Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 O ROMANCE ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS: ESTÉTICA E IDEOLOGIA NO ROMANTISMO BRASILEIRO JULIANO CARRUPT DO NASCIMENTO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Doutor Alcmeno Bastos Rio de Janeiro Junho de 2009 2 DEDICATÓRIA Para meus pais, Catarina Carrupt do Nascimento e José Francelino do Nascimento. Aos Mestres Destinados, Anazildo Vasconcelos da Silva e Christina Ramalho. 3 NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis: estética e ideologia no Romantismo brasileiro. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ. 106 fl. 2009. Dissertação de Mestrado em Literatura brasileira. Resumo Esta dissertação desenvolve a crítica sobre a construção narrativa do romance Úrsula (1859), demonstrando que a mulher e o negro, como personagens, desorganizam o mandonismo patriarcal e escravocrata vigente na cultura e literatura brasileiras do século XIX. A contribuição de Maria Firmina dos Reis para a visibilidade feminina e a elaboração da identidade africana do negro escravo está ligada ao travejamento discursivo da estética romântica. A investigação se concentra no modo que o romance se constrói, na distribuição de vozes que tecem o encadeamento narrativo. A estratégia do deslocamento do poder efetuado pela narradora, através de seu recurso estilístico, cria o efeito estético que se harmoniza à concepção ideológica localizando a mulher e o negro como personagens não cordiais em relação aos senhores da terra. 4 NASCIMENTO, Juliano Carrupt do. The novel Úrsula by Maria Firmina dos Reis: esthetic end ideology in the Romanticism Brazilian. Rio de Janeiro: Faculty’s Letter UFRJ 106 pages, 2009. Dissertation of master in Brazilian literature. Abstract This dissertation develop a critical on the narrative construction of the novel Úrsula (1859),demonstring that the woman and the black, how character, disorganize the patriarchal end slavocrat mandonism in vigour in the Brazilians culture end literature of the century XIX. The contribution by Maria Firmina dos Reis to female visibility end the elaboration of the african identity of the black slave be connected on the discourse warping of the romantic esthetics. The investigation to fix one attention on manner that the novel constructions, on distribution of voices that weave the narrative enchainment. The strategy’s displaced by power effectuate of narrator, through of your stylistic recourse, breed the effect esthetic that harmonize on ideology conception localizing the woman end the black how character no amiable in the relation on the proprietor’s earth. 5 Sumário 1 Introdução ..........................................................................................................................1 2 A receptividade crítica da obra de Maria Firmina dos Reis: repetição e relatividade canônica ..................................................................................................................................8 3 Breve consideração sobre o Romantismo brasileiro e o romance como forma literária....27 3.1 Possibilidades estéticas e ideológicas na forma do romance Úrsula .............................31 4 A forma do relacionamento entre os gêneros no romance Úrsula ....................................56 5 A forma estética e ideológica do negro no romance Úrsula .............................................82 6 Conclusão ........................................................................................................................100 7 Referência bibliográfica ..................................................................................................103 6 1 Introdução: Durante o século XIX, foram produzidos no Brasil vários romances que certamente estão eternizados, devido ao trabalho crítico desenvolvido por historiadores, teóricos e críticos da Literatura. No entanto, outros vários romances sofreram o processo cultural da invisibilidade, seja pela ignorância do não conhecimento daqueles que constroem o cânone, seja (pior ainda) pela perspectiva autoritária da ideologia tradicionalista que limita a visão abrangente do fenômeno literário brasileiro. Para questionar a postura do autoritarismo impregnada na tradição canônica brasileira acerca dos estudos literários, a professora e pesquisadora Elódia Xavier fez a seguinte pergunta: “Seria válida, hoje, em face da pluralidade em que vivemos, a permanência do cânone com seu poder regulador e excludente? ” (1999). Tendo em vista a construção da flexibilidade crítica em face da literatura brasileira, este trabalho consiste em investigar a criação literária narrativa do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, para constatar a construção ideológica e estética de sua forma narrativa. Na urdidura do referido romance, duas manifestações de identidade cultural se impõem à caracterização das personagens: a condição crítica do negro africano e a situação subalterna da mulher. A ideologia e a estética formam a originalidade do romance como forma narrativa do século XIX no Brasil, devido ao posicionamento da instância de enunciação narrativa que se sintoniza com as identidades culturais inferiorizadas, realizando, na urdidura da narrativa, o pressuposto contraideológico, em relação, ao poder mandonista dos proprietários da terra e usando a estética do Romantismo brasileiro como veículo contra a escravidão do negro e a submissão da mulher. 7 Dessa maneira, o romance Úrsula aparece como o único romance romântico brasileiro do século XIX que se solidariza criticamente com a originalidade literária por unir estética e ideologia na elaboração de suas personagens, fato que distorce a afirmação de Haroldo Paranhos, ao comentar o Romantismo no Brasil: “Se não foi inteiramente original, é porque não possuímos tradições nem organização étnica e sociológica que nos permitisse alimentar tal pretensão” (1937). O romance Úrsula pode ser considerado uma construção irônica perspectivada nos valores culturais do Brasil colonial, por três motivos: 1º - devido à consciência da autora (manifesta no prólogo do livro) de ser sua obra recebida como menor pelos homens letrados do século XIX, e, mesmo assim trazê-lo a lume; 2º - por construir de maneira excepcional a persuasão da mulher sobre sua própria condição submissa, radicalizando a naturalização dos papéis femininos (ROCHA-COUTINHO: 1994, p. 39) para torná-los visíveis enquanto movimentação narrativa e características das personagens mulheres; 3º - por fazer com que o negro seja humanizado e sujeito do seu próprio pensar, sendo parte fundamental da trama narrativa através da articulação dos acontecimentos e pela sua própria fala. Úrsula se torna o primeiro romance brasileiro a desorganizar o poder mandonista dos proprietários da terra, pois além de eles serem personagens secundários, são punidos pelo investimento literário, ao exercerem na narrativa apenas a função de antagonistas reacionários que impedem o desenvolvimentodo amor e da plenitude da vida, fato que consolida a ironia em sua construção narrativa, não apenas como um tropo retórico, mas como construção de significado, pois os senhores da terra (os poderosos) passam a ser maus e execráveis no domínio da literatura. No importante estudo de Francisco Venceslau dos Santos (1990) há a revelação de que muitas obras da literatura brasileira reduplicam o mandonismo cultural, através da 8 conciliação, do jeito e da cordialidade, formas do poder dominante para manter sua vigência e perpetuação; o romance Úrsula não reduplica os valores, em geral, do patriarcado escravocrata brasileiro, ao contrário, critica-os. Entretanto, para realizar o efeito literário da contraideologia, os recursos utilizados pela autora foram os que formam a estética romântica: a descrição ufanista da natureza, o enredo simples do amor romântico, a sensibilidade humana integrada à natureza a ponto de o canto dos pássaros ondular conforme o ânimo das personagens, ou o tempo da natureza ambientar as ações amorosas ou violentas, tendo a confissão amorosa um clima ameno e o assassinato a noite soturna. Toda a estética do romance de Maria Firmina dos Reis manifesta a abundância sintagmática própria do Romantismo brasileiro, mas seus elementos característicos funcionam como camuflagem para o propósito ideológico da narrativa, funcionam como elementos determinantes da forma da obra ( EIKENBAUM: 1973, p. 157) que dão força à construção das personagens, ao encadeamento da trama narrativa, de modo que o enredo passa a ser pouco significativo, cedendo lugar à trama que reduz o tom panfletário tipificado esteticamente com o princípio da subjetividade intrínseca (HEGEL: 1972, p. 169) gerador do mergulho revolucionário romântico. A trama da narrativa ultrapassa o enredo ingênuo, pois se organiza na distribuição das falas dos oprimidos, e na destruição propriamente simbólica do poder mandonista, que pela força da imaginação romântica se torna descentrado tanto cultural quanto literariamente. Como a narrativa se rege pelo princípio da subjetividade intrínseca, por se solidarizar com as vozes oprimidas da configuração cultural do Brasil colônia e por esse princípio ser a fonte do individualismo romântico que se fragmenta nas dimensões de cada identidade cultural manifesta nas personagens do romance, opta-se por usar o termo 9 narradora e não narrador quando a análise da obra exigir atenção à instância de enunciação narrativa. A urgência com que o romance Úrsula se mostra no plano da Literatura Brasileira e a sua originalidade revolucionária, em relação ao cânone formulado ao longo dos anos, levam-no à imposição de se deslocar das taxionomias tradicionais e amarras epistemológicas. Para fixar a revolução literária e cultural de Maria Firmina dos Reis, torna-se necessário o conceito de narradora, mesmo pela época em que o romance fora publicado e mesmo pelo fato de a autora se solidarizar com as identidades culturais subalternalizadas durante o processo escravocrata e patriarcal da moralidade mandonista. A análise que se efetua nesta dissertação se volta para a estrutura narrativa do romance, para que dela surjam as identidades culturais como caracterização das personagens. A caracterização das personagens do romance evidencia a formulação literária baseada em elementos que se projetam para o campo cultural e histórico, que passam a ser matéria literária do enredo da narrativa, pois Úrsula aparece como uma narrativa literária que desorganiza a formulação histórica e a contextualização tradicional da História Literária Brasileira, por ser um romance que destoa das considerações canônicas do século XIX e conter enunciações que sustentam a crítica feminina e do negro acerca de suas respectivas condições culturais e literárias. As citações do romance de Maria Firmina dos Reis foram tiradas da edição fac- similar vinda a lume em 1975 pelos esforços de Horácio de Almeida. Por que não usar edições mais recentes e atualizadas como a de 1988 organizada por Luiza Lobo ou a de 2004 organizada por Eduardo de Assis Duarte? Responde a essa pergunta Fausto Cunha: 10 A retórica do Romantismo brasileiro necessita de consulta direta ao texto primitivo, onde por vezes um travessão marca a cesura, assinala a proximidade da metáfora, impede a sinalefa, indica a alusão a versos de outrem, ou a citação não especificada, ou o emprego incomum do vocábulo que se lhe segue. (1971: 89). O romance Úrsula possui uma pequena fortuna crítica que vem se consolidando ao longo do tempo, sua receptividade crítica abusa dos elementos inovadores e originais do plano construtivo da narrativa. O romance parece ser concebido mais pela sua função histórica e ideológica que por suas qualidades estéticas, assim se formula a receptividade de historiadores, teóricos e críticos da Literatura Brasileira, que vêm valorizando mais as questões de ser Maria Firmina dos Reis a primeira mulher a publicar romance no Brasil, ou a situação da mulher na literatura, como também o negro como personagem de ficção literária. A este trabalho não cabe a panfletagem crítica da mulher ou do negro como personagens históricas ou literárias, nem a reivindicação de que Maria Firmina dos Reis tenha sido excluída das Histórias da Literatura Brasileira. Este trabalho visa a apenas estudar as manifestações estéticas e ideológicas que formam a forma do romance, a extensão da estética romântica às vozes de negros e mulheres sem os estereótipos próprios tanto dos estudos literários quanto culturais, uma vez que a literariedade estabelecida pelo cânone não passa de uma construção elaborada por razões de ordem histórico-cultural. (COUTINHO: 2003, 71). A realização das personagens como elemento constituinte da forma narrativa, os procedimentos estéticos que geram a ideologia caracterizada pelas personagens, a armação da urdidura narrativa como desenvolvimento do conflito entre senhores da terra, mulheres e escravos são condições sui generis para a realização do romance Úrsula e foco da 11 investigação deste trabalho. A diferença do investimento crítico, em relação aos estudos dedicados a Maria Firmina dos Reis, consiste em verificar, especificamente, no âmbito da estrutura narrativa, as tensões entre as personagens e o modo com o qual a narradora realiza os conflitos culturais imanentes na distribuição de suas vozes e a contribuição dos discursos da mulher e do negro para a feitura do romance. De um modo geral, os estudos extrapolam a estrutura narrativa para se deter em biografismos, historiar a presença do negro no Maranhão, identificar a influência de Sotero dos Reis sobre a escrita de Maria Firmina, escrever a história revolucionária da mulher; posturas que em muitos casos, acabam deixando, em segundo plano, a estrutura da narrativa e a realização interna da obra. Caberá a este trabalho estabelecer a forma com a qual o romance Úrsula desorganiza a História Literária Brasileira, através de sua própria estrutura narrativa. Demonstrando, através da análise das personagens, como os negros e as mulheres se livram dos estereótipos culturais e de que maneira instauram, literariamente, seus próprios conceitos de liberdade, a fim de exaltar os aspectos específicos da narrativa e apontar para os recursos (devido à época de composição do romance) originais encaminhados por Maria Firmina dos Reis para literatura brasileira. 12 2 A receptividade crítica da obra de Maria Firmina dos Reis: repetição e relatividade canônica Embora se tenha aprofundado a abordagem crítica acerca daobra de Maria Firmina dos Reis, as diretrizes que se impõem ainda hoje continuam sendo vinculá-la à produção de autoria feminina e à tematização do negro. Pouco ou nada foi feito que se proponha a examinar sua obra sob o ponto de vista interno da sua urdidura criativa, pois os trabalhos e ensaios ainda pagam tributo a circunstâncias levantadas pela produzida pelos jornais, primeira receptora da obra, ainda no século XIX. Muito pouco foi feito para compreender os recursos poéticos utilizados pela autora na elaboração de sua narrativa. Há uma preocupação constante em reivindicar o lugar do negro na Literatura Brasileira e de situar o romance Úrsula como uma das obras que figuram nos primórdios do romance no Brasil e como obra fundadora da autoria feminina. Entretanto, falta uma investigação que articule as manifestações do negro e da mulher 13 enquanto personagens de ficção com características específicas da prática literária. Ou seja: o romance Úrsula possui uma poética interna digna de obra literária por sua urdidura construtiva, salvo o problema lingüístico (de o negro escravo se expressar oralmente através dos aspectos eruditos da língua portuguesa oitocentista), o romance apresenta elementos próprios da arte literária que ultrapassam a mera representação para alcançarem a altitude simbólica da cultura pensada e articulada, no romance, de maneira muito particular, original e específica; inclusive mostrando poeticamente os cancros sociais que fundamentam a sociedade mandonista brasileira. Em um movimento inverso, a originalidade da autora reside exatamente no que foi em princípio levantado pelos jornais da época, o que talvez lhe tenha custado a invisibilidade Histórica e Literária, mas que ao mesmo tempo deu-lhe certa notoriedade na imprensa, por uma mulher ter publicado romance e o romance possuir como tema o negro . Vale rastear se houve ou não, de fato, um aprofundamento nas questões impostas pela autora, se a crítica modificou a postura primária dos jornais apenas ideologizando a mulher e o negro, chegando ao ponto de ratificar a obra e a autora em duas vertentes: estudo de autoria feminina e estudo de afro-descendência na literatura (ratificação desembocada nos dias atuais). Fora desses dois circuitos, não há um estudo que enobreça a obra da autora por seus méritos propriamente literários, mas pura e simplesmente por suas forças ideológicas, fato que, para o estudo de Literatura como arte, consiste em um vazio muitas vezes preenchido por biografismo, aprofundamento excessivo na História do Maranhão, na situação cultural da mulher, e na condição do negro na sociedade escravista. Não se pode afirmar, para a época, em termos de recepção crítica, que o romance Úrsula tenha estupefação no imaginário da população brasileira, ou que ele tenha sido lido por boa parte dos leitores da época, pois ao que parece, o livro nasceu com sua publicação 14 em 1859 e morreu na crítica dos jornais, em meados da década de sessenta, tendo ressuscitado na década de 70 do século XX. Contudo, ao decorrer do tempo não se pode afirmar sem cautela que o romance de Maria Firmina dos Reis e sua obra tenham passadas na mais completa invisibilidade crítica, uma vez que aqui e acolá encontram-se, ainda que de passagem, referências à autora. Quanto ao nível, ou à veracidade, ou à correspondência crítica com os fatos da história literária e principalmente com a obra da autora, não se pode concluir que as passagens, ou menções, ou citações fossem de fato capazes de perpetuar o nome da autora e de sua obra. A total invisibilidade crítica acerca da obra da autora (a meu ver inexistente) deve-se mais à crítica que mal soube apreciá-la que propriamente às qualidades poéticas manifestas em suas produções literárias. Perdeu-se muito tempo com divagações, devaneios, notas elogiosas e ao mesmo tempo cheias de preconceitos (como as matérias dos jornais próximas à publicação) ou mesmo a citação da citação vulgar de um Silvio Romero (1980, p. 1115. v. VI), que deu apenas o nome da autora entre outros nomes propostos no Panteon Maranhense, poemas e autores coligidos por Antônio Leal Henriques; como também se perdeu tempo em afirmações e negações se Maria Firmina foi a primeira mulher a publicar no Brasil. O fato consiste no tempo perdido sem que se examinasse seriamente se há um discurso poético ou não na obra, se há qualidade literária aliada à critica cultural no romance Úrsula, ou se o romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma exótica ou, no melhor dos casos, peculiar. A produção literária de Maria Firmina dos Reis recebeu atenção por parte da crítica desde meados da década de sessenta do século XIX, especificamente, o romance Úrsula. No entanto, o fato de ter merecido certa receptividade à época não fortificou o nome da 15 autora e, principalmente, a realização poética de sua obra, ao longo da evolução da crítica literária brasileira e também estrangeira. Em apenas um repente circunstancial dada à recente publicação do romance, os jornais: Jornal do Comércio, A marmota, Verdadeira Marmota e Jardim dos Maranhenses anunciaram que um livro escrito por uma mulher estava em circulação. Do elogio sincero à velada manifestação do preconceito, em relação à mulher audaciosa que ousara produzir e publicar literatura em um lugar e tempo inexoravelmente determinados pelo modelo patriarcal, como num jogo intermitente entre a aceitação e o espanto daqueles que escreviam nos jornais, Maria Firmina e sua obra foram recebidas. Leiam-se algumas passagens em que se evidenciam ora o constrangimento camuflado por um “machismo galante”, ora o elogio espontâneo e incentivador, que por vezes se mostra como aconselhamento: Convidamos aos nossos leitores a apreciarem essa obra original maranhense, que, conquanto não seja perfeita, revela muito talento na autora e mostra que se não lhe faltar animação poderá produzir trabalhos de maior mérito. (...) A não desanimar a autora na carreira que tão brilhantemente ensaiou, poderá o futuro, dar-nos belos volumes. (04/08/1860) Jornal do Comércio, na seção Noticiário. Aos 11/08/1860, o jornal A marmota publica uma chamada publicitária a fim de levar os leitores à compra do livro, lançado em San’Luis, Na Typographia do Progresso, Rua Sant’Anna, 49 — 1859: Úrsula — Acha-se à venda na Typographia Progresso, este romance original brasileiro, produção da Exma. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães. Saudamos nossa provinciana pelo seu ensaio, que revela de sua parte bastante ilustração (...) 16 Em um apuro crítico à sociedade masculina e letrada brasileira consiste a reportagem de 13/05/1861 do jornal A verdadeira marmota, entretanto não sem estar livre à construção do estereótipo acerca da mulher, personificada na autora. Expressões corriqueiras à época evidenciam o tratamento “machista” a ela dado, como : “ente delicado, caprichoso e sentimental” e “belo sexo”. Cita-se, no entanto, a passagem mais interessante, na qual percebe-se o primórdio da aceitação da literatura produzida por mulheres entre nós e uma certa mea culpa patriarcal do articulista em face daquela produção: Se é, pois, cousa peregrina ver na Europa, ou na América do Norte, uma mulher, que, o círculo de ferro traçado pela educação acanhada que lhe damos, nós os homens e, indo por diante de preconceito, apresentar-se ao mundo, servindo-se da pena, e tomar assento nos lugares mais proeminentes do banquete da inteligência, mais grato e singular é ainda ter de apreciar um talento formoso, e dotado de muitas imaginações, despontando no nosso céu do Brasil, onde a mulhernão tem educação literária, onde a sociedade dos homens de letra é quase nula. O aparecimento do romance Úrsula na literatura pátria foi um acontecimento festejado por todo jornalismo, e pelos nossos homens de letras, não como por indulgência, mas como homenagem rendida a uma obra de mérito. O lampejo jornalístico de noticiar a publicação de um romance, excepcionalmente publicado por uma mulher, cedeu lugar por parte da história literária a um profundo esquecimento. Embora jornalísticos, os escritos da época que versavam sobre Úrsula, já apontavam para elementos constituintes da narrativa, que no final do século XX e início do século XXI viriam a ser fundamentados, inclusive, pela produção da pesquisa acadêmica: a presença do negro e da mulher na Literatura Brasileira. Tal dualidade, que ainda perdura, no campo da crítica literária em face do romance Úrsula originou-se de afirmações tais como: “Raro é ver o belo sexo entregar-se a trabalhos do espírito e deixando os prazeres fáceis do salão propor-se aos afãs das lides literárias” “A 17 Verdadeira Marmota” (Op. cit.). E: “É pena que o acanhamento mui desculpável da novela escrita não desse todo o desenvolvimento a algumas cenas tocantes , como as da escravidão, que pecam pelo modo abreviado a que são escritas”. “Jornal do Comércio” (Op. cit).. Mais de cem anos depois foi que a obra da autora maranhense começou a ganhar relevo por parte de pesquisas acadêmicas. José Nascimento Morais Filho deve ser considerado o estudioso que merece mais importância quando se trata da visibilidade que a obra de Maria Firmina dos Reis encontrou nas últimas décadas do século XX. A sua publicação Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, de 1975, de fato, tenta reconstituir por mosaicos históricos e literários tanto a vida quanto a obra da autora maranhense, inclusive revelando seus enigmas (formas de charadas), seu livro de poesia Cantos à beira-mar (1871), fragmentos de um diário produzido pela autora entre o período de 9 de janeiro de 1853 e 1º de abril de 1903, o conto A escrava (1887) e artigos dos jornais mencionados acima que versavam sobre a autora. Morais Filho não elabora nenhum juízo crítico, limita-se apenas a tirar do esquecimento as manifestações de Maria Firmina dos Reis, atitude que, por si mesma, o leva e o levará a ser sempre lembrado e apreciado. Segue-se seu depoimento acerca do achado que fizera: Descobrimo-la, casualmente, em 1973, ao procurar nos polorentos do século XIX, na Biblioteca Pública Benedito Leite, textos natalinos de autores maranhenses para nossa obra “Esperando a Missa do Galo”. Embora participasse ativamente da vida intelectual maranhense publicando livros ou colaborando quer em jornais quer em revistas literárias quer em antologias — “Parnaso Maranhense” — cujos nomes foram relacionados; em nota, se exceção, por Sílvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira, registrada no cartório intelectual de Sacramento Blake — o “Discionário Bibliográfico Brasileiro” — com surpreendentes informações, quase todas ratificadas por pesquisa, Maria Firmina dos Reis, lida e aplaudida no seu 18 tempo, foi como que por amnésia coletiva totalmente esquecida: o nome e a obra. ( MORAES FILHO: 1975, s/p) Os anos de 1975 e 1976 foram muito importantes para a obra da autora maranhense em termos de visibilidade proporcionada pelas publicações fac-similares de sua obra. Além dos Fragmentos de uma vida, José Nascimento Morais Filho publica Cantos à beira-mar em 1976, e Horácio de Almeida publica o romance Úrsula em 1975. O jornalismo no Brasil, no que tange ao romance Úrsula, certamente não perde tempo. Pois no mesmo ano (1975) de sua edição fac-similar, aos 25 de dezembro, o jornalista Marcílio Farias escreve um artigo intitulado Primeira Crítica e um subtítulo com o título do livro. O valor de tal escrito consiste na consciência de seu autor de que o dito romance seja o primeiro entre brasileiros a levar o cunho de abolicionista. Talvez, Marcílio Freitas tenha sido o primeiro a observar as relações do negro no romance como de caráter ideológico, porém entra na inevitável discussão (levada ao extremo pelos estudiosos) sobre a primeira mulher que publicou no Brasil. No entanto, não alcançou a poeticidade do romance. Cita-se a passagem em que está, quem sabe, a primeira afirmação de que Maria Firmina dos Reis tenha categoricamente produzido um romance abolicionista, e portanto radicalmente destoante da produção romanesca do século XIX: (...) Quando se constata, porém, que o livro é o primeiro romance (na exata concepção crítica do termo) abolicionista escrito no Brasil, e quando se evidencia de forma contundente que este romance é também o primeiro escrito por mulher (...) ( LUX JORNAL. Jornal de Brasília, Distríto Federal: 25/12/1975. No que diz respeito à inscrição do nome da autora e de sua obra em dicionários de biografia de brasileiros e sobre Literatura Brasileira, Maria Firmina dos Reis aparece em três. No primeiro deles e cuja autoria pertence a Sacramento Blake, há um dos primeiros 19 registros sobre a autora, que fundamentou a pesquisa bibliográfica feita por Horácio de Almeida. Sacramento Blake escreveu o seguinte verbete, publicado, ainda, em vida a autora: D. Maria Firmina dos Reis — Filha de João Pedro Esteves e dona Leonor Felipa dos Reis, nasceu na cidade de S. Luiz do Maranhão a 11 de outubro de 1825. Dedicando-se ao magistério, regeu a cadeira de primeiras letras de S. José de Guimarães, desde agosto de 1847 até março de 1881, quando foi aposentada. Em 1880 fundou uma aula mista em Maçarico, termo de Guimarães, cujo ensino era gratuito para quase todos os alunos, e por isso foi a professora obrigada a suspendê-la depois de dois anos e meio. Cultiva a poesia, e tanto em verso, como em prosa escreveu algumas obras, de que as mais conhecidas são: — Cantos à beira-mar: poesias. S. Luis... — Úrsula: romance. S. Luis... — A escrava: romance. S. Luis... (BLAKE: 1900, 232) No segundo dos dicionários, há uma maior abrangência acerca do levantamento feito por Sacramento Blake em relação à vida e à obra de Maria Firmina dos Reis. Deve-se sua autoria a Raimundo de Menezes, que não relevou o importante livro de José Nascimento Moraes Filho e deu prioridade a Horácio de Almeida, tanto quanto ao esforço de tornar Maria Firmina dos Reis conhecida do grande público. Embora longo, torna-se necessária a transcrição na íntegra do verbete, pois há a precisão de mostrar o posicionamento que Raimundo de Menezes assumiu com a inserção da autora maranhense em seu Dicionário Literário Brasileiro (1978, p. 570-571): Reis (Maria Firmina dos) — N. em S. Luís (MA), a 11 de outubro de 1825, filha de João Pedro Esteves e D. Eleonora Felipa dos Reis. Dedicando-se ao magistério, regeu a cadeira de Primeiras Letras de S. José de Guimarães (interior do Maranhão) desde agosto de 1847 a março de 1881, quando se aposentou. Em 1880 fundou uma aula mista, escandalizando os círculos locais, em Maçarico, termo de Guimarães, cujo ensino era gratuito para quase todos os alunos e por isso foi a professora a suspendê-la depois de dois anos e meio. Cultivou a poesia e tanto em prosa 20 como em versos, escreveu algumas obras. É considerada em seu Estado a primeira mulher a escrever romances no Brasil. Seu romance Úrsula foi descoberto em 1962 por Horácio de Almeida numa casa de livros usados do Rio de Janeiro. Chamou a atenção do pesquisador porque, no lugar do nome do autor, estava assinado Uma maranhense. Depois de muitos estudos, Horácio de Almeida, que nasceu na Paraíba, descobriu a identidade da autora: Maria Firmina dos Reis escreveu também o poemaCantos à beira- mar e os romances Escrava e Gupeva, onde, além de casos de incesto, aborda as relações entre os brancos e os índios em seu Estado. A paulista Teresa Margarida da Silva e Orta é considerada a primeira brasileira a escrever romances, mas, segundo os maranhenses, sua obra Aventuras de Diófanes, escrita em 1752, foi publicada em Portugal e trata da mitologia grega, um tema que nada tem a ver com o Brasil. Por isso, entendem, não ser considerada a primeira. É uma tese que encontra apoio em vários círculos intelectuais de outros Estados. Assim foi homenageada pelo governo do Maranhão, que deu seu nome a uma rua de São Luís e mandou colocar uma placa na antiga tipografia Progresso, onde em 1958 foi impresso Úrsula. F., em data ignorada, com certeza na terra natal. Bibliografia: Cantos à beira-mar (poesias), A Escrava (romance), S. Luis, ed. fac-similar de Úrsula, pelo governo maranhense, em 1975. Fontes: Sacramento Blake, Dic. Bibliog. Bras. 6º vol. p. 232. Arquivo de O Estado de São Paulo. Arqivo da Academia Maranhense de Letras, MA. (MENEZES: 1978, p. 570-571) No terceiro, dirigido por Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, há uma brevíssima síntese acerca da autora e suas produções, como também algumas referências de pesquisa: REIS, Maria Firmina dos. ( São Luís, MA, 11 out. 1825 — Gumarães, MA, 11 nov. 1917), romancista, poeta, professora, Pseud.: Uma maranhense. BIBL.: Úrsula, 1859 (rom.); id. 1975 (ed. fac-sim., pref. De Horácio de Almeida); Cantos à beira-mar (poes.); versos em parnaso maranhense. S.d. p. 222-5. Colab.: Semanário maranhense, São Luís, MA, 1867-1868. REF: BLAKE Dic., VI, 232; Montello, Josué. A primeira romancista brasileira. J. Brasil, 11 nov. 1975. ( v. II: p. 1357, 2001) O prólogo de Horácio de Almeida (ALMEIDA, Horácio: 1975, I-VII) traz preciosas informações sobre sua pesquisa bibliográfica, no qual se percebe o esforço em rastear a obra e a autora no âmbito da literatura nacional, porém sua tentativa de pensar o livro Úrsula como obra literária apresenta alguns equívocos, como por exemplo, as afirmativas 21 de que falta ao romance “o colorido das descrições” e de que “ as cenas acontecem sem qualquer preparação psicológica”. Tais afirmativas aparecem incertas em relação à estrutura da narrativa, porque as descrições se constituem como recurso fundamental para a fixação espacial das personagens e estas possuem o efeito psicológico nelas próprias (seja por via de traições, vingança, até mesmo pela via cultural da diáspora), e tal efeito se estende ao leitor que se choca com os relatos de Tancredo, Luiza B., Preta Suzana e com as reações enfurecidas de Fernando P.; as personagens se sintonizam com a natureza descrita pela narrativa e os acontecimentos decorrem da articulação do que se narra pela narradora e do que se narra pelas próprias personagens, de forma tal que personagens e descrição se articulam, intensamente, atingindo o leitor através de um efeito psicológico: exemplos são a descrição que Preta Suzana faz de África no IX capítulo e a primeira parte do romance, em que a narradora descreve o quadro natural cheio de significações e símbolos, logo no primeiro capítulo da obra. Horácio de Almeida motivado em saber qual o primeiro romance escrito no Brasil por uma mulher funda a discussão de que Maria Firmina dos Reis teria sido a primeira mulher brasileira a escrever e publicar um romance no país com suas cores locais. Essa discussão foi retomada por inúmeros estudiosos, cada qual impondo sua perspectiva acerca da primeira obra romanesca advinda da mão feminina. Citam-se as considerações de Horácio, que são a mãe das discussões no Brasil acerca do pioneirismo de Maria Firmina dos Reis e embora longas, vale a pena lê-las, pelo seu caráter histórico e bibliográfico, segundo o lugar do romance Úrsula nas letras nacionais: 22 As investigações feitas me levavam ao romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, dado a estampa em 1859. Antes, ninguém apontara outro. O que vale, no caso, é romance e não tradução de romance, como fez Nísia Floresta, em 1850, na relação que nos dá Sacramento Blake. Também não entra aqui, em linha de cogitação, o romance de Tereza Margarida da Silva e Orta — Aventuras de Diófanes — publicado em 1752, porque esse romance, em verdade, não é brasileiro. Teresa nasceu em São Paulo, de onde se retirou aos cinco anos de idade, levada por seus pais para Portugal. Nunca mais voltou ao Brasil. O romance que lá escreveu e publicou, enredado na fábula, foi, com efeito, o primeiro de mulher brasileira, mas o que se quer é romance escrito no Brasil, com tema e cor locais, saído da pena de uma mulher. Neste caso está Úrsula. É o primeiro de autoria feminina, surgido no Brasil, como o primeiro de autoria masculina, é O filho do pescador, de Teixeira e Souza, publicado em 1843. (Ibdem) Wilson Martins discorda dos argumentos de Horácio de Almeida e em um processo enciclopédico afirma outras possibilidades de outras autoras terem publicado antes que a maranhense, inclusive rebate a argumentação de Horácio de Almeida no que diz respeito a Nísia Floresta, e nem cita qualquer valor da produção de Tereza Margarida da Silva e Orta, no volume III de sua História da Inteligência Brasileira (1977, p. 94): No Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1825-1881), autora, também, de A escrava, publicou o romance Úrsula, apontado incorretamente como o primeiro do seu gênero escrito por mulher e impresso no Brasil ( cf. Anais do Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes, 1973, pp. 72 e s.) Antes dela (...) seria preciso considerar Nísia Floresta, com Daciz, ou A jovem completa (1847) e Dedicação de uma amiga (1850), ainda que excluíssemos da competição, aliás sem maior interesse, A filósofa por amor, de Eufrosina Barandas, no qual há páginas de ficção (1845), e Lição a meus filhos (1854), de Ildefonsa Laura, que são dois contos em versos. Temístocles Linhares nega a proposição de que Maria Firmina dos Reis tenha sido a primeira mulher brasileira a publicar um romance no Brasil, ao contrário de Horácio de Almeida, e seguindo a esteira de Wilson Martins. Seus argumentos são repetitivos, porque como Martins, Temístocles nega a autora do Maranhão como primeira romancista brasileira 23 e, diferentemente dele, legitima Teresa Margarida da Silva e Orta como primeira brasileira a escrever romance. De qualquer forma, Temístocles difere tanto de Horácio de Almenda, quanto do crítico paulistano: O equívoco por parte dos maranhenses, estava em considerar a autora a primeira romancista brasileira a tratar de tema brasileiro, excluindo assim a primeira brasileira na ordem cronológica a escrever romance, a santista Teresa Margarida da Silva e Orta, autora de Aventuras de Diófanes, um romance que não se ocupava do Brasil e antes se preocupava com a mitologia grega. (...) esse livro tinha de ser analisado à luz de sua simbologia e nesta tanto entrava Portugal como o Brasil. Ainda, porém, que esse livro fosse excluído ou deixado de lado, houve outra autora brasileira, e também romancista, que se antecipou a Maria Firmina dos Reis, publicando nove anos antes, em 1850 portanto, o romance Dedicação de uma amiga, de autoria de Nísia Floresta, que antes ainda, em 1847, publicara um romance didático, Daciz, ou A Jovem Completa. Desse tipo de engano está referta a história de nossas literaturas regionais, principalmente, de modo que sempre se impõe a correção. Quanto propriamente os dois romances de Maria Firmina, não se descobriu neles nada que pudesse chamar a atenção. Até há pouco tempo, eles eram de muito difícil alcance, quando o Governo do Maranhão tomou a iniciativa de republicá-los em um volume, mas a verdadeé que eles continuaram a ser ignorados, pelo menos fora do Estado. (LINHARES: 1987, p. 392. V. 3). Dando continuidade à discussão sobre ser ou não ser Maria Firmina dos Reis a primeira mulher a publicar romance no Brasil, que de fato possui por tema a realidade brasileira, tem-se a voz de Josué Montello em um artigo publicado em 11 de novembro de 1975, e Republicado em Madri, Espanha em 1976, intitulado: La primera Novelista Brasileña: Maria Firmina dos Reis es, realmente, la primera novelista brasilenã. Porque si bien hay el antecedente de Teresa Margarida da Silva Orta, hermana de Matias Aires, autora famosa de las Aventuras de Diófones, libro publicado por primeira vez em Lisboa en 1752 com el seudónimo de Dorotea Eugrassia Tavareda Dalmira, bajo el modelo de las Aventuras de Telémaco tal y como sugiere su título esse libro no constituye materia 24 especifica en cuanto a su autor se refiere, y outra parte, como bien señala Antonio de Oliveira, no es un libro de temas brasileños. Todo lo que se sabía de Maria Firmina dos Reis antes de los estudios de estos dos investigadores marañenses se limitaba a una breve nota en el sexto volumen del Diccionario Bibliogáfico Brasileño, de Sacramento Blake. (La primera novelista brasileña: In Revista de Cultura Brasileña, Madri, n. 41, jun. 1976) Um determinado aspecto das manifestações críticas acerca do romance Úrsula surgiu certamente da possibilidade de esse romance ter sido o primeiro saído das mãos de uma mulher brasileira, em terra brasileira e sobre a cultura brasileira. Muito se disse e se desdisse sobre tal possibilidade aberta à obra, porém esses estudos travaram a recepção propriamente do romance, uma vez que se cogitou primeiro o registro canônico da obra, o seu lugar de autoria dentro da Literatura Brasileira. Essa discussão estabelecida por aqueles que bem ou mal se debruçaram sobre o romance Úrsula torna-se produtiva apenas para um determinado princípio crítico postulado pela fixação do texto enquanto produção exótica, inaugural, mas não desenrola os emaranhados do romance e não se debruça sobre o feito especificamente literário, quando muito, visa a certos determinismos ideológicos, tais quais: o negro e a mulher, sem situá-los como rigorosamente vigentes no âmbito estético- literário. Um exemplo desse determinismo, por um lado aparece no livro O tigre da abolição, no capítulo “Apoteose”, parte “A literatura da escravidão” (ORICO: 1977, p. 179-188), em que o autor situa os romances e poemas brasileiros que tratam da situação do negro no Brasil. O tratamento, apenas como de registro, evidencia o caráter puramente documental a que o livro passa a ser submetido: A esse rol poderia juntar-se, antecipando-se a todos em data, um romance que tem por título Úrsula, aparecido em São Luís do Maranhão, de 25 autoria de uma professora nascida na cidade de São Luís em onze de outubro de 1825, Dona Maria Firmina dos Reis. (Op. cit.) Por outro lado o determinismo se dá na publicação antológica intitulada História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priori, onde há um ensaio intitulado “Escritoras, escritas, escrituras” de autoria de Norma Telles (Op. cit. 2007, p. 401-442) que situa a autora do romance Úrsula no conjunto das escritoras brasileiras do século XIX, considerando o seu público leitor e o seu enredo, e claro, o fato de o livro ter sido escrito por uma mulher: O romance, por mais inocente que fosse, era ainda um gênero literário malvisto, pernicioso para as moças, quando, em 1859, os jornais de São Luís anunciavam Úrsula, de autoria de uma maranhense, ao custo de dois mil réis pela Typografia do Progresso. Logo se soube que o livro, hoje considerado o primeiro romance de uma autora brasileira, era de Maria Firmina dos Reis. (Ibidem) A tendência segmentária da crítica em situar o romance Úrsula seja no cânone, seja como manifestação da mulher, seja como manifestação do negro leva-me à crença de que a obra em questão nunca foi analisada por ela mesma, o olhar crítico apenas em momentos fugazes se deteve a observar e analisar sua conjuntura narrativa, sua urdidura construtiva, mesmo que sim, os aspectos poéticos do romance e sua literariedade foram subordinados aos temas que ele aborda. Parece-me que se estudou muito o negro e a mulher, e a autoria feminina, a partir do romance Úrsula, fazendo com que a narrativa fosse apenas um espaço em que motivos extraliterários existem. Aos poucos o romance de Maria Firmina dos Reis vêm sendo analisado em seus aspectos literários, ainda que o negro, a mulher e a autoria feminina determinem o enfoque de estudo. Três trabalhos produzidos como dissertação de mestrado e tese de doutorado de 26 universidades brasileiras da área de Letras vem introduzindo estudos estéticos ao aspecto ideológico do romance, fato que significa um certo avanço da criatividade e da produção acadêmica, pois há uma conciliação entre estética e ideologia, e não puramente o uso do romance Úrsula para se pensar a condição da mulher e do negro no Brasil, e exaltá-lo como primeiro romance escrito por mulher, no âmbito da literatura nacional. A dissertação de mestrado da pesquisadora Cristiane Maria Costa Oliveira cujo titulo consiste em A escrita vanguarda de Maria Firmina dos Reis: Inscrição de uma diferença na Literatura do Século XIX (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2001. Mestrado em Teoria Literária) levanta aspectos relevantes para a comparação do romance Úrsula com os romances canônicos do século XIX da tradição literária brasileira. O vanguardismo de Maria Firmina dos Reis consiste exatamente na relação do negro com as personagens brancas e no fato de a maranhense ter sido pioneira na produção romanesca da autoria feminina no Brasil. Embora ainda ligada a conceitos estabelecidos pela crítica dos jornais do século XIX e pelas ideias rasas (para o estudo específico de literatura) que sobrepõem ao texto literário a história do negro no Maranhão, por exemplo, Cristiane Maria Costa Oliveira avança a crítica acerca do romance de Maria Firmina dos Reis, ao menos por constatar as articulações da escrita firminiana, como na passagem a seguir: Úrsula é escrito com a técnica de encaixes de narrativas com as personagens contando suas vidas. Na primeira narrativa, fundamental para toda a estória, o escravo Túlio, salva a vida do jovem branco Tancredo e leva-o, moribundo para a casa de Úrsula, que cura seus ferimentos. Na segunda narrativa, o decepcionado Tancredo descreve sua vida repleta de acontecimentos tristes, decepções e amores traídos. Na terceira, a mãe de Úrsula, Luíza B., também conta sua vida de pobreza, represália e abandono, decorrido do fato de seu casamento ter sido feito sem o consentimento da 27 família. E na quarta narrativa, a da velha africana Preta Susana, conta como era sua vida na África e sua triste transformação em escrava. (Ibidem: p. 79) Outra dissertação de mestrado sobre o romance Úrsula foi concluída em 2007, cujo título se dá: Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. Faculdade de Letras da UFMG, Linha de pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade) e sua autora chama-se Adriana Barbosa de Oliveira. Em seu trabalho há a atualização das idéias propostas pelo romance de Maria Firmina dos Reis e tão perseguidos pela crítica. Os temas de gênero e de etnia são localizados no âmbito da narrativa, que ao ser meio de comunicação, estabelece as intervenções na consciência cultural do leitor, como demonstram as passagens a seguir: O romance é estruturado segundo os moldes folhetinescosromânticos, possuindo outros elementos próprios da estética romântica, como a linearidade; a donzela angelical disputada pelo mocinho e pelo vilão; a presença de elementos góticos, como cenários sombrios e tenebrosos; a paixão incestuosa de Fernando P. por Úrsula.; o assassinato do herói à porta da igreja após o casamento; o amor eterno, a loucura e o remorso. Essa imitação dos padrões europeus era um fato comum, e também as raras escritoras mulheres e os negros, mesmo se opondo à ideologia dominante, se apropriam de elementos que pertencem ao código literário da época, pois escrevem para a mesma elite branca, usando sua literatura como modelo e, ao mesmo tempo, entrando no sistema como um elemento subversivo, à medida que, por meio de uma identificação do leitor com a obra, parece haver a intenção de desestabilizar a ordem estabelecida, ao fazer com que esse leitor pertencente às camadas senhoriais mude suas concepções e posturas com relação ao negro e à mulher. (Ibdem: p. 40-41) Algemira Macêdo Mendes investiga a exclusão de Maria Firmina dos Reis das Histórias da Literatura Brasileira. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na História da Literatura Brasileira: Representação, Imagens, Memórias nos séculos XIX e XX (PUC - Rio Grande do Sul: departamento de Teoria da Literatura, Tese de Doutorado, 2007) além 28 de refletir sobre os conceitos canônicos examina os aspectos formais do romance Úrsula, fazendo com que pela primeira vez as questões do negro e da mulher sejam examinados segundo o processo de criação literária da narrativa. O capítulo “Úrsula: A escrita de vanguarda” resulta em um trabalho de grande acuidade estética sem desconsiderar a perspectiva ideológica vigente no romance: O narrador de Úrsula é extradiegético, pois o enredo é narrado em terceira pessoa. Durante a narrativa, fazem-se descrições psicológicas e conjecturas sobre o modo de ser das personagens, o que conduz o leitor a uma reflexão sobre os conflitos enfrentados por elas. (...) Sabe tudo sobre as personagens, no entanto, ao utilizar-se do discurso direto e indireto, e às vezes indireto livre, dá voz às personagens, as quais vão narrando suas histórias. Como o enredo é estruturado através de encaixes, as vozes andam em paralelas, mas todas se cruzam. (IBIDEM: p. 84-85) Além do prefácio da edição fac-similar de Horácio de Almeida, existem uma Introdução intitulada: Uma rara visão de liberdade, cuja autoria pertence a Charles Martin e está na terceira edição do romance Úrsula (Organização, Atualização e Notas, Luiza Lobo: 1988), e um Posfácio, cuja autoria se dá a Eduardo de Assis Duarte e se intitula: Maria Firmina dos Reis e os Primórdios da Ficção Afro-Brasileira, localizado na quarta edição do romance Úrsula (2004). Ambos os textos valorizam o aspecto do negro no âmbito do romance, assumem a perspectiva inovadora de Maria Firmina dos Reis ao tratar o negro como personagem de ficção dotado de humanidade e não reproduzido como mercadoria humana ou inferior à etnia branca. Charles Martin eleva o romance Úrsula em relação às obras produzidas no século XIX que tematizaram o negro e principalmente em relação ao romance A cabana de Pai Tomás (1853), uma vez que no romance de Maria Firmina dos Reis os negros não aparecem como inferiores aos brancos e servem, inclusive, para eles, de parâmetro moral, 29 que conduz a realização do enredo da narrativa forjando a identidade africana do negro sem que este passe pelo processo do branqueamento, sem deixar de ressaltar também a originalidade da autora em face do relacionamento entre marido e esposa: Úrsula não se limita a repintar os negros de alma branca — como fazem muitos livros de sua época. Mostra como os escravos buscavam a estima de seus donos e tinham seus próprios padrões de comparação, os quais derivavam do passado africano. (...) Raramente os livros do século XIX trataram da mulher senão como procriadoras ou amantes. É bastante surpreendente que Maria Firmina descreva a relação entre marido e mulher como “despótica” e “tirânica”. (1988: p. 9-14) Eduardo de Assis Duarte funda a concepção de afro-descendência acerca da obra de Maria Firmina dos Reis, situa o romance Úrsula na chamada literatura afro-brasileira e seus estudos nortearam a dissertação de mestrado de Adriana Barbosa de Oliveira, em termos de investigação étnica. O pesquisador atenta para o posicionamento da voz afro-descendente integrada a um ponto de vista interno no plano da narrativa, interno tanto quanto diegese enunciativa como voz da identidade cultural da mulher e do negro, habilitando o jogo autoral da autora com as respectivas identidades culturais das personagens: É, portanto, como mulher e como afro-brasileira que a autora põe-se a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada mãe, ao qual se acrescentam os infortúnios de Tancredo, traído pelo próprio pai, e a tragédia dos escravos Tulio, Susana e Antero, que receberam no texto um tratamento marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana em nosso país. (Ibidem: p. 268-267) 3 Breve consideração sobre o Romantismo brasileiro e o romance como forma literária 30 O Romantismo literário brasileiro surgiu a partir dos modelos europeus de se produzir literatura, a forma do romance veio importada dos ingleses, franceses e dos alemães, o espírito sentimental e constituinte dos ideais nacionais derivara muito pouco da acepção portuguesa de se fazer literatura, pois a independência política do Brasil em relação a Portugal fez com que os ficcionistas brasileiros buscassem modelos literários fora da esfera lusitana, embora a cultura portuguesa prevalecesse ainda sobre as demais culturas européias, ao que diz respeito ao romance brasileiro. Os romances brasileiros produzidos sob a égide romântica, por uma questão de revelar a identidade nacional brasileira através de seus fundamentos históricos, trouxeram para a nossa literatura personagens caracterizados culturalmente como portugueses, tais quais são as personagens de O Guarany e Iracema de José de Alencar. No cunho da nacionalidade brasileira, em sua realização ideológica via estética literária, o português fez- se presente na literatura brasileira apenas como personagem, pois a forma dessa literatura teve o seu modelo em Walter Scott, Cooper e Alexandre Dumas. As raízes europeias do romance brasileiro deram origem a uma nova forma de se expressar, elaboraram temas mais especificamente brasileiros. Devido à própria estrutura do romance, o escritor brasileiro pode, por meio de sua forma, se aproximar desde a realidade histórica do momento de formação da cultura brasileira, tendo como personagens o índio e o português, até a sociedade brasileira já um pouco mais adiantada em termos de localização cultural, como se nos apresentam os romances urbanos e de costumes produzidos durante o nosso Romantismo. Ao assumir a função sócio-cultural de localizar a cultura brasileira desde os seus mitos de formação até a consolidação primária da burguesia, o romance brasileiro, em um 31 primeiro tempo, arraigado aos valores da estética romântica, desvelou a imaginação e os relacionamentos humanos do Brasil, servindo como forma literária cujo bojo cultural se presta a revelar os aspectos próprios do seu povo em formação. Por vezes, a concepção tradicionalíssima da crítica literária em perceber no romance do século XIX (que antecede o Dom Casmurro de Machado) apenas o sabor adocicado das construções narrativas calcadas em enredos que apenas falam do ideal amoroso acaba deixando de perceber que o tema amoroso aparece apenas comomotivo para se encaminhar questões próprias da realidade cultural brasileira, embora existam estudos eminentes como O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, de Flora Süssekind (1990), que propõe uma investigação sobre o nascimento do romance neste país abordando suas origens ficcionais calcadas na realidade daquilo que de fato aparece como amostragem da formação de um povo, a ponto de afirmar que: Não é, pois, a qualquer lugar que se pode chamar de Brasil, a qualquer literatura brasílica. É necessário que se submetam à malha fina da “originalidade”, da “natureza exuberante”, dos “costumes peculiares”. E, se no que se vê ou no que se lê não se acha a paisagem esperada, a reação não tarda, assim como a sensação de que, ou aquilo não é tipicamente brasileiro, ou, bem mais inquietante, que há um descompasso entre o que se define como Brasil e o que se vive como tal. (Ibidem: p.24) Ao lado da pesquisa de Flora Süssekind, o estudo de Silvana Carrizo (2001) intitulado Fronteiras da imaginação: os românticos brasileiros: mestiçagem e nação contribui para o entendimento do romance como forma artística que se constitui como modulação hegemônica da cultura e da literatura brasileiras, onde há a marcação definidora das classes sociais e raciais, sua localização e diferença como movimento próprio da constituição do romance configurado em narrativa literária e afirmação da cultura branca, patriarcal e escravocrata; assim a pesquisadora formula um arcabouço teórico que 32 possibilita a análise do romance romântico brasileiro através da tríade: raça / costumes / paisagem, que a leva a pensar aquela produção literária sob a égide da razão racial, que segundo a autora consiste em uma categoria analítica que sustentou a forma de pensar a comunidade de nação que imaginavam nossos escritores românticos. (Ibidem: 41) A forma do amor romântico obscureceu o valor do romance como possibilidade de compreender a eficácia da revelação com que os romancistas brasileiros desvendaram os interstícios do imaginário cultural. O romance brasileiro constituiu-se como uma forma literária altamente violenta, mesmo que ao fim de sua narrativa geralmente se resolvam os conflitos por meio da conciliação e do final feliz; no entanto os caracteres mostram os conflitos das personagens em face de elementos oriundos da diferença, do preconceito, da ambição, da luta pelo poder. Vale ressaltar que tais elementos funcionam envoltos por uma estória de amor, entre homens e mulheres que almejam a realização do relacionamento impossível, que se mostra como o grande motivo da criação romanesca romântica, mas que traz temas, no mínimo, relacionados a uma certa violência simbólica, ou seja: os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-se assim ser vistas como naturais. (BOURDIEU: 2003, p. 46). As personagens românticas simbolizam as contrariedades da personalidade brasileira, as relações afetivas conduzem para conflitos culturais que se sustentam na sensibilidade, as diferenças de classes sociais se fundamentam na estrutura cultural que caracteriza as personagens no plano da ficção, os valores são propostos como divisíveis, antagonista e protagonista carregam marcas ideológicas e estéticas que fazem a prática literária dialogar com o momento histórico, com o desalinho real das cores, dos lugares, das maneiras de se conviver. Embora o discurso apareça carregado de descrições, de volumes altos de adjetivação e peculiaridades levadas ao extremo, a ponto de sobrepor-se aos 33 núcleos da trama e do enredo, o romance do século XIX apontou tanto para a realidade ficcional quanto para o imaginário histórico da vida brasileira. A fundação da identidade nacional posta pelo romance em termos mais abrangentes que vão do passado indígena até a “nascente formação” das estruturas sociais brasileiras construiu também uma série de estereótipos e categorias culturais de exclusão, uma vez que o negro como elemento constituinte da identidade cultural brasileira apareceu apenas como elemento corriqueiro, mais que secundário, inevitavelmente excluído das relações humanas que se processam dentro da própria estrutura do romance, de maneira a reforçar a idéia de o negro ser apenas escravo e mercadoria. A mulher, assim como o negro, mesmo que seja ela título de romance e mesmo a personagem principal, sempre está associada à idéia de serventia, que se torna abrandada pelo enredo que põe em foco a estória de amor. O romance no Brasil impõe a submissão de toda identidade cultural que não se enquadra dentro dos parâmetros branco-patriarcal-escravocrata, seja o índio, a mulher e o negro, no entanto os dois primeiros possuem a aura guardada seja pelo nacionalismo literário seja pela expressão sentimental a que são vinculados. Mesmo que o romance do século XIX tenha assumido deveras a função de ser um instrumento de descoberta e interpretação, assim como mostrou Antonio Candido (1959, p.109-118), a realidade da identidade cultural brasileira foi dilacerada pelo próprio romance, sendo este, meio de comunicação folhetinesca, obra literária da produção artística de um país, documento histórico que recebe tratamento estético ou mesmo mera obra literária de terceira categoria. 3.1 Possibilidades estéticas e ideológicas na forma do romance Úrsula 34 Para um entendimento razoavelmente aprofundado do romance Úrsula, não basta apenas considerar a sua estrutura em si mesma, a fim de estabelecer sua classificação como romance tipo folhetim ultraromântico (LOBO: 1993, p. 228), devido aos emaranhados que são desenvolvidos ao decorrer dos acontecimentos propostos por sua narrativa. Para uma compreensão que possibilite aproximar-se da totalidade do romance, torna-se necessário levantar aspectos que estão fora da narrativa, uma vez que a representação, no romance Úrsula, sobre a sociedade colonial, visa à elaboração do nacionalismo através das histórias das personagens que formam na narrativa o “instinto de nacionalidade”. A brasilidade que se manifesta na representação do modo de viver das personagens, que são tecidas conforme o olhar crítico da narradora, cuja exposição discursiva da atmosfera colonial impõe a desorganização da mentalidade mandonista dos proprietários da terra, elabora um nacionalismo às avessas, por tender a valorizar a representação do negro e da mulher, deslocando o poder dos senhores patriarcais, através de recursos próprios da criação literária. Na nacionalidade do romance Úrsula, o negro possui identidade africana e a mulher aparece ironicamente subalternalizada; daí a expressão “instinto de nacionalidade às avessas”; pelo fato de o conceito de nacionalidade ganhar outra coloração e um aspecto mais aprofundado, a respeito da cultura e de literatura do século XIX no Brasil. As histórias que formam a narrativa do romance Úrsula são as histórias dos oprimidos da sociedade colonial, a exaltação ultrapassa os limites da natureza brasileira para que as personagens falem e construam a sua própria perspectiva do que seja a Nação Brasil, a partir de seus próprios discursos que trazem sua vida íntima. 35 Assim a narradora constrói as identidades culturais dos sujeitos, revoluciona ao criar um nacionalismo que se fundamenta na história dos gêneros e da etnicidade, fundando a nacionalidade brasileira através das vivências das mulheres e dos negros, em confronto com a ideologia senhoril patriarcal escravocrata. Dá-se um importante confronto na trama da narrativa, pois sob tal organização e emaranhamento de detalhes o enredo da obra desorganiza a concepção usual dos senhores patriarcais e escravocratas.A sua formação narrativa não corrobora com os aspectos dos romances tradicionais brasileiros produzidos durante o século XIX, pois Maria Firmina dos Reis (como autora) representa a constituição da mulher como agente histórico por ser agente da escrita, e a representação da sociedade colonial imanente em sua obra propõe a revelação da perspectiva de negros e mulheres sobre a sociedade daquele tempo. Sabe-se que, ao longo da tradição literária brasileira, a voz da mulher como produtora de texto literário sofreu um processo de emudecimento, seja por não ser privilegiada nas principais Histórias da Literatura Brasileira, seja por suas obras serem consideradas menores, e portanto, não merecerem a devida atenção dos historiadores, e ainda hoje serem etiquetadas com estigmas de ordem cultural. O problema consiste em que a própria Maria Firmina dos Reis tinha consciência do lugar inferior a que a mulher era destinada, no século XIX, e magistralmente pensou o seu lugar (de mulher em uma sociedade patriarcal), o lugar da personagem feminina, e do negro como personagem de ficção, no âmbito das letras nacionais, em contraponto com personagens que representam, no espaço narrativo da obra, os proprietários da terra; estes são deslocados para um papel secundário, no romance Úrsula, uma vez que representam a 36 censura da liberdade tanto de negros quanto de mulheres e definem a moralidade conservadora dos homens de poder da época, que controlavam os latifúndios. Para Rita Schmidt (1995, p. 187): “A literatura feita por mulheres envolve dupla conquista: a conquista da identidade e a conquista da escritura.” Identidade e escritura entrelaçadas na formação da mulher enquanto agente discursivo, deixando de ser, apenas, objeto do discurso masculino. A escritura da mulher fundamentou sua identidade através de processos literários sofisticados, como, por exemplo: imprimir no corpo da própria obra literária o jogo de submissão e transgressão, ambas sustentadas pelo entrelaçamento de sintagmas que formantes de um todo literário, altamente irônico. No caso de Maria Firmina dos Reis, em pleno século XIX, momento em que o romance ainda estava se definindo enquanto forma literária, além das duas conquistas, há a elaboração de personagens femininas que entram em choque com os proprietários de terra, dentro do romance Úrsula, e personagens cuja identidade se define como propriamente africana, que são verdadeiros exemplos de humanidade, fato que destoa de toda construção perjorativa acerca do negro escravo, sendo que africano fica além de escravo, por se constituir imaginariamente dentro de sua própria concepção de cultura, ou seja: o negro possui sua própria voz, constrói sua própria identidade, tornando-se livre por sua própria imaginação, que elabora a imagem da África sem cair no colonialismo, porque o seu discurso transporta-o às suas origens ancestrais. As conquistas de Maria Firmina dos Reis vão mais além daquelas duas, muito bem apresentadas pela pesquisadora, pois as suas personagens femininas, ainda que envoltas pelo jogo ambíguo da submissão/transgressão, superam, de certa maneira, o papel secundário da mulher como personagem de literatura. Superam, porque suas identidades não são forjadas pelo outro, mas pelo olhar da própria mulher, lançado, criticamente, sobre 37 o feminino. E tais personagens entram em conflito com a autoridade patenteada culturalmente pelo masculino, formando um choque, de identidades culturais, representado pelas vivências dos homens e das mulheres e seus respectivos papéis sociais, literariezados no plano da obra. Pode-se dizer que existem três conquistas: a conquista da identidade, a conquista da escritura e a conquista das identidades buscadas pelas personagens femininas, que efetuam em suas caracterizações e vozes a sua persuasão acerca dos personagens masculinos autoritários, que representam o poder em forma de opressão. Por outro lado, há uma quarta conquista: o negro manifesto como ser humano, o negro em sua plena dignidade, o negro construído africanamente, como crítico do sistema escravocrata, seja por sua caracterização, por seus atos, pensamentos e voz, que o definem também como sujeito, passando ele de ser representado apenas como a vítima de um sistema economicamente perverso a pensador de sua condição servil e de sua liberdade (como acontece na caracterização de Preta Suzana e de Túlio). Entretanto, para veicular tais conquistas, a Maria Firmina dos Reis/narradora precisou (no duplo sentido do verbo) articular a linguagem em uma escrita que camuflasse as suas conquistas e as conquistas por ela dada, em geral, às mulheres e aos negros. A estética romântica, com todos os seus floreios, como forma de expressão artística européia, serviu para a autora maranhense como veículo, e ambiguamente, como camuflagem para as suas investidas ideológicas em defesa das mulheres e dos negros. Na sociedade duramente estratificada, submetida à brutalidade de uma dominação baseada na escravidão, se de um lado os escritores e intelectuais reforçaram os valores impostos, puderam muitas vezes, de outro, usar a ambigüidade do seu instrumento e de sua posição para fazer o que é 38 possível nesses casos: dar a sua voz aos que não poderiam nem saberiam falar em tais níveis de expressão. ( CANDIDO: 2003, 178) A narrativa do romance Úrsula propõe uma leitura que deve ser realizada nas entrelinhas, o leitor necessita desbravar os exageros românticos, para também conquistar o significado da obra, escondido por trás do amor romântico entre Tancredo e a personagem homônima: ao enfrentar e vencer os excessos de significantes, o leitor se aprazerá com uma narrativa que interpreta e questiona o processo da opressão colonial estendido a seus herdeiros, e encontrará as mulheres e os negros emergindo como sujeitos dotados de humanidade, como protesto à coisificação imposta a eles pelos proprietários da terra, que lhes endureciam a identidade cultural e como consequência, a identidade literária. Não que apareçam meramente idealizados, vivendo em um paraíso onde a cordialidade representa a falta de conflitos; ao contrário, negros e mulheres surgem como personagens históricos, representantes de uma Nação imaginada e construída pela literatura, cuja vigência evidencia suas respectivas identidades culturais desenvolvendo-se de maneira discrepante à tradição narrativa literária brasileira, que se consolidará tradicionalmente duas ou três décadas depois da publicação em 1859 do romance Úrsula. Primordialmente, Maria Firmina dos Reis destoa da tradição narrativa literária brasileira, antes mesmo de ela se consolidar, funda aspectos de literariedade que produzem pressupostos ideológicos, que não foram assumidos pelos grandes autores da época. Extraordinariamente, a autora maranhense explorou as possibilidades do romance, a vulnerabilidade fundamental de sua abertura quase indiscriminada a muitas outras formas discursivas (BASTOS: 2007, p. 83), pois diversas classificações que caracterizam a forma romanesca podem na narrativa do romance Úrsula encontrar respaldo: romance romântico, pelo seu caráter indubitavelmente sentimentalizado; romance histórico pelas passagens em 39 que o negro expressa a sua voz africana, como persuasora do sistema escravocrata brasileiro; romance de costume, por conta do discurso se aprofundar e discutir o relacionamento entre os senhores patriarcais escravocratas com negros e mulheres; do romance psicológico, pelo mergulho no universo íntimo das personagens e analises dos sentimentos morais como o amor, o ódio; e romance gótico, pelos momentos de ambientalização taciturna, sombriae suspensa; mesmo caracteres do romance político, cuja crítica tradicional estabelece como expressão vinculada aos acontecimentos políticos brasileiros (das décadas de 60 e 70 do século XX), estão presentes na narrativa do romance Úrsula, pois a narradora imprime em seu discurso, claramente, a ideologia da abolição da escravidão dos negros e o fim da escravatura dos brancos; assume, ora conectada aos personagens, ora em sua própria enunciação o rasgo ideológico de mulheres, negros, senhores patriarcais. A representação das personagens revela a observação da narradora sobre os mecanismos de poder vigentes. Úrsula figura como uma narrativa que pensa os tempos coloniais e suas consequências em períodos posteriores da vida brasileira. No romance, surge a cultura criticada, são desveladas as relações de poder, entre as mulheres e os homens, entre a africanidade e os senhores de escravos, entre o amor romântico e a estrutura do poder colonial, regulada e mantida pelos senhores patriarcais; todo o romance estabelece uma perspectiva crítica sobre a realidade histórica, sem deixar de se preocupar com a amarração estética, que serve de veículo às indagações impressas nos caracteres de valor literário, como, por exemplo: a forte participação do espaço e as movimentações das personagens seja no plano da ação, seja no plano da imaginação. A construção de personagens e suas histórias são fontes para a trama da narrativa, a sua manifestação maior e mais contundente consiste nas identidades presentificadas pela 40 memória das personagens e a memória da narradora. Tais memórias não se circunscrevem em uma mentalidade elitista, e muito menos corrobora para a manutenção do poder patriarcal e escravocrata. A não relação entre tais memórias, contraditoriamente, move o encadeamento dos acontecimentos, através do dialogismo das personagens e das intervenções da narradora. As identidades culturais postas na narrativa fazem do romance Úrsula uma escritura revolucionária, porque são presentificadas em uma memória poética que traz a mulher e o negro como sujeitos ativos por suas mentalidades no âmbito do processo histórico e da série literária, e a memória torna-se o fator primordial na constituição daquelas personagens, pois suas caracterizações surgem de suas próprias reminiscências e da memória da narradora, que constrói poeticamente as mentalidades, as identidades, os acontecimentos que gerenciam a imagem de mundo de uma cultura propriamente colonial. A poeticidade da memória, que subage na formação cultural dos povos de outrora e de agora, constitui o objeto privilegiado de uma poética generalizada da cultura, que inclui e transcende a poética restrita das artes compaginadas nos tratados estéticos. A poética cultural corresponde à memória criadora, (...), comparece nas manifestações criativas do espírito humano. (MELO E SOUZA: 2001/2002, p. 10) No romance Úrsula, está a construção de identidades que convivem em conflitos e que se afirmam na contradição, gerando um universo que corresponde, poeticamente, à história cultural brasileira, porém não reitera ou reproduz a ideologia vigente, naqueles tempos, dos herdeiros do colonizador português, ou seja: o romance Úrsula assume a descontinuidade do poder dos colonos brasileiros, agride o código convencional da tradição literária, por não ser um elogio aos senhores patriarcais, e nem fazer com que seus dramas sejam propostos como topos principal do romance; não continua, pelo viés literário, a 41 opressão dos colonos recaída sobre os marginalizados, e denuncia o processo colonizador ao registrar as suas marcas deixadas na mentalidade e nos corpos das mulheres e dos negros. Ao contrário, o romance Úrsula colabora para a mudança de paradigma moral, ao apresentar e representar os proprietários da terra como criminosos e exploradores de mulheres e negros, que mesmo sob o julgo dos senhores patriarcais são capazes de construírem suas identidades por suas próprias palavras e ações, reconstituídas por suas memórias e pela memória da narradora, que se afasta temporalmente dos acontecimentos, dando um caráter analítico à narrativa, ao mesmo tempo, cria a literariedade, que produzida com recursos específicos da preocupação estética, revela a perspectiva dos oprimidos. Os acontecimentos aparecem como motivos que desencadeiam as identidades, tecendo o papel social a que as personagens são destinadas, nos acontecimentos surgem os elementos da cultura do imaginário da formação brasileira baseada no mandonismo patriarcal, pois as ações das personagens estão ligadas à construção de suas respectivas identidades culturais. Ação e inação, a palavra da fala das personagens e da narradora presentifica os acontecimentos já acontecidos, a narração não se impõe no mesmo momento em que o fato acontece, o relato das instâncias narrativas (narradora e personagens narradoras) surge a posteriori ao fato acontecido, daí a forte presença da memória no âmbito da narrativa. O espaço, elaborado a partir de uma natureza ruralizada, possui aspectos reveladores em relação aos acontecimentos e caracterizações das personagens, com seus campos, suas fazendas, e elementos de arquitetura colonial que formam a ambientalização para que as identidades se manifestem com toda a riqueza de detalhes: seja no plano psicológico, em que a natureza está em sintonia com os sofrimentos das personagens; seja 42 no plano da descrição física em que a natureza aparece localizada como espaço geográfico; seja a natureza como criação de Deus; seja também a cultura dentro da natureza, cultura esta que se identifica com os padrões coloniais, e que transpõe a atmosfera medieval com os seus assombros, presença da noite, senso lúgubre do mistério presentificados nos aspectos de ruína e abandono das construções arquitetônicas transportadas para a natureza brasileira. A atmosfera do espaço reproduz elementos da narrativa gótica, no romance Úrsula, só não há o Castelo, porém o Cemitério de ***, o Convento de ***, a Mata vivenciam os acontecimentos, por coagirem com as personagens, servindo a elas como abrigo, como espaço de meditação, como espaço de prisão, torneados por um clima de ruína conforme uma atmosfera macabra, que ao mesmo tempo convive com o ambiente colorido proposto pela natura brasileira, fazendo com que esta comporte a construção do mistério, do terror, aliada às construções arquitetônicas. Maria Conceição Monteiro (2004), ao investigar o romance gótico inglês, constatou que o convento, entre outras funções dentro daquele tipo de narrativa, “fornece refúgio contra a violência masculina, garantindo assim relativa independência para as mulheres” (p. 66). Na narrativa do romance Úrsula, a personagem homônima se refugia das perseguições de seu tio Fernando P, justamente no convento de Nossa Senhora da*** . Conforme a descrição do convento, e por ele ser um dos elementos que oferecem à narrativa do romance Úrsula característica que se coadune com uma tradição romanesca ocidental marginalizada, como o caso do romance cortês e gótico, Maria Firmina dos Reis/narradora usou de recursos para dramatizar a condição feminina, dentro de uma cultura colonial que traz em si os resquícios medievais: 43 Meia legua fora da cidade erguiam-se denegridas pelo tempo as velhas paredes de antigo convento, com suas gelogias também esfumaçadas pelo tempo, e que escondiam zellosas às vistas indiscretas as puras virgens dedicadas ao senhor. Era um edificio antigo na sua fundação, grave e melancholico no seo aspecto: era a casa do Senhor sem ostentação. (REIS: 1975, p. 142) A construção do espaço natural serve como
Compartilhar