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1 O « romance de 30 »: Rachel de Queiroz Eliana Bueno-Ribeiro e Luiz Fernando Medeiros de Carvalho Meta Promover um debate acerca do romance de 30 a partir do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz. Objetivos Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. reconhecer os aspectos documentais presentes no romance O Quinze, de Rachel de Queirós; 2. identificar os dois conflitos principais do romance em estudo ; 3. desenvolver a partir do romance em apreço, uma reflexão sobre a posição na sociedade da mulher intelectualizada a partir dos anos 30. INTRODUÇÃO Para que se compreendam os anos 30, devem eles ser abordados a partir de dois de seus fatores, que se apresentam interligados: a revolução de outubro de 30 e o clima geral, propenso a discussões ideológicas e a mudanças sociais que, advindo dos anos 20 e em muito inspirado na revolução russa de 1917, vai-se desenvolver no Brasil, assim como na Europa e nos Estados Unidos. A exposição abaixo segue de perto as obras de Antonio Cândido, Alfredo Bosi, Francisco Alencar, Marco Venício e Lúcia Carpi , citadas na bibliografia. Para considerar-se a revolução de 30 é preciso remontar ao início do século XX. Nos três primeiros decênios desse século o Brasil vive a chamada “república dos fazendeiros” ou “república do café com leite”, ordem política em que são hegemônicos os fazendeiros de café dos estados de São Paulo e Minas Gerais, proprietários que já investem parte de seus capitais na industrialização incipiente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Dessa 2 organização, fazem parte ainda as assim chamadas “classes dominantes”, um conjunto de profissionais liberais das principais cidades do país e os oficiais do exército. Ficam em segundo plano os interesses econômicos e políticos dos demais Estados da federação e os componentes da sociedade não participantes das classes dominantes não são representados politicamente, tais como os pequenos funcionários, os militares inferiores, os profissionais liberais oriundos da classe média baixa, os operários e os desempregados (ALENCAR, RIBEIRO, CARPI, 1985,p.217). Quanto a seu aspecto econômico, a estrutura do sistema deve-se, basicamente, ao equilíbrio entre a produção do café e sua exportação. Para garantir tal equilíbrio, os grandes fazendeiros haviam conseguido, em 1906, que o Estado se comprometesse a comprar os excedentes da produção cafeeira, de modo a que se pudessem manter os preços face às oscilações do mercado (Acordo de Taubaté). A Primeira Guerra Mundial, da qual o Brasil participará a partir de 1917, provocará modificações profundas na organização econômico-política brasileira. Por um lado já há a essa altura, um mercado interno em expansão, que exige bens de consumo até então importados. 1- Rachel de Queiroz 3 Rachel de Queiroz aos 18 anos Fonte: http://veja.abril.com.br/300998/p_142.html Fonte: http://www.pinterest.com/pin/472807660852414547/ BOX DE CURIOSIDADE Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras Veja seu discurso de posse em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12979&sid=115 FIM DO BOX DE CURIOSIDADE Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de novembro de 2003. Era filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz e pelo lado materno era parente de José de Alencar. 4 Em 1917 mudou-se, com os pais, para o Rio de Janeiro. A família transferiu-se a seguir para Belém do Pará, onde residiu por dois anos. Em 1919, Rachel de Queiroz regressou a Fortaleza onde fez o curso normal, diplomando-se em 1925. Casou-se em 1932 com José Auto da Cruz Oliveira, desquitaram-se e em 1941 uniu-se a Oyama de Macedo. Nos anos 30 foi membro do Partido Comunista Brasileiro e nos anos 70 apoiou o Golpe Militar de 1964. Teve uma única filha morta antes de completar dois anos de idade. Além de romancista foi teatróloga, cronista, tradutorae autora de obras didáticas. Para sua obra completa ver o site da ABL: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=260&sid=115 BOX MULTIMIDIA Para uma visão de conjunto de sua vida e de sua obra, ver “Rachel de Queiroz - Não me Deixes" : https://www.youtube.com/watch?v=fbJkYoneV_k#t=1682 FIM DO BOX MULTIMIDIA 2- A grande seca de 1915 Antes de nos voltarmos para o texto de O Quinze, devemos conhecer as circunstâncias históricas em que o mesmo se baseia. Fonte:http://www.fortalezanobre.com.br/2010/06/seca-e-campos-de-concentracao-em.html Nesse momento, a região é dominada pelas grandes propriedades, os latifúndios. O censo realizado no início do século detecta em todo o território nacional 648.153 propriedades rurais, das quais 4% tinham mais de 1000 hectares e ocupando 60% das terras. Aos senhores 5 das terras é submetida a maioria da população não proprietária. A remuneração de seu trabalho, sua alimentação e as possibilidades de cuidarem de sua saúde e da de sua família ficavam na estrita dependência do “bom coração” dos donos das terras e constituíram-se, algumas vezes, fatores de revoltas violentas contra os poderes locais, como as dos bandos de cangaceiros que assaltavam fazendas ou negociavam apoio a certos fazendeiros. Resultou, também, por outro lado, algumas vezes, na organização de movimentos religiosos que também chegaram a contestar os poderes locais, como o movimento de Canudos ( 1893- 1897) ou o organizado no Cariri (sul do Ceará) em torno do padre Cícero Romão Batista, cujo poder começa em 1880 e só terminará depois da revolução de 30. Nesse momento, o Nordeste está estagnado economicamente e as secas periódicas agravam a situação dos já penalizados econômica e socialmente. De fato, nesses momentos, os fazendeiros mudam-se com suas famílias para as cidades ou mesmo para a capital do Estado, abrindo as porteiras, de modo a fazer com que o gado, emagrecido, se perca pelo sertão e dispensando sumariamente seus trabalhadores. Estes veem-se assim abandonados como o gado e têm de emigrar com suas famílias, contando com alguns poucos recursos que lhes são alocados pelo governo federal ou, na inexistência ou no esgotamento desses, tentar a saída a pé para as cidades. As grandes secas marcaram-se de 1877 a 1879, 1888-1889, 1898, 1900 e 1915. Aos trabalhadores sem trabalho so restou a emigração para a Amazônia ou para o centro-sul, visando a um emprego nas culturas da borracha e do café, respectivamente. Para emigrar, no entanto, e quando tal era possível, era necessário passarem pelas cidades e mais particularmente por Fortaleza¸ de onde partiam os navios tanto rumo ao norte quanto ao sul. Ora, a partir de 1877, o emigrante começa a ser visto globalmente como “retirante”, perdendo sua individualidade. 6 BOX MULTIMIDIA As informações deste tópico devem-se ao artigo de Frederico de Castro Neves ( com a colaboração de Maria José Resende). Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932). S. Paulo, Revista Brasileira de História, 1995, v. 15 n° 29, pp. 93-122. http://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3775 FIM DO BOX MULTIMIDIA Na seca desse ano, Fortaleza é invadida por sertanejos “retirantes” em número quatro vezes maior que seus habitantes. A falta de estruturas de acolhimento dessa população provoca o completo desequilíbrio da cidade: crimes, saques, ataques voluntários ou não à moral das famílias, epidemias, mortes. A partir desse momento organizam-se práticasde assistência pública aos flagelados que consistem em fornecimento de passagens para fora do Estado, fornecimento de alimentação e práticas de higienização e mesmo de moralização. Por ocasião da seca de 1915, o Estado organiza uma nova instituição de acolhimento dos sertanejos: o Campo de Concentração, que visará a substituir os abarracamentos dos retirantes numa cidade que se moderniza sob a influência de Paris e que desse modo ficará a salvo da convivência com os retirantes, suas doenças, seus pedidos de esmolas e a exibição de seus males. E que ficará, sobretudo, a salvo da presença de multidões, fenômeno que aterrorizava uma Fortaleza que tinha sofrido, em 1912 uma insurreição popular que visava a depor o então Presidente do Estado e que, em fúria, depredara os símbolos do progresso urbano, tais como lojas, bondes, fábricas, praças e postes de iluminação pública. Em 1914, nova ameaça de ataque de multidões pairara sobre a cidade, por ocasião da vinda de sertanejos retomar o governo perdido pela facção derrotada em 1912. Mesmo se um acordo político foi encontrado e a cidade escapou do saque, ficou o terror das multidões de bárbaros sertanejos aos habitantes de uma cidade que se aformoseava mirando-se nas reformas parisienses do barão de Haussmann. 7 Para compreender-se a lógica da decisão de organização dos Campos é preciso também levar em conta que nesse momento predomina no ocidente a idéia da organização das cidades a partir da construção de espaços separados para categorias de habitantes vistos como improdutivos: loucos, crianças, criminosos, doentes, mendigos. E que a seca de 1915 coincide com o esforço de embelezamento da cidade de Fortaleza que, a essa altura, já contava com praças e ruas calçadas, geometricamente planejadas, parques e jardins, bondes, asilos e hospitais, além do teatro José de Alencar. E com uma população que se queria civilizada e moderna e que portanto contrastava violentamente com a multidão faminta vinda do sertão. Fonte: https://www.google.com/search? newwindow=1&site=&tbm=isch&source=hp&biw=1600&bih=719&q=fortaleza+1915&oq=fortaleza+1915 A decisão de isolar os recém-chegados corresponde, pois, à única maneira possível na época de evitar-se a desordem e o pânico, permitindo que os habitantes da 8 cidade persistissem em seu caminho rumo ao que era considerado como o progresso e a civilização. Assim, o Presidente do Estado (o título de Governador do Estado só será adotado depois de 1930), Coronel Benjamim Barroso, organiza o Campo de Concentração numa vasta e arborizada área a oeste da Fortaleza de então, na região chamada Alagadiço, hoje bairro Otávio Bonfim. Os retirantes aí construíam toscos barracos ou protegiam-se do sol simplesmente sob a copa das árvores. Pretendia-se que, ali reunidos, pudessem mais facilmente receber alimentação, cuidados sanitários e ofertas de trabalho. Logo após maio de 1915, a população do campo já ultrapassava 3000 pessoas, que vinham de regiões longínquas a pé ou pela estrada de ferro Rede de Viação Cearense (até 1909, Estrada de Ferro de Baturité), chegando a abrigar 8000 pessoas. Da Estação Central ou Estação Fortaleza ( a partir de 1946, Estação João Felipe) em Fortaleza, os retirantes eram encaminhados diretamente ao Campo de Concentração, sem passar pela cidade ( o atual centro histórico) e sem misturar-se a seus cidadãos. O caráter de exclusão e de reificação a que são submetidos os retirantes não escapa entretanto aos citadinos que logo apelidam o Campo de “curral”. É também a partir desse momento que o emigrante ou “retirante” passa a ser chamado de “flagelado”, indicado dessa forma como vítima, como aquele que sofre um mal vindo do exterior, da ordem do imponderável. BOX DE Atenção A palavra “Reificação” quer dizer “coisificação”, palavra criada a partir da palavra latina res, rei, que significa “coisa” FIM do Box de Atenção 9 Fonte: http://www.google.fr/ No entanto o Estado, por falta de recursos, não foi capaz de garantir as condições de higiene da população do Campo. A imundície era enorme, o mau cheiro intenso e as doenças que ali grassavam foram responsáveis por uma infinidade de mortes, principalmente de crianças. Por outro lado, também a moralidade foi atacada pelas iníquas condições de vida dos retirantes e não era raro que crianças esquálidas fossem alugadas por suas mães para servirem à mendicância. Fonte: https://www.google.com/search? newwindow=1&site=&tbm=isch&source=hp&biw=1600&bih=719&q=CEARA+1915&oq=CEARA+1915 10 ATIVIDADE 1- Consulte Google Maps e verifique a trajetória feita a pé por Chico Bento e sua família pelo Estado do Ceará, de Quixada a Acarape e depois, de trem, dessa cidade a Fortaleza. 2- Comente, destacando as relações de trabalho vigentes no Ceará de 1915, o trecho abaixo: “Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria esquelética e esfarrapada do retirante: - Então, compadre, que foi isso? A velha largou você? - Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fIquei sem ter o que fazer. A morrer de fome lá, antes andando... O delegado quase deixou cair o cachimbo, num assombro: - Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele gadão todinho, sem mais pra quê! - Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana... O delegado se exaltou, gesticulando o cachimbo: - Aquela velha é uma desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que ela poupa ainda há de lhe servir pra comer em cima duma cama... Você não se lembra por que foi que eu saí das Aroeiras, compadre? Me convidou para abrir uma bodega, que me dava mundos e fundos, garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a ela pelo custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me dava interesse de qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo, liquidei como pude o que possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje não me arrependi... Mas você ficou, foi-se fiar nesse negócio de madrinha Maroca, teve o pago...” O romance 11 Fonte: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-552052847-o-quinze-rachel-de-queiroz-3-edico-_JM Alfredo Bosi afirma que “confrontados com A Bagaceira, esses livros (o autor refere-se aos dois primeiros romances de Rachel de Queirós, O Quinze e João Miguel) podem dizer-se mais próximos do ideal neorrealista que presidiria à narrativa social do Nordeste. Os períodos são, em geral, menos “literários, breves, colados à transcrição dos atos e dos acontecimentos. E o diálogo é coerente, lembrando às vezes a novelística popular que, mais tarde, atrairia a escritora ao passar do romance para o teatro de raízes regionais e folclóricas (Lampião, A Beata Maria do Egito).” (BOSI, 1994, p.396). De fato, publicado em 1930, por uma moça de 20 anos de idade, o romance apresenta qualidades que seriam esperadas na produção de um veterano, aliando simplicidade verbal e densidade dramática. Ambienta-se entre o sertão cearense e a cidade de Fortaleza durante o período da grande seca de 1915 e entrelaça dois conflitos principais: o primeiro entre a família de retirantes e as circunstâncias físicas, econômicas, sociais e políticas que têm de enfrentar em sua retirada do sertão; o segundo, entre a professora Conceição e Vicente, seu primo sertanejo. Além de constituir um libelo contra a situação degradante em que se encontraram os retirantes nessa 12 ocasião, pode ser lido como uma análise da situaçãosocial do momento, em que conviviam, sem se misturarem, duas classes sociais distintas, a dos proprietários e a dos “sem-terra” numa sociedade agropecuária e latifundiária. Além disso, o romance apresenta e problematiza a situação da mulher letrada numa sociedade patriarcal, de base rural. Seus vinte e seis curtos capítulos fazem alternar o olhar do leitor entre a família de retirantes e seus problemas de subsistência e os problemas emocionais e mesmo existenciais da professora Conceição. Para uma melhor análise do romance vamos considerá-lo a partir de seus espaços e seus personagens. 1- Os espaços: São basicamente três os espaços convocados no romance, ligados a suas três figuras centrais: o espaço dos fazendeiros, o espaço dos retirantes, o espaço da cidade. O espaço dos fazendeiros abre o romance. Presenciamos o fim de um serão do mês de março numa das fazendas da região. A cultura popular se faz presente desde a primeira frase, que apresenta Dona Inácia beijando a medalhinha de São José: “”Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém.” Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a: - E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena... Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes: - Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.” 13 Ensina Câmara Cascudo que o dia de São José, 19 de março, é considerado pela cultura popular como um ponto de referência para a previsão do “inverno”, isto é, a estação das chuvas. Se chove no dia de São José, o inverno é quase certo. “S. José seco nublado, chiviscando ou molhado dá ao agricultor elementos de cálculo na sua meteorologia tradicional.” (CASCUDO, 1984, p. 416) O mesmo capítulo mostra conforto simples da casa-grande da fazenda, com sua mesa posta com o café com leite da noite, sua lamparina de óleo, seu relógio cuco , os grandes travesseiros da grande cama onde dorme Conceição e sua biblioteca, que contém livros em francês, romances, como os de Sienkiewicz, autor do célebre Quo Vadis (de onde vêm a maioria das “Lígias” e “Marcus Vinícius” brasileiros). Da biblioteca da fazenda no entanto parecem constar os romances do autor sobre a história da Polônia (Par le fer et par le feu1, Le Déluge et Messire Wolodyjowski). Pode-se notar que a casa possui um dormitório para cada uma das mulheres, além do quarto que serve de oratório e da sala. Observem-se detalhes que demonstram zelo na arrumação da mesa tais como a toalha engomada e o abafador do bule. O segundo capítulo mostra a vida da fazenda de gado de propriedade da família de Vicente. Este trabalha junto com seus empregados. Mas porque não quis estudar, porque ama a vida rural, por escolha, enfim. Seu irmão é doutor, pertence à maçonaria, é casado com uma moça de Fortaleza e é promotor numa pequena cidade, enquanto aguarda promoção para a capital. Sua casa é tão ou mais confortável que a de Dona Inácia. O terceiro capítulo apresentará Chico Bento, o vaqueiro da fazenda Aroeiras, cuja sorte já fora antecipada no capítulo anterior: “- Por falar em deixar morrer... o compadre já soube que a Dona Maroca das Aroeiras deu ordens pra, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral? E o pessoal dela que ganhe omundo... Não tem mais serviço pra ninguém.” O capítulo inicia-se pois depois do dia de São José (uma semana depois, saberemos mais tarde), quando Chico Bento abre a porteira e solta as reses que ficam vagando sem rumo. 14 Destinadas à morte certa. A saída do gado prenuncia sua própria saída, a pé com sua família, pelo sertão, em direção à cidade de Fortaleza (o Ceará) para de lá dirigir-se à Amazônia: “Vicente continuou: - Do que tenho pena é do vaqueiro dela... Pobre do Chico Bento, ter de ganhar o mundo num tempo destes, com tanta família!... - Ele já está fazendo a trouxa. Diz que vai pro Ceará e de lá embora pro Norte... » Sua casa é de taipa, negra, velha, o espaço que corresponderia a uma varanda de folhas, coberto de folhas secas. No interior descreve-se a prateleira rústica, a parede marcada pela fumaça da lamparina (que não marca as paredes da casa de Dona Inácia) e a redinha remendada onde dorme um dos meninos (cap. seguinte). O capítulo termina com a brincadeira bruta do filho mais velho, Josias, que atormenta o cachorro que dorme. Menino e cachorro sofrem a rudeza de Chico Bento, angustiado com a situação. No capítulo seguinte, Alice, a irmã caçula de Vicente, condói-se com a agonia da ovelha e seu desejo de receber a pele da mesma é acolhido com carinho pelo proprietário, que só teme prejuízos materiais. Como se as diferentes condições sociais condicionassem os espíritos dos personagens. No capítulo 5 vê-se o negócio feito entre Vicente e Chico Bento. Este estima-se prejudicado, enquanto Vicente, além de considerar tê-lo ajudado, avalia ter feito um bom negócio, comprando gado de raça por bom preço. Observe-se que, mesmo em plena seca, enquanto Chico Bento mal tem o que comer, em casa de Vicente há mesa posta e a família faz as refeições reunida. Os capítulos 6 e 7 mostram as diferentes viagens à capital que fazem os ricos e os pobres, os primeiros de trem, levando plantas, malas com os santos, o rosário nas mãos. O gado de Dona Inácia fora para umas terras da mesma proprietária, na serra de Baturité, as poucas cabeças de gado de Chico Bento tinham sido vendidas a Vicente para permitir sua viagem a pé, três adultos e cinco crianças, o menor no lombo do burro obtido na negociação. Romance neorealista, O Quinze, por sua força descritiva, pode ser lido, sem que se conheça seu 15 cenário. No entanto, sua força aumenta em muito se sua leitura se faz acompanhada de um mapa da região, por meio do qual se possa visualizar o caminho feito a pé pela família de retirantes, de Quixadá, nas imediações da qual se situa a fazenda assolada pela seca até Acarape e de lá, de trem até Fortaleza. ATIVIDADE Procure no mapa (Google Maps) de Fortaleza o itinerário da estação ferroviaria de Fortaleza até o bairro de Otavio Bonfim, nome atual da região então denominada Alagadiço, onde ficava o Campo de Concentração, o centro histórico de Fortaleza à direita. Segundo o professor e escritor cearense Niraz (Miguel Angelo de Azevedo), Rachel de Queiroz se engana ao escrever que os retirantes de O Quinze desembarcaram na estação do Matadouro pois na época em que se passa o romance não havia nem linha férrea na localidade, muito menos estação ou mesmo parada. A linha férrea só chega à localidade em 1917, e a parada só foi criada em 30 de novembro de 1922, primeiramente com o nome de Quilômetro 3 e posteriormente Matadouro. Em 1926 a estação ali construída recebeu o nome de Otávio Bonfim, que conserva até hoje. BOX DE CURIOSIDADE Graças à intermediação do professor Adriano Espínola, o professor Niraz foi consultado, por email, por Eliana Bueno-Ribeiro, que agradece a ambos. FIM DO BOX DE CURIOSIDADE 16 Observe-se que ao longo do romance o espaço de sociabilidade de Conceição e Vicente, que são primos, só faz aumentar: os primos se frequentam, amigos se aproximam, faz-se um casamento, nasce uma criança. Conceição não se casa porque não quer. O capital social dos proprietários não é atingido pela seca. Ao contrário, o espaço de sociabilidade de Chico Bento retrai-se: primeiro é a cunhada que fica pelo caminho, na estação do Castroe veremos mais tarde que ela cai na prostituição e não tem coragem de voltar à fazenda, mesmo quando a fazendeira lhe dá o suficiente para a passagem de volta. Depois é a perda de três dos cinco filhos, provocada pela fome: o primeiro envenena-se com uma raiz, o segundo, como a tia, vê afrouxarem-se os laços de solidariedade familiar e foge, o terceiro é “dado” a Conceição quando a família, finalmente, embarca para São Paulo. O capital social de Chico não é no entanto nulo pois é graças ao mesmo que consegue ele as passagens de trem de Acarape a Fortaleza e, já no Campo de Concentração, as passagens para São Paulo, por intermédio de Conceição. O rico vocabulário do romance dá relevo aos três espaços e merece atenção especial: um dicionário deve ser constantemente consultado durante a leitura. BOX DA CURIOSIDADE A expressão “matar o bicho”, significando tomar em jejum um copo de bebida alcoólica, é uma transposição da expressão francesa “tuer le ver”, literalmente “matar o verme”. Tal expressão advém de uma história popular, do século XVI, segundo a qual sobre o coração de uma mulher que morrera apesar de todos os medicamentos ingeridos, achou-se um verme que, no entanto não resistiu a um pouco de vinho que lhe foi jogado em cima. A partir de então passou-se a considerar que um pouco de bebida alcoólica em jejum mataria os vermes que por acaso se tivessem alojado no organismo durante a noite. 17 FIM DO BOX DA CURIOSIDADE 2- Os personagens Limitaremos nossa análise aos três personagens principais, a saber,Vicente, Chico Bento e, finalmente, Conceição. Vicente é a figura do proprietário rural desenhada a partir do cânone romântico: forte, belo, rústico mas não rude, delicado, atento a seus próprios sentimentos e sobretudo branco, trabalhando no que é seu, em acordo com a natureza, compreendendo-a, traduzindo-a. Seu trabalho no campo põe em relevo seu aspecto viril, sua masculinidade bela e “natural” , sem ademanes, “verdadeira”, “sincera”, contrastando com a elegância sofisticada de seu irmão e seus amigos: “...um animal superior e forte, ciente dessa sua força, desdenhosamente ignorante das sutilezas em que se engalfinham os outros, amesquinhados de intrigar, amarelecidos de tresler...” O texto apresenta-o em plena faina, distribuindo a rama verde ao gado. Sua permanência na fazenda corresponde a uma escolha pessoal que, no entanto, mostra-se providencial aos negócios da família. Não só dirige conscienciosamente a propriedade como, durante a seca, é graças a sua dedicação que não se perde todo o gado. Patrão consciente, assim como não abandona seu gado à morte, abrindo as porteiras como fez a vizinha, não abandona ele seus trabalhadores. E mais que isso, dá o exemplo de resistência, permanecendo na fazenda, mesmo se seus familiares fogem para a cidade, enquanto as famílias dos moradores têm de aguentar a seca. Trabalhador e hábil no trato com a propriedade, esta parece fazer jus a seu esforço, trazendo-lhe grande lucro, tanto que, ao referir-se ao irmão doutor, não deixa de fazer menção ao pequeno ordenado que aquele aufere. Ao tirar o máximo de uma propriedade 18 no sertão e conseguir resistir à seca, parece coordenar-se com a natureza, compreendendo-a e sendo por ela, de certo modo, poupado. Sua relação com Conceição obedece igualmente ao código romântico. Admira ele a prima que é considerada superior às outras por sua cultura e instrução. Admira-a também por constatar que ela não o considera inferior, antes tratando-o com afeição especial, compreendendo-o. Como um Peri do sertão, o gigante da natureza é atraído pela Ceci moderna, a professora representante da civilização. Natureza e cultura parecem assim completar-se, dentro do código do amor romântico. A obediência ao código romântico na construção de sua figura termina, no entanto, aí. Pois os demais traços que compõem esse personagem aproximam-no o mais possível do código realista. Assim, embora se compadeça da sorte de Chico Bento, Vicente com ele negocia sem dar-lhe nenhuma vantagem, ao contrário, certificando-se de que faz um bom negócio. E moradores de suas terras sao forçados a deixá-la durante a seca, conforme se pode ler no capítulo em que se narra o fim do flagelo. Chico Bento é o típico sertanejo sem terra. Como já se disse, no texto é ele apresentado ao abrir a porteira aos bois, destinados à morte no sertão sem água nem vegetação. A boiada expulsa do curral é clara metáfora de sua família, com cuja sorte ninguém se preocupa, nem Vicente. Uma família que não espera ajuda de ninguém, salvo, vagamente, do governo. Uma família apresentada mais de uma vez como animalizada. Ao longo da viagem a família de Chico Bento vai perdendo marcas culturais e se aproximando cada vez mais da natureza. Não se lava, os corpos vão ganhando uma crosta de sujeira; não lava mais o alimento, nem mesmo os intestinos da cabra que lhes são dados como único alimento; o sentimento familiar, como já se disse, vai-se esgarçando frente às necessidades naturais não resolvidas: Mocinha deixa a família e acaba se prostituindo, Pedro foge, Josias se envenena numa tentativa de saciar a fome. A cena do envenenamento e morte de Josias ilustra bem tal situação. De fato 19 não devia ele ignorar a interdição de comer crua a raiz que encontrara. No entanto, a fome faz com que ele não somente a coma mas coma escondido, sozinho, sem pensar em dividir com a família a raiz encontrada. Não se pode deixar de comparar essa sequência narrativa com a que nos apresenta, na fazenda de Vicente, a morte da ovelha que igualmente, movida pela fome, comera salsa, único vegetal presente no pasto. Ao longo da viagem Chico Bento vai perdendo a confiança que fabricara para si ao deixar a fazenda e ao chegar a Acarape já tem um modo “curvo e quase trôpego”. Conceição quando o encontra no Campo de Concentração lembra-se dele chegando a casa rijo e encourado, sua mulher grávida servindo o café às visitas em tigelinhas de louça. E o capítulo XV acaba com sua imagem de homem vencido, que arrasta os pés “...curvado, trêmulo, com a lata na mão estendida, habituado já ao gesto, esperando a esmola.” E é ainda trôpego, embora lutando por manter viva a esperança que embarca ele com a família que lhe resta para São Paulo. De empregado que chega com sua roupa de trabalho bem tratada (quando, antes de partir, a vende não tem ela nenhum rasgão) e vê sua mulher grávida servindo café às visitas, desce ele em menos de um mês a quase mendigo no Campo de Concentração. Se sua personagem é traçada a partir do modelo realista, não lhe falta o toque romântico. Assim é que a uma supostamente atávica generosidade sertaneja faz com que ele divida com desconhecidos a pouca comida de que dispõe para a viagem: “E o bode sumiu-se todo... Cordulina assustou-se: - Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre...” Do mesmo modo, um também supostamente atávico orgulho sertanejo o impede de mendigar: “E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido... mas a 20 língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante.” O leitor pergunta-se também por que não vendera ele a Vicente as reses que a proprietária da fazenda Aroeiras. Ou por que não as matara, preparando-as para sua viagem, como o fizera com sua própria criação. Realismo? Utilizaçãopela autora do código romântico? BOX MULTIMIDIA Para a compreensão da escolha de São Paulo como destino final da família de retirantes, ver CAFÉ, AÇÚCAR E TRABALHO TEMPORÁRIO EM SÃO PAULO (1888-1915), de Cláudia Alessandra Tessari. Fonte: http://www.unifal-mg.edu.br/economia/sites/default/files/economia/NEheEP/2013_09_tessari_trabalho_temporario_cafe_cana.pdf FIM DO BOX MULTIMIDIA Finalmente chegamos à personagem- chave do romance: Conceição. A moça professora é o fio condutor do romance. É com ela que tanto se inicia quanto termina o romance. Sua superioridade frente aos demais advém não apenas de seu diploma e da relativa independência que lhe dá o exercício de uma profissão mas também do fato de ser órfã de mãe e criada por uma avó de nível intelectual abaixo do seu. Não tendo mãe, nem se falando em seu pai, Conceição não está sujeita a nenhuma autoridade familiar, na medida em que a avó lhe faz todas as vontades e que, de todo modo, mora em Fortaleza, em casa de estranhos que sobre ela não têm sem nenhuma autoridade. Conceição destaca-se de seu meio também por participar de uma cultura marcada como masculina: é ela a herdeira dos livros do avô e, como ele, interessa-se não apenas por romances mas por leituras sobre outras culturas. Vê-se que tais leituras são feitas noutra língua, o francês. Pode-se considerar pois que Conceição distingue-se de seu meio, é nele 21 “uma estrangeira”, “fala uma outra língua” diferente daquela falada em seu ambiente e da qual o francês passa como metáfora. BOX de Atenção O gênero romance tem, historicamente, um público marcadamente feminino. Machado de Assis dirige-se mesmo em seus textos, a sua “cara leitora”. Assim, o fato de Conceição ler não só romances mas outros gêneros literários descola-a do grupo “feminino” e a coloca na categoria de “leitores”, sem a marca do gênero feminino, de que fazem parte, na prática, predominantemente indivíduos do sexo masculino. FIM DO BOX DA Atenção Conceição, como diz Mãe Inácia, tem “umas idéias”: gosta de ler e de estudar, não considera o casamento como o destino único da mulher, tem idéias “avançadas”, como o sionismo de Nordau, o evolucionismo de Renan e sobretudo o socialismo. Devia pois contrariar a compreensão da religião em seu meio e, como seu meio, assim como todas as sociedades das pequenas cidades da época, era estruturado em torno da religião, devia ela distinguir-se, simplesmente, da sociedade local. BOX DA Atenção Ver o Prólogo de O Guarani, de José de Alencar, em que o autor/narrador dirige-se a uma “prima”, que teria gostado de sua história e pede-lhe um romance. Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000135.pdf FIM DO BOX da ATENção Além de tudo, Conceição escreve: episodicamente faz versos e está escrevendo um livro sobre pedagogia. Isto é, não apenas escreve poesia como muitas moças mas também tem idéias próprias sobre o exercício de sua profissão e quer divulgá-las. E aparentemente não é 22 devota: na cena inicial faz ela suas tranças enquanto a avó está rezando no oratório. Decididamente, apesar de seu nome, essa Ceci/Senhora é muito diferente da imagem de Nossa Senhora da Conceição que seu primo Vicente, como um Peri sertanejo, poderia ter entrevisto na igreja. O dogma da imaculada concepção de Maria (A Imaculada Conceição) tendo sido solenemente proclamado pelo Papa Pio IX em sua bula Ineffabilis Deus, de 8 de Dezembro de 1854, muitas meninas foram, a partir dessa data, batizadas com o nome de Maria da Conceição. Essa Conceição cearense, no entanto, parece ao contrário, ter nascido com toda a marca do pecado original, ou seja, o desejo de saber e de poder, de “tornar-se Deus”, conforme se pode ler no Gênesis 3, 5-20. BOX MUTIMIDIA Gênesis, 5-20 Fonte:http://www.bibliaonline.net/biblia/?livro=1&versao=17&capitulo=3&lang=pt-BR#fragment-1 FIM DO BOX MULTIMIDIA Conceição é, pois, uma heroína realista, de certa maneira herdeira da machadiana Helena. À diferença dessa, entretanto, a quem só o favor protegia, Conceição, reúne as duas condições para que a mulher seja independente ( segundo declara Virginia Woolf em 1929) e possa escrever: ter uma renda suficiente para viver e um quarto só para si. É pois segundo esse estatuto de relativa liberdade dentro de uma sociedade rural e patriarcal que evolui Conceição nos dois níveis que apresenta o romance, o social em sentido estrito, ou seja, as relações entre as classes ou, mais genéricamente, entre pobres e ricos; e o romântico, no qual evoluirão os pares de jovens, sendo que, neste último caso, será discutida a posição da mulher na sociedade. Quanto a idéias sociais move-se ela dentro do paternalismo dos proprietários e sua cordialidade autoritária. Visita os empregados, batiza seus filhos, recebe-os como visitas em 23 sua casa. Mas não lhe passaria pela cabeça hospedá-los em sua casa da rua de São Bernardo, em Fortaleza. Dá dinheiro a Chico Bento, arranja-lhe serviço e passagens para São Paulo. Mas guarda-lhe restos de comida, não lhe passando pela cabeça recebê-lo e à família em casa para as refeições. Pede-lhe o caçula, seu afilhado mas não hesita em dizer à família que fará dele um homem, como se não fossem homens nem Chico Bento nem os dois outros meninos que com ele ficam. E com relação ao próprio Manuel, seu afilhado ( Manuel, Manduca, Duca, Duquinha), se ela não o deixa no quarto dos empregados ou o manda para a fazenda para ficar “junto com os outros”, os “moleques”, filhos dos trabalhadores, o tratamento que lhe dá, carinhoso embora, é mais de cachorrinho de estimação que de filho: “Conceição mareava o livro. Na gravura, uma moça ria, mostrando uns dentes alvíssimos. Gravemente Duquinha a fitou, num esforço de compreensão. Depois, riu-se, parecendo reconhecer alguém na figura: - Ah! a Badinha! Oi! a Badinha! Entusiasmado, agarrava com mais força o cartão, machucava-o, esfregava nele a ponta do dedo, na alegria de sua descoberta: - A Badínha! A Badínha. Conceição quis reencetar a leitura: - Pois sim! Vá-se sentar. E brinque caladinho que a Badinha quer ler.” Se o desenho de Conceição não traz grandes novidades quanto ao modelo romântico no que diz respeito a suas idéias sociais ( apesar de suas idéias teoricamente socialistas), a situação muda no que tange ao desenvolvimento romântico da personagem. Pois ao invés da esperada combinação entre natureza e cultura, a partir do modelo Peri e Ceci, temos uma Conceição que rejeita Vicente justamente por constatar a diferença de cultura existente entre eles. Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia. Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante. Ele lhe aparecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num sombrio misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote penoso 24 do cavalo, a gente pára ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um cantinho de céu... Mas volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado, escavacado de minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de redor pingando tristemente. Da primeira vez, pensa-se em passar a vida inteira naquela frescura Ennaquela paz; mas à última, sai-se com o coração pesado, curado de bucolismo por muito tempo, vendo-se na realidade como é agressiva e inconstante a natureza... Ele era bom de ouvir e de olhar, como uma bela paisagem, de quem só se exigisse beleza e cor. Mas nas horas de tempestade, de abandono, ou solidão, onde iria buscar o seguro companheiro que entende e ensina, e completa o pensamento incompleto, e discute as idéias que vem vindo, e compreende e retruca às invenções que a mente vagabunda vai criando? Pensou no esquisito casal que seria o deles, quando à noite, nos serões da fazenda, ela sublinhasse num livro querido um pensamento feliz e quisesse repartir com alguém a impressão recebida. Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmurasse um ”é” distraído por detrás do jornal... Mas naturalmente a que distância e com quanta indiferença... Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava. Já agora, o caso da Zefinha lhe parecia mesquinho e sem importância. Qualquer coisa maior se cavava entre os dois. E, cansada, foi fechando os olhos e confundindo as idéias, que aumentavam como sombras de pesadelo, e dormiu, num sono fatigado e triste, sob uma estranha impressão de estar sozinha no mundo. No início do romance, lemos seu entusiasmo com o rapaz que tanto destoava dos signos de cultura trazidos à fazenda pelo irmão ( o gramofone, a dança, os amigos, as roupas citadinas): Mal começou a dança, entrou Vicente, encourado, vermelho, com o guardapeito encarnado desenhando-lhe o busto forte e as longas perneiras ajustadas ao relevo poderoso das pernas. A Conceição, pareceu que uma rajada de saúde e de força invadia subitamente a sala, purificando-a do falsete agudo do gramofone, das reviravoltas estilizadas dos dançarinos. Mas no último capítulo, mesmo se a vemos afastar com enfado o pernóstico cortejador, Vicente aparece-lhe, por seu lado, como parte de uma paisagem, que ela aprecia mas na qual já não se sente mais completamente inserida. Vicente chegou as esporas ao cavalo, que arrancou, num grande impulso. E Conceição o viu sumir-se no nevoeiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes. 25 Como se Conceição assumisse, resignada, o sentido da citação feita pelo dentista: Vae solis, ai dos sós. ATIVIDADE O romance O Guarani, de José de Alencar, termina com os personagens Peri e Ceci sós, no meio da tempestade, unidos na adversidade e destinados pelo autor para a construção “do brasileiro”, esse filho da natureza e da cultura, da velha Europa e do Novo Mundo. Explique como Rachel de Queiroz retoma em seu romance esse mesmo par romântico e como o transforma. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1-ALENCAR, F., RIBEIRO, M.V., CARPI, L. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985. ISBN: 8521500793 2-ALENCAR, José de.Guarani; http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do? select_action=&co_obra=1843 3- ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2005 4- BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 5- CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. 6-MACHADO DE ASSIS. J.M. Helena. http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/romance/marm03.pdf 7-NEVES, Frederico de Castro e RESENDE, Maria José. Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932). Revista Brasileira de História, 1995, v.15 n° 29, PP 93-122. 8-QUEIROZ, Rachel. O Quinze. http://www.4shared.com/office/Z0XUyGJY/Rachel_de_Queiroz_-_O_Quinze__.htm Para uma visão de conjunto de sua vida e de sua obra, ver “Rachel de Queiroz - Não me Deixes"
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