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Texto 11 - Ducart - Ser palavra que roda

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http://www.universidadedofutebol.com.br/Artigo/15500/Ser-uma-palavra-que-roda
17/03/2013 00:11:17
Ser uma palavra que roda
Uma bola de futebol é como uma palavra gigante que roda, porque quando você decide jogá-lo, se enfraquecem as fronteiras entre a realidade e os sonhos
Marcelo Ducart*
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“Eles se juntavam sempre no campo de futebol do bairro. Lá mesmo, improvisavam uma partida com o colorido de uma fnal de Copa do Mundo. O tempo se paralisava e o mundo espontaneamente começava a girar em torno desse pedaço de couro esférico. Uma verdadeira revolução copernicana ocorria nas mentes daqueles meninos. Sem perceber, o ritmo de cada jodada ia alinhavando uma história diferente. O jogo era uma oportunidade para se dizer coisas e, consequentemente, dizerem-se a si mesmos. Depois das risadas, pifiadas e, porque não, algumas palavras de baixo calão, construíram-se mitos e metáforas que davam conta dos seus medos e certezas. Nenhuma suspeita de que tais vozes transpiradas de carne e suor estavam ensaiando novas respostas existenciais; sutis objeções a questões universais que latiam em seus corações sem dar demasiadas afirmações concretas. Porque, em última análise, a palavra era como uma bola gigante que os abraçava no êxtase do jogo...”
Uma bola de futebol é como uma palavra gigante que roda. Um vasto oceano que circula e cujas profundezas se cruzam nas correntes, se agitam nas águas profundas, se integram e rompem as ondas e, no momento menos esperado, somos empurrados para horizontes desconhecidos.
Futebol é sugestão e evocação, porque quando você decide jogá-lo, se enfraquecem as fronteiras entre a realidade e os sonhos. É também um brinquedo que se confunde com os corpos sob o ritmo dos golpes e carícias. Uma desculpa que morde e é oferecida.
Se deixa repousar, acariciar e, até muitas vezes, não oferece mais resistência que os olhares curiosos. Se deixa disputar, empurrar, cabecear; goza quando algum iluminado o faz dormir entr eos pés ou também quando se ondula entre o peito ou, melhor ainda, quando se beija entre as suas mãos.
Esta palavra esférica apelidada felizmente de "futebol" é a melhor metáfora do que somos e do que dizemos ser nesta vida: instrumentos nos pés (e mãos) dos outros.
Esta verdade está longe de ser uma tragédia, é o sentido mais completo que pode acessar um filhote humano. Um não é um, no sentido estrito da palavra. Dizer um é dizer outros, tantos outros que se materializam em mim; e se colam e se confundem com a minha voz.
E me empurram para dentro e para fora para que continue colocando meu sangue na terra como adubo da eternidade. E me atraem para entreter em minha história uma direção tão original como parecia a dos meus antepassados.
Novos e antigos, o múltiplo e o simples, o passado e o futuro, deixam de se opor e não têm mais para onde jogar o mistério insondável da vida quando uma bola se põe em movimento.
Descobri, naquele instante, que o silêncios e as mortes cotidianas, as lesões e as feridas de uma carreira profissional, também são bússolas dos navegantes que orientam a estética do campo de jogo. Quanta paixão! Quanto saber! Quanta magia! Quanto mística! Quanto êxtase mundano irradia esta palavra esférica...!
Aquele não é apenas um, também exclui as justificações mais sutis para poder dispor dos outros como simples objetos. Além disso, neste contexto, é possível dizer que não existe "um" em si mesmo, mas somente complementado; dizer "eu mesmo", na realidade, significa dizer um deles.
Desta forma, não resulta nada ousado expressar que: "Eu sou", ou "Eu estou contente", é o mesmo que dizer: "Eu sou um de tantos para o encontro...", "eu estou, por natureza e essência, destinado a encontrar com você e com um de nós.”
O eu individual é o status do seu relacionamento. E, se é verdade que os seres humanos "nascem", de alguma forma, para falar de algum modo, no encontro interpessoal, então a singularidade é baseada na alteridade. A experiência precoce é a "segunda pessoa", o tu definitivo que se encarna no amor.
Há muito a dizer!
Mas, vamos um pouco mais. A bola passa rolando humildemente despercebida entre os jogadores e a plateia entusiasmada. Tanto assim, que disse tudo sobre este esporte, ainda é para esclarecer a parte fundamental do jogo, o objeto do litígio: a bola.
Futebol, como o próprio nome da bola, adquire um caráter fascinante ligado à perfeição da sua viagem e a incerteza que abre sua queda, em contraste para a euforia produzida pela sua ascensão.
Finalmente, nossos jogos são resíduos de existência não lúdica (ou seja, do não-jogo) que manifestou-se de uma fase antiga da cultura. No futebol do que roda e seduz, manifesta antigas fantasias, mais ou menos dormentes, e portanto, constitui uma descarga.
Nesta área cheia de símbolos, monopólios e poderes, é um símbolo que alimentou a imaginação e permite a construção de fantasias destinadas a negar a perda magicamente satisfazendo desejos, como ocorre nos sonhos.
Até o campo de jogo, rodeado por soberbos e impressionantes estádios, cai sob os pés e o feitiço desafiador de uma bola rolando. Porque é ela que, finalmente, configura o espaço em que decorre a ação. Ela confronta os jogadores, reúne dispersá-los, e é a razão para esta estratégia que pretende colocar no arco oposto. Uma falha imperdoável, portanto, se torna algo tanto desejado e que temiam, cuja posse é um privilégio e a perda.
Enquanto que, se este esporte de multidões chamado futebol é considerado por alguns como uma forma de linguagem universal, não é menos verdade que a bola que leva seu nome é o conteúdo dessa mensagem.
Supõe-se positivo e liderança silenciosa mobilizar vinte e dois jogadores em um tribunal e de atraí-los para mais de uma hora antes dos olhos e os pensamentos de milhares de espectadores.
Não é casual, mas essa liderança da bola. Sua forma esférica ligada com um dos símbolos mais antigos que a humanidade consegue, lembra sua influência em alguns filósofos como Parmenides ou poetas como Rilke.
A esfera significa a maneira perfeita que a consciência de uma, e inteiramente, imagem do infinito e da eternidade. Desde os tempos mais remotos, homens jogam jogos, brutais, primitivos, como se quisessem familiarizar-se com esse objeto quase sagrado nessa misteriosa síntese entre a guerra e a partida, a terra e o céu com formas esféricas.
E se o futebol como um esporte pode ser considerado como uma estrutura, um universo em constante movimento, é totalmente relevante assumir, também, que a estrela mais acima do que todos os planetas gira como dançarinos de órbitas à sua volta, que é, sem dúvida, a bola rolando.
Há tanto silêncio!
Rajada de luz, reciclagem da dor... Esta bola rolando também chamada por nós, nos torna desconfortável e desafiadores. Ela não responde com gritos, mas faz perguntas no silêncio do coração. Não resolve, mas também provoca conflitos. Não fornece fácilmente, mas, é especialmente difícil.
Ela não explica, mas, que na maioria das vezes, acaba complicando a existência de jogadores, treinadores como espectadores. Começamos por nossas inseguranças corporais ao enfrentá-los para superá-los. Não é um útero que nos livra da maioria dos perigos ao redor, mas, o cordão umbilical cortado rapidamente vai para o deserto, pela luta de liberdade partilhada.
Uma bola de futebol é a outra margem, medindo a distância e a proximidade com os outros. É a vertigem que gera a necessidade de sair de nós próprios, apesar de tantos sentimentos de fascinação, medo, desânimo e espanto.
Tão temeroso em seus contornos, a bola de futebol se deixou domesticar facilmente por todos e, pior ainda, se chegamos para dar uma breve experiência estética através de um sentimento de harmonia e precisão, é sempre o resultado de momentos dolorosos da desorganização e desagregação.
No entanto, o valor do sacrifício torna-se um balé. Um exemplo claro da disciplina como o humano convertido em plasticidade pode subir como vencedor de todas as adversidades, ambos os fracassos como o sucesso.
Mais do que apenasuma desculpa que morde
Se só podíamos ouvir a mensagem silenciosa e escondida que vai chegar esta desculpa esférica que rola, seguramente alcançaríamos a compreensão da seguinte afirmação de vida:
"Escutem minha alegria enquanto eu sou apenas um balão de ar remendado, um pedaço de couro curtido. Eu sou de outros e ninguém mais. Eu sou um berço de ilusões e tristeza. Um monte de desejos santos misturado com coisas mundanas. Eu sou uma massa de bagualas, sambas e tangos. E quando eu começar a rolar para fora o bom e o mau que há nos corações,não morram as melhores intenções, nem os pensamentos mais sombrios. Escutem por favor, vocês que se agitam mendigando o êxito em cada ação, escutem e pensem. Eu sou apenas uma costa em busca de sobreviventes perdidos no mar da vida. Não excluo ninguém, nem sábios nem ricos. Nem pobres nem despejados. Eu sou o eterno desejo de homens e mulheres que esperam moverem-se atrás de seus desejos. E, apesar de tudo o que se pode dizer contra mim, eu ainda sou uma boa palavra que faz bem; uma oportunidade dos poucos remanescentes que liberaram tudo o que continha de alegria contida e que não se pode conter".
É claro que sob estes sentimentos impressos na letra ilegivel de uma bola, minha identidade humana se encontra protegida e confortável. Sim, como um professor e um homem deste tempo, sinto-me confortável sendo apenas uma bola silenciosa, de pouco valor comparativo no mercado. Que se usa e logo também sofre o abandono como tantos outros.
Um brinquedo que alimenta e canaliza os desejos dos que caminham e daqueles que ficaram sem forças na extremidade da trilha. Uma palavra que assusta a tantos silêncios cúmplices, que são produtos do medo.
Eu quero rolar e expandir a potência de jogar. Compreender a filosofia de vida como uma inteligência inconformista. Porque eu reconheço esta tensão interior que me faz aspirar a distâncias utópicas inalcançáveis, como um arco tenso sempre insatisfeito, mas, sedento de sonhos.
Como uma bola de futebol, quero aprender realmente o que significa estas palavras: bondade e generosidade. Já não quero ser um estranho feliz, cego e surdos à linguagem desconhecida dos sinais simples. Eu quero permanecer fiel aos outros mesmo na derrota e do naufrágio, para ser merecedor de sua amizade.
Quero sentir a plenitude da densidade da amizade desinteressada, a proximidade e a velocidade do amor partilhado. Fazer carne esta energia que devora as distâncias e que me separam dos demais como adversários e inimigos.
Quero carregar, sem queixas, o peso dos outros como um presente inegavelmente superior a todos os cálculos e troféus humanoss. Uma sabedoria oculta que escapa as razões e explicações, entrando sem aviso prévio e que, sem pedir desculpas, rompa esquemas, antigas bandeiras e sacuda aquelas pratelerias tão cheias de vazio.
Quero poder escutar as vozes de tantos irmãos excluídos de toda a fama, desprezados por não terem estado à altura heróica dos poderosos. Tantos homens e mulheres, crianças e idosos, que lutam tranquilamente entre as rachaduras do sistema.
E se minha surdez ainda impede os sons, não importa. Vou encher meu coração de silêncio e mantê-lo comigo. E vou esperar quieto, porque ele virá, sem dúvida, amanhã e, com ele, se desaparecerão as minhas sombras. E suas vozes vão se espalhar por todo o céu cantando músicas alegres de futebol.
Em gratidão à inspiração de meus amigos e colegas da língua portuguesa: Lino Castellani Filho, Manuel Sergio e Yara Carvallo, entre muitos outros.
Bibliografia:
Ducart, M. (2012) Aprender a desaprender. Acerca de los rituales pedagógicos; Material de Cátedra Epistemología y Educación Física; UNRC, Río Cuarto;
Ducart, M. (2012) ¿El maestro aparece cuando el estudiante está preparado?; Revista Hoja Aparte, Secretaría de Extensión UNRC, Año XVIII - Número 711, viernes 18 de mayo;
Río Cuarto – Lochr, J. (1990) Fortaleza mental en el deporte; Edit. Planeta, Bs.As., pág. 9;
Manuel Sergio (2011) Filosofía do futebol; IDP, 3º Edicao, Portugal;
Meszaros, I. (2008) La educación más allá del capital; Clacso, bs.As.
* Professor de Educação Física (UNRC) Ano 1999; especialização (Licenciatura argentina) em Educação Física (UNRC) Ano: 2001; professor de Filosofia (Instituto JBP, Río Cuarto) Ano: 1999; mestre em Educação e Universidade – MEU (UNRC) Ano: 2005; instrutor e treinador nacional de atletismo (Inst. Nacional do Deporte) Ano: 1994-95. Antecedentes: docente efetivo concursado desde 2007. Responsável das disciplinas Epistemologia, Educação (cod. 6645) e Antropologia e Filosofia da Educação Física (cód. 3504) da Especialização em Educação Física da UNRC. Participa em projetos de pesquisa na área desde o ano 2003
Tags: Filosofia , marcelo ducart , motricidade humana , educação física , conhecimento , debate , paradigmas , disciplina , bola ,

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