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pedagogia improvavel da diferença E se o outro nao estivesse ai

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Titulo origina l
Y si eI otro no estuviera ahi?
Notas para un a pedagogia (im proba ble) de la difereneia
Pedagogia (improvavel) da diferenca
E se 0 outro nao estivesse ai?
Ca rlos Skliar
Tradu(iio
Giane Lessa
Revisiio de provas
Daniel Seidl
Projeto grajico e diagranw(iio
Ca ro lina Falcao
Gerencia de producao
Maria Gabriela Delgad o
Capa
Yomar Augus to
CIP-BRASIL.Ca talogacao-na- fonte
Sindieato Nae iona l dos Edito res de Livro s, RJ
Pedagogia (improvavel) da difcrenca: e se 0 outro nao estivesse ai? / Carlos
Skliar; [traducao, Giane Lessa ]. Rio de Jan eiro : DP&A, 2003.
Traducao de Y si el otro no es tuvier a ahi? Notas para una pedago gia
(im proba ble) de la difercneia.
2241'., 14 x 21 em
Inelui bibliografia
ISBN 85-7490-257-8
I. l'cdagogia. 2. Alte r idade 1.T itulo.
Carlos Skliar
Pedagogia (illlprovavel) da diferen~a
E se 0 outro ruio estivesse at?
Tradw,ao:
Giane Lessa
---v---
DP&,A.
edit<>ra.
Surnario
Nota da tradutora 9
Prefacio
Pensar muito alem do que edado,
pensar a mesmidade a partir do outro que estti em mim
- Nuria Perez de Lara 11
Apresentacao
Entre 0 e se 0 ou tro nao estivesse at?
e a atencao adiversidade - notas para um
esclarecimento tao confuso quanta entranhavel 17
C apitu lo I
Sobre a temporalidade do outro e da mesmidade
- notas para um tempo (excessivamente) presente 37
Capitu lo II
Sobre as representadies do outro e da mesmidade
- notas para voltar a olhar bem 0 que ja foi (apenas) olhado 65
Capitu lo III
Sobre a espacialidade do outro e da mesmidade
- notas para uma deslocalizacao (permanente) da alteridade 97
Capitu lo IV
Sobre a anormalidade e 0 anormal
- notas para um julgamento (voraz) da normalidade 151
Efinalmente: A i! Por que temos de nos reformar tanto?
- notas para uma pedagogia (improvavel) da diferenca 195
Eptlogo
A arte da conversa - Jorge Larrosa 211
Pcfcrcncias bibliograficas 217
10 Peclagogia (irnprovavel] cia cliferen<;;a
consultas durante 0 processo da traducao. Espero ter dado conta dessa
tarefa que para mim foi, como mencionado no epilogo por Jorge
Larrosa, urn verdadeiro encontro, daqueles que epossivel dizer, sem
duvida nenhuma, entranhavel.
Giane Lessa
PRHAcIO
Pensar muito alem do que e dado I pensar a
mesmidade a partir do outro que esfa em mim
Nuria Perez de Lara *
Embora certamente sempre seja dificil pensar muito alem do
que e dado, ha ocasioes em que essa dificuldade parece tornar-se
insuperavel, Refiro-rne aos momentos em que aquilo que e dado
apresenta-se-nos como 0 justo, 0 correto, 0 verdadeiro; os momentos
em que a isso se acrescenta, alem de tudo, a pretensao de que nao se
trata ainda do que existe, senao do que deveria existir; acontece que
alguns racistas, sexistas, xen6fobos, homofobos, ernpenham-se em
permanecer entre nos com uma forca e urn poder que, nao se sabe
como, acabam dia a dia com os bons desejos estabelecidos pelo
politicamente correto, dernocratico e universal daquilo que epensado,
daquilo que e dado.
Entao,o que edado apresenta-se diante de nos como algo que nao
so nao deve ou nao pode ser superado, como tambern na forma do
que esta ainda por ser alcancado em sua plenitude, visto que e 0
desejavel,
Torna-se mais dificil ainda pensar muito alem daquilo que edado,
quando isso e visto como fruto de urn desejo compartilhado pe!o qual
se lutou lado a lado contra tudo 0 que se opunha asua realizacao. Por
esse motivo, 0 que edado acabou por se tornar parte de nos mesmos,
dando-nos a seguranca de estar do lado born, do lado dos democratas,
dos compreensivos, dos progressistas, dos verdadeiramente humanos.
Este livro nos guia em uma reflexao sobre 0 que eestabelecido
como correto sobre 0 outro, despertando naqueles que 0 leem urn
• Universidade de Barcelona .
DP&A editora
12 Pedagogia (improvavel] da diferen9a Prefacio 13
desassossego que anuncia a aventura de pensar e sentir de outro modo
a relacao com 0 outro e, consequentemente, a relacao com 0 mundo
em que vivemos .
Se posso falar assim sobre 0 conteudo deste livro, eporque vivi a
experiencia de compartilhar 0 serninario que foi origem e fundamcnto
de seus textos, porque participei das reflexoes que sua leitura produzia
e vi a inquietude refletida nos olhares daqueles que escutavam.
Mas tambern, e sobretudo, a singularidade da experiencia de ser
mulher me da a possibilidade de falar assim, isto e, de ser 0 outro -
a outra - desse Uno do qual aparentemente todos e todas fazemos parte.
Uma experiencia que pode ter sido vivida como a do outro malefico,
a do outro apagado, a do outro colonizado, a do outro incluido... uma
experiencia que pode ter sido vivida como a de niioestarbern ser0 que
seee a consequente obrigacao de chegar a ser uma outra diferente da
que see- desprendida do seu corpo, arrancada da pr6pria experiencia,
negada no pr6prio ser - a experiencia daquelas que sao reconhecidas
como cidadas de pleno dire ito apesar de seu sexo, isto e, apesar de ser
o que sao: mulheres.
Uma terceira experiencia possibilita-me falar assim do texto que
se nos apresenta com esse subtitulo provocador que pergunta
impertinente: Ese 0 outro niio estivesse ai?Trata-se da experiencia de
haver optado pela Educacao Especial e, portanto, de ter vivido junto
daqueles e daquelas que nunca sao 0 que deveriam ser, pois sempre
estao sendo para os outros aquilo que alguem jamais desejaria ser, e
bern se sabe que alguem e na medida do desejo dos outros...
Mas, urn belo dia, essas exp eriencias tornaram pos sivel urn
encontro : 0 afortunado encontro com Carlos Skliar, que nos falava de
suas primeiras relacoes com criancas sur das que causaram uma
profunda rnudanca nas suas proposicoes, no seu modo de pensar e de
olhar as diferencas, sobretudo no modo de olha r para si mesmo. Essas
cxperiencias, que ele contava com palavras ja distanciadas e ironicas,
mas ainda com ovidas e comoventes sobre si mesmo , fizeram renascer
ern mirn outras semel hantcs. Era rn as qu e eu costumava cont ar
tumbern as minhas alunas e aos meus alunos sobre min ha pr6pria
cxpcricncia com meninos e meninas gravemen te afetados por
deficiencias motrizes e que, em nossos primeiros dias de colonia de
ferias, haviam feito 0 que costumam fazer todas as criancas na primeira
oportunidade:a travessura de fugir para dormir debaixo de uma arvore,
deixando, isso sim, junto a suas camas, e ao lado de suas roupas e
sapatos, todos os aparelhos ortopedicos de que - todo mundo acreditava
- precisavam ineludivelmente para se locomover.
Voltar 0 olhar para si mesmo, repensar tudo 0 que nos foi pensado
a partir da academia, a partir dos textos especializados, a partir dos
discursos politicamente corretos, a partir das consciencias acomodadas
daqueles que se conhecem como parte da normalidade, do racional,
do democratico, do verdadeiramente humano, e 0 que provoca a relacao
direta e aberta com aqueles que nao fazem parte de todas essascertezas.
Mas isso tambern pode ser provocado pela leitura de urn livro escrito
a partir da verdade da pr6pria experiencia, escrito a partir da verdade
de uma relacao, escrito a partir do saber-se alguern que esta sendo
entre os outros, com 0 olhar e 0 coracao abertos ao que a relacao possa
dar, escrito tambern a partir da necessidade de ler a si mesmo na
escritur a, buscando as palavras que nos ajudem tambern a ler-nos.
E urn livro escrito a partir da experiencia, de uma experiencia
que , como diz Maria Zambrano, nao s6 "nao se deixa arrebatar pelo
ceu da objetividade, mas tambern reage diante dela" Dessa reacao
nutre-se a maioria das linhas do texto que trato de prefaciar, mas e
urna reacao na qual nao se produz urn movimento contrario, de
opos icao reflexa, e sim urn movimento diferente, 0 de pensar de outro
modo , 0 de buscar nas palavras que 0 geram uma filosofia que possa
iluminar, ainda que somente por urn momento, a experiencia da
qual elas
nascem.
Em alguns momentos, podemos chegar a pen sar que essa filosofia
par ticipa, de alguma maneira, de urn certo niilismo que a faz cortar 0
galho da arvore sobre 0 qual esta sentada, mas isso acontece em maior
mcdida quando sao os textos de outros os que 0 autor utiliza para sua
rctlcxao, pois no instante preciso em que retornamos a suas pr6prias
palavras percebemos que ele ja estava sentado em outro galho, talvez
111;\is flcxivel, talvez mais inseguro, talvez somente apoio momentaneo
para poder desprender-se melhor dos falsos apoios da objetividade.
14 Pedagogia (improvavel] da diferen<;a Prefacio 15
Carlos Skliar nao teme as palavras; constroi-se com elas para dizer-
se e para dizer-nos qual e 0 seu olhar. Ele po de, falando de nossos
tempos, indicar que "ali, onde houve massacres de gentes e incendios
de territories, existem agora algumas poucas e incomodas hospedagens;
on de houve violencia irracional - material e/ou simbolica - existe
agora uma consciente e minuciosa assimilacao; onde houve morte,
uma reparacao sepulcral; onde houve sordidez e hipocrisia, existem
agora alguns eufemismos" e deixar-nos por urn tempo pensando sem
mais palavras do que essas. Epreciso deter-se. Ele continua, porem -
vantagens da palavra escrita - espera-nos algumas linhas mais adiante.
Com efeito, trata-se de urn livro para ser lido devagar, deixando
que ele nos leia e aventurando-nos a reviver, em seus espa<;:os, nossas
proprias relacoes com 0 outro, esse outro que pode ser uma palavra,
urn mero esconderijo para si mesmo, mas esse outro com 0 qual
todos nos e cada urn de nos, hoje e sempre, nos encontramos porque
esta entre nos, pois ese0 outro niioestivesse ai?Certamente, se 0 outro
nao estivesse ai, nao haveria palavra, nao haveria relacao, nao haveria
vida humana: quem foi para todos nos 0 outro, 0 primeiro outro de
nossas vidas? Com certeza, uma mulher, a mae, de quem recebemos
tudo isso, a vida, a palavra, a relacao. Meu primeiro outro e uma
mulher, 0 primeiro, in-genuo e verdadeiro olhar para 0 outro e urn
olhar que por sua vez nos olha a partir dos olhos de uma mulher.
Esse e urn outro can tar, urn cantar que so po de ressoar, neste
livro, na lernbranca dos dialogos que provocou quando era - somente?
- palavra oral, naquele seminario de Barcelona. Etambern urn cantar
que pode evocar em cada urn de seus leitores e leitoras algo da verdade
que contern esta inquietante pergunta: e se 0 outro nao estivesse ai?
Tal pergunta e inquietante porque nos fala talvez de algo que
po de ser urn desejo oculto de que 0 outro nao esteja realmente ai,
porque nos fala de uma imperiosa necessidade de violar sua presen<;:a
desvelando, profanando, seu misterio, sua irredutivel alteridade. Talvez
essa imperiosa necessidade tenha sido refletida com maior forca na
relacao com a infancia que a educacao prop6e; isso e 0 motivo pelo
qual se torna inevitavel para mim voltar amae, aque, em palavras de
Maria Zambrano,"serveate vererguido sobre si,esmagando-a, 0 homem
que a esquece".Voltar, sim, adiferenca de ser mulher (pois nao e por
acaso que a diferenca sempre esta no outro, sempre e dos outros) para
referir-rne a estas Notaspara uma pedagogia (improvavel) da diierenca
com as quais 0 livro se abre para urn final inevitavel ou se fecha com
uma abertura necessaria: a da pergunta pela educacao.
Talvezseja born, para apenas insinuar algo daquilo que este livro
remove em quem escreve este prologo, despedir-rne aqui de seus
leitores e suas leitoras com estas palavras de seu ultimo capitulo que,
ja yOU dizer, nos abre as portas para uma aventura, a de pensar de
outro modo a educacao, que nao e nada mais do que pensar de outro
modo nossa relacao com 0 outro, que nao requer outra coisa alern de
arriscar-se a pensar de outra maneira a mesmidade:
Preferimos mudar a educacao - e muda-Ia sempre - antes de
perguntar-nos pela pergunta; preferimos ocupar-nos mais do ideal,
como normal, que do grotesco, como humano. Preferimos fazer
metastase educativa a cada momento. Subjuga-nos transformar a
transforrnacao, esquecendo - ou entao negando - todo ponto de
partida; e a voragem de uma mudanca que faca da educacao algo
parecido com urn Paraiso tao improvavel quanto impossive!. Da
mudanca sem origem: disso se trata.
Nuria Perez de Lara Ferre. Barcelona, abrilde2002.
APRESEN1i\c;Ao
Entre 0 e se 0 outro ndo estivesse af?
e a atenqdo a diversidade - notas para urn
esclarecirnento tao confuso quanto entranhiivel
Pois 0 homem, no maisprofundodo seu ser, depende
da imagem de si mesmo que seforma na alma
alheia, ainda que essa alma sejacretina.
Witold Gombrowicz.'
Outrem naopodeserseparado da expressividade que
o constitui. Nem mesmo quando consideramos 0
corpo do outrocomoum objeto, e suasorelhas e seus
olhos como apendices anatomicos, os despojamos de
toda expressividade, ainda que simplifiquemos ate 0
extrema 0 mundo que expressam...
Gilles Deleuze
o olhoque voceve nao e olhoporque voce 0 ve;
e olhoporqueele 0 ve.
Antonio Machado
Confesso que nao fui fiel.
Mas que minha infidelidade foi s6 corporal, territorial e literaria;
uno foi te6rica nem muito menos moral. Que, quando leio e releio
l' s l:lS paginas, nao posso senao me perguntar onde ficaram os primeiros
csbocos,os rabiscos iniciais, aqueles rascunhos prolixamente ordenados
em papeis naturalmente perdidos. Que quanto mais procuro a origem,
11 1:l is cncon tro 0 final. Que me perdi em infinitos livros de areia .
I i\f\I':Jdc~() a Ca ter ina Lloret confiar-me esta frase de Gombrowicz, com 0
I ou hccimcnto de que nao a trairia nunca (nem a ela, nem a frase) .
DP&A editora
18 Peclagogia [improvdvel] cia diferenc;;a A presen tacao 19
Tudo cornecou numa curiosa tarde de julho na Buenos Aires de
2001 (os jornais falavam nessa ocasiao , acho, de urn ex-presidente
levementepreso e de uma paciente mas espreitante tragedia economica).
Estava ja vencido pelo cansaco, exausto de palavras,quando tres amigos
entranhaveis' me fizeram uma proposta temivel- e, contudo, esperada
havia tanto tempo: "Enviarernos a voce a transcricao das aulas gravadas,
para que as corrija e as reescreva para urn livro'"
Desde aquela tarde furiosa - e, como nao podia ser de outro modo,
tambem chuvosa - ate esta tarde de Barcelona de ho je, de fevereiro de
2002 (em que os jornais se obstinavam ate ontem em emitir opiniao
contra uma jovem arabe qu e insistia em ir aescola com seu veu e em
que a escola tambern se obstinava em criticar 0 uso do veu e, sobretudo,
a jovem; e que hoje devaneiam para saber se acaso multiculturalismoe
urn virtuosismo, uma diatribe ou uma gangrena), muitas coisas (me)
aconteceram: em primeiro lugar, quis jurar fidelidade a aralidade
acumulada naquelas aul as de julho, mas nao pude; em segundo lugar,
outros texto s fizeram metastase no meu corpo e 0 dobraram; em
terceiro lugar, chegaram gestos e rostos novos quase de madrugada e
nao tive como nao lhes abrir a porta; em quarto lugar, aquele ex-
presidente deixou de estar levemente preso e a tragedia econornica se
fez ainda rna is tragica, por ultimo, a menina arabe do veu po de
finalmente matricular-se, nao sem antes ter sido metralhada por
criticas, injuriada, vulgarizada, banalizada e, 0 que e pior, desarabizada.
Eainda nao sabemos se 0 multiculturalismo acabara sendo urn antonimo
de tudo aquilo que cheire a taliba,' se deveremos deixar de uma vez
2 Ja que sao tao ent ranhave is quero di zer seus nomes: Angelica Grac iano , N~stor
Carasa e Jorge Cardelli . [0 adjetivo entran htivel e usado em espanhol para referir-se
a amigo, como sendo urn grande amigo, 0 amigo do peito, aq uele com qu em se tern
muita afin idade e m uita inti midade; ou coisa, aco ntecimento muito especial- N.T.]
J Esse curso foi tarnb em entranhavel para mim e, por isso, 0 menciono com seu nome
proprio: Prim eiro Programa de Atualizacao em Atencao 11 Diversidade, organizado
pela Escolade Formacao Pedagogica
eSindical MarinaVilteda~entr.al deTrab~hadores
da Educaca o da Republica Argentina (CTERA) e pela Un iversidade Nacional de
Comahue, realizado no mes de julho de 2001 na cidade de Buen os Aires.
., Em visita a Barcelon a,0 en tao president e dos Estados Unidos BillClinton pronunciou
um a frase que ainda perdura em nossas conc ienc ias: "0 mundo sera cataldo o u
raliba" (El Pais, 29 out. 2001).
por todas de pronunciar essa palavra, ou se ficaremos finalmente
estendidos nas praias com os corpos cobertos de chagas e mutilados
tratando de alcancar 0 Paraiso, ou 0 qu e resta dele.
E aqui estou eu. Aqui esta 0 texto.
Entre tr es cidades qu e amo de urn amor nao correspondido (e
tudo par minha culpa) , justificando ordens e desordens, fragmentos e
heterodoxias, silencios e entrelinhas, metastases e metamorfoses.
]ustificando, por exernplo, que entre aquele curso e este texto
pode (deve?) existir urn abismo de autor e de auto res, de t6picos e de
terna ticas, de suje itos outros e de outros sujeitos, de desorgani zacao,
de termos e de palavras - e de faita de termos e de palavras - de
cspacialidades e temporalidades. E que 0 leitor, diante do abismo,
sabera escolher entre dar urn passo a frente ou, talvez melhor, urn
passe atras ,
]ustificando como algo que passou a ser chamado de atencao a
diversidade"pode ser traduzido hoje, claro qu e provisoriamente, como:
Ii se 0 outro nao estivesse ai? E que 0 leitor decidira - con siderando
aquilo que neste mundo todo, absolutam ente todo, se tornou objeto
[util de op iniao - se 0 espelho que os titulos lhes devolverem lhes
scrvira, como diz Machado, apenas para tin gir 0 cabelo, ou melhor,
como realmente espero, para quebrar 0 pr6prio rosto em mil pedacos,"
Aceitando, entao, a pena que me cabe por haver tr aido em algo 0
l 'n l ranhavel daquele convite. E renunciando a todo parent esco (mas
nao aheran ca que me cab e) com aquele que falava naquele julho, de
qu em me recordo, ainda, com muita ternura.
l'azendo minha, visceralment e falando, aquela ideia de Baudrillard
( )() ()2) de que tu do e possivel em relacao a as mudancas, ma s que 0
que rcalmente importa e um a metam orfose e urn devir - e advirto
.iqui 0 leitor de qu e neste ponto em par ticular nao podere i fazer
ncuhuma co nc ess ao ; n em mesmo quis pedir-Ihes li cenca o u
I'l'I'glintar-lhes nada.
1I1" /1\"';Oll diversidadee a etique ta da reforma pedagogica espanho la, anteriorme nte
I h.unada de Escola Inclusiva ou Integradora .
Ikli lll -m e aquele proverbio de Antonio Machado: "Busca em teu proprio espe lho
/ 111,IS nan para fazer a barba / nem pa ra tin gir-te 0 cabelo".
20 Pcclagogia [improvavcl] cia clifcrcnga Aprcse n tagao 2 1
Iustificando diante da lernbranca dos olhos impavidos, porern
belissimos dos assistentes do curso de julho, aquilo a respeito da nao-
continuidade entre a oralidade e a escritura; que a escritura tern urn
dono diferente, que e a unica responsavel par suas artimanhas e po r
suas rnanhas; que a escritura se consome em sua propria diferenca.
Que ediferenca, E que carecemos de uma escritura que nos subverta,
nos antagonize, nos paradoxize.
Que gostaria de jurar-lhes que desde 0 mais fundo de nossa
esforcada cumplicidade nao deixei de mencionar aqui nada do que
Ihes foi confiado naquela ocasiao.
Que, ainda que nao se possa notar, continuo desconfiando de
tudo aquilo de que ja desconfiava.
Que continuo pensando que para falar de rnudancas na educacao
e necessario, primeiro, urn profundo silencio, uma longa espera, uma
estetica nao tao pulcra, uma etica mais desalinhada, deixar-se vibrar
pelo outro mais do que pretender multiculturaliza-lo, abandonar a
homodidatica para heterortelacionar-se.
E que logo em seguida e preciso voltar a olhar bern aquilo que
nunca vimos ou que ja vimos, mas desapaixonadamente.
Voltar a olhar bern, isto e, voltar 0 olhar mais para a literatura do
que para os dicionarios, mais para os rostos do que para as pronuncias,
mai s para 0 inorninavel do que para 0 nominado. E continuar
desalinhados, desencaixado s, su rp resos, para nao continuar
acreditando que nosso tempo, nossoespaco,nossa cultura, nossa lingua,
nossamesmidadesignificam todoa tempo, todoa espaio, todaa cultura,
toda a lingua, toda a humanidade.
Voltar a olhar bern, como diz Nuria Perez de Lara (2001 ), para
nao ter essa sensacao de topi cos vazios, encobridores de realidade, que
nao dei xam marca alguma a nao ser aquela da vacuidade, da
infertilidade, da solidao a sos.
Justificando frente aos olhos igualmente belos dos meus novos
colegas, que ja nao sao atuais,?a razao pela qual nos, desde esta parte
da Terra, nos obstinamos tanto em falar a respeito da atencao d
7 Refiro-rne aos/as en tranhaveis colegas do depart am ento de Didatica e O rganizacao
Educativa (DOE) da Un iversida de de Barcelona, Espanha: Nuria Perez de Lara,
Ca teri na Lloret, Glori a Diaz Fernandez, Virginia Ferr er e Jose Co ntreras .
diversidade- no sentido que nos empenhamos em considera-lo uma
mudanca educativa que e real, verdadeira, objetiva e ja moldada em
sua totalidade - , se aqui - no que acreditamos ser a origem divina da
atencao d diversidade - eles vivem angustiados ainda entre pateras,"
indo cumentados, magrebinos, latino-americanos, arabes, corpos-
nativos-com-sua-documenta<;:ao-em-dia, mas deficientes, vestimentas
cstra nhas, sons guturais, religices obscurantistas, corpos sem clitoris e
outras estranhezas, excentricidades eanormalidades multi/interculturais.
Se eles vivem entre corpos, vozes e gestos que ainda nao tiveram a
sorte de serem hospedes da hospitalidade (a ateniiio d...), muito menos
o privilegio de receber tal divino mote (diversidade). E que, muito
pclo contrario, foram e continuam sendo objetos permanentes de
11l11a hostilidade do mesmo.
Se eles juram que viram meninos e men inas ciganas dilacerando
as proprius maos de tanto bater para derrubar as portas de todas as
cscolas qu e Ihes eram negadas.
Se confessam que existem meninos e meninas que sao multados
l ada vcz que falam sua lingua ."
Sc me dizem que nao ha nada senao a violencia ordenada de
.ilguns decretos; avaliacoes que pretendem medir quanta e como ser
1111 nao ser tolerante; atividades em que so podem unir-se os iguais (0
Ill' .ro com a negra, 0 indio com a indi a, 0 branco com a branca, 0
til icura l com a oriental etc. ); e 0 outro como problema, e sua
,1111,11 izacao e curricularizacao; e as dinamicas em torno de urn outro
'I'll' hem faria em estar, se qu iser aqui mesmo, mas do outro lado.
Sc me dizem novamente que e preciso voltar a olhar bern. Talvez
11.111 ondc achavarnos, talvez nao onde pensavamos.
lust ifica ndo, com a ajuda e a incred ulidade dos qu e m e
.1111111panhara m durante algumas terca s-feiras de inverno _ 10 por urn
I) vcutido de pa teras aqui e 0 de nom e dad o pelos espanh ois a urn ti po de
I II lbM i1~'iio rud imentar, rniseravel, com a qu al os im igrantes afr icanos at ravessam
" '" (',1110 para chegar ao Paraiso.
II1"11liono aqui uma carta de leitores publicada no jornal espanhol El Pais ( 19nov,
'(111). nil qual den uncia m qu e num colegio de Villaviciosa, Ovi edo, os alunos sao
1I"rll.ldos com 25 pese tas por cada palavra dita em dialeto bable.
11,11111 me nos/as entranhaveis alunos/alunas e ao professorado do serninario
I 1"" IIIlid,,"e, temporalidade e educacao que ofereci na Universidade de Barcelona
,"1" i.mciro e fevereiro de 2002.
22 Pcdagogia [improvdvcl] cia difercn~a Apresen tacao 23
caminho em direcao a parte alguma e sem retorno -, que as imagens
do outro acabam transformando-nos em refens do outro; que os
sentidos do outro acabam por quebrantar nos sas rigidas maos ate
converte-las em caricias, ate transforrna-las e transformar-nos em
rostos que as vezes se aproximam, e verdade, mas que muitas outras
vezes se ignoram em racismos e rizomas de diferencas. E justificando-
me, escrevendo, com eles e para
eles, muitas destas paginas.
]ustificando que, talvez, eu nao seja tao util, tao capaz de uma
mecanica didatica conveniente e que nao sou suficientemente
distraido para deixar-rne arrastar par qualquer brisa ou cegar-rne pela
primeira estrela fulgurante.
Advertindo que sofro do mal da suspeita, da incompreensao e da
instabilidade.
Que em termos de educacao minha heranca e antes de qualquer
coisa paga e, sobretudo, austera.
Que ha momentos em que a forma de uma letra me comove, que
urn numero qualquer e capaz de submeter-me e que me socobro
diante de qualquer patio de qualquer escola em qualquer recreio.
Mas advertindo tambern que me sublevam, na seguinte ordem,
todos os festejos escolares, a aparencia eterea dos quadros-negros, a
estupida presen<;:a do ditado, a indecente rima vocalica da lingua oficial
e essa tenacidade para proibir que 0 outro seja outro em nome da
mediocridade, egocentrica e mesquinha, da mesmidade.
]ustificando, finalmente (desde que minha confissao anterior
tenha sido aceita), que embora tenha sido infiel nao creio haver traido
ninguem nem nada.
Que nao trai nem a mim mesmo, nem ninguern desde 0
momenta em que, ao ser convidado a falar sobre atencao adiversidade,
propus aos organizadores (ainda que nao me lembre bern se 0 fiz em
voz alta ou so para mim mesmo) que deveriamos tambern - porern
melhor? - considerar as seguintes indagacoes: existe, por acaso, uma
temporalidade comum entre ° eu e 0 voce, entre 0 nos e os outros,
que nos autorize a falar de urn tempo zero, inicial, originario.fundador,
de partida? Existe, entao, uma espacialidade comum entre 0 eu e 0
voce, entre 0 nos e os outros, que nos permita territorializar, mais
uma vez, 0 dentro eo fora, a interioridade e a exterioridade, a inclusao
c a exclusao! Ha disponivel somente urn unico olhar para percorrer 0
mundo, que possa ir alern das quantidades que nos manipulam
obscenamente, do paraiso virtual que nos eleva a nenhuma parte, do
po liticam en te correto que nos faz dizer coisas sem sentido, das
cxclusoes dos outros, das promess as integradoras em direcao aos
outros? Existe, portanto, uma mudanca educativa que nos possibilite
afir rnar que se trata, desta vez, de outra coisa ou que nao se trata
sorn ente de uma rnetafora desgastada de nossa propria e egocentrics
mcsmidader E onde fica 0 outro irredutivel, misterioso, inominavel,
ncm incluido nem excluido, que nao e regido pela nossa autorizacao,
nc rn pelo nosso respeito, nem por nossa tolerancia, nem pelo nosso
rcco nhecim ento para ser aquilo que ja e e/ou aquilo que esta sen do
c/o u aquilo que podera ser? E onde fica, alern de tudo, a relacao deles
l om os outros - nao so conosco, nao so entre eles? E por ultimo: qual
l a hcranca, qual e 0 testamento que esta em nossos corpos e em nossa
lingua que nos obriga a en tender a pergunta educativa, a pergunta
suhrc a educacao, numa unica direcao possivel , atraves de uma flecha
que sempre (e que so) indica a direcao de nos mesmos?
II
o subtitulo deste livro bern poderia conter uma expressao como
, I scguinte:Ai!Porque temosde nosreformartanto? Ou talvez, com urn
It)111de horror, este outro: Oh!Porquesemprenosesquecemos de algum
III/1m? Epor que nao, enquanto nao deixo de fazer-porvia das duvidas
..iqucle gesto de mentira cruzando os dedos por debaixo da mesa:
/i'tl05 SOIIIos, em certa medida, outros.
No pr imeiro casu - Ai!Porque temosde nos reformartanto?(titulo
qll l' uti lizarei para as ultirnas notas deste livro) -seria suficiente deter-
" 11111 po uco no que conta Dostoievski sobre 0 fato de mostrar 0 ceu
l 'l'l ,1 primeira vez a alguern: e que esse alguern, logo ap6s alguns
l'I',t llldos de profunda consternacao e adrniracao, dissesse: "Sim, esta
1"'111 , csla muito bern. Mas eu teria colocado aquelas estrelas mais
1'01 1,1 I••. a lua urn pouco mais para cima, e daria urn pouco mais
,01, t II ridade ao ceu, pois esta muito diafano" Esta pode ser a hist6ria
24 Pedagogia (improvavel] da diferen~a 25
da necessidade de reformas na educacao, mas tambern da insatisfacao
com as reformas e, mais ainda, do fetiche das reformas. Uma hist6ria
de mudanca como metastase, nao como metamorfose. Uma hist6ria
oficial, que considero tediosa e insipida, e que deixaremos que outros
a contem e que leremos, alguma vez, mais tarde, depois, nos infinitos
textos daqueles infinitos autores que ja a escreveram infinitas vezes.
No segundo casu - ah! Parque sempre nos esquecemos de algum
outro?- sera preciso, entao, lembrar urn dos contos mais conhecidos
de Machado de Assis, a alienista, escrito em 1882. Nesse relato, 0
doutor Simao Bacamarte funda numa pequena cidade do interior
uma instituicao para os loucos, que ate entao nao tinham onde
expressar suas alucinacoes, seus desvios, seus desvarios. Com 0 passar
do tempo, e por efeito de urn avanfo cientifico inevitavel,a populacao
da instituicao aumenta cada vez mais, porem ja nao mais de loucos,
senao de todo aquele vizinho que apresentasse qualquer minima
obsessao, qualquer pequena duvida, qualquer comportamento
inclassificavel, qualquer voz de dissidencia. Houve urn momento,
entao, em que a loucura era generali zada e, com excecao do medico,
todos estavam e/ou deviam estar loucos. Ate que a nossa personagem
percebeu que na realidade deveria, antes de mais nada, curar nao
mais a suposta loucura, senao a demasiada cordura, a abundancia de
mesura,o excesso de bondade, a insuportavel coerencia, a insistente
modestia, a inquietante tranquilidade, 0 grito irritante da virtude etc.
Uma vez realizada a sua missao redentora e normalizadora, descobriu
finalmente, com assombro e horror, que aquilo a que realmente deveria
dedicar-se era a sua pr6pria cura, pois era ele quem pecava pela
perfeicao em excesso.
Essa tambern pode ser a hist6ria das mudancas em educacao. Mas,
diferentemente da hist6ria anterior, ela pode ser muito mais uma
referencia a essa totalitizacao institucional ou a uma instituicao total!
totalitaria que de tudo deseja apoderar-se, que tudo deseja conter e
incluir, que nao suporta as ausencias, os esquecimentos, as
arnbivalencias, e que repousa satisfeita ao fechar suas portas por dentro,
ao enclausurar-se, ao haver concluido com sucesso sua missao
antropofagica e diab6lica de possuir e dominar a todos, a todas e a tudo.
No ultimo casu - Todos somas, em certa medida, outros- , intuo 0
silencio imediato, 0 rapido suicidio, a eterea velocidade com que
dizemos algo para nao dizer nada ou para rapidamente banaliza -lo.
Esta tambem e a hist6ria das mudancas educativas: a busca, as vezes
dcsesperada, por dizer algo para na ultima silaba da-le por terminado;
e a excessiva pronuncia de urn nome ao qual imediatamente, como
diz Porchia,nao sabemos que nome dar; e os textos e as leise 0 curriculo
que se reproduzem e produzem ate 0 esgotamento, enquanto fazemos
que a corpo do outro espere im6vel; e as reformas que se vendem, mas
que sobretudo se compram, enquanto 0 massacre do outro continua.
III
a certoeque aqui estoueaqui esta0 texto:Ese aoutronaoestivesse ai?
Entre tres distancias, entre do is textos, que nao se separaram nada
ncm em nada, pois tudo esta aqui. Minha infidelidade nao foi tanta.
1\ porque (outra vez Baudrillard!) 0 objetoja nao e 0 que era. au entao,
.iinda que soe urn pouco diferente: eo objetoque nos olha, e 0 objeto
q ll\' nos pensa. Ele nos olha enos pensa incessantemente. 0 outro nos
ulha e nos pensa incessantemente.
Ej.l nao ha volta possivel:ou olhamos desde urn porao - e dali nos
I\'sguardamos, protegemos 0 que acreditamos que somos - ou 0
Id!('mos desde 0 altar de urn paraiso virtual- a partir de onde se pode
vcr.c fctivam ente, uma certa ordem e a partir de onde e possivel, alern
, II~~( I, profetizar tenues utopias - ou, por ultimo, pulverizamos nossos
ulhus ate reduzir-nos a cinzas.
..Em termos de alteridade", diz Baudrillard (2002, p. 83), "tudo e
111 1 sivcl (convivio, comunicacao instantanea,
redes), 0 que e preciso
, III11a forma dual, antagonica e irredutivel."
Antes de nos perguntarmos quem e, quem sao os outros,
1'1II lcr laIIIos ja desde 0 inicio discutir qual e 0 significado da pergunta
1'11,1, lilt roo Eessa, por caso, a minha pergunta sobre 0 outro ou e uma
I" I g l i ll t a que e do outro.que vem do outro? Antes de dizer (a) pergunta
,1, 1I till1"0, caberia entao precisar: pergunta (do) outro. Como entender
, I . li fcrcnca de enfaser Para Derrida (2001a) a pergunta do outro
II\'lI(' .1 prcscnca de duas perguntas: trata-se ao mesmo tempo de (a)
26 Pedagogia (improvavel) da diferenc;a Apresen t ac ao 27
uma pergunta do outro; (b) uma pergunta dirigida ao outro, Como se
o outre fosse, antes de mais nada, aquele que faz a primeira pergunta
ou aquele a quem alguern dirige a primeira questao, au: como se 0
outro fosse 0 ser em questao, a pergunta mesma do ser em questao, ou
o ser em questao da pergunta.
Epossivel que os textos dedicados hoje aquestao do outro tenham
a mesma natureza: uma especie de luto paradoxal frente a urn
componente que, nao outro, ja teria desaparecido ou estaria em vias
de desaparicao; Baudrillard e Guillaume (2000) chamaram esse
componente de alteridade radical. Para expressa-lo de uma forma
mais simples utilizarei as proprias palavras dos auto res franceses:"Em
todo outre, (autre se refere a todo 0 outro, em termos gerais; autri, por
outro lado, poderia se traduzir pelo proximo, a outra pessoa) existe 0
proximo - esse que nao sou eu, esse que e diferente de mim, mas que
posso compreender, ver e assimilar - e tambern 0 outro radical,
(in)assimilavel, incompreensivel e inclusive impensavel".
Ha, entao, urn outro que nos e proximo, que parece ser
compreensjvel para nos, previsivel, maleavel etc. E ha urn outro que
nos e distante, que parece ser incompreensivel, imprevisivel, maleavel,
Assim en tendido, 0 outro pode ser pensado sempre como
exterioridade, como alguma coisa que eu nao sou , que nos nao somos.
Mas a mesma dualidade apontada acima (outro proximo - outro
radical) existe tambern em termos de interioridade, quer dizer, que
esses outl:'os tambern podem ser eu, sermos nos .
a perisamento ocidental continua tomando 0 outro pelo proximo,
reduzinde, 0 outro ao outro proximo. Reduzir 0 outro ao proximo e
uma tentayao tanto mais dificil de evitar quanto a alteridade radical
con stitui sempre uma provocacao e, portanto, esta destinada ao
esquecimento. Porern, nesta gestae do proximo fica sempre urn
residuo; 110 outro se esconde uma alteridade ingovernavel, de ameaca,
explosiva. Aquilo que tern sido normalizado pode acordar a qualquer
memento.
Poderia ser que 0 outro, na sua alteridade radical ou na sua
singularidade irredutivel, tenha se tornado perigoso ou insuportavel e
por issoseja necessario exorcizar a sua seducaoi au sera, simplesmente,
que a alteridade desaparece progressivamente com 0 aumento em
potencia dos valores individuais e a destruicao dos valores simbolicos?
Seja como for, 0 caso e que a alteridade comeya a faltar e que e
imperiosamente necessario produzir 0 outro como diferenca na falta
de poder viver a alteridade como destino.
a outro da educacao foi sempre urn outra que devia ser anulado,
npagado. Mas as atuais reformas pedagogic as parecem ja nao suportar
o abandono, a distancia, 0 descontrole. E se dirigem acaptura macica
do outro para que a escola fique ainda mais satisfeita com a sua missao
de possuir tudo dentro de seu proprio ventre.
Por essa razao, toda vez que quis falar em torno da expressao
atcnciio it diversidade ou, diretamente, de diversidade, uma certa
Ilalologia de nome desconhecido me obrigava com frequencia a desviar
mcu olhar para outras coisas, a pronunciar outras vozes, a balbuciar
uutros sons; assim, na mesma medida que 0 termo diversidade se
lornava cada vez mais inaudivel e superfluo, apareciam diante de
mim qua se sempre de modo instavel outras vozes: dijerencas,
ulcnt idades, mesmidade,0 outro malefico,a invencao malejica do outro,
"0/11ro em suatemporalidade esuaespacialidade,ahomo-homogeneidade,
I' \ l'r rcfem do outro,a hostilidadehospitaleira (estas tres ultimas grayas
01 Ilen'ida) , a irredutibilidade do outro, do feminino (em termos de
l cvinus) etc.
I'or isso, toda vez que quis pensar ao redor da expressao atencaoit
.hvvrsuladeou, diretamente, da diversidade, notava que havia ali uma
III k de mistura de soniferos que iam distanciando ou ralentando ou
.I.'llIoran do a relacao e 0 conflito final com 0 outro. A diversidade (e
11,1 .ucncao) me provocava(m) e provocatrn) toda a arnbivalencia
'III\' sl'gue aqui: (a) que bern poderia ser pensada como urn simples
.1.1111 1 dcscritivo e prescritivo que consiste em ser cada vezmais rigoroso
«hscssivo na catalogacao do outro; (b) que bern poderia ser
d. 'llilsiderada pelo seu tear eufemistico e seu aroma rancio, por
, " lIl plo, de borboletas, cactos e algumas especies em extincao; (c)
'III. I II .tI poderia ser considerado, mas sentir imediatamente que nos
h.rvt.u nos desembaracado do outro com certa facilidade teorica e
"I1HlIa l; (d) que bern poderia ser urn modo de comecar a tirar a
28 Pedagogia [improvdvel] da difercn"a Aprcs entacao 29
maquiagem para olharmo-nos urn ao outro de rosto para rosto-
e aqui confesso que, lamentavelmente, sempre voltava aquela imagem
de que a diversidade nao somos nos : sao os outros; e finalmente (e)
que bern poderia ser uma forma de pensar de outra maneira nossa
heranca cultural, politica, educativa etc., mas agora sendo refens do
outro, de seu misterio e, portanto, muito mais obrigados a urn
adiamento do nome do outro, da definicao do outro, da domesticacao
do outro - mas ja, neste ultimo caso, deixei de lado 0 termo diversidade
com todos os seus (sem) sentidos.
Por isso, toda vez que quis pensar ao redor da expressao atencaoa
diversidade ou, diretamente, de diversidade, notava que uma certa
promessa multi/intercultural de certo modo ficticia rondava por nossas
mentes: a ilusao - nao sei, nem me importa sabe-lo, se honesta ou
desonesta, se sincera ou hipocrita - de que poderiamos estar todos
juntos de uma vez e para sempre, finalmente, agora mesmo, sem
sequer olhar uma so vez para tras, sem remorsos, sem desculpas, sem
arranhoes; mas tambern uma ilusao governada - quer dizer,
predeterminada - por tres principios que intuo milenares: que os
outros devem ser sempre os mesmos outros - isto e, so alguns e poucos
outros; aqueles outros que pudemos nomear quase sem esforco; que
outros outros nunca serao admitidos no territorio da diversidade; e
que nos nao somos nem os outros diversos nem muito menos os
outros outros, senao uma pura, autoritaria, egocentrics e voraz
mesmidade.
E aqui abro parentese, E peco-lhes, por favor, que nao nos vejamos
tentados a tracar equivalencias ali onde impera a mais terrivel
ambigiiidade. Que nao produzamos simetrias onde as palavras se
desfazem em desordem. E, sobretudo, que nao insistamos mais em
nomear 0 inominavel, em administrar as diferencas para mitigar a
dor, em varrer para debaixo do tapete toda a banalidade produzida em
torno dos outros.
Se estou aqui e aqui esta 0 meu texto, e porque so posso ser fiel a
essa inveterada tradicao de instabilidade. Uma tradicao de perguntas
mal formuladas, de textos e palavras iniciais que acabam no fogo, de
paixoes e de incongruencias sobre nos e os outros.
E digo: diante de urn aparente novo nome, a perplexidade. Nao 0
costume, nao a docilidade.
Diante de uma aparente nova mudanca, a desconfianca, Nao a
metastase e sim, em todo caso, a metamorfose.
Diante de uma aparente nova promessa, 0 desassossego. Nao a
tota l cornpreensao, nao sua burocracia.
Diante de urn movimento aparente, outra vez a perplexidade.
Nao 0 habito incorporeo. Nao sua ordenacao.
o outro ja foi suficientemente massacrado. Ignorado. Silenciado.
Assimilado. Industrializado. Globalizado. Cibernetizado. Protegido.
Envolto.
Excluido. Expulso. Incluido. Integrado. E novamente
assassinado, Violentado. Obscurecido. Branqueado. Anormalizado.
Excessivam en te normalizado. E voltou a estar fora e a estar dentro.
A viver em uma porta giratoria, 0 outro ja foi observado e nomeado 0
bustante como para que possamos ser tao impunes ao menciona-Io e
observa-Io novamente. 0 outro ja foi medido demais como para que
lornemos a calibra-lo em urn laboratorio desapaixonado e sepulcral.
Por isso 0 subtitulo deste livro : Ese 0 outro nao estivesse aii
Porque sem 0 outro nao seriamos nada (e nao confundir esta
(rase com aquela outra que se pronuncia habitualmente nos enterros);
porque a mesmidade nao seria mais do que urn egoismo apenas
I ravestido. Porque se 0 outro nao estivesse ai, so ficaria a vacuidade e a
opac idade de nos mesmos, a nossa pura miseria, a propria selvageria
que nem ao menos e exotica. Porque 0 outro ja nao esta ai, senao aqui
e ern todas as partes; inclusive onde nossa petrea mesmidade nao
.ilcanca ver.
E porque se 0 outro nao estivesse ai.. . mais valeria que tantas
rcfor mas nos reformassem a nos mesmos de uma vez e que tanta
hiodi versidade nos fustigasse com seus monstros pela noite!
IV
A in tencao deste livro esta atravessada por urn eixo que nao deixa
de SCI' caotico, obscuro e ainda retraido: a questao do outro. Esta
qu cst fl o, desde ha algum tempo ate hoje, foi sendo banalizada,
30 Peclagogia [improvavel] cia cliferen"a Apresen t acao 31
moralizada, e muito mais quando the agregamos a questao educativa
ou, mais bern dito, quando pensamos na questao do outro
especificamente na educacao. Diz Derrida (200lb, p. 49): "Atualmente
as palavras outro, respeito ao outro, abertura ao outro etc. cornecam a
resultar urn pouco enfadonhas. Ha algo que se torna mecanico neste
uso moralizante da palavra outro".
A questao do outro que assumo se rareia com as discussoes sobre
as temporalidades e espacialidades do outro, com as representacoes e
imagens habituais do mundo da alteridade, e tudo isso com 0
desmesurado e pretensioso prop6sito de deslizar-me na chamada
politica, poetica efilosofia da dijerenca.
Uma filosofia da diferenca que nao e, como veremos, uma
metafisica da diversidade, uma exi st encia descritiva, ja dada, ja
ordenada, sobre 0 outro.
Um a politica da diferenca que nao po de traduzir-se apenas em
uma atenciio adiversidade.
E uma poetica da diferenca que nao supoe nem a nostalgia, nem
a elegia, nem a utopia, nem a lisonja sobre 0 regresso do outro, de sua
volta, senao que gira em torno de seu misterio, de seu afastamento,
daquilo que por ser irredutivel se torna outro.
Uma politica, uma poetica e uma filosofia da diferenca, E nao
uma atencaoadiversidade.
Mas por que oferecer estes esclarecimentos tao abruptamente,
por que se justificar ja desde 0 inicio sobre aquilo de que este livro nao
vai tratar, nao vai dizer, nao vai vender, nao vai ser?
Desde 0 momenta em que fui convocado como docente do curso
ja mencionado de atencaoadiversidade, instalaram-se em mim, num
brevis simo lapso de intensa impaciencia, algumas perguntas que ainda
hoje me parecem inquietantes, de cuja solucao nao creio haver dado
conta neste texto e de cuja irnportancia ainda nao me inteirei. Entre
elas, por exemplo: epo ssivel falar da atencaoadiversidade como uma
mudanca evidente na educacaoi: ou entao mais tautologicamente:
a atencao adiversidade esta disponivel como urn sentido unico nos
professores e professoras, na pr6pria diversidade, nos programas e
projetos de formacao docente etc.?; ou talvez de modo menos
pretensioso: acaso existe algo na ateruiioadiversidade que possamos
de no m in a r mudancat; ou tambern : de quem e/deve ser esse
mo vimento de mudancai; e em outro sentido: de qual diversidadee
de qual atendio se esta falando?
Tive e tenho a impressao de que todas essas perguntas e muitas
ou tr as que surgiam e surgem incessantemente podem ressoar nao
co m o r efl exao ou como indagacao preliminar, mas como
inte rrogacoes que, ao mesmo tempo, parecem conter a exaltacao de
sua pr6pria resposta, a onipotencia de sua pr6pria justificacao. Por
isso me pareceu que, assim proposto, 0 problema da ateruiio a
diversidade nao estava sendo formulado como uma pergunta e sim
como uma afirrnacao, isto e,como uma evidencia em relacao aqual
dcveriam os simplesmente ser suficientemente descritivos, como a
materializacao de uma grande narrativa - outra narrativa mais - sobre
lima mudanca na educacao, gerada pela introducao da pr6pria ideia
de atencao adiversidade, uma ideia que, nos diz, esta ali, que e
irrefutavel, pretensamente universal, real.
o cur ioso daquele conjunto anterior de interrogacoes eque se
apresentam, de certa forma, como aquelas questoes que no s deveriamos
prope r quando discutimos as rnudancas educativas, isto e: 0 que e
aquilo que deve mudar? quem e 0 sujeito enunciado na mudancai
como deve ser produzida a rnudancai onde se realiza a mudancai que
I ipo de racionalidade/s subjaz/em na rnudancar
Ecerto que essas perguntas podem ser respondidas com urn pouco
de csforco e em sua expressao mais limitada, lancando mao de nocoes
de superficie tao difusas como, por exemplo, mudancas de leis,
niudancas nos programas de[ormacao do professorado, mudancas no
curriculo escolar, mudancas nas didaticase nas dinamicas de classe etc.
( )1I melhor, remexendo na abundante producao bibliografica a que se
propoe desde 0 inicio a rnanutencao inequivoca do slogan de atencao
I I diverstdade; textos que, sem lugar para duvidas, nao serao tao infieis
I omo este; textos que, entretanto, trairam boa parte de toda alteridade.
Mas, sem querer subestimar em nada a ideia de mudanca e de
1I 1 1'II~iio adiversidade, direi que este texto se pergunta outras coisas,
vihru com outras questoes, se suicida a cada passo e comete muitos
1"1 ros, Trata-se, todavia, de urn texto feito com a cabeca erguida. E com
I) co rpo fragmentado.
32 Peclagogia (improvdvej} cia ciiferen9a 33
Urn texto que nao quis responder a nada nem a ninguem, mas
simplesmente para voltar a olhar bern.
E olhar bern, novamente, para que a mesmidade se comova e se
atormente de uma vez.
Para que quando 0 outro volte, nos convide a seu misterio, nos
faca diferenca, nos difira.
v
No primeiro capitulo, que denominei talvez pretensiosamente
"Sobre a temporalidade do outro e da mesmidade - notas para urn
tempo (excessivamente) presente", discuto a questao deste presente
que deixara de se-lo em seguida para ser urn novo e renovado presente;
deste presente incompreensivel. Mas nao me proponho uma discussao
em termos de urn sujeito que tudo compreende, senao a partir da
absoluta perplexidade, a partir da perda do sentido sobre 0 outro e, por
conseguinte, sobre a propria mesmidade. A partir dessa perspectiva,
refire-me a determinadas e contraditorias descricoes da temporalidade
- sobretudo a concepcao de temporalidadesimultanea formulada por
Luhmann (1996), a temporalidade disjuntiva proposta por Bhabha
(1998) e os paradoxosdo tempo descritos por Deleuze (1988). So na
ultima parte do livro volto aquestao do tempo da mesmidade e da
alteridade, ao anunciar tres pedagogias que se referem ao modo como
o outro aparece, desaparece e reaparece a partir de uma temporalidade
- e de uma espacialidade - pedagogicais): a pedagogia do outro que
deve ser apagado - no tempo e no seu tempo; no espa<;:o e no seu
espa<;:o - a pedagogia do outro como urn hospede hostil deste presente,
e a pedagogia do outro que volta e reverbera permanentemente.
No segundo capitulo, "Sobre as representacoes do outro e a
mesmidade - notas para voltar a olhar bern 0 que foi apenas olhado",
parto da ideia da existencia de olhares - representacoes - diferentes do
mundo, olhares que em sua especificidade ou em sua superposicao
ou em seu governo determinam, produzem, inventam e referem, por
sua vez, olhares tambern diferentes sobre 0 mundo da educacao e da
escola.
Meu proposito nesta parte do livro e, em primeiro lugar, esbocar
a intuicao de que possuimos, ou nos estao disponiveis, ou nos sao
impostas, certas narrativas e metanarrativas do mundo - 0 que significa
dizer da cultura, das comunidades, dos sujeitos, da educacao, da lingua,
das identidades etc. - contraditorias, divergentes, ambiguas. E que
cada uma dessas narrativas (nos) concede urn mecanismo de olhar,
ou melhor, (nos) chamapara olhar 0 mundo em formas representacionais
diversas: somente em nome de urn primeiro e provisorio esclarecimento,
refiro-rne aquelas representacoes sobre 0 mundo que possam ser
batizadas, por exemplo, como do mundo globalizado, ou do mundo
governadopor quantidades obscenas e manipulaveis,ou do mundo das
promessas integradoras, ou das exclusoes e inclusoes, ou da fibra otica,
entre outras.
Gostaria de deixar claro que nao e meu proposito estabelecer
uqui urn sistema de certo modo completoe compreensivel de uma sorte
de totalidade de representacoes que temos e que nos estao disponiveis
do /no mundo - isto e, essa inveterada intencao e tentacao de explicar
() mu ndo de urn modo transcendental. Nao tenho, de forma alguma,
cssa ilusao nem a capacidade para sequer pensa-lo. Muito pelo
contrario, trata-se de narrar com total imperfeicao as dissonancias, as
assincronias, as heterogeneidades dessas representacoes.
No terceiro capitulo, "Sobre a espacialidade da alteridade e a
mcsm idade - notas para urn deslocamento (permanente) do outro",
dcscrevo aquilo que po de ser denominado como diferentes, ainda
'I Irc ao mesmo tempo contiguas, espacialidades dooutro: a espacialidade
colouial, a espacialidade multicultural e a espacialidade da diferenca,
para pert urbar e por em duvida as escassas e, por outro lado,
I rad icionais localizacoes que parecem estar disponiveis para a
.iltcridade: exterioridade/interioridade, dentro/fora, centro/periferia,
111;1 ior ia /m in o r ia, mente/corpo, masculino/feminino, nativo/
,'slrangeiro, turista/vagabundo, globaillocal, alta cultura/baixa cultura,
I,d ucab ilidade/ineducabilidade, inclusao/exclusao, igualdade/
difcrcnca etc.
i\ explicitacao das tres espacialidades adquirem aqui certa
un portft nc ia , pois possibilitara, espero, uma deslocalizacao da
,i1 ll'1' idacle e uma leitura critica, em cada uma delas, das mitologias
o/ln ' 0 outro. Alem disso, e creio que nisto se justifica a desmedida
34 Pedagogia (improvavel] da diferen<;;a A pre scn t acao 35
extensao do capitulo, sugiro que existem pelo menos cinco imagens
sobre 0 outro radicalmente distintas entre si em termos politicos,
filos6ficos e poeticos: 0 outro malefico, a invencao malefica do outro,
os intercambios - impossiveis? - com 0 outro, 0 outro irredutivel e a
mesmidade que se torna refem do outro.
No quarto capitulo, "Sobre a anormalidade e sobre 0 anormal -
notas para urn julgamento (voraz) da normalidade", aproximo-me
daquilo que denominei producao da alteridade deficiente, 11 isto e, sobre
como foi inventado e administrado urn tipo especifico de alteridade.
Aqui me valho de urn novo campo de estudos que em ingles recebeu
o nome de Disability Studies e que, como se podera ver mais adiante,
ainda nao encontrou sua melhor traducao em outras linguas. Ainda
quando explicito esta particular influencia, nao posso deixar de me
esquivar da forte heranca e do impacto visceral que a leitura
foucaultiana me produziu, em especial aquela do livro Os anormais
(2002). 0 objetivo nesta parte e, sobretudo, tentar inverter
epistemologicamente 0 problema da anormalidade, centrando-o na
normalidade, isto e, fazendo do normal 0 problema mais significativo.
11 A maneira como me refiro terminologicamente neste livro it questao da deficiencia,
dos deficientes etc. talvez precise de urn esclarecimento. Para muitas pessoas, tais
expressoes constituem uma acao - dizem: da linguagem, mas nao do discurso -
politicamente incorreta.Sendo ou nao assim, 0 que nao constitui preocupacao para
rnim, utilizei essestermos com 0 objetivo de evidenciar ou tornar visivcl 0 problema
ea discussao em torno dos significadosesentidos culturais. Eclaro que, ao mencionar
as palavras deficiente, deficiencia e outras, nao estou me referindo aos individuos
concretes, senao a uma das representacoes dominantes que circulam sobre eles: a
representacao de urn modelo biol6gico da deficiencia em que 0 centro de gravidade
esta localizado no individuo, em sua anorrnalidade, na correcao, na cura (FRANKLIN,
1997,p. 17). Por outro lado, alteridade deficiente euma expressao que remete nao ao
individuo ou ao grupo de individuos deficientes ou it sua deficiencia especifica,mas
it sua invencao, it sua producao como outro .Assim, distancio-me de toda pretensao
de acompanhar as sucessivas mudancas e remudancas de termos para denominar
esses outros, pois a linguagem da designacao nao eoutra coisa senao uma operacao
colonial, nao ingenua, alern de pouco criativa - poetica ou literariamente falando;
essa operacao consiste em sugerir 0 usa de eufemismos para continuar exercendo
urn controle e urn governo de representacoes sobre esta e outras alteridades. Eludir
ou evitar palavras para utilizar outras mais corretas ou mais modernas au mais
aceitaveis para 0 mundo do normal - como, por exernplo, sujeitos portadores de
necessidades educativas especiais - seria restituir uma vezmais a eficacia ret6rica do
discurso da normalidade.
o processo de inversao ou de conversao do problema da anormalidade
no problema da normalidade e (uma tentativa de) desconstruir a
naturalizacao que foi feita do problema da deficiencia - 0 problemada
deficienciaea deficiencia e/ou 0 deficiente, deslocando-o para aquilo que
se configurou como campo do normal,a normalidade, a normalizacao.
Em outras palavras: 0 problema nao e0 anormal, a anormalidade, 0
anorrnal, e sim a norma, a normalidade e 0 normal. 12
"E finalmente: Ai! Por que temos de nos reformar tanto?" nao e
urn capitulo a mais, nao pode ser urn capitulo a mais. E, entao, urn
1l0 VO esclarecimento tao confuso quanta entranhavel: existe scm pre
11111 risco e uma certa hipocrisia que caminham juntas sobre uma
corda frouxa quando no ultimo capitulo de urn livro ou na ultima
parte de urn artigo devemos fazer uma referencia forcosa aeducacao.
I'arece que, dessa maneira, epreciso concluir, fechar 0 texto com as
.lcrivacoes l6gicas, naturais e imperdoaveis que nos reportem a urn
mundo educativo possivel, traduzivel, materializavel.
Como se nao se tivesse falado de educacao neste livro, antes de
l hcgar ao capitulo da educacao .
Com o se a educacao fosse necessariamente urn problema cuja
linguagem , cuja modulacao e cuja gramaticalidade estivessem
co ustitu idas por espacialidades e temporalidades isoladas, auto-
I'rguiadas e auto-suficientes.
Como se a pergunta pela educacao fosse tao 6bvia em sua ret6rica.
Como se a educacao nao fosse mais do que uma pergunta habitual,
que se olh a scm ver seu pr6prio espelho.
POl' isso, nas ultimas paginas, retorno minimamente alguns dos
( ' 111idos e usos que parecem circular em torno da ateniiio adiversidade.
I A raziio pela qual este capitulo nao esta inserido natura/mente no inicio deste livro
.Icve-se a uma decisao tao consciente quanta questionavel. Eque se 0 prop6sito
d,·,l e texto, e do curso que the deu origem, e0 de abordar a questao da atentiio a
dlvcrsidade, e se a diversidade nesse contexto eentcndida, quase exclusivarnente,
1111110 a alteridade deficiente, 0 logico deveria ter sido cornecar por uma descricao
l.i' l(lI·ica, mais ou menos tradicional, mais ou menos tipificada, das trajet6rias
.Lr:, ins ritu icoes, dos governos e dos sujeitos que a comp6em. Entretanto, como
VI' l l lI o comentando desde 0 inicio do texto, resolvi trabalhar seguindo uma ordem
dikl' l'lIte, que tentasse alterar, perturbar, subverter, inverter, justamente, a 16gica
I I ,Idirio nal desta ternatica e de seus problemas habituais.
36 Pcdagogia [im
provavcl] da difercll~a
Meu proposito aqui e par sob suspeita algumas naturalizacoes que
foram feitas dessa expressao - de acordo somente com urn espirito
reformista ou legalista - para sugerir que talvez se trate de urn
eufemismo novo e rudirnentar, de urn novo sistema ordenadorl
controlador da alteridade, de uma nova modalidade de querer nomear
o inorninavel, querer reduzir 0 irredutivel, descobrir 0 veu do
misterioso para fazer dele uma pura e conveniente alteridade.
Urn modo de pluralizar 0 eu sem ao menos levantar uma pequena
brisa.
Nem urn leve sopro. Nem muito menos uma vibracao, urn
suspiro, urn suave crepitar da alma.
E so uma maneira de assegurar-se da propria identidade, do
proprio olhar, da tediosa e estupida mesmidade.
Por isso, nas paginas finais, prefiro abordar a questao das
pedagogias do outro, e nao a educacao. Pedagogias que capturam ,
ignoram, mascararn, massacram ou vibram com 0 outro.
Para ver se e possivel reescrever 0 testamento.
Para ver se e possivel voltar a olhar bern.
Porque 0 outro ja nao e 0 que era.
Porque e 0 outro quem nos olha.
Porque e outro quem nos pensa.
CAPITULO I
Sobre a ternporafidade do outro e da
rnesrrridade - notas para Ulll ternpo
[exceseivarnerrte] presente
Uma dasminhaspreocupacoes constantese a de
compreendercomoe que outragente existe, comoe que
existem almasque niiosejam a minha, consciencias
estranhas a minha consaencia que,porserconsdencia; me
parece sera {mica. Compreendo bem que 0 homem que
esta diantede mim, e mefala compalavras iguais as
minhas, e mefaz gestos quesao comoosqueeufaroou
poderia fazer, seja de algum modo meu semelhante.
o mesmo, porem, me acontece comasgravuras quesonho
dasilustracoes, comaspersonagensque vejodosromances,
comaspessoas dramaticas que nopalco passam atravesdos
atores que osrepresentam. Ninguem, suponho, admite
verdadeiramente a existencia real de outrapessoa. Pode
conceder queessa pessoa esteja viva, que sintaepensecomo
ele; mas havera sempre um elemento anonimo de
diferenra, uma desvantagem materializada. [.oo] Osoutros
naosao para nosmaisdo quepaisagem, e,quase sempre,
paisagem invisivelde rua conhecida.
Fernando Pessoa
Toda verdade parte do recem-nascido. Daquilo que niioestava.
Antonio Porchia 13
'lodasc cada uma das perguntas sobre a temporalidade do outro e
Ilhrc a mcsmidade podem desdobrar-se - ate decompor-se - em
I 1(,', OITO a Anton io Porchia - que e, talvez, urn dos maiores autores que escreveram
ohll' a temporalid ade e sobre a espacialidade da mesmid ade e da alterid ade - ~
DP&A edito ra
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