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Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 1 Avaliação por imagem da esclerose múltipla Flávio Túlio Braga1 1 – Médico Radiologista da Santa Casa de Misericórdia e do Centro de Medicina Diagnóstica Fleury, São Paulo, SP. 1 – Introdução A esclerose múltipla (EM) é a doença inflamatória crônica desmielinizante mais comum do sistema nervoso central (SNC), afetando, predominantemente, a substância branca e apresentando um curso clínico bastante variável. Foi descrita por Charcot em 1868 e representa, ainda hoje, um desafio aos pesquisadores no que refere à sua patogênese e tratamento. 2 – Critérios diagnósticos pela ressonância magnética A ressonância magnética (RM) representa um grande avanço no estudo não-invasivo dos tecidos vivos, tendo revolucionado a propedêutica das afecções neurológicas. Em relação à EM, ela permitiu um maior entendimento acerca da evolução patológica da doença e a detecção mais precoce de lesões, facilitando o diagnóstico e fornecendo informações prognósticas importantes. Estudos seriados permitem identificar o desenvolvimento de novas lesões bem como a presença de lesões com processo inflamatório em atividade. Além disso, favorecem a detecção de lesões antes do surgimento de manifestações clínicas, informações estas de grande utilidade para o manejo clínico dos pacientes. Vale ressaltar que as lesões identificadas na RM não são específicas para EM. Outras doenças podem causar alterações de imagem semelhantes, o que torna imprescindível a utilização rigorosa dos critérios diagnósticos propostos. Quando outras doenças são descartadas pela avaliação clínico-laboratorial, a observação rigorosa das lesões quanto ao número, morfologia, localização e dimensões fornece boa sensibilidade e especificidade para o diagnóstico da EM. Os critérios de diagnóstico por imagem (RM) da EM mais utilizados são aqueles propostos por Barkhof e colaboradores e Tintoré e colaboradores e encontram-se descritos na tabela 1. É fundamental que a análise dos estudos de RM seja feita de forma comparativa com exames anteriores para que seja avaliada a evolução do processo no tempo e no espaço. Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 2 Tabela 1. Critérios diagnósticos de esclerose múltipla pela RM Necessário pelo menos 3 dos critérios abaixo • 1 lesão com impregnação pelo gadolínio ou 9 lesões hiperintensas em T2 • Pelo menos 1 lesão infra-tentorial • Pelo menos 1 lesão justa-cortical (fibras “U”) • Pelo menos 3 lesões peri-ventriculares Notas: • tamanho das lesões > 3mm • uma lesão medular pode substituir uma encefálica O corpo caloso é um dos locais mais acometidos pela doença. Como o processo inflamatório tende a ocorrer ao redor dos vasos sanguíneos, a orientação das lesões calosais tende a ser perpendicular à interface caloso-septal e a assumir configuração ovóide, padrão este denominado “dedos de Dawson” (figura 1). Lesões medulares, embora de mais difícil diagnóstico que as intracranianas por razões técnicas, conferem um aumento da sensibilidade para o diagnóstico, haja vista que lesões microangiopáticas não surgem com a idade neste segmento do sistema nervoso. Figura 1. Lesões ovóides perpendiculares à interface caloso-septal (“Dedos de Dawson”). Se em um primeiro exame de RM, realizado após um período de mais de três meses da instalação de manifestações clínicas, for identificada uma lesão com impregnação pelo gadolínio, este achado por si só é suficiente para a caracterização da disseminação temporal do processo, haja vista que este será um sítio novo de comprometimento. Se não houver lesões com realce, um novo estudo deve ser realizado em 3 meses. Uma nova lesão hiperintensa em T2 ou com realce pelo contraste identificada neste novo estudo preencherá o critério de disseminação da doença no tempo. Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 3 3 – Seqüências de ressonância magnética 3.1 – Seqüências convencionais O desenvolvimento das seqüências convencionais ponderadas em T1 e T2 contribuiu bastante para a avaliação tecidual e para o estudo da anatomia do encéfalo. No contexto clínico de EM, as seqüências T2 são úteis na detecção do edema e da destruição tecidual tanto nas fases iniciais do processo inflamatório quanto tardiamente, quando há desmielinização e gliose. Ressalta-se, no entanto, a menor conspicuidade desta seqüência na identificação de lesões parenquimatosas situadas próximas ao líquor (figura. 2), determinada por artefatos de movimento ou por efeito de volume parcial. As seqüências ponderadas em T1 fornecem detalhes importantes da anatomia do encéfalo e apresentam grande aplicação na detecção das lesões irreversíveis denominadas “black holes” (figura 3). Figura 2. A – FLAIR demonstrando lesões justa-cortical e peri-ventricular de mais difícil caracterização na seqüência T2 (B). Figura 3. “Blackroles”. Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 4 3.2 – Contraste paramagnético O uso intravenoso do agente de contraste paramagnético (gadolínio) permite a identificação de áreas de quebra da barreira hematoencefálica (BHE) favorecendo o diagnóstico de processo inflamatório em atividade. É importante ressaltar que existem diferentes padrões de impregnação pelo gadolínio com boa correlação com os estudos histológicos. Na fase inicial do comprometimento, há um padrão nodular homogêneo de impregnação traduzindo um processo inflamatório proeminente com pouca desmielinização. Nas fases mais tardias, o realce assume um padrão anelar caracterizando uma desmielinização central completa e atividade inflamatória apenas na periferia da placa. Desta forma, em um único estudo é possível inferir acerca da progressão da doença no tempo pela caracterização de placas inflamatórias com diferentes padrões de impregnação pelo contraste paramagnético (figura 4). Figura 4. Padrões nodular e anelar de impregnação pelo agente de contraste 3.3 – Seqüências FLAIR e DP A sedimentação do conhecimento e o desenvolvimento de novas técnicas complementares têm possibilitado a avaliação por imagem cada vez mais detalhada dos pacientes com EM. No início da década de 1990, foi desenvolvida a seqüência Fluid Attenuated Inversion Recovery (FLAIR) que, além de apresentar ponderação T2 com alta sensibilidade na detecção de lesões parenquimatosas, promove a anulação do sinal do LCR, facilitando a identificação de lesões justa-liquóricas (figura 2). Esta seqüência rapidamente se tornou rotineira nos protocolos de neurorradiologia. Sua realização no plano sagital com cortes finos permite a identificação de estriações calosais que podem representar lesões incipientes em pacientes com EM. Vale ressaltar a limitação do FLAIR, quando comparado à seqüência ponderada em densidade de prótons (DP), na identificação de lesões parenquimatosas da fossa posterior (figura 5). Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 5 Figura 5. Observar a maior sensibilidade da seqüência DP (B) na identificação das lesões de difícil caraacterização no FLAIR (A). 3. 4 – Transferência de magnetização A transferência de magnetização (TM) representa uma técnica mais recente com aplicação na avaliação global do parênquima encefálico em pacientes com EM, visando o estudo da substância branca de aparência normal. Baseia-se na interação entre prótons em um estado relativamente livre e aqueles com movimentos restritos e reflete, indiretamente, a capacidade de as moléculas teciduais trocarem energia com as moléculas de água livre existentes no meio, indicando, portanto, a integridade dos tecidos. Alterações da transferência de magnetização traduzem, predominantemente, anormalidades das proteínas da mielina e precedem o aparecimento de novaslesões identificáveis nas seqüências convencionais de RM. Trata-se de uma técnica sensível que permite a caracterização de lesões antes obscuras, estimando, com maior precisão, a gravidade e a extensão da destruição mielínica na substância branca de aparência normal (figura 6). Figura 6. Observar o aumento da sensibilidade da seqüência T1 com transferência de magnetização (B) em relação ao T1 convencional (A) na detecção das lesões. Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 6 3.5 – Técnicas volumétricas A atrofia encefálica e medular é uma marca registrada dos danos teciduais irreversíveis e está relacionada à perda da densidade e do volume axonais e à redução da matriz mielínica. Pode ser aferida por meio de técnicas automatizadas, fornecendo dados objetivos acerca da progressão da doença. Embora possa surgir nos estágios iniciais da EM, há uma tendência de aceleração nas fases mais avançadas. Alguns estudos têm demonstrado uma correlação do grau de atrofia parenquimatosa com escalas de aferição de incapacidades (como a EDSS) e com o desempenho nos testes neuropsicológicos. 3.6 – Tensor de difusão (DTI) O DTI representa uma técnica recente e altamente promissora de RM que permite mapear a difusão da água no sistema nervoso. As moléculas de água têm, normalmente, um movimento ao acaso (denominado isotrópico) no tecido cerebral determinado pela sua energia térmica (movimento Browniano). In vivo, a presença de estruturas subcelulares, membranas e macromoléculas age como barreira para essa movimentação randômica. Nos grandes tratos e feixes comissurais, por exemplo, ela segue os axônios íntegros com um movimento preferencial (denominado anisotrópico), paralelo ao maior eixo axonal. Desta forma, por meio do DTI, é possível mapear a anisotropia da água nessas localizações, calcular a sua magnitude e reconstruir os principais tratos e comissuras (tractografia) (figura 7). Figura 7. A – DTI. A cor representa a direção das fibras axonais. Em azul estão as fibras com orientação crânio-caudal, em verde aquelas com orientação ântero-posterior e em vermelho látero-lateral. B – observar lesão no trato piramidal direito (seta). C – Tractografia com reconstrução dos tratos piramidais. Observar que o trato direito é mais fino apresentando um menor número de fibras, secundário à lesão demonstrada em B. As alterações patológicas observadas na esclerose múltipla incluem edema (intra ou extracelular), quebra da barreira hêmato-encefálica, alterações inflamatórias, desmielinização, gliose e perda axonal. Esses achados promovem uma alteração do padrão de movimentação das moléculas de água na região comprometida, que se torna menos isotrópico. Como o DTI é sensível na detecção destas alterações no padrão de difusão da água, torna-se possível avaliar a integridade microestrutural do sistema nervoso Curso Medicina Atual em Neuroimagem – aula 8 7 através desta técnica, de forma bastante precoce, antes do surgimento de alterações nas demais seqüências de pulso. A partir do DTI é possível a aferição da difusibilidade média (MD) e da anisotropia fracionada (FA), que são representações matemáticas da difusão da água e fornecem, em valores absolutos, o grau de comprometimento arquitetural do tecido cerebral. Quanto maior a lesão estrutural de determinado feixe axonal, menos anisotrópica será a movimentação molecular da água e, desta forma, mais próxima de zero será o valor da FA e mais elevada a difusibilidade. 4 – Conclusões Diversas técnicas de RM atualmente contribuem para o estudo da EM e permitiram um maior conhecimento acerca da evolução patológica desta doença. Estudos seriados permitem a detecção de lesões com atividade inflamatória mesmo em indivíduos sem manifestação clínica, tornando esse método de grande utilidade no manejo clínico dos pacientes. O neurorradiologista, por sua vez, deve estar apto a utilizar as ferramentas que julgar necessárias para cada caso, tentando extrair do método o maior número de informações possíveis. É fundamental, ainda, a avaliação comparativa criteriosa com estudos pregressos. 5 – Leitura recomendada Ge Y. Multiple sclerosis: the role of MR imaging. AJNR 2006;27:1165-1176. Grossman RI, Yousem DM. Neuroradiology: The requisites. Mosby; 2nd edition, 2003. Iannucci G. Correlation of multiple sclerosis measures derived from T2-weighted, T1-weighted, magnetization transfer, and diffusion tensor MR imaging. AJNR 2001;22:1462-1467. Osborn A, Blaser S, Salzman K. Diagnostic imaging: Brain. AMIRSYS, 2004. Oppenheim C et al. Loss of digitations of the hippocampal head on high-resolution fast spin-echo MR: A sign of mesial temporal sclerosis. AJNR 1998;19:457-463. Scott W Atlas. Magnetic resonance imaging of the brain and spine. Lippincott Williams & Wilkins; 3rd edition, 2002. Venkatramana R. et al. MR imaging of epilepsy: strategies for successful interpretation. Neuroimag Clin N Am 2004;14:349-372. Wasay M et al. Brain CT and MRI findings in 100 consecutive patients with intracranial tuberculoma. J Neuroimaging 2003;13:240-247.
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