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1 Notas de aula para o curso de análise econômica de projetos Nota 2, projeção de demanda Thiago Fonseca Morello fonseca.morello@ufabc.edu.br sala 301, Bloco Delta, SBC 1 Introdução É preciso avaliar em que medida o projeto é necessário e esta necessidade tende a se perpetuar dentro de um horizonte de tempo que compreende pelo menos o período necessário para que o investimento seja recuperado (payback time). Sendo válido compreender um projeto como voltado a alterar a disponibilidade e qualidade de bens e serviços, a avaliação da demanda pelo projeto, este o objetivo desta etapa, pode ser reduzida à avaliação da demanda pelos bens e serviços em questão. Tanto a demanda corrente como a futura devem ser avaliadas. A última depende do estado da economia, de políticas governamentais e, em alguns casos, de condições climáticas e ambientais. É preciso formular hipóteses acerca de todas essas classes de condições, de maneira a ter pelo menos dois cenários prováveis para a demanda pelo projeto. É preciso explicitar as hipóteses em que a análise de demanda se embasa e procurar testa-las ou ao menos apontar suas fraquezas e níveis de demanda que prevaleceriam caso as hipóteses mais sujeitas a erro não se verifiquem. As fontes de dados também têm de ser informadas. De acordo com Buarque (p.30), o estudo de mercado deve responder a três perguntas: (i) “quem comprará o produto”, (ii) “por qual preço”, (iii) “quanto comprará”. Estas perguntas são relevantes não apenas para projetos privados, mas também para projetos públicos que geram receita por meio de tarifas cobradas sobre o consumo ou utilização (é o caso, p.ex., de projetos do setor energético, de saneamento e de transporte). A estimação da demanda permite entender são os principais fatores que influenciam a demanda e formular hipóteses acerca de como tais influências tendem a se comportar no futuro. Contudo, um projeto público ou privado concorre com outras fontes de suprimento da demanda já existentes e é preciso as levar em conta, discutindo em que medida o projeto pode cumprir um papel que não é cumprido pelos concorrentes. É comum em projetos do setor de energia a demonstração de que uma nova usina atenderá uma fração da demanda não atendida pelas usinas já existentes. Por exemplo, na análise de custo-benefício da usina hidrelétrica de Belo Monte (CSF, 2006), pode-se ler: “[o] projeto se justifica, segundo o empreendedor, a partir da necessidade de ampliação de oferta de energia em razão do crescimento econômico projetado para o país nos próximos anos [i.e., aumento da demanda por energia]. Assim, mediante conexão com o Sistema Interligado Nacional, a energia a ser gerada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte seria uma alternativa eficiente para complementar o sistema energético de regiões cujo potencial elétrico encontra-se praticamente esgotado.” O trecho anterior apresenta um argumento convincente mas cuja validade depende do projeto e do contexto. Trata-se de afirmar que a demanda aumentará no futuro próximo ultrapassando a capacidade instalada atual. Este argumento também pode ser utilizado em relação ao espaço, i.e., pode-se demonstrar que há regiões do País que a demanda é subatendida, o que justificaria a relação de projetos voltados a tais regiões. matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce 2 Deve-se ter por claro que alguns projetos requerem um estudo de mercado que não se restrinja à demanda, mas incorpore também o suprimento ou a oferta de equipamentos, materiais, energia, água, e de outros elementos dos quais a instalação e a operação do projeto depende. Este “estudo de suprimento” é particularmente necessário para projetos altamente dependentes de recursos naturais (p.ex., uma usina de refino de petróleo) e também para projetos que incorporam tecnologias inovadoras (p.ex., uma planta de aproveitamento energético de resíduos sólidos). Este tópico, contudo, não será objeto do curso. 2 Fundamentos microeconômicos 2.1 Classificação de bens e serviços Bens e serviços podem ser classificados de acordo com: 1. A finalidade a que servem, consumo ou produção, duas motivações distintas, uma vez que o bens e serviços de consumo são adquiridos com o intuito de gerar satisfação psíquica (atender a necessidades ou desejos humanos) e bens e serviços de produção servem ao intuito de geração de lucro; 2. O processo de produção, ou melhor, de acordo com o estágio do processo de que participam e a função desempenhada no processo. Neste caso, as classes são: matéria-prima, bem ou serviço intermediário (produto do estágio anterior de produção e insumo do estágio posterior), bem de capital (componente durável da estrutura de transformação), bem final ou bem de consumo; 3. A durabilidade dos bens de consumo, que são duráveis (geladeira, automóvel) ou não duráveis (alimentos, roupas, etc); 4. A vida útil do bem, a qual, claramente, tende a ser maior para bens duráveis. Porém, bens duráveis diferem entre si em função da vida útil o que também é verdade para os bens não-duráveis; 5. A maneira como o bem de consumo responde a variações na renda dos consumidores, sendo denominados “normais” quando o consumo aumenta com a renda e “inferiores”, caso contrário; 6. Transacionáveis internacionalmente ou não-transacionáveis (tradables vs non-tradables). Os bens não transacionáveis são tais que seu custo de transporte é grande o bastante relativamente ao custo de produção de maneira a que sua venda para mercados internacionais seja não lucrativa (gere lucro não-positivo) (Krugman e Obstfeld, 2012, p.396). Serviços e instalações produtivas geralmente são não-transacionáveis. A relação entre dois bens (dois serviços) também pode ser classificada. Caso o consumo de um dos bens aumenta com a queda do preço do outro bem, há relação de substituição e os bens são ditos substitutos. No caso contrário, i.e., o consumo de um dos bens cai com a queda no preço do outro bem, há relação de complementariedade, e os dois bens são ditos complementares. 2.2 Elasticidades Uma das principais razões para estimar a demanda por produtos e serviço é a de conhecer as elasticidades- preço e renda. O conceito de elasticidade é parte do curso de microeconomia I. Cabe recordar as principais elasticidades para uma análise de projetos. Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a função de demanda pode ser escrita como uma função em que a quantidade demandada pelo mercado, Q, depende do preço de mercado, P, e da renda agregada de todos os consumidores e dos preços de bens substitutos, subsumidos ao vetor PS. Ou seja, Q = Q(P,W, PS). matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce 3 Por elasticidade-preço da demanda por um bem/serviço se entende a porcentagem em que a quantidade demandada varia como resultado de uma variação de 1% no preço. Trata-se de uma medida de sensibilidade da quantidade demandada ao preço. O que é matematicamente equivalente a: ߝ = ൫ܳ(ଵ)− ܳ()൯/ܳ()(ଵ − )/ Em que Q(.) é a função de demanda e p0 e p1 são, respectivamente, os preços inicial e final. A renda e o preço dos substitutos foram omitidos para simplificar a notação; Para uma variação infinitesimal (muito pequena) do preço, a elasticidade-preço assume a forma mais comum abaixo: ߝ = ߲ܳ(ܲ)/ܳ(ܲ)߲ܲ/ܲ = ߲ܳ(ܲ)߲ܲ ܲܳ(ܲ) Deve-se recordar que, geralmente (i.e., exceto para bens de Giffen1), a elasticidade preço é negativa. A elasticidade-renda da demanda é análoga, exceto pelo fato de que se trata de uma medida da sensibilidade da quantidade demandada à renda. ߝௐ = ߲ܳ(ܹ)/ܳ(ܹ) ߲ܹ/ܹ = ߲ܳ(ܹ)߲ܹ ܹܳ(ܹ) Trata-se da porcentagem em que a quantidade demandada varia a partir de uma variação de 1%da renda dos consumidores. A elasticidade renda pode ser positiva, neste caso se diz que o bem/serviço é normal, ou negativa, caso em que o bem/serviço é dito inferior. Outra elasticidade relevante é a chamada “elasticidade preço-cruzada”, i.e., a porcentagem em que varia a quantidade demandada como resposta à variação de 1% no preço de um bem substituto. ߝೄ = ߲ܳ( ௌܲ)/ܳ( ௌܲ) ߲ ௌܲ/ ௌܲ = ߲ܳ( ௌܲ)߲ ௌܲ ௌܲܳ( ௌܲ) Sendo a elasticidade preço-cruzada positiva, os bens são substitutos (brutos), sendo negativa, os bens são complementares (brutos)2. 2.3 Estimação da função de demanda: quatro alternativas A classificação dos bens e serviços é apenas um primeiro passo que permite entender um pouco melhor alguns dos determinantes da demanda. Pode ser utilizada para identificar estes determinantes. Porém, para determinar o sentido e magnitude com que eles influenciam a demanda é preciso recorrer a técnicas de análise de dados, e a econometria provê algumas opções. Há pelo menos três opções, cada uma delas requerendo uma estrutura de dados em específico. É com base, pois, no custo de obtenção da estrutura de dados que se deve selecionar pelo menos uma opção. Para dados transversais (cross-section) em que múltiplas transações, envolvendo múltiplos consumidores e múltiplos ofertantes, são observadas em um único período de tempo, pode-se recorrer à estimação de uma 1 Varian, cap.6. 2 Ver Nicholson & Snyder, Microeconomic theory: basic principles and applications, 11ed, p.190-192. matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce matheus.f Realce 4 regressão linear por meio do método de variáveis instrumentais (MVI). Os alunos interessados devem retomar o conteúdo do curso de Econometria II. Há dois passos fundamentais. O primeiro diz respeito à definição das variáveis explicativas que devem compor a regressão de demanda, além, obviamente, do preço pago pelos consumidores. Trata-se de definir os componentes do vetor xi’ na equação yi = α + δpi + xi’β + ui , i=1,...,N, em que “i” representa o i-ésimo consumidor, “y” a quantidade demandada, “p” o preço e “u” o termo de perturbação. O segundo passo consiste em identificar uma VI válida, i.e., que verifique três critérios, (i) seja correlacionada com o preço, (ii) não seja correlacionada com fatores não-observados que expliquem a quantidade demandada e são relegados ao termo de perturbação da regressão de demanda e (iii) não influencie diretamente a quantidade demandada (i.e., não seja uma variável explicativa na regressão de demanda). É mais provável encontrar uma VI válida entre as variáveis que descrevem características dos ofertantes, por exemplo, o custo de produção ou componentes dele. Para dados transversais que captam apenas o lado da demanda, como é o caso da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), o método correto é o de estimação de sistemas de equações simultâneas de demanda tais como o “Quadratic Almost Ideal Demand System (QUAIDS)”. Aos interessados recomenda-se a leitura da dissertação da professora da FEA-USP Paula Pereda3 e do artigo de Huse e Salvo (2006)4. A terceira opção corresponde à estrutura de dados em séries temporais, objeto do curso de Econometria III. É particularmente interessante pois permite projetar a trajetória futura do consumo, o que é imprescindível para demonstrar que a necessidade pelo projeto tende a se perpetuar no futuro. Há diversos métodos disponíveis. A família de modelos ARIMA parte da premissa de que o principal fator que determina a demanda em um dado instante de tempo é a demanda nos instantes subsequentes. A principal vantagem deste método é também sua principal limitação, uma vez que a economia de dados que possibilita ao requerer apenas uma série de tempo (consumo do bem ou serviço) tem como contrapartida a desconsideração de outros fatores que afetam a demanda que não apenas a demanda defasada. O método de cointegração permite incorporar séries de tempo captando determinantes da demanda. Há uma quarta opção que é a de tomar por base dados em painel, que captam tanto a dimensão temporal como espacial/social do comportamento das variáveis componentes da função de demanda de mercado. Esta opção é uma saída interessante para projetos em que é necessário conhecer a demanda para múltiplos mercados. Uma das vantagens está em que, em um painel, o número de observações é T*N, em que T é o número de instantes de tempo e N o número de observações. Ao considerar múltiplos períodos de tempo, multiplica-se o número de unidades, aumento o número de observações, e, com isso, o número de graus de liberdade e a validade estatística das estimativas de elasticidades. 2.4 Dados em painel: revisão de econometria Dados em painel contêm múltiplas unidades para as quais foram observadas múltiplas características ao longo de alguns períodos de tempo. Por exemplo, para projetar a demanda por eletricidade das regiões em que operam as 63 distribuidoras brasileiras (Gomes, 2010), pode-se tomar como base os últimos 10 anos. Terá-se um conjunto das mesmas 63 regiões ao longo dos últimos 10 anos. A demanda pode ser estimada com base na equação abaixo: log(Qit)= β0log(Pit) + β1log(Wit) + β2log(Psit) + β3Xit + ai + εit, i=1,...,N, t =1,...T 3 Pereda, P., 2008. Estimação das equações de demanda por nutrientes usando o modelo Quadratic Almost Ideal Demand System (QUAIDS). Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12138/tde-04092008-105503/pt-br.php 4 Cap.1 da obra “Métodos quantitativos em defesa da concorrência e regulação econômica” publicada pelo IPEA e disponível no link abaixo http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28186 laranjinha Arrow laranjinha Arrow 5 Em que i é a i-ésima empresa, t é o t-ésimo período de tempo, P ≡ preço da eletricidade, W ≡ renda agregada dos consumidores da região, PS ≡ vetor de preços de outras formas de energia, X ≡ vetor de variáveis de controle contendo, p.ex., a população e o PIB regionais. As variáveis estão em logaritmo pois com isso os coeficientes respectivos se tornam equivalentes às elasticidades associadas. O termo ai representa todos os determinantes da quantidade de eletricidade demandada que não são observados e não variam no tempo. Este componente é denominado por “heterogeneidade não-observada” ou “efeito-fixo”. Já εit representa as características relevantes não observadas e que variam no tempo. Os estimadores de mínimos quadrados ordinários para o modelo acima seriam inconsistentes caso a heterogeneidade não-observada for correlacionada com as variáveis explicativas. É o que geralmente ocorre. Para dar conta disso, é preciso recorrer a uma de duas técnicas alternativas de estimação, efeitos fixos e efeitos aleatórios. O estimador de efeitos fixos consiste em (i) transformar todas as variáveis de maneira a obter a diferença de cada uma em relação à respectiva média ao longo do tempo, (ii) estimar o modelo transformado por MQO. As rotinas computacionais disponíveis fazem automaticamente essas duas operações. O limite desta técnica está em que variáveis que variam no tempo são eliminadas do modelo e, portanto, torna-se impossível calcular o efeito ou elasticidade delas. Já o estimador de efeitos aleatórios consiste em assumir que a heterogeneidade não-observada não é correlacionada com as explicativas e estimar o modelo por mínimos quadrados generalizados factíveis (MQGF). Trata-se de um estimador de MQO que incorpora a autocorrelação inerente à estrutura da matriz de variância-covariância do modelo. As rotinas computacionais aplicam automaticamente o MQGF. Curso recomendado: Econometria II. Leitura recomendada: caps. 13 e 14 de Wooldridge, J., 2010. Introduction to Econometrics, a modernapproach. 4ª ed. Cengage Learning. 2.5 Dados em painel: estudo de caso, demanda por combustíveis veiculares Souza (2010) estimou a demanda por etanol e gasolina das unidades da federação brasileira. Para isso utilizou dados mensais de 2001 a 2009 contendo as seguintes variáveis, todas elas na escala de estados: Consumo de álcool hidratado e gasolina, disponibilizado pela agência reguladora do setor (a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, ANP). Este dado está disponível gratuitamente; Preços dos dois combustíveis, também disponibilizado pela ANP; Consumo de energia, fornecido pela Eletrobrás, uma proxy para a renda pessoal; Frota total de veículos, fornecido pela associação patronal do setor automobilístico, a ANFAVEA; Preço do açúcar no mercado externo segundo cotação de contratos futuros de venda de açúcar transacionados na NYBOT [pergunta: por que razão foi incluída essa variável dentre as explicativas?]; Preço da uréia, um fertilizante químico; informação fornecida pelo Instituto de Economia Agrícola do estado de São Paulo [pergunta: por que esta variável foi incluída?]; Preço internacional do petróleo, o qual varia apenas no tempo; População estadual, disponibilizada pelo IBGE. As variáveis dependentes, i.e., aquelas que se deseja explicar, são os consumos de etanol e gasolina. Todas as demais são variáveis explicativas, exceto por (i) preço do açúcar no mercado externo, (ii) preço da uréia e (iii) preço internacional do petróleo. Estas três variáveis foram utilizadas como VIs nas equações para o preço do etanol ((i) e (ii)) para o preço da gasolina (iii). Esta escolha de instrumentos é defensável pois as 6 três variáveis correspondem à características da curva de oferta. Isso é nítido no caso de (ii) e (iii), mas nem tanto no caso de (i). Mas basta considerar que os produtores de etanol são em sua maioria usinas de açúcar, e, portanto, o preço do açúcar é o custo de oportunidade de produzir etanol. O modelo estimado pode ser representado simplificadamente como: Consumo de gasolina = β0 + β1Preço da gasolina +β2Preço do etanol + β3Renda + β4Frota + u O modelo para o etanol é análogo. Deve ser destacado que o emprego de dados em painel facilita a defesa de que as elasticidades-preço e renda estimadas são aceitavelmente precisas. E isso pois, na prática econométrica atual, tal estrutura de dados é vista como superior tanto à séries de tempo como à cross-section, exatamente por incorporar tanto variação temporal como espacial/social. O painel nada mais é do que um conjunto de entidades observadas em diversos períodos de tempo, registrando-se, em cada um deles, os valores assumidos pelas variáveis desejadas. Porém, há técnicas de estimação específicas para dados em painel, mais precisas do que o MQO, conteúdo este abordado no curso de Econometria II. As elasticidades-preço estimadas foram de -1,26 e -1,82 para o etanol e de -0,29 e -0,37 para a gasolina. O que significa que um aumento de 1% no preço reduz em 1,26% ou 1,82% a demanda por etanol e em 0.29% ou 0.37% a demanda por gasolina. A demanda por etanol é elástica, enquanto que a demanda por gasolina é inelástica. Será que isso faz sentido? O autor também estimou as elasticidades-cruzadas, as quais captam a propensão dos consumidores a substituírem gasolina por álcool e vice-versa quando o preço de cada combustível varia, e vice-versa. Ambas as elasticidades-cruzadas se mostraram positivas, atestando a existência de que, de fato, gasolina e etanol são bens substitutos. Por exemplo, no caso do etanol, a elasticidade cruzada foi de 0.722, no período de Julho de 2001 a Agosto de 2006, e de 2,0351 no período de Setembro de 2006 a Dezembro de 2009. Ou seja, um aumento de 1% no preço da gasolina aumentaria, nas condições do primeiro e do segundo período, respectivamente, em 0.72% e em 2.035% a demanda por etanol. Interessante também notar que a demanda por etanol se tornou mais responsiva ao preço da gasolina no segundo período. Por que será que isso ocorreu? [dica: pensar na frota de carros flex-fuel]. As elasticidades renda foram de 0.07 e 0.32 para a gasolina e de 0.2 e 0.45 para o etanol, indicando que o último tende a aumentar a uma maior taxa com o crescimento da renda. Estimação de demanda como parte do estudo de mercado, uma conversa com André Marinho da Silva, consultoria LCA O processo de estimação da demanda por um produto é mais amplo do que apenas um exercício de previsão com econometria. Não é utilizada apenas uma ferramenta [i.e., não é utilizada apenas a econometria], mas sim todo o arcabouço teórico [que a formação do economista proporciona] para pensar em soluções para os clientes. Os conhecimentos de microeconomia e de economia industrial são particularmente importantes [para analisar o mercado]. Em alguns casos também se recorre à análise macroeconômica [e daí os modelos macro são empregados]. O que de fato acontece no mercado em que um cliente [organização que requisita consultoria para realizar um estudo de mercado] atua vai muito além, no mundo real, daquilo que os livros [manuais de economia] descrevem. No mundo real é mais difícil [entender o mercado] pois os dados são ruins e as necessidades do cliente são diferentes das necessidades do que os livros dizem. 7 No que diz respeito ao papel da econometria, há uma diferença muito importante entre o uso que é dado à abordagem na pesquisa científica e na análise de mercado. No primeiro caso, o objetivo é estimar o “beta verdadeiro” [os valores verdadeiros dos parâmetros da regressão], enquanto que, na estimação de demanda, se procura obter o menor erro de previsão. Além disso, mesmo que os resultados estejam totalmente de acordo com a teoria, eles podem apontar para uma trajetória da demanda que não se adequa a informações importantes e que não podem ser incorporadas ao modelo. Por exemplo, a entrada de novos “players” [agentes] no mercado é algo que o cliente pode, com base na experiência dele, acreditar que vai acontecer e ter um tremendo impacto, mas não necessariamente pode haver disponibilidade de dados para introduzir este efeito. Por exemplo, imagine que se tem como objetivo modelar o mercado de pneus. E então se elabora um modelo econométrico que indica que a demanda vai aumentar mesmo sendo que prevalece uma situação de crise. Neste caso, a previsão do modelo não parece plausível. Daí porque é necessário complementar o modelo econométrico com informações relevantes que ele não capta, incluindo especialmente fatores que, de acordo com a experiência de quem atua no mercado (o próprio cliente), têm influência relevante sobre a demanda. O relatório de estudo de mercado, pois, não pode conter, exclusivamente, econometria. Informações relevantes não podem ficar de fora, mesmo que sejam apresentadas de maneira mais básica, com estatísticas descritivas. Na verdade, um bom modelo econométrico para a estimação de demanda é aquele que amarra todo o conhecimento sobre o funcionamento do mercado de maneira coerente. Trata-se de uma ferramenta dentro de um processo dinâmico, particularmente interessante para construir cenários que façam sentido para o cliente. Quanto aos dados utilizados em modelos de estimação de demanda, geralmente se combina estruturas de dados diferentes [mas não em um único modelo]. Séries de tempo, bases de dados privadas captando transações, dados do IBGE, dados das empresas-clientes. Deve-se ter por claro que o estudo de mercado tem de ser feito em parceira com o cliente, aproveitando o conhecimento dele acerca do mercado em que atua [conhecimento este que é geralmente maior do que o do consultor]. 3 Fundamentos macroeconômicos 3.1 Motivação É esclarecedor considerar alguns exemplos e aplicações que ilustram a importância, para a análise de projetos de investimento, da trajetóriatemporal futura de variáveis macroeconômicas. No caso da UHE Belo Monte, como visto na primeira seção, o projeto foi justificado em função do crescimento econômico do Brasil, uma variável macroeconômica (assumindo, implicitamente, que tal crescimento seria intensivo em eletricidade). Esta “justificativa” também foi utilizada para o projeto da UHE de Rampur, na Índia, em que se lê: “[o] crescimento económico da Índia, de cerca de 8% ao ano, nos últimos anos, e o foco do governo em impulsionar a economia rural e ao mesmo tempo melhorar o clima de investimento de forma mais ampla, colocou novas exigências no sistema de fornecimento de energia do país5.” Nas UHEs de Santo Antônio e Jirau (rio Madeira, Pará), se afirma “Outra característica deste Projeto, que merece atenção destacada é a quantidade expressiva de energia firme a ser disponibilizada pelos Aproveitamentos, contribuindo para a garantia de energia necessária à continuidade do crescimento do País.” Nota-se, pois que o crescimento econômico nacional, geralmente medido com aumento percentual do Produto Interno Bruto (PIB) ao longo do tempo, é uma variável que tem sido utilizada como base para justificar projetos de construção de hidrelétricas. 5 No TIDIA: Base_de_projetos/Energia/WB_UHE_Rampur_PA laranjinha Highlight 8 O aumento do PIB pode é tomado como proxy para a demanda por transporte e, portanto, para projetos que expandam a rede de transportes. Goldman (2016) argumenta que é válido tomar por base a trajetória do PIB como proxy para a trajetória da demanda por transporte uma vez que a primeira geralmente depende da atividade econômica “em geral”, i.e., no âmbito nacional. Mas como prever o PIB, a demanda por bens e serviços ampliados por um projeto de investimento e fatores influentes? A econometria de séries de tempo é uma resposta possível. Por exemplo, Luz (2015) estimou a demanda por óleo Diesel no Brasil com base em modelos econométricos e dados em séries de tempo. Como variáveis explicativas (lado direito da equação) constaram (i) PIB nacional (todos os setores), (ii) participação do setor agropecuário no PIB, (iii) participação no PIB do consumo das famílias (OBS: o consumo das famílias é um valor monetário agregado no âmbito nacional) e (iv) preço do Diesel. Tomou-se por base, para estimar os modelos, séries trimestrais, do 4º trimestre de 2001 ao 4º trimestre de 2010. A técnica empregada pelo autor poderia ter sido utilizada para estimar a demanda por outras fontes de energia, como a eletricidade e combustíveis renováveis. 3.2 Econometria de séries de tempo 3.2.1 Estacionariedade e testes de raiz unitária O conjunto de valores assumidos por uma variável ao longo do tempo, p.ex., o PIB do Brasil dos últimos 10 anos, é denominado por “série de tempo” e entendido como a realização de um processo estocástico (a rigor, trata-se de uma sequência de variáveis aleatórias ordenada no tempo). Formalmente Yt, t = 1,...,T. A pergunta de interesse é a de como prever os valores futuros de uma série de tempo. Há diversas respostas, i.e., técnicas de previsão disponíveis. As mais populares têm como primeiro passo a determinação da ordem de integração das séries de interesse. Para entender o que isso significa é preciso recordar que Yt – Yt-1, t =1,...,T é a primeira diferença da série Yt, também representada como Δ1Yt. Já Yt – Yt-1 – (Yt-1 – Yt-2) = Δ1Yt - Δ1Yt-1, t=1,...,T, é a segunda diferença, representada como Δ2Yt-1, e assim por diante. A ordem de integração é a ordem de diferenciação necessária para fazer com que a série de tempo se torne estacionária e, pois, passível de ser prevista com base nas técnicas mais populares. Uma série é (fracamente) estacionária caso (i) apresente média e variância invariantes no tempo e (ii) a correlação entre valores referentes a instantes de tempo distintos dependa apenas do tamanho da defasagem que separa tais instantes de tempo. A determinação da ordem de integração requer a realização de testes de hipóteses específicos, denominados “testes de raízes unitárias”, cuja hipótese nula é a de que a série é não-estacionária, i.e., tem ordem de integração positiva. O número de raízes unitárias é equivalente à ordem de integração. Há diversos testes possíveis, que se diferenciam acerca da generalidade com que especificam o processo gerador da série de tempo (modelo-base do teste). O teste de Dickey e Pantula, por exemplo, é robusto para a existência de duas ou mais raízes unitárias, algo tecnicamente desejável, mesmo sendo que a maioria das séries econômicas têm no máximo duas raízes unitárias. É recomendável realizar uma bateria de testes, recorrendo a outros procedimentos que não apenas o de Dickey-Pantula. 3.2.2 Estimação e previsão: uma única série de tempo A família ARIMA de modelos continua a ser uma das mais frequentemente utilizadas na previsão de séries de tempo. Um modelo ARIMA compreende dois componentes, um deles sendo o componente autoregressivo (AR) e o segundo o componente de média móvel (MA). O componente autorregressivo corresponde à suposição de que o valor corrente da série é uma função dos valores prévios (presente é função do passado), em particular, uma função linear. I.e.: AR(k): Yt = β0 + β1Yt-1 + β2Yt-2 + ...+ βkYt-k + et 9 Com k representando o número de instantes prévios de tempo considerado como relevante. O termo de perturbação, et, capta fatores que afetam o valor corrente da série, além dos valores prévios, mas são omitidos. A equação anterior especifica um processo AR(k). O segundo componente dos modelos ARIMA, denominado “média móvel” (moving average, MA), capta o fato de que os fatores omitidos que afetam o valor corrente da série também podem exercer influência defasada. Um componente MA de q-ésima ordem seria: MA(q): Yt = α0 + et+ α1et-1 + α2et-2+...+ α2et-q O número de raízes unitárias da série é a ordem de integração do modelo ARIMA (letra “I” na palavra “ARIMA”), indicada por “d”. Trata-se de um parâmetro requisitado pelos softwares que estimam modelos ARIMA. Os outros dois parâmetros são (i) a ordem do termo AR, i.e., o valor de k e, (ii) a ordem do termo MA, i.e., o valor de q. A determinação destes últimos dois parâmetros requer a inspeção de funções de autocorrelação empíricas, que descrevem a correlação entre os valores da série em dois instantes distintos, como função do tamanho da defasagem entre os valores. Essas funções (função de autocorrelação, FAC e função de autocorrelação parcial, FACP) assumem padrões específicos e distinguíveis para componentes AR e MA de ordens específicas e podem ser tomadas por base para identificar k e q. Mas isso é geralmente feito com base em um algoritmo em que se parte dos maiores valores razoáveis para k e q, reduzindo-os caso não seja rejeitada a hipótese de que valores defasados de ordem k e q têm correlação nula com o valor corrente. Esse processo é repetido até chegar aos valores corretos de k e q. Uma vez conhecidos os parâmetros d, k e q é possível um software com STATA, Eviews ou R para proceder com a estimação. Não se deve tentar estimar um modelo ARIMA(k,d,q) a partir de uma regressão, pois o método de MQO não é aplicável em muitos dos casos. Os softwares utilizam rotinas de máxima verossimilhança. A previsão é então facilmente conduzida com base no modelo estimado. Curso recomendado: Econometria III. Leitura recomendada: cap. 2 de Enders, W. (2004) Applied Econometric Time Series (2nd. ed.). John Wiley & Sons. 3.2.3 Estimação e previsão: duas ou mais séries de tempo Geralmente há razões para acreditar que a descrição de uma série de tempo exclusivamente em função de seus valores defasados e do termo de perturbação, uma amálgama de todas as demais fontes de influência, é insuficiente. Por exemplo, a estimação da demandanacional por eletricidade requer a incorporação explícita do preço da eletricidade, dos preços de fontes energéticas substitutas e da renda agregada das famílias, por exemplo. De fato, a única forma de estimar elasticidades – este um dos principais objetivos da estimação de demanda – é considerando mais de uma variável, e, pois, mais de uma série de tempo. Daí a necessidade de recorrer a outra técnica, a da cointegração, que permite estimar relações entre as variáveis. A técnica de cointegração apenas pode ser aplicada a séries classificáveis como cointegradas, i.e., se todas elas tiverem a mesma ordem de integração, e o resíduo da regressão entre elas for estacionário. O que significa que as séries “caminham juntas”. A cointegração não é necessária para o caso de séries estacionárias. De fato, o único caso em que a análise de regressão (MQO) de séries de tempo gera resultados válidos é aquele em que todas as séries são estacionárias. Caso o resíduo da regressão envolvendo as séries apresente pelo menos uma raiz unitária é possível recorrer à cointegração caso as séries sejam submetidas à diferenciação. Porém isso nem sempre resulta em um modelo com sentido econômico. Por exemplo, a primeira diferença das variáveis que geralmente compõem função de demanda resultaria em um modelo em que a variação temporal da quantidade demandada é explicada em função da variação temporal do preço do bem, da variação temporal do preço do bem 10 substituto, etc. Mas não é este o modelo especificado pela teoria. Segundo esta, as variáveis componentes da função demanda são expressas em função de seus valores correntes6. Para séries não estacionárias, o caso mais provável para séries econômicas, é necessário realizar testes de cointegração cuja hipótese nula é a de que há cointegração entre as séries. Um dos testes mais populares (e rigorosos) é o proposto por Johansen. Este toma por base a ideia de que cointegração significa que, ao longo do tempo, as séries convergem para a relação de longo prazo que as conecta. A relação de longo prazo é exatamente o modelo que temos em mente (modelo teórico), i.e., algo como: Yt = β0 + β1Xt + β2Zt + ut Mesmo que, olhando para períodos curtos de tempo, essa relação não seja necessariamente, válida, há cointegração caso ela se mostre válida em média, considerando períodos longos de tempo. Essa diferença entre validade no curto e no longo prazo requer uma ampliação do modelo de referência, incluindo-se, por exemplo, defasagens das variáveis explicativas. O que dá origem a um modelo conhecido como “vetor autorregressivo” (VAR), cuja forma geral para o caso de duas séries de tempo, é a seguinte: Yt = c1,0 + (α1,1Xt-1 +...+ αs,1Xt-s)+ (β1,1Yt-1 +...+ βv,1Yt-v) + u1,t Xt = c2,0 + (α1,2Xt-1 +...+ αs,2Xt-s)+ (β1,2Yt-1 +...+ βv,2Yt-v) + u2,t Ou seja, trata-se de um modelo de equações simultâneas em que cada uma das variáveis é escrita como função linear das defasagens de todas as variáveis do modelo (inclusive das próprias defasagens). Para implementar o procedimento de Johansen é preciso, antes, usar testes estatísticos para determinar o número relevante de defasagens do VAR e também verificar quanto à presença das constantes (c1,0 e c2,0) e de termos determinísticos. Estes últimos geralmente correspondendo a uma variável que capta meramente o efeito da passagem do tempo. Atualmente há rotinas que implementam automaticamente o procedimento de Johansen em softwares como STATA, Eviews e R. A vantagem deste procedimento é que, ao final, se obtém o modelo estatístico pronto para ser usado como base para fazer previsões. Curso recomendado: Econometria III. Leitura recomendada: cap. 6 de Enders, W. (2004) Applied Econometric Time Series (2nd. ed.). John Wiley & Sons. 3.2.4 Resumo: fluxograma para a previsão de séries de tempo (0) Teste de raízes unitárias (1) Série única e estacionária estimar ARMA, usar modelo para gerar previsões; (2) Série única, não-estacionária estimar ARIMA, especificando o número de primeiras diferenças (ordem de integração), usar modelo para gerar previsões; (3) Séries múltiplas, estacionárias estimar “modelo teórico” por MQO, usar modelo para gerar previsões; (4) Séries múltiplas, não estacionárias realizar teste de cointegração de Johansen, caso séries cointegrem, usar o modelo utilizado no teste para fazer previsões. 3.3 Previsões de longo prazo e incerteza Por melhor que se mostre a performance estatística dos modelos-base para previsão e por maior que seja o ajuste de tais modelos aos dados, quanto maior é o número de instantes de tempo futuros a serem previstos, maior é o erro de previsão. De fato, muitas vezes, para previsões referentes a um número de instantes a frente que é razoável para a análise de projetos, por exemplo, trinta anos, o erro se mostra superior ao tolerável. O que é um problema, especialmente no caso dos setores-alvo desta disciplina. Os modelos 6 É claro que há modelos dinâmicos de equilíbrio de mercado, como o “modelo da teia de aranha”, mas aqui estamos focados em estimar a demanda e não uma curva que descreve o equilíbrio de mercado. laranjinha Highlight 11 ARIMA, por exemplo, convergem para a média temporal da série com o aumento do tamanho do horizonte de previsão (Enders, p.80), reportando valores constantes a partir de certo ponto. O mesmo ocorre com modelos de cointegração. Conforme afirmam Granger e Jeon (2007)7: “Suponhamos que nos fosse pedido para prever o estado geral da economia mundial no ano 2037 usando dados disponíveis no ano de 2007. Seria uma tarefa assustadora. As técnicas de previsão mais usadas seriam irrelevantes. Se um modelo assume a estacionaridade, o [a previsão de] longo prazo é apenas a média da série. Se o modelo assume uma raiz unitária sem intercepto, então o longo prazo é essencialmente o valor mais recente da série.” A lição básica a ser retirada não é a de que se deve descartar as técnicas de econometria de séries de tempo para previsões de trinta anos a frente ou mais. Mas sim que se deve deixar claro, ao elaborar uma projeção de demanda, que tal exercício é sujeito a um erro relevante e crescente com o tamanho do horizonte de previsão. Os potenciais financiadores ou implementadores do projeto devem saber disso. O excerto de Granger e Jeon (2007) também ensina que uma previsão de longo prazo não deve ser um exercício puramente econométrico, mas deve vir acompanhado de uma análise de tendências e mudanças macroeconômicas para o período de previsão. Esta análise pode ser qualitativa, desde que embasada na teoria macroeconômica (ortodoxa ou heterodoxa). 3.4 Flutuações e políticas macroeconômicas: brevíssimo comentário Uma fonte importante de mudanças inesperadas, i.e., desvios em relação à trajetória “suave” no tempo projetada pelos modelos, são as políticas macroeconômicas, como as políticas fiscal e monetária. Dos cursos de Macroeconomia devem ser retomados os fundamentos de políticas macroeconômicas (que objetivam alterar o funcionamento da economia nacional), as quais são enquadradas em duas categorias principais, política fiscal e política monetária. Os modelos macroeconômicos, como o IS-LM, Mundell- Flemming, Ciclos reais, neo-keynesianos e pós-keynesianos, todos eles são importantes para compreender como políticas do governo federal podem impactar nos custos e receitas dos projetos. Políticas que têm impacto minimamente duradouro sobre o nível de atividade (PIB) consequentemente afetam a demanda por bens e serviços providos por projetos. Há, contudo, outros canais pelos quais as políticas macroeconômicas podem afetar a demanda pelos projetos. Por exemplo, mudanças tributárias, com alteração de alíquotas e introdução ou supressão de impostos, afetam a renda disponível dos consumidores. A política monetáriade metas de inflação, ao alterar a taxa de juros-base da economia, a SELIC, altera o consumo de bens e serviços e também o custo de tomada de crédito. Também vale considerar, para a análise de projetos, os efeitos de políticas econômicas geralmente não tratadas nos cursos de macroeconomia, como é o caso de políticas habitacionais (ampliam a demanda por serviços complementares à moradia nas localidades em que os conjuntos habitacionais são construídos), políticas de transferência de renda (aumentam o poder de compra nas localidades atendidas), política alfandegária (altera a intensidade com que a produtos nacionais concorrem com importados), etc. 4 Estudo de caso: projeção de demanda para a linha 1 do metrô de Lima, Peru (Corporación Andina de Fomento/Banco de Desarollo de América Latina, CAF) A linha 1 de metrô da cidade de Lima, Peru, compreende trens elétricos de superfície que percorrem um trecho de 34 km, conectando à segunda maior cidade do País, Callao. A realização do projeto de construção da linha (custo > US$600 milhões) se deu com base em três estudos de projeção de demanda. Cada um dos estudos revisou o anterior, substituindo algumas das principais hipóteses, tais como: 7 Granger, C. W., & Jeon, Y. (2007). Long-term forecasting and evaluation. International journal of forecasting, 23(4), 539-551. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0169207007000908 12 (1) disposição dos passageiros a pagar para reduzir o tempo de deslocamento, informação importante para estimar a demanda pelo metrô e também a frequência de trens (trata-se do valor subjetivo do tempo em termos monetários8); (2) trajeto da linha; (3) valor da tarifa e grau de integração tarifária com outros meios de transporte “alimentadores” (i.e., com trajetos passando pela proximidade da linha 1); (4) formas de reestruturação da rede pública de transporte consideradas nos cenários (cenários = projeções alternativas de demanda); (5) tempo de espera entre dois trens subsequentes (frequência, p.ex., 6 em 6 minutos, 10 em 10 minutos). O caráter fundamental destas hipóteses, no que diz respeito à geração de estimativas de demanda, revela o tamanho do desafio que representou o estudo de projeção de demanda para o projeto em questão. Quanto a isso cabe destacar: 1. O fato de se tratar de um meio de transporte sem paralelo na cidade, o que dificultou a obtenção de dados adequados para prever a resposta dos cidadãos; 2. As mudanças de hábitos de deslocamento que seriam necessária para adaptar-se ao trajeto, compreendendo trocas de trem (e consequente espera) e integração tarifária limitada (i.e., a necessidade de pagar tarifas ao realizar algumas das trocas e mudar de meio de transporte, passado de ônibus para o metrô); 3. A insuficiência dos dados disponíveis acerca dos hábitos de deslocamento diários dos cidadãos (p.ex., matriz origem destino incompleta ou desatualizada); 4. Os responsáveis pelo estudo foram sistematicamente pressionados a gerar rapidamente resultados apresentáveis para a sociedade (algo comum em estudos de análise de projetos); 5. A divisão de trabalho e esforço de financiamento entre setores público e privado foi definida apenas no último estudo de demanda, em 2010 (o governo resolveu considerar que se tratava de um projeto público, assumiu o custo de instalação da obra e decidiu conceder a operação à iniciativa privada, assumindo inclusive parte do risco de demanda). Essas dificuldades prolongaram o estudo de demanda por sete anos (2003 a 2010), o que se deu com a progressiva geração e revisão de diversos cenários (projeções alternativas de demanda). Houve três estágios de estudos. Em 2004, uma agência do município de Lima (AATE) executou o estudo com base em um modelo “clássico” de projeção de demanda de quatro estágios, operado por meio de um software. Três cenários foram gerados para o período de 2001 a 2030. Para 2015 foi estimada uma demanda de 281 mil passageiros. Em 2007, uma consultoria privada (Proinversión) realizou o estudo com apoio do CAF. Três novos cenários foram elaborados (sob hipóteses diferentes das adotadas em 2004): (i) pessimista, em que os ônibus alimentadores não estariam disponíveis por tarifas integradas, e com trens do metrô passando a cada 8 minutos (frequência de 8 minutos); 8 Este indicador será retomado. Uma leitura esclarecedora: http://repositorio.uchile.cl/bitstream/handle/2250/139518/Caracterizacion-de-la-variabilidad-del-tiempo-de-viaje-en-la-ciudad- de-Santiago.pdf?sequence=1&isAllowed=y. 13 (ii) neutro (médio) com integração tarifária com os ônibus alimentadores, frequência de 3 minutos e algumas alterações no trajeto em relação ao cenário anterior; (iii) otimista, com integração tarifária inclusive com o sistema de trem elétrico (pré-existente), assumindo a instalação de um grande número de estações e frequência de 3 minutos. As estimativas de 2007 se mostraram maiores para o cenário sem reestruturação do transporte de ônibus (pessimista), comparando às estimativas de 2004. Como afirmou o relatório “a discrepância das estimativas de demanda indica [o grau de] incerteza das projeções”. Em 2010, com o governo já decidido em assumir a instalação do projeto e o risco de demanda (i.e., compensar financeiramente o setor privado por eventuais desvios da demanda em relação ao projetado) foi realizado um novo estudo de projeção de demanda. Este focou na estimação do nível de subsídio a ser concedido durante a operação e na estimação do nível de operação (informação crucial para persuadir a iniciativa privada). A estimativa do valor do tempo foi reduzida consideravelmente em relação aos dois estudos anteriores. O que significa que a disposição a optar pelo metrô foi reduzida, dado que um dos principais atrativos do projeto era exatamente a redução do tempo de deslocamento. A tarifa foi fixada em 1,15 soles, um valor próximo ao nível máximo considerado em 2007 e, portanto, alto em relação aos estudos anteriores. Com isso obteve-se estimativas de demanda consideravelmente inferiores ao visto nos estudos anteriores, dado que as premissas acerca da disposição a optar pelo metrô e da tarifa foram, respectivamente, reduzida e aumentada. Para 2015 foi estimada uma demanda de 145 mil passageiros, metade do estimado em 2004. Uma diferença do estudo de 2010 foi incorporar em um dos cenários a extensão da linha em 12,4 km com consequente aumento da demanda em 65% em 2015 (notar que mesmo com tal acréscimo, a demanda estimada para 2015 foi a metade do previsto pelos estudos anteriores). Cabe examinar a tabela a seguir, com as projeções de demanda das três fases de estudos. São notórias as discrepâncias tanto comparando cenários de um mesmo estudo, como os estudos (focar por exemplo o ano de 2015). Tabela 2 Estimativas de demanda pela linha 1 do metrô de Lima, Peru, três fases de estudos Ano Estudo de 2004 Estudo de 2007 Estudo de 2010 Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário 1 Cenário 2 Cenário 3 Cenário base Cenário com extensão 2001 205.356 332.088 283.262 NA NA NA NA NA 2005 226.675 366.563 312.668 NA NA NA NA NA 2010 254.528 411.606 351.088 284.619 295.440 379.654 NA NA 2012 NA NA NA NA NA NA 134.155 226.595 2013 270.564 437.539 373.208 NA NA NA NA NA 2014 275.779 445.971 380.401 NA NA NA NA NA 2015 280.924 454.291 387.498 314.938 351.829 658.498 145.422 240.210 2020 305.537 494.094 421.449 345.255 408.218 747.879 164.200 263.335 2025 328.174 530.700 452.673 375.574 464.606 837.990 182.978 282.175 2030 348.749 563.974 481.054 407.419 525.346 934.220 200.630 309.397 2035 NA NA NA NA NA NA 216.136 333.308 2040 NA NA NA 479.435 671.685 1.161.099 232.839 359.067 14 2050 NA NA NA564.182 857.787 1.443.078 NA NA Fonte: quadros 1, 2 e 3, cap.4, CAF(2015). 5 Incerteza na estimação de demanda (retirado de CAF, 2015, cap.1) (i) Estudo da Universidade de Aalborg, Dinamarca, com 200 projetos rodoviários e ferroviários, 20 países, 5 continentes, 1927-1988: a. projetos rodoviários: 50% dos projetos superestimaram a demanda, 50% subestimaram; b. projetos ferroviários: 80% dos projetos superestimaram a demanda, o erro médio foi de 39%; (ii) Estudo dos Estados Unidos, 10 projetos ferroviários: subestimação da demanda em 28% a 85%; (iii) Estudo do Reino Unido, 21 projetos de trens elétricos, países desenvolvidos e subdesenvolvidos, demanda subestimada em 20% a 70%. (iv) Halcrow (2000) detectou subestimações de em média 47% por projetos de transporte em massa e de velocidade (trens elétricos, p.ex.). A incerteza inerente à estimação de demanda por projetos de transporte pode ser medida pelas consideráveis magnitudes dos erros, os quais geralmente apontam para a superestimação. O que indica que a receita tende a ser, geralmente, inferior à projetada e, portanto, o lucro do operador tende a ser inferior ao estimado nos projetos. Na verdade, tende a ser ainda menor, por conta de uma segunda fonte de erros, que é a projeção de custos de instalação e operação. O documento fonte das evidências anteriores mostra, com base em diversos projetos (> 200), que os custos tendem a ser subestimados, reduzindo ainda mais o lucro efetivo. Frente a isso, cabe ao analista do projeto explicitar as hipóteses adotadas, especialmente aquelas a que os resultados são mais sensíveis, apresentando sempre cenários alternativos em que tais hipóteses são modificadas. O que é geralmente denominado por análise de sensibilidade. O nível de incerteza pode ser medido exatamente em função da discrepância das estimativas de demanda, comparando-se os cenários, conforme se observou para o caso da linha 1 do metrô de Lima. Nunca “vender” as projeções de demanda como livres de incerteza por maior que seja a pressão de quem contrata o estudo.