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Coleção: Tributação & Desenvolvimento REFORMA TRIBUTÁRIA VIÁVEL: Simplicidade, Transparência e Eficiência RELATO DAS PESQUISAS DO NEF NO ANO DE 2010 Prefácio: David Trubek Coordenação: Eurico Marcos Diniz de Santi Isaias Coelho Vanessa Rahal Canado Parceiros: : 1 Pesquisa Mariana Pimentel Doutora pela UFPE Lívia Freitas Xavier Pós-graduanda lato sensu em Direito Tributário pelo COGEAE – PUC/SP Leonardo Baptista Correia Doutorando em economia pela EESP-FGV André Gonçalves Diôgo de Lima Estudante do 5º ano da Graduação na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DireitoGV Dalton Yoshio Hirata Estudante do 5º ano da Graduação na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DireitoGV Larissa Polesi Lukjanenko Estudante do 3º ano da Graduação na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Leonardo Alcantara Ribeiro Estudante do 5º ano da Graduação na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DireitoGV Eduarda Ribeiro Monteiro Estudante do 1º ano da Graduação na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – FDSBC 2 Caminante, no hay camino, se hace camino al andar (Antonio Machado) 3 INTRODUÇÃO As mais de 500 páginas desse primeiro RASCUNHO de livro procuram representar o processo de produção de conhecimento que ocupou o Nucleo de Estudos Fiscais – NEF/DireitoGV, no Decorrer do ano de 2010. A epigrafe ―Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” de Antonio Machado, simboliza bem a perplexidade dos nossos espíritos no decorrer do percurso dessa pesquisa. Foram muitos encontros semanais, muitas reuniões, entrevistas, descobertas, inúmeros diálogos, debates, embates, divergências, comemorações, frustrações, desalentos, momentos de entusiasmo, celebrações, também decepções, mas seguidas da percepção que o ―nada‖ às vezes é uma preciosa informação. Este livro, pois, mais que apresentar resultados, pretende retratar o percurso de nossa caminhada de maneira a constituir uma espécie de guia para aqueles que pretendam avançar no fascinante universo da pesquisa empírica em direito. O livro, buscando fotografar a trajetória temporal da pesquisa, é dividido em 4 partes: diagnóstico, análise crítica, propostas viáveis e o pacote legislativo ―Transparência e Cidadania Fiscal‖. Nos anexos estão as cinco propostas de reformas tributárias estudadas e as atas de reunião que relevam nossas expectativas, encontros e desencontros na busca de material empírico e ideias para pensar a reforma tributária no Brasil. Merece especial registro nessa trajetória dois encontros, entre tantos outros, que mobilizaram nossas atenções e iluminaram o modo de pensar e de pesquisar no NEF neste ano de 2010: em ordem cronológica, o primeiro foi o encontro com Paulo Arvate (Professor da EESP e EAESP) que colaborou para orientar nosso aprendizado nos difíceis caminhos da pesquisa empírica entre Direito e Economia; o segundo foi a feliz aproximação e incorporação de Isaias Coelho ao grupo (consutor do FMI e ex-secretário adjunto da Receita Federal na administração Dornelles) que nos deu suporte e folego nas pesquisas internacionais e na reflexão interna dos problemas tributários brasileiros. Enfim, reitero que esse volume é uma primeira versão que submetemos nessas condições, simplesmente para possibilitar o diálogo e a crítica externa de com nossos interlocutores e parceiros na Ágora (―Praça Pública‖) do 3º Workshop/2010 e II Colóquio Internacional do NEF: análise e críticas sinceras nos interessam... São Paulo, 07 de novembro de 2010 Eurico Marcos Diniz de Santi 4 SUMÁRIO METODOLOGIA: PERCURSO DE UMA PESQUISA EMPÍRICA SOBRE REFORMA TRIBUTÁRIA, 6 PARTE I - DIAGNÓSTICO 1. Evolução legislativa 1.1. Estruturas que delinearam o sistema tributário nacional: constituinte de 1987, 22 1.2. Evolução da legislação constitucional das disposições acerca de partilha de receitas e de competências tributárias, 31 2. Análise Comparativa dos textos de seis propostas de reforma do sistema tributário brasileiro, 13(!) 3. Sistemas tributários comparados – consolidação das principais informações a partir de pesquisas e relatórios, 29(!) 4. Relatório de entrevistas acerca do debate político sobre reforma tributária, 92 5. Guerra Fiscal e dados sobre a receita tributária dos Estados, 105 5.1. Guerra fiscal do ICMS sob uma perspectiva comparada de competição tributária, 106 5.2. Compilação de dados de receita tributária dos Estados, 136 6. Tributação da folha salarial e Simples Nacional, 152 6.1. Tributação da folha salarial no exterior e no Brasil, 154 6.3. Anotações sobre o Simples Nacional, 175 6.4. Apontamentos e principais pontos da entrevista sobre Simples e reunião de dados de arrecadação, 186 7. Não-cumulatividade: do mito teórico à operacionalização concreta, 196 8. Para uma maior cooperação entre Fisco e contribuinte, 205 9. Retrato dos dados fiscais: uma análise considerando o período entre 1989 e 2009, 241 PARTE II – ANÁLISE CRÍTICA 5 Reforma tributária Simples: Reconstruindo os Laços Nacionais do Federalismo Brasileiro e Resgatando a Dignidade do Contribuinte, 256 PARTE III – PROPOSTAS VIÁVEIS Conclusões, diretivas, propostas viáveis de curto prazo e propostas de médio prazo do Núcleo de Estudos Fiscais para a reconstrução dos laços nacionais do federalismo brasileiro, resgate da dignidade do contribuinte para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do Brasil, 282 PARTE IV – PACOTE LEGISLATIVO: TRANSPARÊNCIA E CIDADANIA FISCAL 1. Minuta do projeto de lei visando a regulamentação do art. 150, §5º da CF, 287 2. Reforma tributária: para valorizar a jurisprudência administrativa, reduzir o contencioso e expandir a confiança entre Fisco e Contribuinte, 294 3. A questão dos créditos físicos ou financeiros, 314 4. Principio da anterioridade substancial: aspectos gerais, 328 5. Principio da anterioridade substancial: exposição de motivos e proposta de emenda constitucional 6. Projeto de lei para eliminar a tributação ―por dentro‖, 340 7. Conselho Fiscal Nacional (CFN) – reflexões inspiradas na experiência internacional, 345 8. Conselho Fiscal Nacional (CFN) – problemas do sistema tributário e estratégias de atuação, 355 ANEXOS 1. Atas de reunião realizadas no NEF no ano de 2010, 360 2. Texto completo de cinco propostas de reforma do sistema tributário brasileiro, 431 6 METODOLOGIA: PERCURSO DE UMA PESQUISA EMPÍRICA SOBRE REFORMA TRIBUTÁRIA Caminante, no hay camino, se hace camino al andar (Antonio Machado) Mariana Pimentel Doutora em Direito pela UFPE e Pesquisadora do NEF/FGV Sumário: 1. Três obstáculos à renovação da pesquisa em direito no Brasil; 2. Reinventando a pesquisa para pensar o futuro das instituições: o NEF e o “Novo Direito e Desenvolvimento”; 3. Pensando juntos uma reforma tributária viável (etapas da investigação, principais pontos de discussão e encontros com experts). 1. Três obstáculos à renovação da pesquisa em direito no Brasil. O Núcleo de EstudosFiscais (NEF) da Fundação Getulio Vargas surge no ano de 2009 com um desafio: aproximar academia e prática de modo a intervir em decisões acerca de questões de interesse público. Este livro pretende expor o percurso da pesquisa desenvolvida pelo NEF no ano seguinte, intitulada Reforma Tributária: Eficiência Simplificação e Sustentabilidade. O desafio de renovação metodológica lançado na discussão travada na FGV sobre direito e desenvolvimento e a constatação de que era preciso compreender o objeto em sua concretude, exigiam um novo olhar sobre o tema. Reforma Tributária não pode ser vista como um pedaço de papel. Trata-se de um processo de reconstrução de nossa identidade que exige a tomada de consciência sobre fatos políticos, econômicos, jurídicos e crenças que definem o pacto federativo e determinam a posição do Estado e da sociedade na determinação dos rumos das políticas públicas. O êxito desse processo depende do debate público e aberto de suas premissas e de uma radiografia precisa do atual sistema. Estava claro que para enfrentar a complexidade do objeto era necessário abandonar padrões da metodologia tradicional de pesquisa em direito. Nestes termos, 7 três obstáculos (que estão intimamente interconectados e foram separados apenas por razões didáticas) precisavam ser superados. (i.) Legalismo rígido e desatenção à relação entre norma e realidade. O diagnóstico formulado a partir das investigações a respeito de direito e desenvolvimento na FGV mostra que, historicamente, as pesquisas em direito seguem um padrão estritamente legalista - que estabelece que análise de normas abstratas é, quase que exclusivamente, o foco das investigações – e, por isso, deixam de dar a devida atenção à maneira pela qual marcos normativos são capazes de atuar de modo a manter ou modificar situações concretas. 1 Alguns problemas surgem daí, dentre eles, a falta de visão global de profissionais do direito treinados a partir de parâmetros legalistas (que não os prepara para pensar as relações entre o direito e contexto sócio-econômico) e a existência de leis inadequadas a metas e políticas públicas estabelecidas com vistas ao desenvolvimento (que é também consequencia da estreiteza do horizonte de visão dos operadores do direto). (ii.) Fixação em uma única estratégia metodológica e falta de abertura à complexidade do objeto (o método deve adequar-se ao objeto e não o contrário) A palavra ―método‖, em suas origens gregas, significava caminho. Com a modernidade e os avanços da ciência em direção a especialização é exigido das diversas disciplinas, que reivindicam autonomia, a delimitação de um objeto de investigação e o estabelecimento de um método próprio para abordá-lo. O sentido da palavra ―método‖ é modificado no processo e, nesta nova acepção, pretende dar conta das diferentes estratégias utilizadas pelas diversas disciplinas científicas para abordar os objetos que lhes são próprios. Os desafios atuais da epistemologia dizem respeito às consequencias decorrentes da exacerbação deste processo de especialização. Nestes termos, autonomia se torna autismo (falta comunicação entre as esferas de saber) e a procura por caminhos para aproximação de um objeto se torna fixação em uma única estratégica metodológica e negligência à complexidade do objeto. 1 É o que mostra David Trubek em TRUBEK, D. P. 81... in RODRIGUES, J. R.(org.). O Novo Direito e Desenvolvimento- Presente, Passado e Futuro. São Paulo: Saraiva, 2009. 8 Os epistemólogos, hodiernamente, procuram lidar com estas questões através do estímulo à interdisciplinaridade e à renovação metodológica. Os obstáculos, no entanto, não são fáceis de superar. É ilustrativo observar a forma pela qual tradicionalmente as pesquisas em direito são conduzidas. Em geral, percebe-se nos pesquisadores um grande esforço para que seus trabalhos progridam em trajetória linear de acordo com objetivos definidos e um método pré-estabelecido para alcançá-lo. Mesmo que inadequações e perplexidades sejam freqüentes, é curioso notar que o método raramente é questionado. Há aí uma inversão: procura-se adaptar o objeto ao método. Toda metodologia cria uma estratégia de abordagem e critérios de relevância para a seleção de notas pertencentes ao objeto; estabelece, portanto, como olhar, o que considerar e o que desconsiderar. Ocorre que nem sempre o objeto adéqua-se a estratégia metodológica estabelecida. A falta de flexibilidade com relação ao método tem custos (como a incapacidade de perceber os aspectos do objeto que ultrapassam as linhas demarcatórias definidas pela metodologia), gera riscos (como o perigo de que, no final da investigação, sejam alcançadas apenas confirmações daquilo que desde o início da pesquisa já podia prever) e, sobretudo, pode provocar no investigador a perda da capacidade de surpreender-se e, portanto, de criar novas teorias e formas de observação. A lição de BACHELARD que diz que o grande obstáculo para a aprendizagem não é o erro, mas a fixação de um conhecimento envelhecido não poderia ser mais atual 2 . Esclareça-se que a proposta não é abandonar a metodologia, mas sim renová-la. Lembrar as origens gregas da palavra ―método‖ é uma forma de chamar atenção para uma ideia que algumas vezes os pesquisadores parecem esquecer: uma investigação deve gravitar em torno do objeto e o método é apenas o caminho para encontrá-lo MORIN escreve sobre o movimento de recriação metodológica: ―método é simultaneamente programa e estratégia e, por retroação de seus resultados, pode modificar o programa; portanto o método aprende‖3. (iii.) Fetichismo institucional (necessidade de encontrar novas soluções, ao invés de transplantar modelos de outros países) 2 BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996. 3 Morin 9 ROBERTO MANGABEIRA UNGER utiliza a expressão ―fetichismo institucional‖ para desenvolver uma crítica ao pressuposto de que ―concepções institucionais abstratas têm uma única, natural e necessária expressão institucional concreta‖ 4 e, assim, preparar terreno para o desenvolvimento de sua argumentação em defesa do experimentalismo. Interessa a esta investigação identificar o aspecto fetichista de abordagens do direito e da economia que supõem haver um único arranjo de ―melhores práticas disponíveis‖ (best available practices) que deve nortear a ação e, com isso, desmistificar a crença subjacente a concepções tradicionais de Direito e Desenvolvimento de acordo com a qual, para resolver os problemas atualmente enfrentado no Brasil, deve-se transplantar modelos já testados em países centrais. UNGER denuncia a fragilidade deste tipo de discurso, que, segundo ele, está fundado em superstições da cultura contemporânea e demonstra inabilidade imaginativa para pensar a descontinuidade e a reinvenção 5 . Não há receita para o desenvolvimento. É preciso olhar para a experiência brasileira – que carrega simultaneamente traços globais e marcas que lhe são peculiares -, pensá-la criticamente, aprender lições com outros países e procurar soluções originais. Tarefa constante desta investigação é desconstruir fetiches que fixam a discussão no passado para que seja possível olhar para o futuro e imaginar formas de renovar arranjos institucionais brasileiros. 2. Reinventando a pesquisa para pensar o futuro das instituições: o NEF e o “Novo Direito e Desenvolvimento” Diferentemente de trabalhos em que pesquisadores cheios de certezas sabem desde o início ondequerem chegar e para tanto percorrem uma trajetória linear, esta investigação não esconde seus aspectos errantes. O foco não está só no ponto de chegada, tão importante quanto a chegada é o percurso. Por isso, o objetivo deste livro é contar a história desta pesquisa que, em seus erros e acertos, procurou lançar um novo olhar sobre o tema reforma tributária. Por estas razões optou-se por utilizar o formato ensaios (e não de capítulos que acumulam argumentos que progridem até uma conclusão), que permitem que o leitor 4 UNGER, R. M. What Should Legal Analysis Become. New York: Verso. 5 UNGER, R. M. What Should Legal Analysis Become. New York: Verso. P. 9-14 10 observe mudanças na direção das investigações no decorrer do tempo. Devem estar explícitos a orientação inicial do projeto, os problemas encontrados, a perplexidade dos pesquisadores e as estratégias criadas para lidar com as diversas situações. Não se quer esconder que escolhas - que carregam sempre algum grau de arbitrariedade – foram feitas e, portanto, que a trajetória da pesquisa poderia ter sido outra. Mostrar a riqueza de dados empíricos, os limites das explorações e os momentos em que decisões tiveram que ser tomadas é de grande relevância, em especial, porque permite que novas investigações possam retomar o trabalho já feito e, talvez, seguir caminhos diferentes. Os ensaios são explorações do tema a partir de diferentes focos e tem como principal desiderato provocar perplexidade (e não alcançar conclusões definitivas). Atento a este desiderato, o NEF realizou, durante o ano de 2010, encontros semanais com a participação de pesquisadores de diversas disciplinas e profissionais que percebem na prática os problemas atuais do sistema tributário. Estas reuniões foram cruciais para a definição dos rumos do projeto: nelas eram discutidas as hipóteses e as constatações alcançadas em cada ensaio, selecionados pontos a explorar mais profundamente e escolhidos temas que provisoriamente poderiam ser deixados de lado. A realização dos encontros teve, acima de tudo, o propósito de construir um lugar para a emergência de novas ideias. O ponto de chegada (mesmo que provisório), delineado nos último capitulo do livro, consubstancia-se na proposta de um pacote legislativo de cidadania e transparência, que inclui proposições de mudanças legislativas as quais buscam mostrar ao cidadão o peso da carga tributária que carrega. As alterações na legislação sugeridas são compreendidas como um marco importante capaz de provocar transformações concretas não como um objetivo suficiente por si mesmo. A intervenção proposta pelo NEF envolve ações com fins amplos: começa com a construção de um espaço para discussões (para tanto foram feitas entrevistas com atores da reforma tributária, reuniões com especialistas e workshops com a participação de Stakeholders); segue com a proposição de mudanças legislativas e articulação de estratégicas para a mobilização de diversos setores da sociedade e pretende gerar mais transparência para o sistema tributário e, portanto, meios para viabilizar ainda mais participação. Em todos os momentos da investigação o olhar está voltado à relação entre norma e realidade e aos efeitos de reformas que devem estar adequadas a fins públicos de desenvolvimento econômico e social. 11 Algumas lições aprendidas com visita de DAVID TRUBEK 6 a FGV e ao NEF foram importantes para pensar esta estratégia de intervenção. TRUBEK, que desde os anos 60 discute com especialistas americanos e brasileiros o papel da disciplina ―DIREITO e DESENVOLVIMENTO‖, escreve sobre o aspecto legitimador do discurso da dogmática jurídica moderna e alerta sobre o perigo de que discussões sobre reformas no direito fiquem adstritas ao debate entre técnicos. Segundo ele, há dois desafios atuais para o ―DIREITO e DESENVOLVIMENTO‖: o primeiro refere-se a já comentada desconexão de normas e práticas jurídicas aos objetivos globais estabelecidos para políticas públicas (TRUBEK associa esta desconexão a força que o paradigma legalista adquiriu no Brasil) e o segundo é político e diz respeito ao déficit de democracia provocado pela restrição do debate a uma ―conversa entre técnicos‖. TRUBEK escreve sobre o risco à democracia que está por trás do que ele chama de ―jurisdicialização da política‖: depois que questões que são em seu cerne políticas são juridicializadas, passam a ser tratadas apenas em termos de regras técnicas e debatidas apenas por uma elite capaz que conhece as regras e as técnicas de aplicação (o que exclui da discussão diversos setores da sociedade). Quaisquer que sejam as razões da emergência do autoritarismo, esses regimes costuma reduzir e limitar a participação política, fragmentar a oposição e cooptar grupos poderosos sempre que possível. Embora possam recorrer à violência, tentam geralmente desestimular a ação política fazendo com que pareça desnecessária. Refreiam a mobilização política convertendo as questões políticas em problemas técnicos e depois assegurando o monopólio do regime sobre as capacidades técnicas. Essa tática não só desativa a atividade política independente, com também aumenta a legitimidade da ação estatal ao revesti-la com a mística da tecnologia 7 . UNGER leva a discussão ainda mais a fundo ao chamar atenção para o fato de que não há aí apenas um obstáculo à participação: o fechamento do debate é também um empecilho à inovação. De acordo com o autor de “The Critical Legal Studies Movement‖, as sociedades mais bem sucedidas são aquelas capazes de responder a seus desafios através da criação de novas formas de recombinar crenças e práticas institucionalizadas 8 . Para ganhar a liberdade de criar alternativas originais para a sociedade de modo racional e participativo, é preciso ter a capacidade para imaginar 6 David Trubek, professor das universidades de Yale e Wisconsin, esteve na FGV entre os dias 25 e 29 de outubro de 2010. 7 TUBEK, D. P. 103... in RODRIGUES, J. R.(org.). O Novo Direito e Desenvolvimento- Presente, Passado e Futuro. São Paulo: Saraiva, 2009. 8 UNGER, R. M. What Should Legal Analysis Become. New York: Verso. P. 21. 12 novas possibilidades e conversar sobre elas. Faz-se necessário, portanto, que os interlocutores adentrem em áreas especializadas. A proposta de UNGER para a viabilização de um debate participativo é a criação de um novo estilo de colaboração entre técnicos e cidadãos 9 . De fato, as mais interessantes teorias da democracia mostram que a inteligência para a solução de problemas cresce quando todos os envolvidos podem, sem restrições e com direitos iguais, comunicar-se e pôr em jogo novas idéias 10 . Quanto mais ativamente e mais sensivelmente públicos interconectados reagem aos problemas socais, mais racional e mais capacidade de inovação terá o processo. É possível, assim, olhar para ausência de modelos institucionais prontos e acabados como uma oportunidade (não como um obstáculo), capaz de mudar o foco da investigação teórica e de ações práticas. Ao invés da tentativa de produzir modelos que possuam validade universal e que pretendam ser aplicados a realidades diversas, os projetos de desenvolvimento devem procurar fortalecer o debate democrático que levam em conta as peculiaridades locais e o interesse de todos em busca de soluções novas. JOSÉ RODRIGO RODRIGUES escreve que o desafio atual é repensar o posicionamento do Estado e da sociedade civil 11 . Segundo ele, é preciso deixar de olhar para a vida privada exclusivamente como espaçode disputa entre indivíduos e perceber que há um potencial de colaboração entre sujeitos autônomos capazes de pensar inovações normativas e estabelecer novas práticas tendo em conta o interesse de todos. Trata-se de desmistificar a ideia de que a defesa do interesse publico é tarefa exclusiva do Estado e instaurar processos capazes de estabelecer o protagonismo da sociedade civil na solução de problemas comuns. Observe-se que este tema, cada vez mais, alcança posição central em diversas disciplinas, está, por exemplo, na pauta da discussão sobre problemas relativos a governança coorporativa, accountability, atuação de organizações não-governamentais e empresas sociais e ―empoderamento‖ (empowerment) dos cidadãos. 9 UNGER, R. M. What Should Legal Analysis Become. New York: Verso. P. 21. 10 Esta tese remete a John Dewey e às origens do pragmatismo norte-americano e, atualmente, adquire diferentes versões nos trabalhos de autores como Roberto Mangabeira Unger, Richard Rorty e Axel Honneth. Cf. DEWEY, J. ―The Public and its Problems‖ in Later Works v.2. Standard Southern Illinois University (SIU) editions, 1990; HONNETH, A. “Democracy as Reflexive Cooperation: John Dewey and the Theory of Democracy Today‖ in HONNETH, Axel and FARREL, John M. M. Political Theory, Vol. 26, No. 6 , 1998, pp. 763-783: Sage. Disponível em http://www.jstor.org/stable/191992 Acesso em 02/04/2010; RORTY, R. Philosophy and Social Hope. New York: Penguin Books, 1999. 11 Cf. RODRIGUES, J. R. (Prefácio, p. P. XX) in RODRIGUES, J. R.(org.). O Novo Direito e Desenvolvimento- Presente, Passado e Futuro. São Paulo: Saraiva, 2009. 13 3. Pensando juntos uma reforma tributária viável (etapas da investigação, principais pontos de discussão e encontros com experts). O livro está dividido em quatro partes. Na primeira parte procura-se elaborar um diagnóstico do problema; na segunda, é feita uma sistematização as informações coletadas e elaborada uma análise crítica; a terceira parte prepara a conclusão da pesquisa e propõe princípios e algumas medidas de curto prazo para a viabilização de mudanças; ao final, sugere-se um pacote legislativo de transparência e cidadania fiscal como uma proposta inicial a ser debatida. O diagnóstico pretende dar conta da complexidade do objeto e da pluralidade de perspectivas através do qual o tema pode ser abordado - por isso, como dito, optou-se por utilizar o formato de ensaios. Os trabalhos iniciaram-se com a definição de três temas de investigação: (i) evolução das mudanças na constituição sobre tributação 12 ; (ii.) análise dos textos das seis principais proposições de reforma fiscal propostas no período posterior à Constituição de 1988 13 ; (iii) tributação no direito comparado 14 . O primeiro ponto de perplexidade a ser ressaltado diz respeito à relação entre política e reforma tributária. A busca por um projeto de reforma tributária que fosse tecnicamente bem formulado orienta os primeiros ensaios, em que o jogo de interesses político aparece como obstáculo para que se alcance a meta de maior eficiência técnica. Os trabalhos subsequentes vão, cada vez mais, deixando de lado este pressuposto e passam a acolher a ideia de que, em uma sociedade que pretende ser democrática, não se pode pensar reformas sem ter em conta processos políticos. Evidentemente, o debate sobre reforma tributária tal como vem acontecendo no Brasil desde a Constituição de 88 está bem distante das condições ideais de ampla participação de atores bem informados e em posições simétricas; mas isto não pode se tornar justificativa para a proposição de soluções autoritárias (como acontece com frequencia); ao contrário, as dificuldades devem ser vistas como motivo de mobilização de um esforço ainda maior para ampliar a participação e qualificar o debate. 12 Cf os ensaios ―Estruturas que delinearam o sistema tributário nacional: Constituinte de 1987‖ e ―Evolução da legislação constitucional das disposições acerca de partilha de receitas e de competência tributárias‖. P. 13 Cf. o ensaio ―Análise de cinco textos das Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) sobre Reforma Tributária‖. P. 14 Cf. ensaio ―Sistemas tributários comparados – consolidação das principais informações das pesquisas e relatórios‖. P. 14 Nos trabalhos elaborados a partir de maio de 2010, fica clara a posição do NEF: uma reforma tributária viável deve ser pensada dentro das condições atuais do debate político brasileiro. O encontro com o Ex-Secretário da Receita Federal, EVERARDO MACIEL ajudou a consolidar a orientação que apenas começávamos a seguir. Disse MACIEL: ―Sistemas tributários são intrinsecamente imperfeitos, pois são parte de contextos históricos e estão ligados a realidade econômica e política do país‖15. O ensaio ―Análise de cinco textos das Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) sobre Reforma Tributária‖ 16 mostra as dificuldades em realizar almejadas reformas amplas: depois do insucesso da PEC da CERF de 1992 (que pretendia realizar transformações tanto na tributação como no gasto público), as proposições de reforma (ao menos as mais relevantes) intentam realizar mudanças menos abrangentes (reformas tributárias e não mais fiscais). A pergunta pelas razões do insucesso das tentativas reformistas tona-se uma das principais pautas de discussão no NEF e evidencia-se para todos que faltam pesquisas capazes de mostrar empiricamente os problemas que de fato se apresentam. Percebeu-se que (salvo algumas poucas exceções) a literatura especializada apenas apontava, de modo especulativo e pouco consistente, possíveis causas de fracasso. Diante desta situação, constatou-se que apenas poderíamos ter acesso às circunstancias factais do debate sobre reforma tributária através de informantes que participaram da discussão em posições privilegiadas. No ensaio ―Percepção dos atores acerca do debate político sobre reforma tributária‖17 é elaborada uma síntese das entrevistas, realizadas por pesquisadores do NEF. Especialmente relevantes foram as percepções de que o Governo Federal apresenta uma postura ambígua (parece querer uma reforma, mas hesita em situações em que sua atuação é decisiva); que muitos estados temem reformas (em muitos casos ficou claro que questões eleitorais podem se tornar um grande obstáculo à negociação); e que os contribuintes (maiores interessados em uma reforma) não conseguem alinhar seus interesses em torno de demandas globais. 15 Maciel participou de reunião realizada pelo NEF em 07 de junho. Cf Anexos ( atas das reuniões) P. 16 P. 17 P. 15 As pesquisas do NEF em direito comparado aliadas à visita de RICHARD BIRD 18 ao Brasil ajudaram a situar as informações coletadas em pesquisa de campo a um horizonte global. BIRD escreve sobre as dificuldades de realizar reformas amplas na experiência e internacional e argumenta que estas dificilmente acontecerão fora de um contexto de crise ou de uma situação política tendente ao autoritarismo 19 . Paralelamente, tanto o relato dos entrevistados acerca do debate político como as discussões travadas no NEF 20 começaram a exigir do grupo uma maior atenção aos problemas da guerra fiscal e demais questões relativas ao ICMS. O ensaio ―A Guerra Fiscal do ICMS sob uma perspectiva comparada de competição tributária‖21 trata do assunto e mostra que, no Brasil, a guerra fiscal provoca soluções economicamente menos eficientes (uma ―logística sem lógica‖) na atividadeempresarial - as quais geram mais desgaste nas estradas, aumento de poluição e de custos com transporte – e práticas pouco transparentes – a concessão de benefícios é frequentemente realizada por meio de ―contratos de gaveta‖. As entrevistas realizadas com atores da reforma tributária complementam a este diagnóstico ao mostrarem a conexão entre a resistência dos estados a reformas e o posicionamento politicamente vantajoso alcançado por governadores que trazem grandes empresas para seus estados através da concessão de benefícios fiscais: governos dos estados criam óbices a mudança do regime do ICMS para o destino, pois isso dificultaria o manejo político do imposto 22 . O trabalho empírico de pesquisa sobre a guerra fiscal teve o escopo de identificar os problemas estão de fato presentes na experiência brasileiras e esclarecer que questões que se restringem ao âmbito teórico-especulativo. O ensaio ―Compilação de dados de receita tributária dos estados‖, realizado em março de 2010, mostra que, no período de 1995 a 2010, não houve queda de arrecadação em nenhum estado da federação. Isto põe em questão a ideia de que a guerra fiscal no Brasil provoca o que os economistas chamam de ―race to the bottom‖ – uma competição que leva os 18 Richard Bird, professor emérito da Universidade de Toronto, esteve no Brasil em novembro de 2009 e participou do Colóquio Internacional ―Tributação, Desenvolvimento, Infraestrutura e Sustentabilidade – cenários para o Brasil da Próxima Década‖ realizado pelo NEF nos dias 25, 26 e 27 de novembro. 19 BIRD, Richard M. Tax Reform in Latin America: A Review of Some Recent Experiences. Latin American Research Review, V. 27, n. 1, 1992. P. 17. 20 Cf. Anexos (atas de reunião). P. 21 P. 22Cf. ―Percepção dos atores sobre o debate político sobre reforma tributária‖. P. 16 participantes a reduzir exageradamente sua carga tributária e a chegar a um em uma situação de ineficiência e sub-provisão de bens públicos. Ainda, a atualização dos gráficos publicados no livro de FERNANDO REZENDE, ―O Dilema Fiscal‖ 23 demonstrou, em primeiro lugar, que a situação apontada por REZENDE em 2005 ainda persiste: o aumento de geral arrecadação (que acontece em todos os estados) se dá por conta da maior participação de tributos considerados por REZENDE de má qualidade – impostos que incidem em cascata como o ISS, IOF, CPMF, PIS e Cofins 24 . A respeito da polêmica sobre CPMF, os gráficos 25 demonstram que as perdas que surgiram com o fim da CPMF foram supridas pelo aumento da alíquota do IOF. Esta fase inicial da pesquisa forneceu aos pesquisadores mais clareza a respeito dos obstáculos à realização de reformas e teve um papel importante para o grupo, que passou a tratar do problema com mais maturidade. Era preciso, no entanto, encontrar soluções que evitassem que as dificuldades se tornassem motivo para desânimo e, eventualmente, desengajamento. Daí a decisão de, por um momento, deixar de olhar para tentativas frustradas de mudança e focar as pesquisas em experiências bem sucedidas. A experiência do SIMPLES e os avanços alcançados pela Receita Federal em tecnologia da informação foram casos de sucesso incorporados à discussão. SATIE KIMURA, auditora fiscal da Prefeitura Municipal de São Paulo e membro do grupo técnico sobre fiscalização do SIMPLES NACIONAL (SN), mostrou ao grupo os aspectos mais interessantes da experiência do SIMPLES. 26 Os debates puderem ser ainda mais aprofundados com a participação de representantes do SEBRAE nas reuniões do NEF 27 e, posteriormente, através de ampla discussão realizada no seminário ―Reforma Tributária Viável: desafios do ICMS‖28 As pesquisas acerca do Simples Nacional e sobre os avanços do Fisco brasileiro em tecnologia da informação (TI) forneceram subsídios para a elaboração do artigo ―Reforma Tributária Simples: Reconstruindo os Laços Nacionais do Federalismo 23 P. 24 REZENDE, Fernando et. al.. O Dilema Fiscal – Remendar ou Reformar? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 48 e 49. 25 P. 26 Os principais aspectos da entrevista foram transcritos no ensaio ―Anotações sobre o Simples Nacional: apontamentos gerais, dados de arrecadação e principais pontos levantados em entrevistas‖. 27 Anexos (atas de reuniões). P. 28 O seminário, que aconteceu em 11 de dezembro de 2010, na FGV, foi resultado da parceria entre NEF e SEBRAE. 17 Brasileiro e Resgatando a Dignidade do Contribuinte‖ 29 , que foi escrito pelo coordenador do NEF, Eurico de Santi, e inaugurou a segunda fase do projeto. O texto sistematiza e elabora criticamente as informações coletadas e defende a tese (que deste momento em diante passa a ser central para pesquisa) de que o Fisco deve tomar para si a responsabilidade de resolver os problemas provocados pela alta complexidade do sistema tributário. A experiência internacional forneceu uma das principais fontes de inspiração para a ideia 30 . A Suprema Corte dos EUA no caso QUILL CORP VS. NORTH DAKOTA, determinou que os remote sellers (vendedores que utilizam internet, serviços postais etc) são isentos de recolher o sales e use tax para vendas em Estados que não possuam presença física de estabelecimento. Isto porque entendeu que não é razoável obrigar que o contribuinte conheça e subjugue-se à diversidade das legislações de todos os 50 Estados dentro dos quais os contribuintes realizam seus negócios. Com base no argumento de que a complexidade não pode ser suportada pelo contribuinte e deve ser devolvida aos estados da federação, decidiu que para que possam cobrar o o sales tax, os estados deverão antes harmonizar a cobrança relativa às transações interestaduais. A partir daí, construiu-se uma proposta bastante concreta, cujo objetivo é integrar as Administrações Tributárias, que, sem perder seus poderes, se encarregarão da responsabilidade de trabalhar juntas para ajudar o contribuinte. O contribuinte arcará com a mesma carga tributária, cada ente federativo receberá os mesmos recursos, mas a tudo ficará muito mais simples e transparente. Propõe-se realizar um lançamento de ofício orientado pelas informações sobre os dados de cada operação, fornecidos em tempo real pelo Sistema Público de Escrituração Digital, viabilizado pela incomparável TI do Fisco nacional, que exigirá o valor em uma única guia centralizada em conformidade com a ampla coordenação de entendimentos da ―vontade‖ integrada dos três Fiscos. Se o contribuinte pagar o lançamento em dia está extinta a obrigação tributária e o sistema bancário fica encarregado de repartir, na boca do caixa, os montantes devidos para a União, Estados e Municípios. Caso contrário, se o contribuinte não concordar, poderá impugnar mediante o devido processo administrativo fiscal. Nesse desenho, é interesse do Fisco aplicar a lei da forma mais clara e bem fundamentada para evitar a impugnação. O Fisco será incentivado a buscar 29 P. 30 P. 18 a coerência e a fundamentação hierárquica de suas cobranças, sob pena de não receber o tributo Percebeu-se, em seguida, que era preciso também investigar o outro lado da questão: além da cooperação entre os Fiscos era necessário discutir possibilidade da construção de um relacionamento mais cooperativo entre Fisco e contribuinte. O ensaio ―Para uma maior cooperação entre Fisco e Contribuinte‖31 investiga teses de JAMES ALM e RICHARD BIRD e mostra que o tipo de relação (mais cooperativa ou mais conflituosa)estabelecida com contribuintes depende do paradigma que orienta a atuação de Administrações Fiscais. ALM explica que estas podem atuar com base no modelo econômico standard que é utilizado na maior parte do tempo por economistas e está fundado no que ele chama de paradigma ―economics-of-crime‖. Nestes termos, supõe-se que contribuintes (que correspondem à imagem de potenciais fraudadores) agem de acordo com as normas tributárias somente em razão das consequências econômicas da detecção e da punição. Acontece que pesquisas empíricas desmentem esta tese ao demonstrarem que mesmo em países em que há baixos índices de cumprimento (como países da América Latina), a evasão jamais chega aos níveis previstos por análises puramente econômicas (de acordo com as quais um indivíduo racional não declararia virtualmente nenhuma renda). ALM anota que a maior parte dos trabalhos produzidos por economistas seguem o ―paradigma do crime‖ e, ao lado de BIRD, ressalta a importância de que as Administrações Fiscais reconstruam o seu modelo de ação passem a atuar a partir do ―paradigma do serviço‖ (tal como acontece em países como Austrália e Holanda). Autoridades fiscais que olham para o contribuinte como um cliente em potencial (e não como um criminoso em potencial) e que, portanto, são mais sensíveis e responsivas às especificidades dos negócios e às diferenças de comportamentos dos contribuintes são não apenas mais legítimas, como também mais eficientes. O artigo ―Conclusões, Diretivas, Propostas Viáveis de Curto Prazo e Propostas de Médio Prazo do Núcleo de Estudos Fiscais para a Reconstrução dos Laços Nacionais do Federalismo Brasileiro, Resgate da Dignidade do Contribuinte para Impulsionar o Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil‖32 prepara a parte final da pesquisa e amplia a discussão sobre projetos atualmente viáveis para aperfeiçoamento do sistema tributário. 31 P. 32 P. 19 Os temas levantados no texto foram expostos a crítica de especialistas do NEF e de outras instituições. Foi de especial relevância a conversa com o economista FERNANDO REZENDE, que alertou os pesquisadores sobre o perigo de que a realização de mudanças pontuais se torne uma escusa para o adiamento de uma reforma sistêmica. O encontro com REZENDE reforçou a importância de se pensar estrategicamente as medidas que compõe a ―micro-reforma‖ proposta para que, ao invés de um óbice, atuem como força para o impulsionamento de uma ―macro-reforma‖. Princípios da simplicidade e da transparência, assim como ações capazes de gerar mais cidadania e cooperação entre Fisco e contribuinte tem a função de fazer com que os cidadãos conscientizem-se dos problemas do sistema tributário e, por isso, tem o potencial de gerar mobilização social para a implementação de mudanças mais amplas. A etapa final da pesquisa consiste na proposição do ―pacote legislativo de cidadania fiscal e transparência‖. O NEF elaborou projetos de lei e de emenda constitucional a serem discutidos com diversos setores da sociedade e, em um segundo momento, proposto a câmara. São as principais idéias defendidas no pacote: (i.) Nos ensaios ―Conselho Fiscal Nacional: reflexões inspiradas na experiência internacional‖33 e ―Conselho Fiscal Nacional (CFN) – problemas do sistema tributário e estratégias de atuação‖ 34 procura-se utilizar experiência internacional (sobretudo o caso australiano) como fonte de inspiração para pensar a possibilidade de criação do Conselho Fiscal Nacional (CFN), nos moldes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a função de facilitar o controle social, fornecer mais transparência e eficiência à Administração Fiscal. (ii.) Nos ensaios ―Principio da anterioridade substancial: aspectos gerais‖35 e ―Principio da anterioridade substancial: exposição de motivos e proposta de emenda constitucional‖36 justifica-se e elabora-s um projeto de emenda constitucional que altera os art. 150, iii, c e 195 parag. 6º e institui a exigência de que leis que criem ou majorem tributos sejam publicadas até o dia 30 de junho do ano anterior a cobrança do tributo. O principio da anterioridade, que há muito é defendido por EVERARDO MACIEL e está presente na proposta de alteração do sistema tributário do Senador FRANCISCO 33 34 P. 35 P. 36 P. 20 DORNELES 37 , busca fornecer mais segurança ao contribuinte e aproximar as discussões sobre tributação e orçamento público. (iii.) No ensaio ―Reforma Tributária: para valorizar a jurisprudência administrativa, reduzir o contencioso e expandir a confiança entre Fisco e contribuinte‖38 são discutidas formas de efetivação dos princípios da segurança jurídica, da publicidade e da transparência e propostas medidas capazes de tornar mais claros e estáveis o entendimento do Fisco e dos órgãos julgadores acerca das normas tributárias. O projeto de lei elaborado institui a obrigação de que a Administração Fiscal publique na internet acórdãos (dos tribunais administrativos), soluções de consulta e divergência, obriga o fiscal a explicitar sua interpretação das normas e dos fatos por ele indicados e institui o PAF eletrônico. (iii.) O ensaio ―A questão dos créditos físicos ou financeiros do ICMS‖39 expõe a discussão sobre a possibilidade de adoção do critério dos créditos financeiros e, ao final, propõe uma transição gradual 40 . (iv) No texto ―Minuta de projeto de lei visando a regulamentação do 150, §5º da CF‖41propõe-se uma a criação de norma que exija a exposição em notas fiscais o valor pago em tributos. Identificou-se, no entanto, que há dificuldades técnicas para a implementação desta idéia, pois é possível apenas calcular um valor aproximado dos tributos e existem diferentes critérios para isso - a decisão sobre que critério usar carregará sempre algum grau de arbitrariedade. (v) No ensaio ―Projeto de lei para eliminar a tributação ―por dentro‖‖42 discute- se estratégias para não mais incluir o valor do tributo na sua própria base de cálculo (problema muitas vezes apontado por CLOVIS PANZARINI ). As dificuldades para a implementação deste projeto são, sobretudo, políticas: o cálculo ―por fora‖ mostrará para todos o quanto, de fato, é pago (a alíquota é maior do que a explicitada) e há quem não queira que isto aconteça. 37 P. 38 P. 39 P. 40 P. 41 P. 42 P. 21 Parte I: Diagnóstico 22 ESTRUTURAS QUE DELINEARAM O SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL: CONSTITUINTE DE 1987 André Gonçalves Diôgo de Lima Pesquisador do NEF/FGV Ementa Este ensaio possui como objetivo delinear os principais movimentos e estruturas que contribuíram para o desenho da atual Constituição Federal (CF) no que diz respeito à parte da tributação e das competências tributárias dos entes federativos. Para tanto, foram analisadas informações acerca da Assembléia Nacional Constituinte (ANC) de 1987, desde os objetivos das Comissões temáticas até as pressões exercidas pelos vários grupos que compunham a ANC. Fevereiro / 2010 23 ESTRUTURAS QUE DELINEARAM O SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL: CONSTITUINTE DE 1987 Sumário: 1. Ambiente político na Assembléia Constituinte; 2. Pressões na Comissão de Finanças; 3. Questão regional na Comissão de Finanças; 4. Da distribuição de competências tributárias pelos entes federativos;5. Contaspúblicas e pressão do Governo Federal;e 6. Bibliografia. 1. Ambiente político na Assembléia Constituinte Para um melhor entendimento do tópico, será apresentado abaixo, de maneira sucinta, como se deu o processo de feitura e aprovação dos textos constitucionais relativos ao tema de tributos e finanças públicas. Assim, será possível ter um panorama geral do referido processo e, dessa forma, obter uma melhor compreensão de como os agentes envolvidos atuaram. A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em fevereiro de 1987 e estava organizada em torno de três grandes partes: (i) Comissões Temáticas, (ii) Comissão de Sistematização e (iii) Plenário. O processo constituinte deveria ser relativamente rápido (era pretendido que a Constituição ficasse pronta ainda em 1987), mas também profundamente democrático, havendo a participação direta dos constituintes e mesmo da população, por meio das emendas populares. Neste sentido, VARSANO (1996) escreve: Tal processo, sem dúvida, era profundamente democrático, pois permitia intensa participação de todos os constituintes e até mesmo a participação direta da população, através das chamadas emendas populares. Permitia também total liberdade de concepção, o que não havia ocorrido em processos constitucionais anteriores que, por se basearem em textos previamente preparados por especialistas, tendiam a limitar a discussão aos tópicos ali expostos e já eivados pelos vieses dos autores. A Comissão Temática que tem relevância para este estudo é a relativa ao Sistema Tributário, Orçamento e Finanças (―Comissão de Finanças‖), que tinha como relator o deputado constituinte José Serra e era presidida pelo deputado constituinte Francisco Dornelles. 24 Os trabalhos da Comissão de Finanças começaram com audiências públicas, em que especialistas e autoridades nos assuntos que a Comissão trataria expuseram suas visões. A partir de tais dados, foi criado um pré-projeto (passível de receber emendas) que foi votado pelos membros da Comissão. Após consolidado o texto dos anteprojetos criados pelas subcomissões (existentes com o intuito de dividir os trabalhos da Comissão de Finanças), estes seguiram para votação no plenário da Comissão de Finanças. Depois de aprovado pela Comissão de Finanças, o projeto seguiu para a Comissão de Sistematização, que tinha como escopo consolidar e compatibilizar as matérias de todas as outras comissões da constituinte. Após as modificações realizadas pela Comissão de Sistematização e a votação do projeto nesta Comissão, o texto final foi apresentado para apreciação do plenário da ANC, que era presidida pelo deputado constituinte Ulysses Guimarães e relatada pelo deputado constituinte Bernardo Cabral. A votação no plenário da ANC foi realizada em dois turnos. No primeiro turno, havia a possibilidade de qualquer tipo de mudança, seja aditiva, modificativa ou supressiva. Por isso, houve uma grande quantidade de emendas ao projeto inicialmente proposto. Já no segundo turno, as emendas apenas poderiam ter caráter supressivo, integral ou parcial. Esta foi a última possibilidade dos constituintes apreciarem o mérito das questões, uma vez que, após o segundo turno, o texto final passou apenas pela comissão de redação, cujo intuito era corrigir erros textuais e, portanto, não poderiam haver modificações que alterassem o mérito do contido no texto. 2. Pressões na Comissão de Finanças Para o melhor entendimento de como as pressões eram exercidas dentro da ANC (mais especificamente dentro da Comissão de Finanças), cabe aqui uma explanação geral de como estava erigida a composição da ANC. O PMDB (antigo MDB) congregava uma séria de grupos que combateram o governo militar. Este partido possuía 54,92% dos membros do Congresso Nacional quando da instauração da ANC 43 . Acrescendo a estes números os dos outros partidos 43 Folha de São Paulo, 19/01/1987. Caderno Especial. ―Os eleitos: Quem é quem na Constituinte.‖ 25 que também confrontaram o regime anterior (tais como PDT, PT, PSB, PC do B), chegava-se a 64,22% dos membros do Congresso 44 . Poder-se-ia inferir que, dadas as convergências ideológicas, bem como os planos programáticos dos partidos, haveria certa harmonia em determinados temas, bem como uma facilidade para manobrar as bancadas. Entretanto, não foi isto que se observou, inclusive com a Comissão de Finanças, foco da análise. Interesses distintos daqueles que norteariam a agenda dos partidos, bem como interesses regionais, sobrepujaram interesses nacionais. Neste sentido, LEME (1988) escreve: Nesse quadro, a tendência que se configurou foi a formação de blocos que se aglutinaram suprapartidariamente, enquanto expressão da articulação de interesses, tanto do ponto de vista regional – naquelas questões mais afetas aos problemas locais, como o capítulo tributário – quanto ideológico, nas questões mais principistas do texto constitucional. 3. Questão regional na Comissão de Finanças A entrevista concedida pelo deputado constituinte e relator da Comissão de Finanças, José Serra, à época da ANC, é bastante esclarecedora quanto a importância da questão regional. Durante muito tempo, imaginou-se que a Assembléia encarregada de definir uma nova ordem jurídica para o País seria monopolizada pelo permanente confronto entre progressistas e conservadores, esquerda e direita. Nos últimos dias, sem que se pudesse aplicar aos participantes dos debates quaisquer dos chavões ideológicos, um novo divisor de águas emergiu no rastro de uma das mais antigas pendengas da política brasileira: a questão regional.(...) bastou que se falasse em recursos orçamentário, em dinheiro ... para que a questão regional aflorasse de maneira aguda, passando por cima de todas a considerações partidárias e ideológicas . 45 (grifo nosso) A Comissão de Finanças era formada por 63 parlamentares, sendo que, destes, 40% eram de estados nordestinos. Interesses estavam voltados para comissão de tributos (dominada pela bancada nordestina), pois nela seria conduzida a discussão acerca competências para tributar e partilha de recursos 46 . Por conta de divergências acerca da relatoria desta subcomissão e pelo fato dos estados nordestinos (junto com alguns 44 Idem 45 Revista Isto É, 10 de junho 1987, p. 18 46 Livre docência. 26 estados da Região Norte) exigirem aumento de seus quinhões, desencadearam-se tensões entre estados no Norte-Nordeste e estados do Sul-Sudeste Um dos focos de maior tensão entre os estados foi questão de partilha do Fundo de Participação dos Estados (―FPE‖). Segundo uma as propostas defendidas pelos estados menos desenvolvidos, o FPE não deveria ser distribuído para aqueles estados com renda percapita acima da média nacional. No plenário da Comissão de Finanças houve intensas negociações entre os membros da comissão e o então relator José Serra – constituinte pelo estado de São Paulo. Segundo OLIVEIRA (1992), Serra conseguiu adiar determinadas negociações para momentos posteriores da ANC; entretanto, não conseguiu evitar que, para acomodar os interesses divergentes dos estados do Sul-Sudeste e dos estados do Norte- Nordeste, ainda mais recursos da União fossem drenados por sistemas como o da partilhas dos recursos do IPI e do IR. Neste sentido, o relator José Serra disse, à época, em entrevista concedida a Folha de São Paulo O aumento do Fundo de Participação dos Estados deve ser entendido no contexto político dacomissão. O aumento obtido (foi) o único possível para que se chegasse a um acordo sobre o relatório. Isso permitiu um avanço em várias outras áreas, que ficariam comprometidas se outro encaminhamento tivesse vingado 47 . Pode-se observar, portanto, que os arranjos que garantiram o avanço nos trabalhos da Comissão de Finanças estavam ligados a questões regionalistas – que, como dito, iam além das ideologias partidárias, havendo, inclusive, alianças regionais intrapartidárias. Ademais, a despeito da realização de sessões públicas com especialistas e de haver uma série de projetos de reforma tributária no âmbito constitucional elaborados por equipes qualificadas, tudo passava por um crivo eminentemente político, em que atuavam interesses que nem sempre se harmonizavam com as melhores práticas fiscais e com a busca por mais eficiência econômica. Explica VARSANO (1996): O sistema tributário criado pela Constituição de 1988 -- ao contrário do originado pela reforma da década de 60, elaborado por uma equipe técnica em gabinetes -- foi fruto de um processo participativo em que os principais atores eram políticos. É bem verdade que os políticos que conduziram o processo de criação tinham formação técnica e haviam exercido recentemente funções executivas no governo e que um grupo de técnicos os assessorava. Contudo, as decisões, embora tecnicamente informadas, tinham caráter eminentemente político. (grifo nosso) 47 Folha de São Paulo, 24 de junho de 1987. 27 Já do ponto de vista federativo, tornaram-se evidentes as perdas da União nestas negociações. Todavia, deve-se observar que estas perdas já vinham ocorrendo mesmo antes da ANC, como pode ser observado na emenda Passos Porto 48 (Ec. 23/83), que alterava os percentuais de FPE e FPM advindos de IR e do IPI de 5% para 14% e 5% para 14%, respectivamente. Ocorre que o governo Federal à época da AC estava em posição bastante frágil, seja pela debilidade das contas públicas, seja pela falta de legitimidade do presidente José Sarney, que assumira em decorrência da morte do presidente eleito Tancredo Neves. Com isto, o governo federal tinha como base de apoio os governadores estaduais e, portanto, não tinha força suficiente para estancar a sangria de recursos que estavam indo para Estados e municípios, ora por conta das partilhas do FPE e do FPM, ora pela perda de competências tributárias. 4. Da distribuição de competências tributárias pelos entes federativos A grande questão neste aspecto diz respeito às tentativas dos Estados de recuperarem sua autonomia fiscal, seja do ponto de vista de garantirem as competências para criação e tributos (cerceadas no período militar), seja no sentido de descentralizar a arrecadação, que estava majoritariamente nas mãos da União, graças ao período de centralização. Para tanto, buscavam a ampliação da base tributável, capturando para dentro da base do Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICM – atual ICMS) impostos que antes eram de competência federal, como ISC (comunicações), ISTR (transporte), IUCL (combustíveis e lubrificantes), IUEE (energia elétrica) e IUM (minerais). Além disso, os Estados exigiam poder fixar autonomamente as alíquotas do ICMS (ainda que ficasse facultado ao Senado o estabelecimento de limites de alíquotas). Os municípios perderiam a competência para cobrar o ISS, que seria também integrado ao ICMS, ganhando, para compensar tais perdas, a ampliação do Imposto sobre Vendas Varejo – IVV (este foi posteriormente extinto por emenda constitucional, 48 Federalismo, Clientelismo e Reforma Fiscal. Maria Nazaré Lins Barbosa e Virgínia Talaveira Valentini Tristão. Caderno de Pesquisas em Administração, São Paulo, v. 1, nº 8, 1TRIM./99 28 dada a sua complexidade de fiscalização e a uma séria de questões jurídicas levantadas). Também haveria o deslocamento da competência do ITBI inter vivos, para a competência municipal, sendo que antes a competência era estadual. Entretanto, esta parte do arranjo não foi adiante por pressões dos municípios (especialmente os maiores) que temiam perder poder com entrega da competência do ISS aos estados. Relevante observar que havia junção de uma série de impostos federais dentro da mesma base do ICM, o que gerava uma simplificação do sistema, pois extinguia uma série de tributos. Não obstante, era mais uma perda de receita para a União. Além disso, havia a proposta de se criar um adicional de IR que poderia ser cobrado pelos Estados. Outra matéria importante suscitada e posta no projeto foi a vedação do poder da União de conceder isenções fiscais de tributos que não eram de sua competência. Isto garantia aos estados e municípios sua proteção contra perdas de receitas advindas da ingerência da União sobre a cobrança de tributos que não eram da sua competência. Não obstante estes pontos, é fundamental observar que estados e municípios ganharam em autonomia fiscal. A facilidade que o sistema de transferência gerava para estes entes, bem como a debilidade da estrutura arrecadatória fazia com que houvesse a pressão para conseguir aumentos ainda mais expressivos de FPE e FPM. Neste sentido, escreve VARSANO: A nítida preferência desses governos por recursos transferidos vis-à-vis sua obtenção mediante esforço fazendário próprio resultou também, diante da omissão das autoridades fazendárias federais no processo de concepção do sistema tributário, no excessivo aumento das transferências. 5. Contas públicas e pressão do Governo Federal O governo federal não soube administrar seus interesses durante a ANC no que diz respeito à manutenção de suas fontes de financiamento e ao controle de suas despesas. Os motivos que levaram a tal situação, como já exposto, foram a falta de legitimidade do governo, por conta da morte de Tancredo Neves e o já avançado desgaste das contas públicas, fazendo com que o executivo buscasse apoio nos governos estaduais. Anota OLIVEIRA (1992): Esse quadro, onde além de o presidente não ter sido ungido com o voto direto - mais grave ainda era o fato de que em virtude do falecimento de Tancredo Neves, o candidato eleito pela Aliança Democrática, assumiria seu vice, Jose Sarney, desprovido de legitimidade -, era ele dependente do apoio político dos governadores eleitos em 1982, que haviam desempenhado importante 29 papel na campanha das "diretas-já" e da Aliança Democrática, desequilibrou a disputa federativa em prol dos últimos. O Governo Federal acabou ficando com uma série de ônus decorrentes da ampliação do sistema de seguridade social e de outros serviços e, além disso, perdeu várias receitas durante o processo de feitura da parte fiscal da CF - que era responsabilidade da Comissão de Finanças. Diante de tal situação, o Governo tentou impedir na votação plenária da CF, com sucesso apenas parcial, as medidas que lhe cerceavam tantas receitas. Segundo OLIVEIRA: Em relação ao Sistema tributário alguns pontos encontravam-se pendentes. Em primeiro lugar, a questão que dizia respeito à perda de recursos da União sem a correspondente descentralização dos encargos e que vinha, embora tardiamente, sendo torpedeada pelo Governo Federal, que pretendia vê-la modificada (1992, p. ). Cabe observar que o texto constitucional dispôs com clareza a respeito das fontes de receita de cada ente federativo, mas o mesmo não foi feito em relação aos gastos que cada ente iria suportar. Na conta final, o Governo Federal acabouficando com uma série de ônus, inclusive aqueles que eram concorrentes ou conjuntos com estados e municípios. Neste sentido, cabe a exposição de MONTORO (1994): Como não poderia ser diferente, sob o risco de quase inexorável caos, a discriminação de receitas é realizada de forma clara e específica. (...) Essa clareza não é encontrada no que se refere à distribuição de encargos e competência. Diante da situação em que se encontrava, o Executivo buscou, na votação do segundo turno, suprimir uma série de pontos que atacavam os cofres da União e da Previdência Social. Entretanto, o Governo Federal não obteve sucesso e teve que arcar com uma perda substancial de receita ao mesmo tempo em que foi obrigado a lidar com novas fontes de gastos. Neste contexto, o Governo entendeu ser necessário buscar outras fontes de financiamento nos anos que se seguiram a promulgação da Constituição Federal (e o fez inclusive através de modificações em seu texto original) 30 6. BIBLIOGRAFIA LEME, H.C. Aspectos políticos da questão tributária na Constituição de 1988 e os impactos nas finanças públicas de São Paulo. Campinas: FECAMP/FUNDAP, dez. 1988. OLIVEIRA, F.A. Crise, reforma e desordem do Sistema Tributário Nacional. Tese de livre docência.UNICAMP, Campinas, 1992. MONTORO FILHO, André Franco. ―Federalismo e reforma fiscal‖ in Revista de Economia Política, v. 14, n.3, jul.-set., 1994. VARSANO, R. 1996. Evolução do Sistema Tributário Brasileiro ao Longo do Século: Anotações e Reflexões para Futuras Reformas. TD 405. Rio de Janeiro, Brasil, 1996. BARBOSA, Maria Nazaré Lins; TRISTÃO, Virgínia Talaveira Valentini. ―Federalismo, clientelismo e reforma fiscal‖ in Cadernos de Pesquisa em Administração. São Paulo, vol. 1, nº. 8, 1º trimestre, 1999. AFONSO, José Roberto Rodrigues. Memória da Assembléia Constituinte de 1987/88: as finanças públicas. 31 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS DISPOSIÇÕES ACERCA DE PARTILHA DE RECEITAS E DE COMPETÊNCIAS André Gonçalves Diôgo de Lima Pesquisador do NEF/FGV Dalton Yoshio Hirata Pesquisador do NEF/FGV Leonardo Alcantara Ribeiro Pesquisador do NEF/FGV Ementa Este trabalho tem como intuito observar a evolução da legislação constitucional do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e da Legislação concernente às competências tributárias. Serão observadas as Constituições Federais de 1946, 1967, 1969 e 1988. Março / 2010 32 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS DISPOSIÇÕES ACERCA DE PARTILHA DE RECEITAS E DE COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS Sumário: 1. Apresentação; 2. Metodologia; 3. Evolução da Legislação Constitucional das competências tributárias; 4. Evolução da Legislação Constitucional das partilhas de montantes oriundos de receita fiscal; 1. Apresentação Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da evolução dos dispositivos constitucionais relativos à partilha de receitas fiscais pelos entes federativos (União, Estados e Municípios). Para tanto, serão observados as Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988. Não obstante a relevância da legislação infraconstitucional, esta não será objeto da análise neste momento, sendo que tal análise ocorrerá em momento futuro. Isto porque buscamos, em um primeiro momento, as alterações apenas de cunho constitucionais, pois estas que possuem as estruturas que definem todas as outras. Não se objetiva aqui fazer quaisquer tipos de inferências ou conclusões, sendo a exposição das disposições relativas às partilhas de receitas fiscais e as competências tributárias de cada ente o único intuito da análise. Os dados colhidos, quando somados aos dados das legislações infraconstitucionais, às análises econômicas e as análises políticas que serão feitas no decorrer desta pesquisa, proporcionarão subsídios para a discussão acerca das estruturas fiscais atualmente vigentes, observando suas virtudes e problemas. 2. Metodologia 33 Para a realização desta pesquisa foram analisados os textos constitucionais em sua íntegra, sendo estes retirados dos sites do Planalto e do Senado Federal 49 . No primeiro momento, foi realizada a leitura dos textos legais e a coleta de todos os dispositivos que pudessem se relacionar direta ou indiretamente com a partilha de receitas fiscais ou distribuição de competências tributárias entre os entes federativos. No segundo momento, houve um refinamento dos dispositivos coletados e a exclusão daqueles que se relacionavam de maneira indireta ou que deixavam a cargo de Lei Complementar o estabelecimento da competência ou da partilha de receitas. Com os dispositivos relevantes relacionados, foi realizada uma simplificação de suas redações, de maneira a torná-los compreensíveis fora do contexto constitucional e também para aqueles não familiarizados com o Direito. Deve-se, no entanto, ressaltar que com tal simplificação não foi omitido nenhum elemento estrutural do dispositivo ou embutido qualquer tipo de juízo de valor, apenas buscou-se tornar o texto mais claro, objetivo e didático. Foram criadas tabelas para acomodar os textos, buscando uma estrutura mais intuitiva, objetivando uma leitura rápida e clara. Para tanto, as tabelas relativas às partilhas de receitas foram formuladas no sentido de relacionar os tributos a serem partilhados com os entes federativos, já as tabelas relativas às competências tributárias, buscaram relacionar os tipos de tributos (Impostos, Taxas e Contribuições – além de empréstimos compulsórios, que não são propriamente um tipo tributário) com os entes federativos. 3. Evolução da Legislação Constitucional das competências tributárias Abaixo segue as tabelas referentes às competências tributárias dos entes federativos. 49 Vide http://www.planalto.gov.br/leg.asp e http://www.senado.gov.br/legislacao/ Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Núcleo de Estudos Fiscais CF 1946 Distribuição de Competências entre os entes federativos União Estados e DF Municípios e DF Impostos Importação de mercadorias (II) Consumo de mercadorias (IC) Produção, comércio, distribuição, consumo, importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos IR Transferências ao Exterior Negócios de sua Economia Extraordinários (guerra externa) Impostos dos Territórios Impostos não previstos na Constituição Renda das obrigações da dívida pública estadual ou municipal e proventos dos agentes dos Estados e dos Municípios ITR ITCM ITBI Vendas e Consignações Exportação de mercadorias Atos regulados Serviço de Justiça Negócios de sua Economia Impostos não previstos na Constituição IPTU Imposto de Licença Imposto de indústrias e profissões Imposto sobre diversões públicas Imposto sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência Taxas Não especificadas Não especificadas Não especificadas 6 Contribuições Melhoria (decorrentes de obras públicas) Melhoria (decorrentes de obras públicas) Melhoria (decorrentes de obras públicas) Outros Quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços Quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuiçõese da utilização de seus bens e serviços Quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Núcleo de Estudos Fiscais CF 1967 Distribuição de Competências entre os entes federativos União Estados e DF Municípios Impostos Importação de produtos Exportação de produtos ITR IRPF/IRPJ IPI IOF Serviços de transporte e comunicações (exceto estritamente municipais) Produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes, combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica Extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais Extraordinários (guerra externa) Residuais Isenções sobre impostos federais, estaduais ou municipais (mediante Lei Complementar) ITBI ICM IPTU ISS (sobre serviços não compreendidos nas competências da União ou dos Estados, definidos em Lei Complementar) Taxas Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos 1 Contribuições Melhoria (decorrentes de obras públicas) Intervenção no domínio econômico Custeio dos encargos da Previdência Melhoria (decorrentes de obras públicas) Melhoria (decorrentes de obras públicas) Empréstimos Compulsórios Casos definidos em Lei Complementar * * Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Núcleo de Estudos Fiscais CF 1969 Distribuição de Competências entre os entes federativos União Estados e DF Municípios Impostos Redação Final Importação de produtos Exportação de produtos ITR IRPF/IRPJ IPI IOF Serviços de transporte e de comunicações (exceto estritamente municipais) Produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes, combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica Extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais Extraordinários (guerra externa) Residuais Isenções sobre impostos federais, estaduais ou municipais (mediante Lei Complementar) ITBI ICM IPVA (incluído pela EC 27/85) IPTU ISS (sobre serviços não compreendidos nas competências da União ou dos Estados, definidos em Lei Complementar) Redação anterior à EC 27/85 * ITBI ICM * 1 Taxas Redação Final Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Contribuições Redação Final Melhoria (decorrentes de obras públicas) Intervenção no domínio econômico Interesse de categorias profissionais ou econômicas Custeio dos encargos da Previdência Melhoria (decorrentes de obras públicas) Melhoria (decorrentes de obras públicas) Empréstimos Compulsórios Redação Final Casos definidos em Lei Complementar * * Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Núcleo de Estudos Fiscais CF 1988 Distribuição de Competências entre os entes federativos União Estados e DF Municípios e DF Impostos Redação atual Importação Exportação IRPF/IRPJ IPI IOF ITR Grandes Fortunas Residuais (lei complementar) Extraordinários (guerra externa) ITCMD ICMS IPVA IPTU ITBI ISS (sobre serviços não compreendidos na competência dos Estados) Redação original * Adicional de até cinco por cento do que for pago à União à título de IRPF/IRPJ (Excluído pela EC 3/93) * Taxas Redação atual Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos Poder de Polícia Serviços Públicos específicos 1 Contribuições Redação atual Melhoria (decorrentes de obras públicas) Sociais (incidentes também sobre importação de produtos e serviços) Intervenção no domínio econômico (incidentes também sobre importação de produtos e serviços) Interesse de categorias profissionais ou econômicas Melhoria (decorrentes de obras públicas) Custeio do Regime Previdenciário (Redação dada pela EC 41/03) Melhoria (decorrentes de obras públicas) Custeio do Regime Previdenciário (Redação dada pela EC 41/03) Custeio do serviço de Iluminação Pública (Incluída pela EC nº 39/02) Redação original Não havia disposição sobre a incidência das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico em relação às importações (Redação modificada pelas ECs 33/01 e 42/03) Havia competência para a instituição de Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras A redação era diferente em relação à Previdência - poderão instituir contribuição para Custeio dos Sistemas de Previdência e Assistência Social A redação era diferente em relação à Previdência - poderão instituir contribuição para Custeio dos Sistemas de Previdência e Assistência Social Não havia Contribuição para o Custeio do serviço de Iluminação Pública Empréstimos Compulsórios Redação atual Despesas extraordinárias (calamidade pública/guerra externa) Investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional * * Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Núcleo de Estudos Fiscais 4. Evolução da Legislação Constitucional das partilhas dos montantes oriundos de receita fiscal Abaixo segue as tabelas referentes às partilhas de montantes oriundos de receitas fiscais. 1 CF 1946 Partilha de Receitas União Estados, DF, Territórios Municípios Fundos Imposto sobre a produção, comércio, distribuição e consumo Porcentagem do tributo destinado No máximo 40% 60% no mínimo serão entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, proporcionalmente à sua superfície, população, consumo e produção, nos termos e para os fins estabelecidos em lei federal. 60% no mínimo serão entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, proporcionalmente à sua superfície, população, consumo e produção, nos termos e para os fins estabelecidos em lei federal. * IR 1 Porcentagem do tributo destinado 90% * 10% (excluídas as capitais) A distribuição será feita em partes iguais e aplicando-se, pelo menos, metade da importância em benefícios de ordem rural. foi entregue. A partir dos anos seguintes, a totalidade da quota foi entregue. * 2 CF 1946 Partilha de Receitas União Estados, DF, Territórios Municípios Fundos Arrecadação Total de Impostos Estaduais 2 Porcentagem do tributo destinado * 70% 30% Quando a arrecadação estadual de impostos, salvo a do imposto de exportação, exceder, em Município que não seja o da Capital, o total das rendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-á anualmente trinta por cento do excesso arrecadado. * Outros impostos não previstos na Constituição 2 Porcentagem do tributo destinado 20% 40% Compete aos Estados realizar a cobrança de qualquer
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