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Cancer de mama e sofrimento psicologico

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Fichamento
LILYANE PIRES DE MORAIS 
Câncer de mama e sofrimento psicológico: aspectos relacionados ao feminino
 
O diagnóstico de câncer tem, geralmente, um efeito devastador na vida da pessoa que o recebe, seja pelo temor às mutilações e desfigurações que os tratamentos podem provocar, seja pelo medo da morte ou pelas muitas perdas, nas esferas emocional, social e material, que quase sempre ocorrem. Portanto, a atenção ao impacto emocional causado pela doença é imprescindível na assistência ao paciente oncológico.
Quanto ao câncer de mama, desde a década de 70 a medicina tem se dedicado mais ao impacto psicossocial da doença. Estudos dessa época delinearam que as mulheres sofrem desconforto psicológico, como ansiedade, depressão e raiva; mudanças no padrão de vida, relacionadas ao casamento, vida sexual e atividades no trabalho, e, ainda, medos e preocupações concernentes à mastectomia, recorrência da doença e morte (Meyerowitz, 1980).
As primeiras investigações nesta área já assinalavam vários fatores que podem influenciar a aceitação e adaptabilidade da mulher que se vê portadora de um câncer de mama: o contexto cultural no qual as opções de tratamento são oferecidas, os fatores psicológicos e psicossociais que cada mulher traz para esta situação e fatores relacionados ao próprio diagnóstico do câncer, como o estágio da doença, tratamentos disponíveis, respostas e evolução clínica. Assinalam também que para assistir a mulher com cuidados integrais e contínuos, cada um desses fatores deve ser levado em consideração (Rowland & Massie, 1998).
 
CÂNCER DE MAMA
Os cânceres ou neoplasias malignas vêm assumindo um papel cada vez mais importante entre as doenças que acometem a população feminina, representando, no Brasil e no mundo, importante causa de morte entre as mulheres adultas. O câncer de mama é o segundo tipo de câncer mais freqüente no mundo e o primeiro entre as mulheres. Segundo estimativa do Instituto Nacional de Câncer (INCA, 2006a), o número de casos novos esperados para o Brasil em 2006 é de 48.930, com um risco de 52 casos a cada 100 mil mulheres.
É relativamente raro antes dos 35 anos de idade, mas acima desta faixa etária sua incidência cresce rápida e progressivamente. As estatísticas indicam o aumento de sua freqüência tanto nos países desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nas décadas de 60 e 70 registrou-se um aumento de 10 vezes nas taxas de incidência ajustadas por idade nos Registros de Câncer de Base Populacional de diversos continentes (INCA, 2006a). No Brasil, é a primeira causa de morte por câncer na população feminina, principalmente na faixa etária entre 40 e 69 anos (INCA, 2006b). Em países do Ocidente, entre todas as causas de óbito, ele é a mais comum em mulheres abaixo da idade de 50 anos (Boyd, 1999).
O câncer de mama é considerado de bom prognóstico se diagnosticado e tratado oportunamente, sendo o principal fator que dificulta o tratamento o estágio avançado em que a doença é descoberta. Em nosso país, a maioria dos casos é diagnosticada em estágios avançados (III e IV), correspondendo a cerca de 60% dos diagnósticos., por isso o número de mastectomias realizadas no Brasil é considerado alto (Makluf, Dias & Barra, 2006). Em tais condições observa-se uma diminuição das chances de sobrevida, comprometimento dos resultados do tratamento e, conseqüentemente, perdas na qualidade de vida das pacientes (Thuler & Mendonça, 2005; INCA, 2006a). O câncer de mama é, portanto, uma preocupação da Saúde Pública, a qual, para combatê-lo, atua formulando e implantando ações, planos e programas destinados ao controle da doença.
O tratamento primário é a mastectomia, intervenção cirúrgica que pode ser restrita ao tumor, atingir tecidos circundantes ou até a retirada da mama, dos linfonodos da região axilar e de ambos os músculos peitorais. A mais freqüente, em torno de 57% das intervenções realizadas, é a mastectomia radical modificada, aquela que remove toda a mama juntamente com os linfonodos axilares. Tratamentos complementares geralmente são necessários, como a radioterapia, quimioterapia e hormonioterapia. O prognóstico e a escolha do tratamento são embasados na idade da paciente, estágio da doença, características do tumor primário, níveis de receptores de estrógeno e de progesterona, medidas de capacidade proliferativa do tumor, situação da menopausa e saúde geral da mulher (Malzyner, Caponero & Donato, 2000).
Até pouco tempo atrás os doentes de câncer eram estudados em termos de quantos sobreviviam e de quanto sobreviviam em relação aos tratamentos disponíveis, mas hoje as áreas médicas assumem cada vez mais uma perspectiva biopsicossocial de homem, com a qual a Psicologia tem contribuído significativamente. Assim, tornou-se evidente o interesse pela investigação das relações existentes entre os fatores psicossociais, a incidência, a evolução, o tratamento e a remissão da doença. Além disso, é crescente o número de estudos que objetivam avaliar a qualidade de vida dos doentes durante o tratamento e após a remissão da doença (Cohen, Hack, Moor, Katz & Goss, 2000; Engel, Kerr, Schlesinger-Raab, Sauer & Hölzel, 2004; Makluf, Dias & Barra. 2006).
Estudos nessa área afirmam que o câncer de mama é uma experiência amedrontadora para as mulheres. Para muitas delas, a confirmação do diagnóstico evoca sentimentos de pesar, raiva e intenso medo. O desenvolvimento da doença pode levá-las a situações de ameaça à sua integridade psicossocial, provocando incertezas quanto ao sucesso do tratamento, quando consideram o câncer uma " sentença de morte" (Duarte & Andrade, 2003; Kovács, Amorim, Filho & Sgorlon, 1998).
Por suas características, o tratamento traz repercussões importantes no que se refere à identidade feminina. Além da perda da mama ou de parte dela, os tratamentos complementares podem impor a perda dos cabelos, a parada ou irregularidade da menstruação e a infertilidade, fragilizando ainda mais o sentimento de identidade da mulher (Wanderley, 1994). Além disso, as representações de dor insuportável, de mutilações desfigurantes e de ameaça de morte não desaparecem com a retirada do tumor, pois há sempre o fantasma da metástase e da recorrência.
Assim, o câncer ainda é um segredo difícil de ser partilhado, narrado e ouvido, mesmo para a mulher, que culturalmente é mais estimulada a compartilhar, integrar e socializar experiências.
 
 
CÂNCER DE MAMA E IDENTIDADE FEMININA
Estudos têm apontado que a primeira preocupação da mulher e sua família após receberem o diagnóstico do câncer de mama é a sobrevivência. Em seguida surge a preocupação com o tratamento e condições econômicas para realizá-lo; e quando o tratamento está em andamento, as inquietações se voltam para a mutilação, a desfiguração e suas conseqüências para a vida sexual da mulher (Carver, 1993; Duarte & Andrade, 2003; Gandini, 1995; Gimenes & Queiroz, 2000). Estudos prospectivos que avaliaram a qualidade de vida de mulheres submetidas à mastectomia demonstraram que elas sentiram piora não só na imagem corporal, mas também na vida sexual, limitações no trabalho e até mesmo mudanças nos hábitos e atividades de vida diária (Engel et al., 2004; Ganz et al., 2004).
Mesmo quando o tratamento permite a preservação da mama e ocorre apenas a retirada do tumor, observa-se que a indicação causa medos e crises nas doentes. " No imaginário social, a mama costuma ser associada a atos prazerosos – como amamentar, seduzir e acariciar –, não combinando com a idéia de ser objeto de uma intervenção dolorosa, ainda que necessária" (Gomes, Skaba & Vieira, 2002, p. 200-201).
Estudos demonstraram redução da qualidade de vida nos domínios emocional, social e sexual não somente no período de um a dois anos após o tratamento inicial, mas também após cinco anos. Sugerem, por isso, que o cuidado psicooncológico oferecido às pacientes deve ser mantido mesmo após o término do tratamento clínico (Holzner, Kemmler, Kopp & Moschen, 2001).
Além disso, devem ser levados em consideração
os significados da mama na vida da mulher. Quintana, Santos, Russowsky & Wolff (1999) comentam que, quando a equipe médica informa à paciente que ela deverá retirar a "mama", a comunicação por ela recebida é a de que irá perder o " seio" , lugar privilegiado das representações culturais de feminilidade, sexualidade e maternidade. Por isso podemos dizer que o câncer de mama é uma ameaça que pode abalar a identidade feminina, sentimento que fundamenta a existência da mulher. Compreender a mulher doente nesta teia de significados é importante para que o tratamento se oriente para uma mulher fragilizada em sua sexualidade, maternidade e feminilidade.
Ao levarmos em conta os significados e representações que o seio adquire em nossa sociedade em relação à maternidade, além da nutrição física que a mãe proporciona ao seu filho, ele representa também as trocas simbólicas e afetivas entre ambos e a nutrição psíquica mãe-filho que alimenta e exercita as várias possibilidades de maternagem da mulher vida afora. Sobre isso há toda uma construção teórica e prática em psicologia e em psicanálise que enfatiza o seio como objeto pelo qual a mãe estabelece contato com seu filho e lhe proporciona não só o alimento, mas também o prazer e o acolhimento. Ter o seio mutilado pode significar, para muitas mulheres, a impossibilidade de continuar sendo acolhedora e nutridora de seus entes queridos.
Ainda que, por muito tempo, o seio tenha sido mais valorizado quanto aos aspectos relacionados à maternidade, atualmente, em nossa cultura, essa valorização está voltada ao seu significado de feminilidade. Ele é fortemente explorado como ícone de forte apelo sexual, idéia que é reforçada pela mídia. Frente a essa realidade, a mulher com câncer de mama continua suscetível a prejuízos em sua experiência de sentir-se mulher, uma vez que seu seio foi atingido pela doença e mutilado pelo tratamento.
Dessa forma, o câncer de mama e seu tratamento interferem na identidade feminina, levando, geralmente, a sentimentos de baixa auto-estima, de inferioridade e medo de rejeição do parceiro. Ao afastarem-se do ideal de mulher, as doentes de câncer de mama julgam-se incapazes de poder gratificar e proporcionar experiências positivas, tanto a seus companheiros quanto a seus filhos (Quintana, Santos, Russowsky & Wolff, 1999; Nascimento, 1998). Em nosso trabalho com grupos de apoio psicológico a pacientes com câncer, encontramos depoimentos de mulheres alegando, a princípio, preferirem a morte à remoção da mama, o que nos leva a supor que a falta da mama e a falta do seio representam, num primeiro momento, a morte simbólica da mulher.
Outras manifestam um intenso medo de rejeição, seja ela em relação ao companheiro, aos filhos, a outros familiares ou a amigas e amigos. Relatam que, quando vivenciam a experiência de serem ou de se sentirem rejeitadas, é como se fossem aniquiladas. Uma delas expressou isso de uma forma muito emocionada afirmando que não é o câncer que mata, mas a rejeição.
Acreditamos que essa experiência ou, na maioria das vezes, o medo de vivenciá-la, estejam intimamente relacionados à maneira como em nossa sociedade se desenvolve a identidade de gênero, extrapolando, inclusive, o mero desempenho de papéis assumidos pela mulher concebidos como inerentes ao ser feminino. Como pondera Chodorow (1979), a menina desenvolve uma identificação pessoal com os caracteres e valores da mãe, baseada na aprendizagem gradual de um modo de ser familiar na vida diária, fazendo com que a personalidade feminina se defina em relação e conexão com outra pessoa em direção à criação, educação e responsabilidade. Dessa forma, qualquer evento que possa ameaçar as possibilidades de vinculação a outrem repercute intensamente na dinâmica emocional da mulher; muito mais em se tratando de evento de tão sérias conseqüências como o proporcionado pelo câncer de mama, que lhe remove o ícone mais expressivo de sensualidade, de intimidade, de cuidado e de responsabilidade pelo outro.
O sofrimento psicológico da mulher que passa pela circunstância de ser portadora de um câncer de mama e de ter de acolher um tratamento difícil, como vimos, transcende ao sofrimento configurado pela doença em si. É um sofrimento que comporta representações e significados atribuídos à doença ao longo da história e da cultura e adentra as dimensões das propriedades do ser feminino, interferindo nas relações interpessoais, principalmente nas mais íntimas e básicas da mulher. Considerar estes aspectos nas propostas de atenção à mulher com câncer de mama é mais que necessário: é indispensável.
 
REFERÊNCIAS

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