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14 Clarice Lispector

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DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA II 
Conteudistas: Luiz Fernando Medeiros de Carvalho, Marcia Albuquerque Carneiro 
e Fabio Marchon Coube 
AULA 14 - Clarice Lispector e a radical descoberta do mundo 
Meta 
Ler e interpretar a experiência humana radicalizada na obra de Clarice Lispector 
OBJETIVOS 
Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 
1. Relacionar a vida de Lispector e o despertar da radicalidade humana em seus 
textos; 
 2. Elucidar o mistério em torno da vida e obra da autora; 
 3. Confrontar duas narrativas distanciadas no tempo de sua elaboração. 
 
Introdução 
Nessa aula, você adentrará o universo de uma das principais escritoras da literatura 
brasileira. Trata-se de Clarice Lispector. Nascida. Com uma escrita única e um estilo 
incrivelmente sedutor, Clarice teceu obras que servem de escopo da alma humana em 
meio a tramas e enredos que versam sobre situações que vão desde embaraços 
psicológicos até os pequenos prazeres da vida. Não é por menos que, certa vez, Guimarães 
Rosa escreveu: “Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida”. Logo, faz-
se necessário então percorrermos algumas de suas obras, como Um Aprendizagem ou o 
Livro dos Prazeres, Perto do Coração Selvagem e A hora da Estrela, assim como obras 
críticas dedicadas ao seu trabalho, como Clarice, de Moser, visitarmos pensadores como 
Judith Butler, Roland Barthes, e quem mais puder nos acompanhar nessa travessia para 
termos, cada vez mais, e de uma vez por todas, a radicalidade do humano presente em 
seus textos. 
 
1. Clarice Lispector e a radicalidade humana 
Nascida na cidade ucraniana de Chechelnyk, em 10 de dezembro de 1920, a escritora 
Clarice Lispector se mudou bem cedo com sua família para o Brasil, em 1922. A vinda 
de sua família foi devido a inúmeros fatores, mas tem como um dos principais fatores a 
crise financeira que assolava as famílias desde antes da Revolução Ucraniana iniciada 
em 1917 e só terminada em 1921. A derrota do Exército Insurgente, liderado por Nestor 
Makhno, culminou com o avanço do exército vermelho do Partido Comunista, permitindo 
a criação da União Soviética. Não menos grave foi a perseguição imposta aos judeus. Foi 
o estopim para que Pinkouss e Mania Lispector decidissem emigrar com suas três filhas 
– Clarice tinha outras duas irmãs, Leia, 9 anos mais velha, e Tania, 5 – rumo à América. 
 
BOXE DE CURIOSIDADE 
 
Figura 13.1: Ruínas da Sinagoga de Chechelnyk, cidade natal de Clarice Lispector 
Disponível em: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Ruins_of_Chechelnyk_synagogu
e.jpg 
FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE 
 
Segundo Martins, no dossiê intitulado “Culpa e transgressão”, elaborado em homenagem 
à autora após 20 anos de sua morte, há uma confissão de Clarice sobre seu nascimento, 
como se a mesma se sentisse culpada em suas memórias de infância, e, ao mesmo tempo, 
impotente diante dos rumos levados pelo destino. Trata-se do seguinte trecho de A 
descoberta do mundo: 
(...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, 
e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma 
mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que 
não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão 
determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu 
tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído 
na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo. (MARTINS, G. 1977, p.47) 
Na chegada ao Brasil, iniciamente em Maceió, a família judia opta pela mudança de 
nome, característica comum entre os judeus para evitar novas perseguições. Foi assim 
que o pai, Pinkouss, passou a se chamar Pedro. A esposa Mania adotou o nome Marieta, 
a primogênita Leia, virou Elisa, Tania manteve o mesmo nome. A caçula, a pequena Haia, 
já em terras brasileiras, passou então a se chamar Clarice. 
A família permanece os primeiros três anos em Maceió. Seu pai, em busca de estabilidade 
e independência financeira enquanto comerciante, migra com sua família para a cidade 
de Recife, onde Clarice passou a maior parte de sua infância. 
Se é na infância que Martins esboça a tese de que Lispector sente a sensação de cula, 
quando a mesma amadurece, há uma consciência em torno de certa impossibilidade de 
haver alguma espécie de redenção por parte do homem, sobretudo, segundo o autor: “pela 
via dos artificiosos paraísos espirituais futuros e das engenhosas fontes de consolação” 
(MARTINS, 1997, p. 48). Conclui o escritor: 
(...) ainda menina, contacta a crueldade, o sadismo e a potência da perversidade que 
residem no humano, como se pode constatar com a leitura do conto “Felicidade 
clandestina”, no qual é apresentada a vizinha recifense, graças a quem a autora pôde 
descobrir prematuramente em si mesma o pendor à inveja e a capacidade de odiar. No 
Grupo Escolar João Barbalho, na Rua Formosa, em Pernambuco, a adolescente Lispector 
sente o pavor das grandes punições, inevitavelmente a ela destinadas, por saber que, 
afinal, só teme quem deve: “(...) eu era a culpada nata, aquela que nascera com o pecado 
mortal”. (MARTINS, 1997, p. 48) 
Sobre seu sentimento de nacionalidade, Clarice tinha de fato uma posição segura: ser 
brasileira. Afinal, a escritora chegou ao Brasil com apenas dois meses, sem sequer ter 
“pisado” em solo ucraniano. Em Cartas perto do coração, seu amigo Fernando Sabino – 
autor de Encontro Marcado –, confessa: “Clarice foi chamada de alienada, cerebral, 
‘intimista’ e tediosa por críticos comunistas linha-dura. Só reagia quando ofendida pela 
estúpida acusação de que era estrangeira” (MOSER, B. 2009, p.14) 
Para a biógrafa Nádia Battella Gotlib, mais precisamente na biografia Clarice, uma vida 
que se conta, podemos ter a seguinte consideração acerca de uma possível múltipla 
nacionalidade da nossa escritora; “Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu na 
Ucrânia. Criada desde menininha no Brasil, era tão brasileira quanto não importa quem. 
Clarice era estrangeirana terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem 
desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há greve geral de transportes 
(GOTLIB, N.1995, p.485. apud MOSER, B. 2009, p. 9) 
Aos 13 anos, Clarice já havia feito uma importante decisão: decidira se tornar escritora: 
“Quando conscientemente, aos treze anos de idade, tomei posse da vontade de escrever – 
eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino – quando tomei 
posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem 
pudesse me ajudar. Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu mesma que 
me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade.” (LISPECTOR, 
C.1999, p. ) 
O anseio por escrever lançou a jovem Clarice aos textos literários. O papel é o ponto de 
convergência entre seus pensamentos –cada vez mais aflorados por uma sensibilidade 
humana singular – e a caneta – cada vez mais trêmula em busca de tecer a vida humana 
em tintas pretas. Só que a escrita é inquieta, um instante de angústia, como se nunca fosse 
boa o suficiente. É uma cena kafkiana, como se seus escritos estivesse condenados ao 
fogo antes mesmo de ficar pronto, conforme o escritor tcheco pediu a seu amigo Max 
Brod para pôr fim a sua obra no fim de sua vida. Idealizando um fim, não se sabe mais 
quando foi o começo. É o que Clarice confessa, por exemplo, em uma de suas crônicas 
em A descoberta do mundo. Vejamos: 
Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro – o sentido 
se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a maispara realmente não 
poder. A história interminável que então comecei a escrever (com muita influência de O 
lobo da estepe, de Hermann Hesse), que pena eu não ter conservado: rasguei, desprezando 
todo um esforço quase sobre-humano de aprendizagem, de autoconhecimento. E tudo era 
feito em tal segredo. Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu 
já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar um momento melhor 
porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse 
partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e 
não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir (LISPECTOR. C. 1999, 
p. 
BOXE EXPLICATIVO 
A aproximação de Clarice e Franz Kafka é feita também por Moser, quando Clarice 
abdica da relação com Deus como uma perda da origem judaica, agora em um exílio: “É 
talvez em Kafka que se sente com maior intensidade o desespero judeu diante da perda 
de Deus. A renúncia a Deus por Clarice Lispector, nesse contexto, não era mais do que 
um reflexo de uma perda que o mundo judeu como um todo tinha experimentado.” 
(MOSER, B. 1999, p. 104) 
FIM DE BOXE EXPLICATIVO 
 
Em 1934, Lispector e sua família deixam Recife. Seu pai decide que a nova residência 
seria no Rio de Janeiro, mudança que terá impacto profundo na vida de Clarice. Se a 
autora se denominava uma pernambucana, é durante o colegial no Rio que a autora 
conhece as obras que marcariam sua vida e teriam influência significativa. 
 
BOXE DE CURIOSIDADE 
 
Figura 13.2: Estátua dos pernambucanos Clarice Lispector e de João Cabral de Melo Neto 
na cidade de Recife. 
Disponível em: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/34/Est%C3%A1tuas_de_Clarice_L
ispector_e_Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto_-
_Recife%2C_Pernambuco%2C_Brasil.jpg 
FIM DO BOXE DE CURIOSIDADE 
Aos quinze, já como escritora, estuda na Tijuca até ingressar na Faculdade de Direito da 
Universidade do Brasil. Segungo Moser, o que levou Clarice a escolher o curso de Direito 
não foi o status elevado que a profissão poderia lher dar. Diante da perseguição aos judeus 
no período da Alemanha Nazista, além de tudo que sua família sofreu na própria Ucrânia, 
fez com que desde jovem tivesse um outro olhar para a palavra justiça. Uma justiça que 
excedia o âmbito jurídico. Era uma justiça que partia da singularidade inerente a todo e 
qualquer ser humano. Diante da injustiça cometida com seus familiares judeus, uma vez 
que teve um primo torturado, além das inúmeras perseguições, até mesmo em solo 
brasileiro, Lispector formou desde cedo um clamor por um mundo mais justo. Para isso, 
Moser propõe a seguinte elucidação: 
A ânsia por justiça estava inscrita em seus ossos. Ela tinha visto a horrível morte da mãe, 
e seu brilhante pai, incapaz de estudar, reduzido ao comércio ambulante de tecido. 
Cresceu pobre no Recife, mas sempre teve consciência de que sua família, apesar das 
dificuldades, estava melhor de vida que muitas outras. “Em pequena”, escreveu mais 
tarde, “minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque 
bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu sentia o drama 
social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças 
a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas. Em Recife eu ia aos 
domingos visitar a casa de nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como 
me prometer que não deixaria aquilo continuar.” Sua defesa dos desprotegidos era tão 
fervorosa que as pessoas começaram a dizer que ela seria advogada. “Isso me ficou na 
cabeça”, escreveu ela, e “como eu não tinha orientação de nenhuma espécie sobre o que 
estudar, fui estudar advocacia” (MOSER, p. 86-87) 
A sensibilidade aguçada atiçou a escritora fazer um conto sobre o desejo de justiça sobre 
a morte de um famoso bandido, pois o requinte de crueldade por parte da polícia não 
condiz com o que deveria acontecer a um ser humano, independente dos erros cometidos 
por ele. Logo, no começo Clarice afirma:” É, suponho que é em mim, como um dos 
representantes de nós, que devo procurar por que esta doendo a morte de um facínora. E 
por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os 
seus crimes.”(LISPECTOR, 1999, p. 123) . 
Clarice continua, elaborando sua argumentação a partir do primeiro Mandamento. Mais 
do que isso, não obstante de matar outrem, não foi somente um tiro – que já seria 
suficiente –, mas sim treze, reflexos de uma assustadora ira e tamanha violência com 
capacidade de romper uma razoabilidade humana e levar terror a quem se avizinha com 
o quase inenarrável defecho do caso narrado Clarice. Se o primeiro tiro acerta o alvo, o 
décimo terceiro resvala e atinge a própria sociedade que se silencia. Atinge o outro que 
se cala, percorre paredes, acerta o que o outro vê e agora sente: 
Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que 
não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero 
morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim. Esta 
é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de 
segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me 
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no 
nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome 
de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - 
porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (LISPECTOR, C.1999, p.123) 
Segundo Martins, o que faz Clarice ficar perplexa com caso é “a ‘vontade de matar’ e a 
‘prepotência’ dos policiais deixam-na em estado de cólera e choque, maldizendo-se por 
ter que depender da segurança garantida pela mesma lei que tira”(MARTINS, 1997, p. 
49). Humanizar a esfera jurídica, lembrar que o direito é feito para os homens, 
independentemente dos erros que eles possam ter cometido. A escritora não consegue 
aceitar como a crueldade pode ter legitimidade por um estado que tem o direito de punir, 
não de matar. Sendo assim, continuemos com a autora: 
Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em 
Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” 
de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; 
é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa 
coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor 
pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com 
que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o 
que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição. (LISPECTOR, 
C.1999, p.123) 
 
BOXE MULTIMÍDIA 
A morte de Mineirinho sob o olhar de Clarice Lispector: 
https://www.youtube.com/watch?v=I1mY9VltnP0 
FIM DE BOXE MULTIMÍDIA 
 
Clarice publicou um ensaio na revista A Época, sua primeira publicação em torno do tema 
que parece persegui-la: o desejo de justiça diante da radicalidade humana. Arquitetando 
estudos sobre o sistema penitenciário –área que procurou se especializar nos estudos de 
Direito – e versando sobre crime e castigo – influenciada pela leitura de Dostoiévski e de 
Spinoza –, publica “Observações sobre o fundamento do direito de punir”, em 1941. É 
sob esse prisma que, em 1942, Lispector começa sua primeira grande obra, Perto do 
coração selvagem. 
 
Atividade 1- Relacionada ao objetivo1 
Como podemos afirmar a desejo por justiça em relação a obra de Clarice Lispector? 
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Resposta comentada: Oriunda de uma família judia radicada no Brasil, Clarice sofreu com 
a adaptação de sua própria família em território nacional, chegando a ter um primo 
torturado durante o período da Guerra. O clamor por justiça social a levou para os estudos 
jurídicos, inclusive pensando em modificar o sistema carcerário. Não obstante, publicou 
um conto, intitulado “Mineirinho”, onde radicaliza a crueldade humana nos treze disparos 
da polícia contra o bandido, como se o excesso de balas representasse a cólera oriunda de 
um ser humano que deveria representar a justiça. 
 
2. O mistério em torno da “esfinge” Clarice 
“Sou tão misteriosa que não me entendo...”C.L. 
Não há dúvidas que habita um mistério em torno de Clarice Lispector. Pode ser pelo fato 
de que poucas pessoas conseguiram captar o enigmático instante de um ser humano em 
páginas de livros. Se por um lado, a sensibilidade humana é aguçada como se 
estivéssemos lendo o corpo e a alma numa espécie de lupa, do outro lado, cada pessoa 
que se deparava com a autora sentia-se em um instante paradoxal: O que seria mais 
misterioso, seus livros ou a própria autora? 
Como se fosse capaz de transcrever os anseios, as angústias, o momento que antecede o 
grito, a falta de coragem, toda e qualquer singularidade da alma humana. No entanto, é 
impossível decifrar Clarice. O biógrafo Benjamin Moser chega a compará-la a uma 
Esfinge, tamanho mistério que habita não somente seus textos, mas também sua vida. 
(MOSER, B. 1999, p. 152) 
Vida e obra se confundem, tamanha era a maneira misteriosa que permeava suas 
publicações. Se pouco se extraía da própria Clarice através de entrevistas e conversas, 
recaio sobre sua obra a tentativa de decifrá-la, tal como uma verdadeira esfinge... 
Certa vez, em viagem à cidade de Cairo – Clarice trabalhou como mensageira diplomática 
enquanto foi casada com um diplomático – a escritora se deparou com a esfinge. Essa 
intrigante experiência foi relatada ao amigo Fernando Sabino. Vejamos o seguinte 
depoimento: 
Vi as pirâmides, a esfinge – um maometano leu minha sorte nas “areias do deserto” e 
disse que eu tinha coração puro… […]. Falar em esfinge, em pirâmides, em piastras, tudo 
isso é de um mau gosto horrível. É quase uma falta de pudor viver no Cairo. O problema 
é sentir alguma coisa que não esteja prevista num guia. (SABINO, F.e LISPECTOR, 
F.2001, p.10 apud. MOSER, B. 2009, p.8) 
Diante da Esfinge, mais precisamente diante do encontro coma mesma, Clarice 
simplesmente se põe em paridade:“Não a decifrei”. Logo, o que poderia ser a desistência 
em torno do segredo, ao invés de se sentir devorada, apenas responde: “Mas ela também 
não me decifrou.” 
Além de um riquíssimo trabalho biográfico, Moser teceu também em sua obra o que os 
principais escritores escreveram sobre nossa ilustríssima escritora. Temos, por exemplo 
o que a professora francesa de literatura Hélène Cixous afirma sobre a relevância de sua 
obra, dizendo que Clarice Lispector seria uma versão feminina de Kafka, assim como um 
Rilke enquanto judia brasileira, ou o lado materno de Rimbaud a beira dos cinquenta anos, 
até mesmo uma filósofa que versasse sobre o ser, como fez Heidegger, desde que não 
fosse alemã como ele... 
O enigma prossegue...Certa vez, em entrevista concedida à jornalista Cristina para o Livro 
de cabeceira da mulher, e indagada sobre se considerar escritora, Lispector, uma das 
escritoras que melhor soube descrever o feminino em seus livros, declara : “Respondi 
que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, 
e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem 
diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor 
brasileiro” (LISPECTOR, C. 1999, p. 30). Já em outra crônica de Descoberta do mundo, 
Clarice mais uma vez desenvolve um embate acerca da condição de escritora. Vejam o 
trecho de “Se eu fosse eu”: 
Como é que se escreve? Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como 
se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um 
amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve? Por que, realmente, como é que 
se escreve? que é que se diz? e como dizer? e como é que se começa? e que é que se faz 
com o papel em branco nos defrontando tranquilo? Sei que a resposta, por mais que 
intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda 
não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, 
não sei absolutamente escrever. Será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, 
então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve. 
(LISPECTOR, C. 1999, p. 98) 
Uma escritora que não se intitulava como escritora, sem saber como se escreve. No 
entanto, sedenta pela descoberta do mundo e a radicalidade da vida humana: “O que eu 
quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu quereria poder usar a delicadeza 
que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva”. 
(LISPECTOR, C. 1999, p. 68) 
Diante de um mundo repleto de contradições, entre o céu e o inferno legados ao homem, 
vícios e virtudes, entre o sagrado e o profano, a dúvida; como se posicionar ao escrever 
sobre o humano, instante paradoxal que oscila o bem e o mal. É nesse instante de tremor 
diante das linhas que indaga sobre sua própria função. Segundio Martins: “Até mesmo a 
função de escritora acaba questionada por ela nos termos da ‘simplória divisão a que os 
séculos obrigaram’ entre bem e mal: por vezes, ‘escrever é uma maldição’; outras, ‘é um 
divinizador do ser humano’”. (MARTINS, p. 1997, p. 48) 
BOXE MULTIMÍDIA 
A singularidade do ser humano diante de um mundo hostil e injusti faz com que Clarice 
escreva uma de suas melhores obras, A hora da Estrela, em 1977. A narrativa em torno 
de Macabéa recebeu uma adaptação filímica dirigida pela cineasta Suzana Amaral, em 
1985, e trouxe grande repercussão para a obra da escritora. Recebeu inúmeros prêmios 
em diversos festivais, como o Festival de Berlim, de Havana e de Brasília. O filme chegou 
a ser indicado como um dos 50 melhores filmes brasileiros, segundo a Abraccine. Vejam 
aqui o trailer da obra: 
https://www.youtube.com/watch?v=kEkMj1AxEBo 
FIM DE BOXE MULTIMÍDIA 
 
Essa oscilação permanece em seus textos, como se não fosse capaz de se libertar do 
pecado humano que é o próprio ato de escrever. E nessa escrita, perpassa essa culpa, um 
fardo pesado demais para se carregar sozinha. É o que leva Clarice a escrever como se 
fosse parte de seudestino: 
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou 
intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com 
os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache 
vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita. (LISPECTOR, C. 
1999, p. 69) 
Os temas brotam conforme alguém que chega e se hospeda sem sair. Visitante 
incondicional e indesejado, não avisa a hora de sair até ganhar forma em um texto da mais 
bruta pedra sentimentalem um estilo suave e belo como poucos são capazes de fazer. “O 
meu mistério que é eu ser apenas um meio, e não um fim. “(LISPECTOR, C. 1999, p.137) 
 
 
BOXE DE CURIOSIDADE 
Engajada com a escrita feminina, a professora e crítica literária francesa Hélène Cixous 
dedicou suas publicações por pelo menos duas décadas estudando obras de Clarice 
Lispector. Entre as principais publicações de Cixous sobre Clarice, temos: Vivre 
l'Orange, to Live the Orange, de 1979, "L'Approche de Clarice Lispector". Poétique; 
Revue de Théorie e d'Analyse Litteraires., de 1979, Entre l'Écriture, de 1986, "Extrême 
Fidélité", de 1987, L'Heure de Clarice, de 1988 
"Reaching the Point of Wheat, or a Portrait of the Artist as a Maturing Woman". Remate 
de Males, de 1989. 
 
 
Figura 13. 3: Hélène Cixous, fotografada por Claude Trong Ngoc, em 2011; 
 
Disponível em: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/69/H%C3%A9l%C3%A8ne_Cixou
s_par_Claude_Truong-Ngoc_2011.jpg 
FIM DE CURIOSIDADE 
 
Mais intrigante do que essas comparações com uma escrita feminina é que a singularidade 
de sua obra faz com que a crítica literária se debata sobre aproximações e possíveis 
influências em outras obras. Clarice nunca negaciou suas leituras e releituras. Mas há de 
convir que a experiência humana em seus textos ganha novos ares, debruçada sobre um 
mundo intimista e feminino que somente traços autobiográficos promovem ora em 
aproximações, ora em distanciamentos. Para Benjamin Moser: 
“A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos 
toda a gama da experiência humana. Eis por que Clarice Lispector já foi descrita como 
quase tudo: nativa e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e 
adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua experiência 
íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que 
encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, ‘eu 
sou vós mesmos’” (MOSER, B. 2009, p.11) 
É nesse escopo que se propaga a crítica de sua primeira obra. Com uma tentativa 
ininterrupta por parte da crítica – buscando decifrar os enigmas do seu texto, mas também 
procurando entender a pessoa que resvala o mais íntimo do ser humano em sua caneta –, 
as comparações são inevitáveis. É o que aponta Bailey:Ao aproximar Perto do coração 
selvagem ao romance de Woolf e Joyce, Lins dá início a uma constante da crítica, ou seja, 
as comparações feitas entre a ficção de Lispector e a de escritores modernos como Woolf, 
Joyce, Katherine Mansfield e Herman Hesse, além dos existencialistas Jean Paul Sartre e 
Albert Camus. (BAILEY, C. 2006, p. 10) 
Para Martins: “Como obra transgressora, faz uso peculiar das regras gramaticais, na busca 
de novos recursos expressivos, efetuando, ainda, a reversão paródica de clichês 
lingüísticos e a denúncia do desgaste dos clichês morais do senso comum: as rupturas 
com a gramática normativa em perfeita conivência com as concepções éticas e estéticas 
da ficcionista.” (MARTINS, G. 1997, p. 51) O mistério em torno da Clarice, muitas vezes, 
estava em torno da expectatica do imprevisível, uma vez que suas obras entremeavam 
uma série de situações íntimas do viver em sua forma mais bruta, a vida tal como ela é, 
e, ao mesmo tempo, brilhante, porque única, quase que inenarrável, um sopro vital que 
todos podemos sentir, mas preferimos nos tapar de um vento que passar entre os dedosde 
qualquer jeito, tornando-se algum impossível de não sentir, mesmo sem desejar. 
 
Atividade 2- Relacionada ao objetivo 2 
Por que o biógrafo Moser chega a comparar Clarice a uma esfinge? 
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Resposta comentada: Moser, um dos maiores biógrafos, chega a compará-la a uma 
esfinge graças à impossibilidade de decifrá-la, assim como a lenda da Esfinge. Há em 
ambas há um enigma, uma áura que almeja uma resposta. Clarice era temida pelas 
entrevistadoras, e tinha histórias que perpassam sua vida pessoal, as inúmeras viagens e 
um olhar diferenciado acerca da alma humana. A própria escritora narra o encontro diante 
da Esfinge em uma viagem a Cairo. Encontro esse impossível de ser decifrado... Moser 
continua sua investida sobre Clarice ao afirmar os rastros de sua obra, como versões de 
inúmeros outros autores, o que nos leva a um labirinto de remetimentos, ilustrando a 
forma ímpar de escrita de Lispector. Essas inúmeras versões, suas aparições com ar 
misterioso, fazia com que cada crítico ficasse na expectativa por mais uma obra a ser 
decifrada. 
 
 
3. Sobre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Perto de um coração 
selvagem: Convergência e diferença 
 
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector é um romance que relata 
a busca de dois personagens por um ritmo próprio na relação amorosa que pode ser intensa 
enquanto busca pelo afeto. Podemos também ler este romance de Lispector como a arte 
de se buscar viver junto, incluindo formas de lidar com adversidades entre ausência ou 
excesso de diálogos, impasses e conflitos de interesses, desenvolvimento de uma vida a 
dois. 
Cria-se, no entanto, aquilo que Roland Barthes chamou de “distância penetrada” pelo 
afeto: “O que é desejado (na relação como viver junto) é uma distância que não quebre o 
afeto (...) uma distância penetrada (...). Aqui alcançaríamos, aquele valor que tento pouco 
a pouco definir sob o nome de delicadeza (palavra um tanto provocadora no mundo atual). 
Delicadeza seria: distância e cuidado, ausência de peso na relação, e, entretanto, calor 
intenso dessa relação.” (BARTHES, R. 2003) 
Quando se fala em afeto numa relação a dois pensa-se logo em se estar junto de uma 
maneira constante e buscando-se a permanência da relação. A expressão “distância 
penetrada” insere um paradoxo no desejo de permanência. Como se pode pensar em 
distância quando o que se quer é fusão, integração, parceria constate e infinita? 
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres é um relato em torno de um casal que 
potencialmente pode desenvolver uma relação singular, que atenda ao ritmo de cada um. 
Toda a trama do livro de Clarice destina-se a configurar aquilo que Roland Barthes chama 
de “fantasia idiorrítmica”: buscar o ritmo próprio, o movimento das ondas, numa fuga do 
ritmo direcionado à normalidade padronizada pelas instituições. 
Todo o desenrolar da trama busca esse idiorritmo. Os dois personagens do livro - Lóri e 
Ulisses- vivem de certa forma a utopia do viver junto. Mas em que sentido? Ulisses, o 
personagem, pode corresponder a uma figura proposta por Roland Barthes em seu livro 
Fragmentos de um discurso amoroso. Mas justo o seu contrário, na medida em que é 
paciente, não sofre de pressa, desenvolve a arte da espera.A uma certa altura do relato, o personagem convida Lori a encontra-lo no café, mas ela 
alega não se sentir bem. Ele pergunta se é algo físico e ela nega. Então, Ulisses diz:“- 
Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. 
Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio 
apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que 
insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei 
olhando para você enquanto você esperava um táxi”( LISPECTOR, C. 1998, p. 26) 
Dá para se interessar por um livro a partir de um trecho como este. Tem tanta coisa ruim 
em nosso dia a dia que poderia nos paralisar. No entanto, temos que seguir em frente. 
“Muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra adiante” (LISPECTOR, C.1998, 
p.26). As sensações que Lóri depura ao longo da narrativa são intuições que ela valoriza 
em contraponto com a lógica racional praticada dentro do senso comum. Ela fala da 
importância da intuição e do sentir como sabedoria: “Se o mundo não fosse humano, 
também haveria lugar para ela (Lóri) e com grande beleza: ela seria uma mancha difusa 
de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta, como era 
humanamente, mas seria de forma permanente: porque se o seu mundo não fosse humano, 
ela seria um bicho.”(LISPECTOR, C.1998, p. 42) 
Enquanto todos queremos o entendimento racional, cartesiano, Lóri busca não 
compreender. Não entender faz parte de um processo de abertura para o novo: “Entender 
era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao deus.. 
Não era um não-entender como um simples de espirito. O bom era ter inteligência e não-
entender. Era uma bêncão estranha como a de ter loucura sem ser doida.” (LISPECTOR, 
C. 1998, p.70) 
Dentro de sua aprendizagem, Lóri investiga a busca de um caminho almejado por muitos 
e também por ela. Vejamos no trecho a seguir:(...)Agarrava-se ferozmente a procura de 
um modo de andar mas de um passo certo, mas o atalho com sombras refrescantes e 
reflexos de luz entre as árvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, isso só em certo 
momento determinado da prece ela sentira. Mas também sabia de uma coisa: quanto 
estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando 
pudesse sentir plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu porto de 
chegada.Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.” 
(LISPECTOR, C. 1998, p.74) . 
Uma coisa importante a se ressaltar é o movimento de voltar-se para o outro, que é o 
oposto do egoísmo. Como aprendizagem, isso para ela seria a plenitude , mas antes disso, 
ela teria que olhar para si mesma, conhecer-se. Outra forma de aprendizagem a se ressaltar 
no livro de Clarice é a passagem em que o personagem Ulisses fala sobre o silêncio:” (...) 
há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. 
E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio” (LISPECTOR, 
C. 1998, p. 75) 
E qual seria a importância do silêncio? A sociedade nos impõe uma superexposição de 
imagens, de fatos, de opiniões, por meio dos meios de comunicação, da internet, da 
televisão, que, por sua vez, determina padrões de comportamento e reações automáticas. 
Ulisses propõe o silêncio como forma de autoconhecimento. Quando você tem momentos 
de contato consigo mesmo consegue perceber o que se passa com você. Além disso, dá 
chances para perceber a sua intuição, que é também uma outra proposta do livro, ou seja, 
a de aguçar o seu lado intuitivo. 
O livro tem o seu ápice que é o encontro de Lóri com o mar, mas que num significado 
mais amplo seria o encontro com a vida, no sentido da plenitude. Vamos transcrever esse 
capítulo cheio de comparações com a vida amorosa, através de confrontos entre a vida 
humana e o inumano do mar. Cada frase deste capítulo vem acompanhada de uma 
surpresa. No imediato da sequencia de uma frase para outra uma nova perspectiva. As 
frases se sucedem na perplexidade de suas combinações. 
A fisósofa feminista Cavarero apresenta uma interessante taxiomia dos pronomes 
pessoais com destaque para o “ tu”. Podemos trazer para o romance essa classificação, na 
medida em que a relação entre os parceiros vai mudando de uma aparente neutralidade 
para uma interpelação do outro. Quem age e fala age e fala na direção de um “tu”, para 
saber “quem tu és?”(BUTLER, J. 2015, p. 33) 
Nessa passagem, a mulher entra no mar para sair de si e interpelar o mar não como um” 
nós”, uma integração, uma irmandade, de onde se retira a identidade e interioridade : um 
à vontade. Volta-se para o mar como um estranho, uma alteridade, uma inquietante 
estranheza que pode vir a ser uma outra forma de comunicação e de troca. O mar que 
seria um “ele”, um elemento outro, o diferente, o não- humano, pode trocar com o humano 
e fazer a passagem através do “como se”. Através do “como se” ela bebe o líquido espesso 
[água salgada] como o líquido espesso de um homem. Ela se transforma em proa e avança. 
Mais tarde caminha dentro do mar, criando uma cena paralela ao intertexto bíblico. 
Dentro do mar não é o mesmo que andar sobre as águas, distingue o gesto inaugurado há 
milênios e hospitaleiramente lembrado com carinho numa troca de gentilezas e num 
ecumenismo de frases e contextos. 
BOXE DE CURIOSIDADE 
Uma das principais pensadoras sobre feminismo, gênero e justiça, Judith Butler nasceu 
em 1956, na cidade de Cleveland. Atualmente é professora da Universidade de Berkeley, 
na Califórnia, onde leciona Literatura Comparada. 
 
Figura 13. 3: Judith Butler em visita à Universidade de Hamburgo. 
Disponível em: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/85/Judith_Butler_cropped.jpg 
FIM DE CURIOSIDADE 
 
O mar, embora não humano, aproxima-se do humano e se converte de um “ele” em “tu”, 
interiorizado no corpo da mulher.“ 
Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que 
um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita 
porque vai entrar. 
Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a 
exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre 
e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado 
frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. 
A mulher não está sabendo : mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa 
hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em 
simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha O mar salgado não é sozinho porque é 
salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de , não se 
conhecendo , no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. 
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride um ritual as 
pernas. 
Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra 
sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta 
de seu mais adormeciedo sono secular. 
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A 
mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, 
líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode 
ser um pedido secreto. (LISPECTOR, C. 1998, p. 84-5) 
 
Em outra passagem Lóri faz uma reflexão sobre religião, a não religião e a 
espiritualidade: “Chegaráao ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo 
com suas galáxias, isso ela vira no dia anterior ao entrar no mar deserto sozinha. E por 
causa da vastidão impessoal era um deus para o qual não se podia implorar: podia-se era 
agregar-se a ele e ser grande também”( LISPECTOR, C. 1998, p. 86) 
 Nesse caso a visão de Lóri não é a de um deus distante, que a deixa pequena, obrigando-
a à súplica ou o deus amedrontador e punitivo. A divindade máxima a que a personagem 
se refere é aquela que está em tudo, inclusive nela e que por isso lhe permite aproximação 
Se para algumas religiões isso é uma heresia, para a literatura a heresia é uma condição 
fundamental de sua existência. Isso acontece porque a narrativa literária tem como um 
dos princípios o pensamento livre, fora dos padrões estabelecidos, levando o leitor a uma 
visão mais ampla da vida. 
Em outra passagem, Lóri toma consciência de se estar viva. Essa é uma passagem 
interessante, porque vivemos de maneira automática: nos levantamos pela manhã, saímos 
para trabalhar, resolver problemas, pagar conta e à noite voltamos para dormir. Poucas 
vezes nos damos conta da preciosidade que é estarmos vivos: “Que é que eu faço? É de 
noite e estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e estou toda alerta no 
escuro(...) Então com ternura aceitou estar no mistério de ser viva”(LISPECTOR, C. 
1998, p. 95) 
A aprendizagem é sobre a importância da alegria. Muitas vezes, as pessoas estão alegres 
ou felizes e não conseguem se dar conta disso ou não se permitem ter esse sentimento. 
Nunca têm coragem de dizer ao vivo que estão bem. Só que muitas vezes a máscara se 
cola ao rosto e elas acabam acreditando nessa máscara da infelicidade. 
 O livro narra muitas outras aprendizagens que o leitor vai aos poucos desbravando e, 
por tabela, também aprendendo, se lhe convier. Lóri também fala de uma clareza que ela 
consegue experienciar. Fala também do extraordinário da vida: 
Estava sentindo agora uma clareza tão grande que a anulava como pessoa atual e comum: 
era uma lucidez vazia, assim como um cálculo matemático perfeito do qual não se 
precisasse. Estava vendo claramente o vazio. E nem entendia aquilo que parte dela 
entendia. Que faria dessa lucidez”. (...) De algum modo já aprendera que cada dia nunca 
era comum, era sempre extraordinário e que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela 
queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns: 
não era necessário que a coisa fosse extraordinária para que nela se sentisse o 
extraordinário. (LISPECTOR, C. 1998, p. 95) 
 O cotidiano nos leva à banalização da existência. Esquecemos que tudo que nos 
acontece é milagroso, é uma coisa de grande importância, porque é a vida e ela é única e 
não volta. O que nos acontece hoje não se repetirá amanhã. Nos relacionamos com nossos 
pais e filhos sem darmos importância ao momento presente. Assim, deixamos para o 
futuro a saudade, a vontade de ter sido melhor, porque não vivenciamos aqueles 
momentos extrordinários mesmo sendo rotineiros. 
 
O primeiro romance de Clarice Lispector Perto do coração selvagem mostra um amplo 
espectro da vida de uma personagem desde a adolescência, passando pelo casamento, até 
à separação . É uma espécie de romance de formação que apresenta o relato de si diante 
da interpelação do outro. Em principio a interpelação da tia, em seguida a interpelação do 
professor. A conversa com o professor no espaço da casa perto do mar é revestida por 
uma aura de sedução , muitas vezes interrompida pela presença da mulher na sala. 
Quando está próxima de casar-se visita novamente o professor que foi abandonado pela 
mulher. Dele queria ouvir novamente a frase que lhe sugeria algo como não barra nenhum 
tipo de experiência. O interesse de Otávio, seu futuro marido, foi despertado de modo 
estranho pelo fato de Joana acariciar o ventre de uma cadela grávida. 
A relação com os animais é muito forte na personagem Joana. No casamento, o lado 
selvagem da parceira assusta o seu marido Otávio que opta por retornar `a antiga noiva 
que acaba ficando grávida dele. A certa altura há um confronto entre Lídia e Joana. E 
Otávio sai de casa. 
O romance mostra a experiência da perda e do fortalecimento de si diante da adversidade. 
Por fim, Joana aceita entrar na casa de um homem que a seguia e viver uma experiência 
amorosa. Algum tempo depois esse homem deixa um bilhete despedindo-se.Ela junta 
economias de uma pequena herança e parte sozinha num navio para outro lugar. 
Entre diversos lugares e variadas experiências amorosas, Joana desenvolve o contato com 
a natureza e consigo mesma, num processo de autognose que se dá sobretudo através de 
comparações com imagens de animais. 
A narrativa expande-se como necessidade que a personagem tem de relatar a si própria 
como uma reação à experiência com o outro. Diante do outro, coloca-se a opoacidade do 
corpo e a inquietante estranheza de se sentir um animal vivente que responde com 
enigmas. Vejamos: “Depois ele vinha . E ela repousava enfim, com um suspiro , 
pesadamente. –Mas não queria repousar! – O sangue corria-lhe mais vagarosamente,o 
ritmo domesticao, como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula”( 
LISPECTOR, C. 1998b, p. 109) 
Essa experiência em relação ao outro também pode ser vista nas seguintes passagens de 
Perto de um coração selvagem: 
“Ela notou que ainda não adormecera , pensou que ainda haveria de estalar em fogo 
aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância e de sua dolorosa 
imaturidade rebentaria seu próprio ser, enfim livre!” (...) 
“eu romperei todos os nãos que existem em mim, provarei a mim mesma que nada há a 
temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, 
erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minha vagas se levantarão 
poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de 
um animal(...)” 
(...) 
“ ...porque então viverei, só então viverei maior do que na infância , serei brutal e malfeita 
como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende,me ultrapassarei 
em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim , até a incompreensão de mim 
mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu 
caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela 
como um cavalo novo. (LISPECTOR, C. 1998b, p. 202)” 
Os livros de Clarice Perto do coração selvagem e Uma aprendizagem ou o livro dos 
prazeres parece que dialogam entre si em tempos de escrita diferenciados. Sobretudo 
fazem a passagem do narrar acontecimentos entrelaçados com tempo e espaço e 
personagens para a experiência com imagens do pensamento configurando a narrativa. 
Narrativa que não se limita aos fatos do cotidiano mas ilumina o interior do mundo dos 
personagens com a força da metáforas e comparações extraídas da natureza. 
 
BOXE DE CURIOSIDADE 
Livro traduzido para mais de dez línguas. 
Figura 13. 4: em Ucraniano 
Disponível em: 
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b2/%D0%9E%D0%B1%D0%BA
%D0%BB%D0%B0%D0%B4%D0%B8%D0%BD%D0%BA%D0%B0_%D1%83%D
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FIM DE CURIOSIDADE 
Lóri parece um desdobramento da intensidade de Joana. Com a vivência de abertura 
imaginada por Joana. O encontro de Lóri com Ulisses é um encontro maduro. Ulisses é 
um personagem masculino com alta volgagem de experiência e desilêncio, um professor 
que sabe relacionar-se com o outro. Ao contrário de Otávio, ele desenvolve a incrível e 
difícil arte da paciência, para estar diante de Lóri, na inocência e delícia de se estar junto. 
 
Atividade 3- Relacionada ao objetivo 3 
Qual é um possível ponto de encontro entre as obras Perto do coração selvagem e Uma 
aprendizagem ou o livro dos prazeres? 
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Resposta comentada: Apesar de escritos com mais de 20 anos de diferença, é possível 
estabelermos um diálogo entre Perto do coração selvagem e Uma aprendizagem ou o 
livro dos prazeres. Em ambos os romances, há uma narrativa que se desenvolve através 
de tempo e espaço, assim como personagens que se projetam através de imagens do 
pensamento. A radicalidade humana está presente quando se adentra o mundo vivenciado 
pelos personagens a partir de metáforas que disseminam a busca pelo que há de mais 
vívido da experiência humana. Apesar de distantes temporalmente, são obras que 
convergem e se aproximam quando tecem a radicalidade humana. 
 
Conclusão 
Através dessa aula, pretende-se que o leitor tenha uma interação com a vida e a obra de 
uma das maiores escritoras brasileiras. Através de biografias, artigos e livros da autora, 
podemos observar toda a singularidade de seus textos que versam sobre o que há de mais 
íntimo inerente ao ser humano. Dramas existenciais, clamor por justiça, afinco à relação 
humana são aspectos comuns tanto em Perto do coração selvagem quanto em Uma 
aprendizagem ou o livro dos prazeres a partir de narrativas densas sobre como é viver em 
um mundo fragmentado. Pois é nesse interregno das relações humanas com o mundo que 
Clarice escreve. 
 
Resumo 
Essa aula tem como objetivo relacionar acontecimentos da vida de Clarice Lispector que 
aguçaram uma sensibilidade humana em seus textos. Para isso, faz-se necessário 
reconhecer sentimentos de culpa e perdão, relações divinas e amorosas, intrigas e 
instantes capazes de adentrar obras que giram em torno de um ser humano em seu 
momento mais íntimo e singular da experiência denvida. Diante desse prisma, foram 
observadas duas narrativas, Perto do coração selvagem e Uma aprendizagem ou o livro 
dos prazeres como forma de marcar propósitos semelhantes em tempos distintos da 
autora. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
BAILEY. Cristina Ferreira-Pinto. “Clarice e a crítica”. Revista Hispanic. Agosto de 2006. 
Disponível em: www.hispanic.pitt.edu/iili/IntroLispector.pdf 
BARTHES, Roland. Como Viver Junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 
_______________. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro; F. Alves, 1981. 
BUTLER, Judith.Relatar a si mesmo – crítica da violência ética. Belo Horizonte: 
Autêntica, 2015. 
GLENADEL, Paula. CASA NOVA, Vera(org.) Viver com Barthes. Rio de Janeiro: 
Editora 7letras, 2005. 
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. 
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 
_________________.Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Editora 
Rocco, 1998. 
_________________. “Mineirinho”. In: Para não esquecer. 8.ed. Rio de janeiro: Rocco, 
1999. 
_________________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Editora Rocco,1998b. 
MARTINS. Gilberto Figueiredo. Dossiê: Clarice: culpa e transgressão: Revista Cult. 
Dezembro, 1997. 
MOSER, Benjamin. Clarice, .Rio de Janeiro: Cosac Naif, 2009. 
SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector. Figuras da escrita. Instituto Moreira 
Salles, São Paulo SP Brasil; 1ª edição, 2012.

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