrumentos em relação ao menor cré- dito, por exemplo, ao desempenho dos conselhos de desenvolvimento urbano. Para esse autor, esta- ria aqui confi gurado um tecnocratismo de esquer- da, numa alusão ao tradicional tecnocratismo. Maricato17 comenta que não por falta de leis as cidades tomam o rumo que se observa. E nem é com o Estatuto da Cidade que se inauguram instrumentos com a promessa de fazer cumprir a função dos planos diretores: promover um de- senvolvimento urbano equilibrado, harmônico ou sustentável. Aliás, a tendência é que, quanto mais valorizado o solo urbano, mais detalhada seja a sua legislação. Ela diz que “a perseguição a instru- mentos mais aperfeiçoados ou virtuosos é e sem- pre será importante, mas a questão central não é a técnica”18 e reafi rma: “nenhum instrumento é adequado em si, mas depende de sua fi nalidade e operação. Nenhuma virtualidade técnica substitui o controle social sobre essa prática”.19 Portanto, se existe um razoável consenso em meio a esse cenário de crise e de propostas emer- gentes, é que a racionalidade técnica necessária ao plano, se não se extingue, ao menos se relativiza, e a dimensão política deve ser incorporada, senão mesmo privilegiada, em relação ao viés técnico. Souza20 sintetiza bem os matizes que colo- rem o que ele denomina como planejamento urba- no alternativo, difundido a partir do MNRU como opção ao menos no que se refere ao cenário bra- sileiro. E ele assim o faz em comparação com o planejamento urbano modernista: 16 SOUZA, 2002. 17 MARICATO, 2002. 18 Ibid., p. 95. 19 Ibid, p. 95. 20 SOUZA, 2003. Impulso44_art03.indd 47Impulso44_art03.indd 47 27/11/06 19:45:3227/11/06 19:45:32 48 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Planejamento urbano tradicional (corbusiano) “Planejamento urbano alternativo” Busca da racionalidade e da ordem, adequando-se às exigências do capitalismo. Busca de justiça social como prioridade máxima. Separação rígida de funções (habitar, produzir, circular, recrear-se) como a essência do zoneamento urbanístico. Melhor distribuição dos serviços públicos em infra-estrutura pelo espaço da cidade para minimizar a segregação residencial e melhorar o acesso dos mais pobres a equipamentos de consumo coletivo. O planejamento entendido como o momento de elaboração de um documento técnico (plano). O planejamento compreendido como processo de elaboração, atualização e reelaboração de diretrizes técnico-políticas, ao que se acrescentam o acompanhamento e a fiscalização da implementação dessas diretrizes. Ignora que a realidade é marcada por conflitos. Busca explicitar os conflitos e servir não como uma ferramenta de criação de harmonias artificiais, com base puramente na racionalidade técnica, mas como instrumento orientador da negociação política em torno dos destinos da cidade. Contudo, mais que uma denominação, pro- curamos neste artigo refl etir em que medida o pla- nejamento urbano no País, no contexto pós-MNRU, pós-Constituição de 1988 e pós-Estatuto da Cida- de (ou, dir-se-ia, com o Estatuto da Cidade), vem apresentando uma possibilidade de contestação ao paradigma modernista. E também de inovação ao que vem sendo proposto em outras realidades mundiais e nos chega, muitas vezes, introduzido por seu mainstream como tábua de salvação; por- tanto, mais que uma nova roupagem, um verdadei- ro novo corpo ao planejamento urbano. ESTATUTO DA CIDADE: PENSAMENTO FRACO QUE PRETENDE SER FORTE (OU JÁ VEM SENDO?) Nossa refl exão prossegue aqui com base nos preceitos de Chalas,21 urbanista francês que, em consideração ao que emerge diante da crise do urbanismo tradicional, prefere nomear como urbanismo sem projeto aquele em oposição a outro conceito, o de governança urbana. Esse último, segundo ele, estaria associado à fábrica de imagens técnicas, remetendo a nosso ver ao mainstream do planejamento estratégico e sua ampliação do pla- nejamento para além da esfera estatal. Já quanto ao urbanismo sem projeto, Chalas diz oferecer uma possibilidade de repolitização da vida urbana, de gestão do confl ito entre todos os habitantes, muito além de troca entre especialistas, políticos, técnicos e agentes econômicos, abrindo- se amplamente a esfera coletiva. Contudo, longe de uma pretensa hegemonia e de se arvorar como pensamento dominante, esse urbanismo se enqua- draria numa modalidade emergente designada como 21 CHALAS, 1998. pensamento fraco,22 que ele classifi ca como “um pensamento tornado mais incerto, mais complexo, menos sistemático e, por isso mesmo, menos polê- mico, menos constituído em doutrina”.23 Para Chalas, o surgimento do pensamento fraco caracterizaria os períodos de mutações his- tóricas em que a sociedade se situaria entre dois mundos, no meio de uma redefi nição da transcen- dência e da imanência que o privaria de pontos de referência imperativos e não lhe permitiria senão orientações relativas. O pensamento fraco, se não é sem referencial, pelo menos possui referencial fraco ou frio. Reportando-se ao urbanismo, esse autor diz: Este urbanismo teria uma legitimidade fraca, enten- dendo por legitimidade não o que denota legitima- ção e racionalização a posteriori de uma relação de força, mas o reconhecimento de uma ordem social comum, fundada em direito e razão. A legitimidade fraca corresponde a uma situação ou a um espaço no qual advém uma legitimidade diferente do poder já adquirido, uma legitimidade ainda problemática em seu exercício pelo fato de que ela não surge no momento atual na ordem da evidência ou do con- sentimento social amplo com a mesma possibilidade que ela tem no plano cultural. Há legitimidade fra- ca quando advém um novo poder que sofre de uma credibilidade retraída.24 22 O advento de novos modos de ser ao mundo, de agir e de fazer na sociedade iria ao encontro de certas transformações de nossa moderni- dade, ou certas formas de declínio dessa, ao que alguns chamam o fi m da modernidade, como o fi lósofo italiano Gianni Vattimo, entre outros, de quem se empresta a expressão pensamento fraco. Do italiano, tem-se pensiero debole, pensamento ao qual falta força física, que não suportao cansaço, e, frágil, mostra lacunas, não convence, faltando-lhe força moral. 23 CHALAS, 1998, p. 207. 24 Ibid, p. 208. Impulso44_art03.indd 48Impulso44_art03.indd 48 27/11/06 19:45:3327/11/06 19:45:33 49Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Atualizando essa discussão para o momento da crise brasileira do planejamento urbano, apesar do teor contestatório das experiências aqui postas em prática – especialmente no contexto seguin- te ao do MNRU –, poder-se-ia, a princípio, muito bem enquadrar no que acima foi defi nido como esse pensamento fraco. Ainda que se oponha ao pensamento forte, o faz não por sua força própria em si, mas graças à debilidade aparente daque- le (que insiste em permanecer). Entenda-se que a legitimidade da qual se fala é mais num senti- do subjetivo do que propriamente legal, afi nal, o Estatuto da Cidade, baluarte desse planejamento urbano alternativo, é LEI! Contudo, como é não- experimentado, acaba ainda por carecer de força, mesmo que se ponha em luta contra o paradigma hegemônico alicerçado sobre bases igualmente em crise: do Estado, da formação de profi ssionais e dos próprios planos urbanos. Chalas vai caracterizar esse urbanismo sem projeto, até agora só defi nido, a partir de cinco aspectos bastante correlacionados, apontando-o como: 1. não-espacialista; 2. performático; 3. in- tegrador; 4. apofático; e 5. político. Esses aspec- tos subsidiam alguns questionamentos preliminares acerca da realidade que nos propusemos a analisar. URBANISMO NÃO-ESPACIALISTA: ao contrário do espacialista – no qual a ideologia do espaço cons- truído atua como instrumento principal, tentando refazer a cidade e as pessoas –, reconhece que não há determinismo da forma sobre o comportamento. O urbanismo modernista (espacialista) abole a morfologia tradicional e instaura um novo padrão de ocupação urbana, e, de acordo com Holston,25 para isso se serve da descontextualização e da téc- nica de choque, que consiste em refutar qualquer referência ao modus vivendis tradicional. A experiência recente do planejamento ur- bano no Brasil, embora revestida de certa aura normativa por conta da Constituição e do próprio Estatuto da Cidade, se manifesta bem menos sob esse enfoque, talvez por não ser mais tão teórico, e, sendo tanto mais realista quanto menos utó- pico, já tenha assimilado o fracasso do determi- 25 HOLSTON, 1993. nismo espacial. Contudo, ao colocar a ênfase na questão fundiária, e ainda que o caráter processual prefi gurado no Estatuto da Cidade oriente para a prática democrática e seus instrumentos possi- bilitem alcances sociais, há indícios de que mesmo alguns novos instrumentos teriam esse viés espacia- lista. É o caso do zoneamento para áreas especiais de interesse social,26 ao qual se aplicariam regras edilícias particulares, determinando inclusive um mínimo aceitável, o que faz memória certamen- te as pretensões modernistas da individualidade restrita e supostas necessidades básicas. Por outro lado, se no urbanismo espacialista a unidade habi- tacional era o ponto de referência, em oposição ao espaço público como pano de fundo, a concepção do estatuto não chega a resgatar o papel do es- paço público deteriorado com a colaboração do modernismo – ao decretar a morte da rua, como diz Holston.27 O Estatuto da Cidade menciona o lazer como função social, mas não passa disso. URBANISMO PERFORMÁTICO: privilegia a di- mensão do debate público para o projeto, e não sobre o projeto, buscando valorizar mais o proces- so que o resultado. Retomando a refl exão sobre o urbanismo espacialista, o caráter do urbanismo trazido pelo estatuto, a despeito de suas origens no MNRU e de suas determinações quanto à par- ticipação direta da população nos processos de planejamento urbano, ignora e superestima o pa- pel das metodologias para que isso se concretize. Aqui, remetemos às considerações de Souza em algumas de suas obras28 – comentadas a seguir –, autor que reiteradamente vem alertando para a ne- cessidade de uma crítica mais intensa aos proces- sos rotulados como participativos. Vale o destaque feito por esse autor quanto à pouca especifi cação das modalidades dessa participação no texto do estatuto, que, quando não vazio, é ambíguo. URBANISMO INTEGRADOR: essa modalidade dá conta da complexidade e, a partir daí, evita o comportamento fragmentador, evidenciando a in- tegração dos diversos aspectos no âmbito da no- ção de imprevisibilidade. O urbanismo integrador 26 Cf. art. 4.º, inciso III, alínea ‘f”; art. 2.º inciso XIV; art. 4.º, § 2.º. 27 HOLSTON, 1993. 28 SOUZA, 2002 e 2005. Impulso44_art03.indd 49Impulso44_art03.indd 49 27/11/06 19:45:3427/11/06 19:45:34 50 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 é o contrário do modernista, com seu ideal sim- plifi cador, sua concepção reducionista das fun- ções da cidade e o padrão de homem-tipo, numa compreensão maquinal ingênua e fragmentada da real complexidade da vida moderna.29 Chalas comenta que “somente uma atitude fl exível, aber- ta, atenta a cada vez, para cada projeto, às forças presentes, expressões, trajetórias, mas também às oportunidades e potencialidades, tem chances de obter sucesso”.30 A nosso ver, é assim que um plano construído com diretrizes, ações e progra- mas, partindo de uma visão sobre a multiplicidade do território deveria se processar. O abandono do zoneamento como instrumento base daquela lógica reducionista seria a mais notória prova de que a noção fragmentadora fora abandonada. As- pectos processuais, e não só instrumentais, tam- bém denotariam uma prática integradora, como a intersetorialidade e a interdisciplinaridade na ges- tão, bem como o contínuo e crescente debate so- bre o planejamento urbano, aspectos esses muito pouco explícitos no texto do estatuto. URBANISMO APOFÁTICO: conduzido a se preo- cupar não mais com a felicidade para todos, como preconizava o urbanismo teorizado, mas com a mí- nima contrariedade ou a mínima difi culdade para cada um na elaboração do projeto. Ele não parte do interesse geral existente a priori, determinado ou conhecido em sua substância antes de qualquer ação, mas aí chega, ao procurá-lo e produzi-lo em função dos projetos. Seria o urbanismo da realida- de, que reconhece os confl itos, relativiza o poder do técnico e do Estado, realiza pactos, não parte de uma concepção a priori, mas vai determinando-a conforme as vicissitudes do processo. Ao verifi car a realidade brasileira, podemos ver traços desse tipo de urbanismo, contudo, também questionamos se não persiste o caráter teleológico do modernismo, pois, em que medida o Estatuto da Cidade não parte de um ideário também preconcebido? Seus 29 Essa perspectiva fi ca bastante evidente na vanguardista crítica do ci- neasta Jacques Tati, em Mon Oncle, do fi m da década de 1950. Esse fi l- me demonstra como o modernismo não se coaduna nem mesmo com os personagens ditos mais modernos, submetidos às novas rotinas que lhes são estranhas, fazendo-os passar de agentes a passivos executores de tarefas robotizadas. 30 CHALAS, 1998, p. 210. instrumentos não pleiteiam pretensiosamente a consecução de objetivos apoiados numa utópica função social da propriedade e, assim, tentam criar à sua maneira, como os pré-urbanistas de meados do século XIX, modelos de convivência que ameni- zem confl itos, desconsiderando o próprio sistema capitalista que os gera? Ainda assim, se somente amenizam as conseqüências de uma crise maior, até que ponto os instrumentos presentes no estatuto, gestados no seio da intelectualidade, são capazes de atender ao que a sociedade realmente deseja? URBANISMO POLÍTICO: nele se demanda a repolitização do urbano, uma vez que o caráter técnico perde espaço para o lugar do debate. A politização do urbanismo signifi caque o debate público e aberto, de essência política, sobre a or- ganização da cidade e do ser-conjunto na cidade torna-se mais a garantia de um melhor urbanis- mo, ou de um urbanismo ótimo, que a excelência técnica, estética, funcional e racional. Chalas co- menta: “A dimensão formal e técnica do projeto torna-se secundária em relação à sua dimensão política. Neste sentido, é possível falar-se de uma desespacialização da questão urbana em proveito de sua repolitização”.31 Dessa maneira, compare- ce a ênfase do estatuto à questão política, seja ao longo do texto seja no capítulo específi co sobre a gestão democrática. Contudo, sabe-se que esse tipo de exercício não é algo a ser aprendido por decreto ou lei, e que o aprendizado da cidadania e da participação pode ser longo e muito depende da forma como é concebido e confi gurado. Outro subsídio para questionamentos à situação brasileira vem das refl exões de Souza32 sobre os desafi os a serem enfrentados por um plane- jamento e gestão urbana críticos, dos quais a seguir comentaremos alguns. EXAME BASTANTE PONDERADO DO ARSENAL DE INSTRUMENTOS DE QUE HOJE DISPÕEM O PLANE- JAMENTO E A GESTÃO URBANOS: avaliando em que medida muitos deles podem ser reciclados ou sub- vertidos, com a fi nalidade de servir a propósitos diferentes daqueles para os quais foram original- 31 Ibid., p. 211. 32 SOUZA, 2002 e 2005. Impulso44_art03.indd 50Impulso44_art03.indd 50 27/11/06 19:45:3527/11/06 19:45:35 51Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 mente concebidos – e, não raro, francamente con- servadores. Além de os instrumentos nascerem de uma experimentação em grande parte em metró- poles e grandes cidades, compreendem processos que carecem de avaliação no tempo e, assim, pos- sam se medir seus impactos. Como considerar se o IPTU progressivo33 não será capaz de, ao tentar otimizar o uso do solo urbano com infra-estrutu- ra, se coadunar mais ainda aos interesses do setor da construção civil? Como afi rmar que a defi nição de áreas para urbanização de classes de baixa ren- da não permitirá o surgimento de enclaves sociais no tecido urbano? Como as ações consorciadas34 podem ser implementadas sem o risco de consti- tuir intervenções que privilegiem poucos e não se revistam do caráter fragmentado já observado em projetos vinculados ao mainstream do planejamen- to estratégico? E ainda: como o controle social pode efetivamente se desenvolver, a ponto de dar a justa medida ao curso desses instrumentos? Esse aspecto do controle social merece um ponto espe- cial aos questionamentos, como se terá a seguir. VALORIZAÇÃO SIMULTÂNEA DAS DIMENSÕES POLÍTICA E TÉCNICO-CIENTÍFICA DO PLANEJAMENTO E DA GESTÃO:35 a nosso ver, e como já comenta- mos, ela implica vencer uma resistência à revisão do papel do próprio planejador e à necessária co- municação entre a academia e a prática. Embora o Estatuto da Cidade caminhe nessa direção, há que se avançar nas duas dimensões, até mesmo porque boa parte dos instrumentos novos fi gurantes na 33 Estatuto da Cidade, art. 7.º. 34 Ibid., arts. 32.º e 33.º. 35 SOUZA (2002) aprofunda essa noção crítica com base na refl exão habermasiana a propósito da razão e do agir comunicativos, em que a primeira, orientada pela efi ciência, acolhe uma dimensão de dominação e manipulação e a segunda guia-se por meio da comunicação, na qual prevalece o melhor argumento. Contudo, como ele comenta, não se deve desprezar o papel da técnica. “A diferença reside, primeiramente, em que o planejador crítico não se limita a ‘otimizar meios’ de manei- ra bitolada: ele deve envolver-se com questões de valor e pode e deve envolver-se, sem arrogância, nos debates sobre os fi ns, eventualmen- te chamando a atenção para possíveis contradições entre objetivos. A principal diferença, no entanto, é que ele reconhece o primado do agir e da razão comunicativos no que tange à decisão legítima sobre os fi ns – e, na presença de controvérsias ou alternativas igualmente válidas, também no que tange à escolha defi nitiva dos meios” (SOUZA, 2002, p. 39). Assim o perfi l de profi ssional que se vê surgir é aquele com a ex- celência técnica balizada pela consciência política de seu trabalho, abrin- do-se a perspectivas antes negadas, como a consideração dos usuários. Isso dá espaço também para que o conhecimento e o planejamento ur- bano se ampliem para além do âmbito da arquitetura e do urbanismo. lei foram aplicados em metrópoles e grandes cida- des, onde inclusive a cultura política difere das de outros contextos. Cabe cuidar também de como introduzir a dimensão política. Souza expõe suas inquietações quanto à participação popular, mui- tas vezes maltratada ou secundarizada justamente entre aqueles que, ritualmente, seguem insistindo serem a ela favoráveis. Com freqüência, ela é en- carada, na prática, como mero tempero, sendo os ingredientes principais os instrumentos contidos nos planos e nas leis. REFLEXÃO SOBRE O ALCANCE DE TERMOS COMO PARTICIPAÇÃO POPULAR: o Estatuto da Cidade re- presenta grande avanço em matéria de marcos jurídicos. Não deve restar dúvida de que ele re- presenta um ganho, inclusive no que concerne à participação popular, mencionada em sete artigos diferentes, três dos quais num capítulo específi co sobre gestão democrática da cidade. Contudo, a sua importância tem sido costumeiramente exa- gerada (e seus defeitos têm sido muito pouco debatidos), bem no estilo do já nomeado tecno- cratismo de esquerda. Acreditamos que a própria exigência legal de que os planos diretores estejam prontos até outubro de 2006 venha gerando uma afl ição entre os prefeitos e, conseqüentemente, al- gumas incompreensões do que seria a participação popular. Souza comenta o tratamento dispensado a essa questão, afi rmando que a maneira como o estatuto a ela se refere é, quase sempre, indefi nida – admitindo-se uma interpretação que privilegia, dependendo da prefeitura, um processo delibera- tivo ou outro meramente consultivo – ou, então, a tônica é claramente consultiva. Para esse autor, o Estatuto da Cidade poderia ter amarrado melhor a previsão de participação popular no planejamento e na gestão urbanos, de modo a minimizar o ris- co de uma pseudoparticipação tão-somente com o objetivo de cumprir formalmente a lei.36 Ainda 36 SOUZA (2005) refl ete sobre o texto do Estatuto e demonstra pas- sagens de caráter indefi nido ou ambíguo: art. 2.°, inciso II; art. 4.°, inciso III, alínea f; art. 33, inciso VII; art. 40, § 4, inciso I; art. 43, inciso I; art. 44; art. 45; com um caráter nitidamente consultivo: art. 2.°, inciso XIII, e no art. 43, incisos II e III. Nitidamente deliberativo, somente o art. 4.°, inciso V (que cita o referendo popular e o plebiscito, mecanismos que, de toda forma, já haviam encontrado acolhida na própria Constituição Federal), e o art. 43, inciso IV (que cita a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, coisa que, igualmente, já se achava prevista na Constituição). Impulso44_art03.indd 51Impulso44_art03.indd 51 27/11/06 19:45:3627/11/06 19:45:36 52 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 que não entrasse em detalhamentos – afi nal é uma lei, e de abrangência nacional –, teria como reme- ter a maior parte do detalhamento a leis locais, em nome do bom senso e da salvaguarda do princípio da autonomia municipal. Por outro lado, a forte redundância entre vários dos artigos poderia ter dado lugar a uma mais minuciosa e refl etida escri- ta sobre esses termos. Embora um pouco extensa, vale aqui a exem- plifi cação desse autor quanto ao plano diretor de- senvolvido em São Paulo. Realizado pela gestão de Luiz Erundina, quando pertencia ao PT, o plano foi aprovado só na gestão de outra petista, Mar- ta Suplicy. Sintomaticamente, foi nomeado Plano Diretor Estratégico do Municípiode São Paulo e é, realmente, segundo Souza, um híbrido de pla- no estratégico (no estilo empresarialista ou empre- endedorista) com elementos de desenvolvimento urbano sustentável e tinturas do ideário da reforma urbana. Contudo, onde está o espaço reservado à participação popular? Embora dedique quatro ca- pítulos à gestão democrática do plano diretor estra- tégico, apenas o último focaliza mais diretamente o assunto da participação, e de forma bastante vaga. Não detalha praticamente nada em comparação ao que dispõem a própria Constituição (plebiscito, referendo, iniciativa popular) e o Estatuto da Ci- dade (debates, audiências públicas, conselhos). E, para o centro das atenções, o Conselho Municipal de Política Urbana e Ambiental, preconiza-se uma composição que reduz o papel dos setores popu- lares e confere grande peso aos empresariais, a en- tidades associativas profi ssionais (representantes do saber técnico) e ao próprio aparelho de Estado: no total, 30 membros, um terço deles, representan- tes de base territorial representativas da população, outro terço de representantes de entidades de base setorial representativas de setores econômicos ou pro- fi ssionais e outro terço de representantes de órgãos ou entidades públicas municipais. Dessa maneira, questionamos também como as tinturas de um ideário apoiado no empresaria- mento da cidade, derivado da concepção de pla- nejamento estratégico, não se confi gura senão na intenção, pelo menos no texto do Estatuto da Ci- dade. A pseudoparticipação e a pouca permeabili- dade à realidade social, características do planeja- mento estratégico, não estariam tão distantes de possíveis interpretações conferidas à escrita vaga do estatuto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Além dessas considerações já tecidas à luz das contribuições de Chalas e também de Souza, outras poderiam ser agregadas a título de síntese geral. Percebemos que o estatuto é norma e su- põe confi ança normativa, como lei colocada em todo o território nacional para dirimir questões de escala local, seja urbana seja metropolitana. O caráter universalista da Carta de Atenas pode encontrar, nessa escala em que se processa o esta- tuto, uma certa reticência, o que preocupa, afi nal, foi justamente a pretensa visão totalizadora que custou ao planejamento urbano sérios ônus. Ain- da que, como comenta Carvalho,37 o Estatuto da Cidade reafi rme os princípios básicos estabeleci- dos pela Constituição da União – preservando o caráter municipalista –, a centralidade do plano di- retor como instrumento básico da política urbana remete, igualmente, à centralidade da função do poder público na regulação das relações sociais em matéria urbana, o que, pelo menos, está ainda lon- ge de uma perspectiva mais autonomista, defendi- da por Souza.38 A própria função social do solo,39 que aparece no estatuto na tentativa de amenizar os confl itos gerados pela propriedade privada do solo – apesar das dimensões mais participativas dos processos de decisão ao qual se abre –, ainda atribui ao Estado um papel bastante acentuado. A solução modernista para a questão fundiária foi mais simplista e apoiada na arquitetura, com a pu- blicização do rés-do-chão por meio dos pilotis,40 37 CARVALHO, 2001. 38 Mais particularmente no capítulo 10, Parte II, em SOUZA (2002). 39 As funções sociais, defi nidas no estatuto, abrangem as mesmas já identifi cadas na Carta de Atenas, explicitadas no art. 2.º, e as questões habitacional e fundiária comparecem como primordiais, defi nindo am- plamente os outros aspectos do estatuto, como os seus instrumentos. Observe-se que tais aspectos foram os mesmos que nortearam os pre- ceitos do modernismo. 40 Quanto aos instrumentos do Estatuto da Cidade, chama a atenção o direito de superfície (art. 21.º), que fl exibiliza a propriedade do solo do seu uso e, assim, remonta ao princípio dos edifícios sob pilotis que liberariam o solo para uso público, sem prejuízo da propriedade privada nos andares superiores. Impulso44_art03.indd 52Impulso44_art03.indd 52 27/11/06 19:45:3727/11/06 19:45:37 53Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 mas, diga-se de passagem, tão arraigada na pro- funda crença no poder do Estado como regulador do solo quanto o próprio estatuto. Ainda sobre o Estatuto da Cidade, Carva- lho41 comenta a manutenção da divisão de com- petências entre os três níveis de governo, concen- trando na esfera municipal as atribuições de legislar em matéria urbana. A permanência desse quadro, a seu ver, signifi ca circunscrever o tratamento e a proposição de soluções às questões urbanas nos limites do território municipal, pois compete aos Poderes Executivo e Legislativo municipais equa- cioná-las. Contudo, ignora-se que o tratamento de muitos dos problemas urbanos extrapolam os limites de municípios, confi gurando as áreas me- tropolitanas e as aglomerações urbanas. Assim, acreditamos que o Estatuto da Cidade não se po- siciona sobre um aspecto já descrito por muitos autores de forma crítica, que é o da competição entre cidades por sua colocação na rede mundial. Atentamos que instrumentos como as operações urbanas consorciadas poderiam ser meios efi cazes na barganha em que se envolvem as municipalida- des na atração de investimentos externos, o que acirraria esse ambiente de competição, pouco de- mocrático, agravando desigualdades no território nacional. Outra consideração de Carvalho42 trata a imprecisão de alguns enunciados, como orde- nação, bem-estar dos cidadãos e função social da propriedade, que soam genéricos e abstratos, acredita a autora, somente poderão expressar reali- dades históricas, defi nidas temporal e espacialmente, quando do exercício do processo de planejamento. Dessa forma, concordamos com ela e ampliamos a nossa justifi cativa quanto a não avançar mais em relação à crítica do estatuto, sob o risco de sermos precipitados, pretensiosos ou ainda injustos. Afi - nal, serão os passos derivados de sua compreen- são e exercício que nos darão mais subsídios para avaliar o quanto avançamos da crise a um planeja- mento efetivamente alternativo e coerente com a realidade brasileira. 41 CARVALHO, 2001. 42 Ibid. Aqui demonstramos o que o próprio texto, ou ainda as avaliações acerca do contexto de surgi- mento do Estatuto da Cidade, e de aplicação iso- lada de seus instrumentos nos permitiram auferir. No que se refere à provocação feita tanto no título do artigo, como ao longo de todo o texto, de que o Estatuto da Cidade revela-se como um “pensa- mento fraco”, pode-se concluir que, no mínimo se identifi ca nele certa ambigüidade, pois tanto há traços signifi cativos de certa inércia do paradigma anterior, quanto manifestações inequívocas de sua capacidade de superação do viés modernista. Retomando a defi nição de Chalas43 sobre o pensamento fraco, fundada numa legitimidade ain- da problemática, própria de um momento em que surge um novo poder que sofre de uma credibilidade retraída , esboçamos um último questionamento, com a fi nalidade de conclusão. O urbanismo mo- dernista, com seu caráter desistoricizante, fez surgir um paradoxo ideológico, conforme explicitamos no caso de Brasília. Nesse sentido, o Estatuto da Cida- de poderia mesmo pretender construir uma políti- ca urbana inovadora, do ponto de vista ideológico, sem efetivamente deixar às claras o confl ito de inte- resses nesse campo? A despeito do urbanismo mo- dernista, difundido graças ao poder icônico de sua arquitetura, de qual artifício se serviria o estatuto, se realmente parte do pressuposto de que, independen- temente do viés político, ideológico e partidário, terá uma resposta similar ou igual em toda a diversidade da Nação? Ingênuo ele não seria. Se tomarmos em conta episódios recentes da política brasileira, capi- taneada hoje em dia peloPT, a legitimidade que já era fraca e a credibilidade que vinha se consolidando beiram o xeque-mate, a ponto de por em risco igual- mente o estatuto, gestado num contexto em que a participação desse partido foi decisiva. Se o Estatuto da Cidade pretende, como o paradigma anterior, ignorar aspectos intrinseca- mente contraditórios, ainda não deixa claro sob o que os irá mascarar. Sua consecução e repercussão só nos deixam mais instigados a análises de mo- nitoramento do poder que um pensamento forte possui, ao começar, assim, a se formar. 43 CHALAS, 1998. Impulso44_art03.indd 53Impulso44_art03.indd 53 27/11/06 19:45:3827/11/06 19:45:38 54 Impulso, Piracicaba, 17(44): 43-54, 2006 Referências Bibliográfi cas BRASIL. Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10/jul./01, que estabelece diretrizes da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados/Coord. de Publicações, 2001. CARVALHO, S.N. de. “Estatuto da Cidade: aspectos políticos e técnicos do plano diretor”. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 4, out./dez., 2001. CHALAS, Y. “L´urbanisme comme pensée pratique”. Les Annalles de la Recherche Urbaine, n. 80/81, p. 205-214, 1998. DEL RIO, V. “Plano diretor, desenho urbano e imagens da cidade”. Sinopses. 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