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JJAANNEE PPAAIIVVAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS:: DDIIRREEIITTOO,, CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS NNiitteerróóii,, nnoovveemmbbrroo 22000055 JJAANNEE PPAAIIVVAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS:: DDIIRREEIITTOO,, CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS TTeessee aapprreesseennttaaddaa aaoo PPrrooggrraammaa ddee PPóóss-- ggrraadduuaaççããoo eemm EEdduuccaaççããoo ddaa UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall FFlluummiinneennssee,, ccoommoo rreeqquuiissiittoo àà oobbtteennççããoo ddoo ttííttuulloo ddee DDoouuttoorr.. OOrriieennttaaddoorr:: PPrrooff.. DDrr.. OOssmmaarr FFáávveerroo NNiitteerróóii,, nnoovveemmbbrroo 22000055 P149 Paiva, Jane. Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos / Jane Paiva. – 2005. 480 f. Orientador: Osmar Fávero. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2005. Bibliografia: f. 462-477. 1. Educação de jovens e adultos. 2. Alfabetização de adultos. 3. Direito à educação. I. Fávero, Osmar. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CCDDDD 337744 JJAANNEE PPAAIIVVAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS:: DDIIRREEIITTOO,, CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS NNiitteerróóii,, 1111 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000055.. PPrrooffªª.. DDrrªª.. NNiillddaa AAllvveess –– UUEERRJJ PPrrooff.. DDrr.. OOssmmaarr FFáávveerroo -- UUFFFF PPrrooff.. DDrr.. PPaauulloo CCééssaarr CCaarrrraannoo -- UUFFFF PPrrooff.. DDrrªª.. SSôônniiaa MMaarriiaa RRuummmmeerrtt –– UUFFFF PPrrooff.. DDrr.. TTiimmootthhyy DDeenniiss IIrreellaanndd –– UUFFPPBB PPaarraa VViiccttoorr HHuuggoo,, nnoossssoo pprroojjeettoo ddee vviiddaa,, aa qquueemm aass ooppoorrttuunniiddaaddeess ccoomm aa ccuullttuurraa eessccrriittaa ddeessccoorrttiinnaarraamm pprreeccoocceemmeennttee aa lleeiittuurraa ddaa ppaallaavvrraa,, aammpplliiaannddoo ooss hhoorriizzoonntteess ddaa lleeiittuurraa ddoo mmuunnddoo,, ee ccoomm qquueemm tteennhhoo aapprreennddiiddoo--eennssiinnaaddoo aa vviivveerr oo pprreesseennttee,, rreeeennccaannttaannddoo--oo.. AA JJoossiimmaarr,, cciiddaaddããoo ssíímmbboolloo ddoo qquuee aass ooppoorrttuunniiddaaddeess eedduuccaacciioonnaaiiss eemm qquuaallqquueerr tteemmppoo ppooddeemm ffaazzeerr ccoomm uumm úúnniiccoo hhoommeemm —— rraazzããoo ssuuffiicciieennttee ppaarraa aaccrreeddiittaarr nnoo ddiirreeiittoo àà eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss ppaarraa ttooddooss ooss hhoommeennss ee mmuullhheerreess.. AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS Muitos são os agradecimentos a fazer, por ocasião do término deste trabalho. Reconhecer aqueles que me ajudaram a realizá-lo, mesmo sem saber, e generosamente dizer obrigada!, compartilhando as alegrias — muito maiores que as dores — de chegar até aqui. Ao meu orientador, Prof. Osmar Fávero, pela confiança em mim e no tema — presença e firmeza na condução dessa pesquisa. Pela minha disciplina com a vida intelectual, devo começar por agradecer à UERJ, na figura de meus pares e direções, que compreenderam meus limites em algumas negativas de que precisei lançar mão, e nos tempos roubados em que passei dedicada às atividades da pesquisa, superando a falta de condições para o doutorado, realizado em concomitância com todas as minhas atividades acadêmicas. Por esse mesmo critério, sou grata aos meus alunos, em especial a minhas bolsistas, com quem o diálogo permanente formou-me mais que a elas. Grata aos espaços conquistados de trabalho e à confiança em mim depositada, principalmente de Sandra Sales e Fátima Lobato, parceiras de muitas horas na formação continuada de professores de EJA, com quem dividi a coordenação de projetos, as apostas em um coletivo interinstitucional de formadores, ao qual também, reverenciadamente, agradeço os múltiplos aprendizados, os reconhecimentos, as cumplicidades. Grata a Pablo Gentili, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, que confiou no Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (NEJA) e valorizou nossos empreendimentos. Na esfera pessoal, muitas gratidões: à minha mãe, que soube me esperar muitas vezes, sem que fosse possível chegar até ela, mas presente no seu cuidado à distância com a minha saúde e minhas muitas horas de trabalho diante do computador. Ao Padilha, companheiro leal que enfrenta, pela segunda vez, a maratona da pós-graduação, esperando/contribuindo a/para a conclusão, paciente e impacientemente. À Jéssica, nas muitas apostas que me perpetuam. À Fabrízia, ousadia e desafio permanentes. Ao Beto, mano, isso basta. À minha sobrinha Vanessa, que me surpreende sempre, com quem com-partilhei pedaços de um tempo comum de estudos, na sua conquista do título de Mestre. À Ira, companheira de partilha de muitos e preciosos momentos pessoais e profissionais, vivenciando criativamente a prática do trabalho coletivo e o exercício da democracia nesse fazer. À banca, mais que examinadores, companheiros de muitas lides e percursos comuns: pela leitura atenta, pela escuta acurada, pelo brilho e generosidade dos comentários e questionamentos. Sou-lhes grata. A todos os que colaboraram com essa pesquisa respondendo a entrevistas, questionários, disponibilizando materiais, fazendo-me participar de seus projetos de trabalho, agora e há muito tempo sem saber o quanto me ajudariam, meu obrigada sincero pelos subsídios, pelos aprendizados, pelo exercício da construção coletiva. Aos companheiros do Fórum EJA/RJ que, como eu, têm permanecido vigilantes, nesses quase dez anos de embates pela educação como direito, redescobrindo e multiplicando as forças dos movimentos da sociedade e reinventando a ação coletiva. Nas pessoas de Eliane Andrade —a Lili —, de Alex Aguiar e de Aline Dantas, simbolizo minha gratidão. À Edna, companheira mais que constante, com quem partilhei um momento comum do doutorado, apostando nos mesmos sonhos, nas mesmas esperas, no encontro e consolidação de respeito e amizade. Obrigada, companheira, pelo que pudemos ser, juntas. Por fim, não um agradecimento, mas o reconhecimento do quanto a esfera pública possibilitou-me a formação, desde a escola primária, até este curso de doutoramento. Porque reconheço o que isto significa de privilégio na sociedade excludente em que vivemos, sinto- me responsável por devolver o que recebi, em serviço à educação de jovens e adultos. Para que eu tivesse esse direito, uma grande parte da população não chegou sequer a ser alfabetizada. A luta de minha vida continuará sem titubeações por essas escolhas, pelas quais tenho feito apostas éticas, rigorosas e trabalhado incansavelmente, sem que a vida seja, por isso, fardo, ou culpa. Mas seguirá, como risco que me desafiará ainda por muito tempo, todo que eu puder, enquanto houver um único que não saiba ler e escrever como eu. Aos brasileiros que não me sabendo aqui neste momento, nem sabendo ler e escrever, possibilitam e são razão suficiente para que eu não os abandone, mas siga em luta pelo direito à educação para todos. [...] os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem — que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens — ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: [..]. (BOBBIO, 1992, p. 6). A realidade não passa de uma tradução redutora da enormidade do mundo, e o louco é aquele quenão se adapta a essa linguagem. (MONTERO, 2004, p. 138-139). [...] Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam. (PAULO FREIRE, 1996, p. 129-130). Porque os seres humanos não apenas são menores que seus sonhos [...]. A imaginação sem freio é como um raio no meio da noite: abrasa mas ilumina o mundo. Enquanto dura essa faísca deslumbrante, tentamos vislumbrar a totalidade [...]. Na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende as velas. (MONTERO, 2004, p. 141). RREESSUUMMOO Os programas e projetos na área da educação de jovens e adultos, na contemporaneidade, vêm revelando formas de compreender e apreender sentidos e necessidades dos variados públicos que os buscam, intentando fazer cumprir, mais do que a perspectiva do aprender por toda a vida, o direito à educação sistematicamente negado a tantos na população brasileira. Com essa premissa inicial, a pesquisa escavou os modos como as propostas de atendimento de seis entidades — públicas, não-governamentais, de movimento social e do Sistema S — têm enunciado as formulações na área e realizado práticas, visando a compreendê-las na história política nacional e internacional da educação de jovens e adultos, e as conexões, sentidos, nexos, articulações e imbricamentos que se produzem entre elas, para além dos limites das entidades — no complexo tecido social. Movida pela perspectiva do direito, investiguei em busca de penetrar os diferentes níveis de realidade, assim possibilitando fazer emergir as produções subjacentes aos programas e projetos, com vista a cartografar a complexidade com que se fazem prática, evidenciando e visibilizando elementos constituintes e instituidores de suas concepções. Palavras-chave: educação de jovens e adultos – direito à educação – concepções – alfabetização AABBSSTTRRAACCTT At present, programs and projects in the area of Youth and Adult Education have been unveiling different ways of understanding and apprehending the meanings and needs which emerge in the various groups who are in search of such educational proposals, less so with life-long education in perspective than to assert their right to education, a right that has systematically been denied to so many Brazilians. Based on this initial premise, this study has explored the different ways in which six organizations have formally stated their postulates as well as carried out their practical work in this area. Such organizations are characterized by being public, non-governmental, and pertaining to the Social Movement and the S System. The aim of the study is to comprehend such postulates and practices, in the light of the national and international youth and adult educational policies, as well as the interconnections, meanings, nexus, articulations and overlappings which are produced within and beyond their dominions, more precisely inside the complex social network. Impelled by a view centered on rights, this investigation has attempted to gain access to the different layers of reality, so as to make it possible for the productions underlying those programs and projects to emerge, for the sake of mapping out the complexity of that practice, thus identifying and giving visibility to the elements which are constitutive and institutive of their conceptions. Key-words: Youth and Adult Education - right to education – conceptions - literacy SSUUMMÁÁRRIIOO 1. INTRODUÇÃO: A ARQUEOLOGIA DA PESQUISA.....................................................................11 2. COMO CIGANA: O PERCURSO METODOLÓGICO....................................................................25 2.1 Questões da pesquisa................................................................................................................37 2.2 De critérios, opções, escolhas...................................................................................................40 3. CAROS CONCEITOS: DIREITO À EDUCAÇÃO COMO BASE DA DEMOCRACIA........................46 3.1 Premissas iniciais para pensar o conceito de direito à educação: contribuições de educadores brasileiros.................................................................................................................................46 3.2 Perspectiva histórica do direito e imbricações com a perspectiva democrática.......................53 3.3 Direito à educação na escola brasileira....................................................................................70 4. TRABALHOS DE HÉRCULES: OS SENTIDOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NAS CONFERÊNCIAS E ACORDOS INTERNACIONAIS.................................................................................................76 4.1 Onde tudo começou: Dinamarca, Elsinore, 1949.....................................................................77 4.2 II Conferência Internacional de Educação de Adultos — Montréal, Canadá, 21 a 31 de agosto de 1960.....................................................................................................................................78 4.3 III Conferência Internacional – Tóquio – 25 de julho a 7 de agosto 1972...............................82 4.4 Conferência Geral Unesco 19ª Reunião — Nairóbi, 26 a 30 de novembro de 1976...............86 4.5 IV Conferência Internacional sobre Educação de Adultos – Paris, 19-29 de março de 1985..88 4.6 Aportes internacionais protagonizados pela Unesco, revisitados até a metade da década de 1990..........................................................................................................................................91 4.7 V Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFINTEA – Hamburgo, Alemanha, julho 1997 — Aprendizagem de adultos, uma chave para o século XXI............105 4.8 Seminário Nacional de Educação de Pessoas Jovens e Adultas Pós-CONFINTEA..............128 4.9 O Marco de Ação de Dacar — reafirmando compromissos de 1990, reeditando o mito de Sísifo em 2000........................................................................................................................129 4.10 Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe 2002-2017.............................133 4.11 A presença da sociedade civil organizada – o CEAAL..........................................................137 4.12 A sociedade civil em rede — o Pronunciamento Latino-americano......................................138 4.13 Conferência de seguimento à CONFINTEA V: balanço seis anos pós-Hamburgo — Bangcoc, setembro 2003........................................................................................................................141 4.14 Grupo de alto nível de educação para todos — Declaração de Brasília.................................147 4.15 Algumas conquistas de Hércules............................................................................................147 5. O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA TODOS NO BRASIL: CONQUISTAS HISTÓRICAS E PERSPECTIVAS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.......................................................149 5.1 Evocando o mito de Sísifo: direito formal e realidade social.................................................149 5.2 Tensões conceituais e sentido do direito à EJA.....................................................................160 5.3 O poder da sociedade na constituição do direito à educação de jovens e adultos..................165 5.4 EJA em tempos autoritários — onde o direito?.....................................................................170 5.5 A luta pelo direito à educação na Constituição Cidadã..........................................................179 5.6 Direito à educação na década de 1990...................................................................................1856. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DA BAHIA — DAS VIVÊNCIAS ÀS COMPREENSÕES................................................210 6.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos....................................................................................................213 6.2 Concepção de EJA na rede estadual: artes de fazer...............................................................229 6.3 Emergências do mergulhador: compreensões vêm à tona.....................................................263 7. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – PEJA: EM CENA, O PÚBLICO JOVEM....................................................................................................................................267 7.1 O útero político, social e teórico do Programa de Educação Juvenil – PEJ...........................269 7.2 Do útero à luz do dia: nascimento do PDT desfraldando a educação como bandeira............275 7.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos do PEJ........................................................................................280 7.4 Revelações recentes do PEJ: artes de fazer a mudança de concepções..................................289 7.5 “Deixem os velhinhos morrerem em paz! Deixem os velhinhos morrerem em paz!” Resistir é preciso....................................................................................................................................310 8. PROGRAMA SESI EDUCAÇÃO DO TRABALHADOR — TRAVESSIAS...................................313 8.1 Programa SESI Educação do Trabalhador — concepções e direito para a classe-que-vive-do- trabalho...................................................................................................................................323 8.2 A rede SESI de educação e o projeto pedagógico..................................................................330 8.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos no Programa SESI Educação do Trabalhador..............................................................................................332 8.4 Apreensões e significados para o Programa Brasil Alfabetizado: novas formas de parceria?.................................................................................................................................340 8.5 Algumas reflexões sobre o cenário de EJA e a ação do SESI na esfera pública....................344 9. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DO SESC: A PROPOSTA PEDAGÓGICA E O PROGRAMA SESC LER — A EXPERIÊNCIA “QUE NOS PASSA”....................................347 9.1 A proposta pedagógica da educação de jovens e adultos — concepções e direito para a classe- que-vive-do-trabalho..............................................................................................................349 9.2 A proposta pedagógica do Projeto SESC Ler — ação/concepção de alfabetização..............358 9.3 A experiência que me acontece: SESC Ler em parceria com o Programa Brasil Alfabetizado no interior do Piauí.................................................................................................................371 10. “O LATIFÚNDIO DO CONHECIMENTO SE TORNOU ROÇA COLETIVA” – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ALFABETIZAÇÃO NO MST................................................................381 10.1 A pesquisa nacional da educação na reforma agrária – PNERA: dados que se somam à compreensão da educação do campo.....................................................................................382 10.2 O movimento social fez 20 anos e atinge a maioridade em 2005..........................................386 10.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos na proposta pedagógica do MST para o trabalhador do campo.................................................................393 10.4 “Tirando a viseira”.................................................................................................................416 11. PROGRAMA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA: BENEVOLÊNCIA DO ESTADO EMERGINDO NA ESFERA PÚBLICA?..................................................................................................................419 11.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em documentos............................................................................................................................428 11.2 Concepção de EJA e de alfabetização no PAS......................................................................431 11.3 Algumas indicações para repensar a ação do PAS na esfera pública....................................445 12. TRAMANDO CONCEPÇÕES E SENTIDOS PARA REDIZER O DIREITO À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.............................................................................................................................444 12.1 Perspectivas internacionais do direito....................................................................................445 12.2 Parcerias e financiamentos.....................................................................................................447 12.3 Os fóruns — tecidos conjuntivos constituem redes de projetos.............................................449 12.4 Direito à educação...................................................................................................................451 12.5 Presença freireana...................................................................................................................453 12.6 Sucesso e continuidade na EJA...............................................................................................456 12.7 Concepções de formação continuada de professores..............................................................457 12.8 Sujeitos alunos — foco e identidades......................................................................................458 12.9 Concepções de alfabetização...................................................................................................460 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................462 ANEXO 1...............................................................................................................................................478 ANEXO 2...............................................................................................................................................479 ANEXO 3................................................................................................................................................480 11 11.. IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO:: AA AARRQQUUEEOOLLOOGGIIAA DDAA PPEESSQQUUIISSAA Recuperar parte da história da educação de jovens e adultos (EJA), buscando fazê-la pela compreensão das negações e conquistas do direito, é trazer minha própria história como protagonista, há 28 anos, da mesma luta. Os recentes acontecimentos do mundo, antes insuspeitados, e que causam horror e insegurança, abalam em grande parte nossas convicções na humanidade, e por isso mesmo não podem estar fora das reflexões e de necessárias revisões aos sentidos que vêm sendo produzidos, porque sem dúvida os acontecimentos que acirram intolerâncias e ódios colocam em cheque mais do que os direitos sociais, se não a perspectiva mesma de direito humano, valor tão caro ao tema que escolhi discutir. Cotidianamente, a própria condição de vida que as opressões produzidas pelo sistema econômico mundial vêm determinando às populações se vêatravessada pela possibilidade de novas ameaças, em tempos inimagináveis. O refazer da história pelo direito à educação, desafia-nos, no que a “louca da casa”1 pode ser motivada, para de novo imaginar que é possível acreditar na história como possibilidade, que reinvente o direito à vida, com todas as diferenças, como iguais. Quem somos, que lugar ocupamos na história, com que direito se pode sonhar e pensar educação, pensar um mundo novo diante das fragilidades dos supostos poderosos e das resistências inventivas que criam rupturas nos esquemas seguros desses poderosos, em reação, talvez recusa, dos que se sabem vítimas e que não aceitam a morte, escolhida como modelo, passivamente, nem que para isso muitas mortes devam ser perpetradas, incluindo e iniciando pelas próprias? De que direito se falará daqui para diante: dos já interiorizados como idéia e valor, dos que se (re)criam e cerceiam liberdades atestando legítima defesa, ou será preciso confrontar o corpus teórico que se põe a nu diante de nós, testemunhas e co-protagonistas do tempo presente? A questão do direito envolve, inelutavelmente, a condição democrática, valor assumido pelas sociedades contemporâneas em processos históricos de luta e conquista da igualdade entre os seres humanos. Admitindo que é impossível pensar o direito sem pensar democracia, alerto que, no entanto, esses conceitos serão tratados pelas imbricações que entre eles se estabelecem no campo da educação de jovens e adultos, restringindo-se ao movimento de buscar as raízes históricas do que se consagrou, na contemporaneidade como direito à 1 A louca da casa é a expressão de Santa Teresa de Jesus referindo-se à imaginação, recuperada por Rosa Montero In: A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 12 educação, uma categoria de direitos de segunda geração, que comporta valores que me constituíram e dos quais ainda não sei abrir mão. Com base nesse fundamento, verifiquei que a educação de jovens e adultos ganhou oficialmente, ao longo de pouco mais de meio século, novos sentidos e concepções, produzidos no interior dos países, nas tensões sociais em tentativas de reafirmação de direitos de maiorias vistas, na sociedade desigual, como minorias. Historicamente a prática social (re)significava o campo de atuação, exigindo dos pesquisadores outras formulações para compreender e apreender esses sentidos, no âmbito da cultura de suas populações. Esses novos sentidos e concepções, acredito, estiveram sempre formulados em função da oposição ter ou não ter direito, e quando se optou pelo direito, as concepções formais deram conta de delimitar e restringir sua abrangência e magnitude. Ora, os nomes são muitos e debaixo deles: educação popular, educação de base, educação de adultos, educação fundamental, educação comunitária, educação permanente, há coisas e intenções iguais, semelhantes e até opostas. Neste emaranhado estão escondidas idéias iguais com rótulos diferentes e idéias diferentes com rótulos iguais. Há projetos e sobretudo há propósitos, muitas vezes opostos, que se cobrem das mesmas falas e, com palavras que pela superfície parecem apontar para um mesmo horizonte, procuram envolver as mesmas pessoas, prometendo a elas mudanças nas suas vidas, ou em seus mundos. (BRANDÃO, 1984, p. 15). Brandão revela-me, nesse trecho de conhecido artigo em que trata Da educação fundamental ao fundamental na educação, a confusão dos nomes que não são inocentes, mas trazem imbricados sentidos e significados de fortes marcas ideológicas, orientadoras dos caminhos e das escolhas dos projetos educativos/educacionais. Porque com ele compartilho a mesma preocupação, vivenciando também em minha prática essa confusão, assumo explicitar uma concepção provisória sobre educação de jovens e adultos para, ao longo do estudo, questioná-la e com ela dialogar à exaustão, com a finalidade de favorecer a compreensão de inevitáveis mudanças de concepção na educação de jovens e adultos, historicamente, guiada pela perspectiva do direito. Essa confusão tem sido percebida por mim em vários momentos de formação continuada de professores, quando se discutem as propostas, os projetos, as práticas. Professores quase sempre formados para lidar com crianças acabam “caindo”, no âmbito dos sistemas, em classes de jovens e adultos com pouco ou nenhum apoio ao que devem realizar. Em outros espaços, educadores populares, plenos de verdades sob o prestígio da educação popular, descrevem concepções pautadas em um tempo, em uma realidade social cujo 13 movimento da história há muito alterou, sem que as enunciações o acompanhassem. Além disso, observo um nível de discurso muitas vezes revelador de novas enunciações, mas em franco descompasso com as práticas, eivadas de “escolarismo”, praticadas sem muito saber porque fazê-las, defendendo rituais e procedimentos distantes de alguns princípios caros à educação que se pensa como direito, como possibilidade de exercitar a igualdade entre sujeitos diferentes, democraticamente. Pouco consigo reconhecer dos discursos de ambos nas práticas que realizam. Tanto professores de redes públicas, quanto educadores populares, uns e outros com diferenciados paradigmas, quase sem exceção denotam discursos e práticas que mais se afastam, do que se aproximam, deixando-me com um amargo sabor de desesperança pelo muito que ainda precisa ser feito, diante do tempo-espaço possível para fazê-lo, com vista a alterar, de fato, as relações entre sujeitos aprendizes, entre eles e a sociedade, entre eles e seu estar no mundo. Na contemporaneidade, pois, a educação de jovens e adultos continuou adquirindo novo sentido. Fruto das práticas que se vão fazendo nos espaços que educam nas sociedades, este sentido se produz em escolas, em movimentos sociais, no trabalho, nas práticas cotidianas. Para além da alfabetização, cada vez se afastou mais, nas políticas públicas, das conquistas e reconhecimento do valor da educação como base ao desenvolvimento humano, social e solidário. Mais que a alfabetização, o direito constitucional de ensino fundamental para todos, sintetizou o mínimo a que se chegara, o de aprender a ler e a escrever com autonomia e domínio suficientes para, em processo de aprendizado continuado, manter-se em condições de acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do desenvolvimento das ciências, técnicas, tecnologia; das artes, expressões, linguagens, culturas; enfim, do que o mundo, especialmente globalizado no tocante à difusão de informações, conferia à história. Ao mesmo tempo, a complexidade do mundo contemporâneo exige um aprender continuadamente, por toda a vida, ante os avanços do conhecimento e a permanente criação de códigos, linguagens, símbolos e de sua recriação diária. Exige não só o domínio do código da leitura e da escrita, mas exige também competência como leitor e escritor de seu próprio texto, de sua história, de sua passagem pelo mundo. Exige reinventar os modos de sobreviver, transformando o mundo. As mudanças no mundo do trabalho produziram multidões de desempregados e a oportunidade de emprego não existe mais para muitos, com e sem qualificação. Nesta “desordem do progresso” (BUARQUE, 1992), ricos e pobres assustam e se assustam em todas as partes do planeta, em países ricos e em países pobres. Crescem as intolerâncias e as 14 discriminações que fertilizam o ódio por desconhecer o próximo como outro. Sua presença obstrui e ameaça. A experiência da sociedade civil tem ensinado algumas importantes lições, especialmente aos poderes públicos devotos do valor do pensamento único, que esvazia de sentido as resistências e os pensamentos divergentes. A forma de pensar hegemônica, somada ao quadrode pobreza das maiorias e à perda de direitos historicamente conquistados (como é o caso do trabalho), compõem os marcos com os quais se exige propor a educação de jovens e adultos neste terceiro milênio. Muitas municipalidades, sensíveis aos anseios das pessoas, têm dado respostas para a educação de jovens e adultos e sabem que governam para todos, não devendo excluir ninguém. Estas são, de fato, as experiências mais significativas, porque vêm construindo saberes, lideranças e legitimidade política. Os profissionais participam da formulação pedagógica e sua formação continuada segue sendo um outro processo de educação de jovens e adultos. Pós-Hamburgo, duas importantes vertentes consolidam a educação de jovens e adultos: a primeira, a da escolarização, assegurando o direito à educação básica a todos os sujeitos, independente da idade, e considerando a educação como direito humano fundamental; a segunda, a da educação continuada, entendida pela exigência do aprender por toda a vida, independente da educação formal e do nível de escolaridade, o que inclui ações educativas de gênero, de etnia, de profissionalização, questões ambientais etc., assim como a formação continuada de educadores, estes também jovens e adultos em processos de aprendizagem. Como verdadeiro sentido da EJA, ressignificando os processos de aprendizagem pelos quais os sujeitos se produzem e se humanizam, ao longo de toda a vida, não mais se pode mantê-la restrita à questão da escolarização, ou da alfabetização, como foi vista por largo tempo. Assim desenvolvida, a EJA legitima-se por meio de ordenações jurídicas, de acordos, firmados e aprovados pelas instâncias de representação que conformam as normas da ordem social. Este é, sem dúvida, um dilema para o mundo contemporâneo que, mesmo em regimes produtores de exclusão, obrigatoriamente carece do fortalecimento de uma concepção de educação voltada para o regime de colaboração entre as esferas governamentais e não- governamentais, em que, necessariamente, a sensação de agravamento da exclusão social demanda do Estado políticas públicas eficazes na área social, principalmente voltadas para os setores populacionais mais vulneráveis às transformações econômicas. 15 O que tento compreender, como tese que defendo, é que as mudanças conceituais estiveram ocorrendo, por um lado, pelas formas como o Estado, a serviço dos interesses dominantes, regulou os alcances dessas concepções, traduzindo-as como direitos. Por outro lado, como as compreensões dos sujeitos de direito / não-direito envolvidos com o campo da prática, do fazer cotidiano, ressignificaram e transformaram esses conceitos, apropriando-se deles segundo necessidades, usos, interesses, costumes. Nessa tensão, observei que caros conceitos, valorizados pela questão ideológica que representaram, permaneceram conservados, passando incólumes na defesa de suas formulações, mas não resistindo a qualquer teste da prática, da experiência. E seguem assim formulados e apregoados, mas encerrando sentidos distintos dos originalmente praticados. Essas percepções me surgem com mais visibilidade quando eu, interessada em conhecer como se produzem os saberes e o conhecimento pela população, especialmente tematizado, ao longo dos anos, na educação de jovens e adultos, e a forma como os poderes “negociam” esse direito para os excluídos dele, participei, por quatro anos, da vivência de um projeto de pesquisa-ação em educação ambiental, em um bairro do município de Nova Iguaçu (Rancho Fundo, área da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro), no intuito de acompanhar moradores na organização de um espaço de luta capaz de mudar/melhorar as condições de vida no lugar. Essa organização tomou como questão primeira o lixo mas, com o tempo, muitas outras se foram pondo à frente das pessoas e — o que é mais relevante — muitos saberes e compreensões da realidade se produziram, tanto para mim, quanto para os moradores diretamente envolvidos nesse processo de organização2. A ação política dos movimentos sociais, tão cara na década de 1970, não era — e nem podia ser — mais a mesma. Os embates e o enfrentamento visíveis como estratégias de luta do projeto original eram superados pelas produções táticas (CERTEAU, 1994) dos sujeitos no cotidiano (LÉFÈBVRE, 1991), criando maneiras de fazer próprias, autônomas, não padronizadas, criativas, em que as subjetividades se revelavam inteiras, não apenas pela lógica da razão, mas admitindo outras lógicas que a mim, enquanto pesquisadora, cabia compreender e desvelar, para acompanhar o movimento que repensava a melhoria da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que transformava os sujeitos, em interação. O emaranhado de saberes, que se punham à minha frente, enredavam-me em uma trama complexa, em que a linearidade não podia ser o fio de compreensão, pois o desafio estava, justamente, em seguir 2 Esta pesquisa encontra-se publicada In: CECCON, Claudius, PAIVA, Jane (coord.). Bem pra lá do fim do mundo. Histórias de uma experiência em Rancho Fundo, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CECIP, União Européia, CCFD, 2000. 16 os pontos e nós que urdiam os saberes, poderes e conflitos que essas novas e diferentes práticas mostravam. Vi emergirem, ali, sujeitos políticos capazes de fazer valer seus direitos de cidadania e de, tomando a palavra, fazê-la sua e permitir a pronúncia de seu mundo, à semelhança do que me ensina Paulo Freire, tanto pela forma como a linguagem passou a mediar suas relações com o meio social em que vivem, quanto com a classe política dirigente, pelo modo como se apropriaram da argumentação, da lógica e como, pelo diálogo, estabeleceram relações dialéticas com a realidade. Linguagem que se fez ouvir não apenas nas relações imediatas, mas se tornou permanente com a escritura e a publicação de um jornal, no qual seu poder ampliou-se tanto quanto a abrangência que este alcançou. Linguagem do vídeo, que registrou suas intervenções e roteirizou suas histórias, de diversas maneiras, fazendo-os, uma vez mais, atores sociais cuja imagem e papel se difundiam pelos diferentes pontos de exibição dos vídeos. Linguagem que encontrou outros interlocutores, postos também nos espaços acadêmicos, em universidades, como a USP, por exemplo, sempre que puderam participar, levando sua experiência e discutindo os caminhos metodológicos que construíram ao longo do tempo em que se envolveram com o trabalho. Histórias, muitas histórias e muitas questões instigantes para desvendar. A das mulheres, presença maciça no trabalho, marcando com seus modos próprios a luta com o poder público, eminentemente masculino, e produzindo saberes na rede de relações novas e desafiadoras a que se lançavam. Acompanhei, com respeito e olhar atento de investigadora, cada movimento que o trabalho foi produzindo. O movimento social instaurado, entendido como ação coletiva (RIBEIRO, 1992) de quem faz história, porque se sabe sujeito de mudança da realidade, foi redefinindo a compreensão e o saber disponíveis quanto aos movimentos sociais. Ao mesmo tempo, suscitava-me, a cada dia, novas questões, que permitiram ir caminhando no sentido da produção de um conhecimento mais ampliado sobre a realidade de jovens e adultos que, intervindo no meio ambiente social, se educavam na luta, (re)construindo novos sentidos para o que é educar. O movimento gesta uma importante dimensão educativa. Aceitar que o processo de conhecimento é uma produção social e coletiva, sem desprezar a indispensável participação do indivíduo, é romper com muito da lógica de que a aprendizagem é resultado de "transmissão de conhecimentos" e de que olugar de fazer isto é a escola. Mesmo sabendo, na prática, que esse saber da escola, quando se deu, não mudou as condições de vida, a 17 representação que as pessoas trazem da escola é fortemente impregnada dessa fantasia. E porque entre eles a escolaridade não configurava o fundamento de seu saber, nem sempre os protagonistas do movimento percebiam a importância que esse outro saber, tecido na luta, tem como arma e poder para transformar a dura realidade em que vivem. Entender-se como parte de um coletivo que produz, em conjunto, um conhecimento; que, como parte desse coletivo, cabe a cada um contribuir sempre para o seguimento desse processo; que o conhecimento não é produzido apenas nos limites daquele grupo, mas em todos os espaços sociais é tarefa grandiosa, de permanente vigilância. A dicotomização do grupo com o mundo, e deste com o grupo, não dá conta de entrever a rede de relações de aprendizagem a que cada um participante esteve inextricavelmente ligado. E mais, que não era necessário romper ou renunciar a qualquer dessas relações para que novas produções de conhecimento tivessem lugar. Pelo contrário, são: [...] relações que se desenvolvem na participação e a descoberta dos espaços públicos (que) recriam situações que ensinam muito, porque desvelam situações de desigualdade, criam desafios nesse movimento de apropriação do público. [...] A consciência da relação desigual é o primeiro momento que pode explicitar uma nova necessidade. (SPOSITO, 1993, p. 375). A luta social ensina e o processo de apropriação do conhecimento é (re)significado, na luta. Novos conteúdos dão-se a conhecer. Ao se aliarem, "os que não sabem" — diante do saber técnico da autoridade — descobrem-se como iguais no "não saber", e acabam por desvelar o saber que têm, mas que é negado pela escola e pela sociedade. O saber, produzido socialmente, de modo geral só significa porque expressa um conjunto de necessidades históricas, determinadas pelas relações econômicas. O movimento, enquanto luta política que interferia nas condições de vida da população de Rancho Fundo, criava um outro significado para o saber: o que revela o caráter não econômico dessas necessidades, porque construído de modo a permitir a satisfação social, e que acaba por preencher as necessidades de um claro sentido político. Muitas outras questões surgiram. Dentre elas, a que aproximou, inevitavelmente, os movimentos sociais e o saber neles produzido com a área da educação de jovens e adultos, até então muito restrita à questão da escolarização. Com isto, iniciei um processo de reflexão para tentar compreender de que forma, tanto no Brasil, quanto na América Latina, foram-se constituindo os movimentos de educação de jovens e adultos. De que forma uns e outros se aproximavam, historicamente, e que dados da realidade determinavam essa necessária aproximação. De tal modo esta questão agigantou-se em minha busca de pesquisadora, que 18 pensei ser indispensável formulá-la como uma hipótese de trabalho a ser verificada, capaz de, enquanto possibilidade, anunciar a ampliação das concepções com que até então lidara sobre o que se entende por educação de jovens e adultos, no Brasil de hoje. Brandão (1984, p. 8) já levantava esta questão, buscando perceber o movimento que as práticas educativas com adultos anunciavam, especialmente as de educação popular, em relação às direções políticas que se encaminhavam. Houve um tempo em que sobre a educação popular julgávamos possuir coletivamente um repertório sólido de conceitos, métodos e técnicas profeticamente renovadores de tudo o que houve e se fez antes. Hoje sabemos, também coletivamente, que esta, como tantas outras práticas especiais de trabalho político, possui múltiplas faces, de que as mais estáveis e sistematizadas, como a própria alfabetização, são apenas uma modalidade e, nem sempre, a mais importante. Da década dos anos 60 para cá envelhecemos palavras, como conscientização e criamos outras, como participação. Símbolos sonoros de efeito poderoso que, apenas instrumentos de trabalho no momento da gênese, ameaçam sempre tornar-se o mito da prática, ou uma espécie de senha que, aos que sabem pronunciá-la, sugerem poder abrir todas as portas. Alerta-nos sobre o risco da crença na solidez dos conceitos, e na mitificação das palavras, que não se cristalizam, e por isso mesmo se redizem, e no meu entender atualizam esses conceitos. Desde o pós-guerra a educação de adultos veio sendo marcada por significados e compreensões diversas, em função dos inúmeros movimentos realizados junto aos setores populares, tanto originados na Igreja Católica, quanto por governos de diferentes matizes, quanto por entidades representativas dos interesses de empregadores e de grupos da sociedade civil, organizando movimentos e campanhas. O caráter desenvolvimentista, marcadamente posto na condição de homem-trabalhador-força-de-trabalho, teve papel fundamental na história da educação de adultos e na conceituação que o termo assumiu entre nós. Desse caráter são representantes o Sistema S na década de 1940 (SESI, SESC, SENAI, SENAC; bem mais tarde também o SENAR, em 1991), a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, a Cruzada Nacional de Educação, a Campanha Nacional de Educação de Adultos (1947) e o Movimento de Educação de Base (1961), a Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) criada em 1967 e com início das atividades em 1970, todos contribuindo, ainda que com intensas contradições, para a formulação do conceito e a delimitação do campo de conhecimento. 19 Nos anos 1970, com o advento da Lei nº. 5692 em 1971, da Educação Nacional, o ensino supletivo passa, paralelamente ao MOBRAL, a configurar no interior dos sistemas de ensino, uma modalidade compensatória de educação, firmemente ancorada nos valores da teoria do capital humano, de caráter desenvolvimentista, que a ditadura militar assumiu para tirar o país do atraso, mas que passava ao largo da perspectiva do direito, principalmente porque aqueles não eram tempos de respeito aos direitos sociais, nem políticos, nem humanos: a face mais evidente desse tempo de negação de direitos se expunha pela tortura e atrocidades cometidas nos porões da ditadura militar. Destaque-se que, no caso do MOBRAL, este constituiu a entidade formuladora e executora das políticas federais na área que por mais tempo esteve estruturada para essa finalidade (admitida sua sucedânea Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos – Fundação EDUCAR, extinta em 1990), e para ela foram destinadas fontes rubricadas para financiamento e desenvolvimento das ações. Paradoxalmente, foi apenas durante a ditadura militar que a área viveu definição governamental clara e aporte de recursos significativos, desvinculados das variações orçamentárias que tanto ameaçam programas e projetos, gozando a Fundação de expressiva autonomia, inclusive quanto a plano de carreiras e cargos e salários. Mas até aí a questão do analfabetismo era tratada pelas políticas como problema do sujeito analfabeto, a ser resolvido nesse âmbito. Fixada uma década para a “erradicação do mal”, ao seu final os resultados eram desanimadores. Se por um lado alguns pontos percentuais se reduziam nas estatísticas oficiais, por outro, o contingente absoluto demonstrava como o sistema público de ensino era insuficiente em número, em propostas, em qualidade para absorver todos os que deveriam ser escolarizados na “época própria”, aliado ao fato de que o agravamento das condições estruturais e conjunturais do país favorecia o aumento quantitativo desses excluídos de direitos. Entretanto, esse aspecto não vinha sendo considerado para a compreensão da complexidadedo fenômeno do analfabetismo, adotando- se a idéia simplificadora de que o problema se encontra no próprio analfabeto. Esta idéia ainda hoje é corrente, pregnante em educadores e em muitos dirigentes, ajudando a compreender a lógica de que qualquer investimento que aí se faça é inócuo. O campo da educação de adultos já então abrangia não apenas a idéia da alfabetização, mas incorporava a de educação permanente, pelas exigências da chegada da industrialização tardia em países pobres, do mesmo modo que incorporava a idéia de qualificação profissional, para atender às novas demandas do setor produtivo. 20 Mais recentemente, os caminhos de democratização no país vieram exigindo a condição de cidadania para todos, e não apenas para alguns e, dessa feita, a educação de adultos passa a tratar de questões relativas a direitos de cidadania, como tarefa eminentemente educativa, ao lado da consciência das exclusões — por exemplo, de etnia e gênero, que se vinham reproduzindo historicamente no país, mitificadas pelo ideário da democracia racial. Essa perspectiva se adensa na década de 1980, pelas lutas em prol do Estado de direito, articuladas e estimuladas em formas de organizações sociais que surgiam em resposta à repressão empreendida pela ditadura militar. Metas primeiras dessas organizações se coroam com a Constituinte e com a mobilização de inúmeros fóruns da sociedade3, propositores de temas e princípios para incorporação na nova Carta. A Constituição de 1988 vem contribuir para a legitimação dessas tensões históricas, garantindo no texto da lei a educação para todos como direito, novamente, e as Conferências Internacionais e os acordos firmados na década de 1990, reafirmam o papel da educação continuadamente nas políticas de todas as áreas, embora esse entendimento e a garantia constitucional não sejam suficientes para mudar as práticas. Ao mesmo tempo em que esses outros conteúdos adubavam esse campo, implicava pensar com que lógicas deveria conhecê-los: se com aquelas que os pensavam como conhecimento objetivo e, portanto, absoluto e eterno, do “homem desencarnado”, ou se concebido à semelhança do que propõe Najmanovich (1995, p. 46), como objetivado por uma cultura em contextos sociais específicos. O que significa dizer: com que pressupostos (teórico-)metodológicos punha-me a compreender a sua presença e o seu significado? Formulada nesse plano político, já não se pensa mais a educação restrita aos instrumentos do saber ler e escrever, imprescindíveis, mas insuficientes para dar conta da complexidade do mundo contemporâneo. As outras dimensões que adentram a área da educação de jovens e adultos alargam seu espectro para a idéia de educação continuada, e a retomada de um novo sentido para o que se chamara de educação permanente. Uma intricada rede de relações, de conhecimentos, de saberes, de atores sociais, de sujeitos que conhecem e 3 Um dos Fóruns mais significativos dessa época foi o Fórum em Defesa da Escola Pública, constituído em 1987, por entidades científicas, acadêmicas, profissionais, sindicais, estudantis e movimentos populares de âmbito nacional, para atuar na defesa intransigente da universalização da educação pública, gratuita, laica, com qualidade social, em todos os níveis. Inicialmente organizado para atuar na Constituinte, foi responsável pelas principais conquistas que os setores sociais, comprometidos com essa concepção de educação, conseguiram inserir na Constituição Federal de 1988, na LDB e no PNE. Ao longo de 17 anos de existência, o Fórum e as entidades que dele fazem parte assumiram, em inúmeras situações e ocasiões, o papel de espaço crítico e combativo em relação às políticas de regulação e gestão desenvolvidas. 21 se dão a conhecer, se tece no cotidiano das populações, em âmbito local, alterando e exigindo o debruçamento dos que pensam os destinos do mundo na esfera global sobre as relações que uns e outros estabelecem, mesmo quando distanciados pelo tempo e pelo espaço. Não mais a dicotomia e a dualidade que se pensava capazes de, relacionadas, dar conta da completude do conhecimento. Pensar o mundo pela perspectiva do conhecimento em sua incompletude, pela contribuição do pensamento complexo, que não luta contra a incompletude, mas contra a mutilação (MORIN, 1998, p. 176). Aí, certamente, inclui-se a educação, pelas formas complexas como necessariamente se expressa, o que exige repensar os paradigmas que até então nortearam nossos modos de ler a realidade. Para isso, Morin (1998, p. 176-177) afirma ser necessário desfazer o primeiro mal-entendido, que: [...] consiste em conceber a complexidade como receita, como resposta, em vez de considerá-la como desafio e como uma motivação para pensar. [...] nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões. A experiência de Rancho Fundo foi provocadora de um processo de reflexão que assumiu em mim a disposição para enfrentar os caminhos de desenvolvimento dessa pesquisa. Emblemática, trouxe-a para o texto para melhor situar esses caminhos e fundamentar a tese, alimentada pelo compromisso político que tenho mantido com a EJA, nas diversas esferas de minha atuação. No entanto, a experiência não limita, nela, a riqueza das ações na área, nem esgota meu rol de questionamentos. Rancho Fundo mostrou ser um processo educativo de ação sistemática de intervenção na realidade. Aproxima-se da atuação pedagógica — intervenção intencional — agindo, também, de modo sistemático. Os saberes que a experiência foi produzindo nas tessituras em rede que os sujeitos urdiram — para meu uso e da própria população — eram inequívocos em me afirmar que ali havia um claro — e renovado — processo de educação de adultos e de jovens, reconceptualizado. E que a mim, cabia pensá-lo complexamente, compreendê-lo e (re)significá-lo. Esta compreensão alargada dos processos de educação de jovens e adultos, no entanto, nem sempre se revela de modo a assumi-la como conteúdo dessa educação — o educar-se na luta —, nem também aparece como demanda expressiva nos movimentos por escola para jovens e adultos, nem para trabalhadores. Sposito (1993, p. 135) estudando a luta social pela 22 escola pública, na periferia de São Paulo, ilustra como a reivindicação por educação se organizou, pela população, entre 1970 e 1985, apontando que a pesquisa não confirmava a hipótese de que essas lutas eram pela qualidade do serviço oferecido, mas sim pelo acesso. Expressas em jornais da época, as reivindicações se referem à expansão da rede em 40% delas, e destas, a luta pelo acesso ao ensino de primeiro grau4 chega a 52% dos encaminhamentos. Ampliação da pré-escola e do segundo grau vêm em seguida com 17% e 19% respectivamente do total de demandas de expansão; e 40% das reivindicações pela expansão da rede referem-se à conquista de novos direitos, tanto pela antecipação do atendimento, quanto pelo prolongamento da escolaridade, ou pelo direito à escolaridade para adultos. Sobre esses dados, Sposito assinala que: [...] em todo o período a luta mais inovadora sob a ótica da intervenção do Estado em outras modalidades de ensino consiste na criação de unidades de ensino supletivo de primeiro e segundo graus. Não obstante inexista até o momento uma clara definição sobre a educação de adultos no país, a conquista do ensino supletivo público em alguns estados, como São Paulo,parece ser irreversível, ao menos, enquanto direito de acesso aos cursos. Resta, no entanto, para os grupos populares o desafio de conquistar, de fato, uma prática pedagógica e um processo de escolarização mais adequados às suas necessidades e condições de vida. (SPOSITO, 1993, p. 138). Como se observa, a expansão do direito ocupa apenas 40% das demandas, e não exclusivamente para a educação de jovens e adultos, mas vem acompanhada da pré-escola (a antecipação do atendimento) e do prolongamento dos cursos (após o ensino de primeiro grau, ou seja, o atual ensino médio), o que significa dizer que é, ainda, muito tímida, diante do universo de sujeitos não-alfabetizados e pouco escolarizados, não-concluintes do ensino fundamental oriundos principalmente das áreas pobres. O fato notável é que a conquista de novos direitos passa a se incorporar como horizonte possível a setores antes socialmente segregados, assim como, assinala Sposito, o acesso aos cursos não vem acompanhado de práticas pedagógicas nem de processos de escolarização adequados aos sujeitos que os acessam. As observações empíricas têm mostrado que mesmo pais de pequena ou nenhuma escolaridade reivindicam, primeiro, para seus filhos a condição de direito à educação, diversa da deles próprios, e poucas vezes se incluem como credores desse direito. Quando a perspectiva de direitos passa a constituir demanda, novas relações se estabelecem com o poder público e o exercício da democracia passa a ser praticado nas intermináveis 4 Mantenho a expressão primeiro grau utilizada pela autora, pois esta era a denominação do ensino fundamental à época da pesquisa. 23 negociações em defesa desses novos direitos. Que concepções os poderes assumem ao responder as tensões criadas pelos movimentos? Que resposta os movimentos e os sujeitos esperam receber? A pesquisa, portanto, pretendeu desvelar a face atual da área da educação de jovens e adultos, nos movimentos que experiências e práticas vêm realizando e na relação com as proposições políticas que as instâncias oficiais têm assumido. Para esse desvelamento, estou propondo escavações em torno de concepções, propondo um entendimento não de supressão de outros entendimentos, mas uma incorporação de perspectivas que possam permitir compreender mais amplamente o campo do fenômeno, percebidas na complexidade das relações em que se dão, levando em conta que ou sempre estiveram presentes sem serem consideradas, ou tenderam a aparecer diante das transformações que afetam as sociedades e as culturas na economia globalizada. Para fazê-lo, passei pela necessária organização e sistematização teórico-metodológica de formulações e práticas de EJA, buscando estabelecer relações entre elas, como fios e nós da rede de saberes que constituem. Com vista à constituição de meu objeto, propus-me a lidar com “novos paradigmas [que] questionam um conjunto de premissas e noções que orientaram até hoje a atividade científica, dando lugar a reflexões filosóficas sobre a ação social e sobre a subjetividade” no dizer de Schnitman (1996, p. 16), para quem a base dessas perspectivas se assenta na “exploração que inclui em seu desenvolvimento a consideração do próprio processo de conhecer, do sujeito cognitivo, da rede social na qual este conhecimento está distribuído”, ou de outras produções teóricas que sem comportarem o arcabouço paradigmático, vêm buscando contribuir para o repensar do que está posto. Dentre elas, as noções de pensamento complexo, de sujeito, como proposto por Morin (2001) e de rede, como metáfora para o processo de conhecimento, de que Schnitman (1996), Dabas e Najmanovich (1996) e Alves (1998) se valem. Para isso, exigiu-se o esforço de uma construção metodológica coerente com esse novo paradigma, que permitisse a mim e aos meus interlocutores trabalhar em um tempo de criatividade, de restauração de elementos singulares e da abertura de novas potencialidades, experimentando a vivência de que: Sentir-se partícipes/autores de uma narrativa, da construção de relatos históricos, é uma das vias de que dispõem os indivíduos e os grupos humanos para tentar atuar como protagonistas de suas vidas, incluindo a reflexão de como emergimos como sujeitos, de como somos participantes de e participados pelos desenhos sociais. (SCHNITMAN, 1996, p. 17). 24 Entendendo que a questão da educação de jovens e adultos inclui a perspectiva de inclusão em sociedades democráticas, e que esta inclusão passa a se dar pela conquista de direitos, tomei como matrizes conceituais direito e democracia, admitindo que são eles os conceitos fundantes da ampliação da compreensão do que é a EJA, na contemporaneidade. Meu objeto de pesquisa, à procura de novos “achados” entre as concepções de educação de jovens e adultos, compõe um corpus em que os movimentos da sociedade revelam-se pelas práticas dos últimos anos, alterando os sentidos que lhes são atribuídos originalmente, quando formulados e retratados em documentos e em aparatos jurídicos. Contrapondo formulações do cotidiano a textos legais, experimento compreender a educação de jovens e adultos a partir de carecimento e necessidade social, essencialmente produzidos na história, que vêm constituir o que se reconhece como direito em resposta a esses carecimento e necessidade, fundamentais ao entendimento teórico, por ser o direito freqüentemente negado e em poucos momentos respeitado, em relação a todos os cidadãos. Portanto, o que apresento nesse texto, mais do que um trabalho acabado, traduz um conjunto de reflexões de quem percorre um caminho de estudo teórico que ultrapassa os conhecimentos já disponíveis para, crítica e criativamente, ampliá-los. A escritura, como obra aberta, segundo Eco, à medida que se ascende no seu uso, estabelece novas significações, tanto mudando seus sentidos, quanto seus sujeitos enunciadores. 25 22.. CCOOMMOO CCIIGGAANNAA:: OO PPEERRCCUURRSSOO MMEETTOODDOOLLÓÓGGIICCOO [...] há cerca de quarenta anos, estamos diante de um mundo singularmente novo. E temos de nos situar neste mundo, do qual não passamos, evidentemente, de uma minúscula parte. [...] essa parte se encontra num todo gigantesco, o todo se encontra, ao mesmo tempo, no interior dessas parcelas ínfimas que nós somos, [...] Somos os filhos do cosmos e, ao mesmo tempo, como disse Jacques Monod, nele vivemos como “ciganos”. Somos diferentes e distantes dele devido a nossa cultura, nosso espírito, nosso pensamento, nossa consciência, e é esse distanciamento que nos permite tentar conhecê-lo e interrogá-lo. (MORIN, 2001, p. 27). Tomar a fala de Morin como epígrafe deste capítulo remete-me ao sentimento errante de que muitos de nós somos tomados, quando precisamos definir e fazer escolhas teórico- metodológicas. Vagueando como ciganos, intentamos caminhos, aproximamo-nos e distanciamo-nos do todo e da parte e do objeto, parecendo sempre perguntar, como Cecília Meireles (1994, p. 335), no poema Noite: Tão perto! Tão longe! Por onde é o deserto? [...] Somos um ou dois? Às vezes, nenhum. E em seguida, tantos! A vida transborda por todos os cantos. Com essas incertezas, que me acompanharam em todo o percurso, fui traçando um caminho para dar conta de responder as questões que há alguns anos vêm ocupando espaços e tempos diversos das minhas reflexões e práticas profissionais no campo da EJA. Esse percurso, que por exigência do curso e da titulação supõe-se ser solitário, produzido por um sujeito como requisito ao doutoramento, no entanto, mostrou-se, no meu caso — por não ter me afastado de minhas atividades acadêmicas na universidade, nem de atividades profissionais conformadaslongamente em minha trajetória — como um percurso solidário, trilhado — sempre como cigana — com muitos outros sujeitos com os quais compartilhei minhas produções, modos de compreender, e com os quais fui trançando e tecendo fios e enredando saberes, num espaço-tempo social inimaginável. Difícil, ao redigir esse capítulo, ocultar a participação direta de meus alunos, nas diversas disciplinas que permitiram múltiplas 26 interlocuções e intercâmbios5; de minhas bolsistas (no feminino mesmo, porque sempre mulheres), atentas, aprendizes/tecelãs de novas tramas/saberes; de autores — dos livros técnicos aos livros de literatura dos quais jamais ousei afastar-me; de pares escolhidos; de outros não-escolhidos, mas que se fizeram presentes sem que eu demandasse ou esperasse, tudo isso constituindo, inequivocamente, um saber coletivo, que a mim, porque guiada por um olho de ver6,7 para além da experiência física, surpreendeu e possibilitou sistematizar, junto a outros sujeitos discursivos escolhidos, as idéias que compõem esse trabalho. Posso afirmar que foi vivendo as experiências8 e a práxis que a idéia de rede e de complexidade, aos poucos, fez-se viva como metodologia de pesquisa, assumindo o lugar central para compor o método de investigação utilizado. Minha investigação orientou-se, teoricamente, pelas postulações de autores que me ajudaram a perceber, multirreferencialmente, o tempo histórico em que as experiências se dão/se deram, de modo a que eu, ao investigar, pudesse “ejercer una función historizante para construir una narración posible y coherente que permita producir sentido en nuestro navegar histórico” (NAJMANOVICH, 1994, p. 37). São todas elas fruto de trabalhos e reflexões dos últimos anos e de meu envolvimento e encontro com outros interlocutores em reuniões científicas, conferências nacionais e internacionais no âmbito das políticas que envolvem práticas educativas com jovens e adultos, tanto as “escolarizadas” como as que ocorrem em relação a outros direitos ainda não democratizados, negados à maioria da população. 5 Inter-câmbio, apreendendo o sentido de Najmanovich (1994, p. 66), de trocas e mudanças entre sujeitos, efetivamente, que também mudam modos de pensar e de ver a realidade. 6 Soares (2005, p. 173), discutindo a idéia do que é ver, e não ver, conclui que “se o olhar transporta para a imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar transporta para a imagem a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-se que ver é relacionar-se”. E continua: “Isso é surpreendente para quem pensa que o ato de olhar serviria como uma metáfora perfeita para designar a suposta objetividade do vínculo entre o sujeito da ciência e seu objeto. Pelo contrário, não há pureza nem objetividade no olhar. Nossa visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e sentimentos, valores e crenças, compromissos e culpas, desejos e frustrações. Acima de tudo, é necessário reter na memória esse ponto: ver é relacionar-se”. 7 Sacks (1995, p. 129), do mesmo modo, pela neurologia, discutindo o caso de um paciente em “Ver e não ver”, afirma: “Quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através da experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes”. 8 Retomo como conceito central da produção de conhecimento a recomendação de Larrosa (1999, p. 20-28) sobre experiência e o saber de experiência — “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” —, pelo alerta que faz de que, por vivermos em uma sociedade de informações, deixamos de viver as experiências, supondo que informações podem substituí-las. Do mesmo modo, alerta que a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo, pela velocidade e a obsessão pela novidade que caracteriza o mundo moderno, assim como pelo excesso de trabalho e pelo excesso de opinião, que não é conhecimento, tudo isso impedindo a conexão significativa entre os acontecimentos. Evoca a reintegração dessa forma de conhecer em nossas vidas, pelo fato de a experiência produzir diferença, heterogeneidade e pluralidade; por ser irrepetível, e uma dimensão de incerteza, que não pode ser reduzida. 27 Historicamente, a educação de jovens e adultos vem assumindo concepções e práticas bastante diferenciadas. Da visão ainda muito corrente de que ela se faz para recuperar o tempo perdido daqueles que não aprenderam a ler e a escrever; passando pelo resgate da dívida social; até chegar à concepção de direito à educação para todos, da presente década, e do aprender por toda a vida, as enunciações variaram, deixando, no entanto, no imaginário social, a sua marca mais forte, ligada à volta à escola, para fazer, no tempo presente, o que não foi feito no tempo da infância. Essas diferentes concepções pelas quais passou a área foram produzidas em contextos históricos e culturais9 que favoreceram seu alargamento ou sua variação, mais ou menos tensionados pelas forças sociais que se colocavam em jogo. Ao mesmo tempo, revelavam enunciações que, nem sempre, caminharam pari passu com as práticas e com as necessidades dos jovens e adultos envolvidos, nem com o sentido de que a oferta de EJA deve-se fazer como direito, em sociedades democráticas, e muito menos com a idéia projetada a um futuro próximo do aprender por toda a vida. O objeto da pesquisa seguiu um percurso inicial bastante ambicioso, mas considerado exigentemente necessário, porque se propunha a estudar projetos e práticas, confrontando-os entre si e com as formulações políticas e teóricas na área, visando à compreensão e à apreensão das concepções da educação de jovens e adultos, na vertente escolarizada, ao tempo em que se enunciam pela perspectiva, ou não, de direito de todos à educação. Mas o diálogo com meu orientador e com a banca de qualificação, intenso principalmente neste item, mostrou-me — e acabou por convencer-me — da necessidade de um recorte, do mesmo modo representativo das diferentes experiências e contornos que a área vem assumindo, sem abranger o espectro todo que inicialmente eu formulara. Voltando outra vez como cigana aos projetos, vivenciei uma nova etapa exploratória, com a finalidade de, sem perder os critérios definidores daqueles que deveriam constituir meu objeto, recortar a amostra com a qual eu, finalmente, trabalharia. Para isso, intensifiquei o olhar sobre esses critérios, buscando ver em relação, no dizer de Soares (2005, p. 173), garantindo relevância ao recorte tomado como objeto de estudo e compreensão da realidade, 9 Estou tomando a concepção de cultura segundo Freire, por meio da qual influencia Bosi (1992, p. 319), ao expressá-la como conceito antropológico: “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social”. O caráter difuso dessa cultura, espraiada em lugares, tempos e modos que não os da vida acadêmica, mescla-a intimamente com a vida psicológica e social do povo (BOSI, 1992, p. 320), e é com esta vida, cujos símbolos e bens nem sempre são objeto de análise ou de interpretação sistemática, mas sim vividos e pensados esporadicamente e não tematizados em abstrato, que Paulo Freire identifica seu modo de pensar a educação e de propor a metodologia que possibilita o aprendizado dos sujeitos jovens e adultos. 28 recorte esse que pudesse estabelecer algumas enunciações conceituais sobre o campo, cujo conhecimento produzido estivesse também orientado para a surpresa e a partilha (NICOLESCU, 2003, p. 46), diferentemente do saber do conhecimento disciplinar, orientado para o poder e a posse. A surpresa, sempre bem-vindae necessária, deveria levar-me, como conhecedora do campo, a novos estranhamentos, capazes de objetivar a compreensão do mundo presente, no movimento, na dinâmica gerada pela ação dos vários níveis de realidade10 ao mesmo tempo, onde poderia apreender os objetos, realizando também movimentos que possibilitassem percebê-los nas múltiplas relações em que ocorrem, e não referidos como fragmentos de um mesmo e único nível de realidade (NICOLESCU, 2003, p. 44). Para Nicolescu (2003, p. 46), ainda, o conhecimento produzido por meio dessa abordagem — transdisciplinar —, gera a compreensão, enquanto a abordagem disciplinar produz o saber; na primeira abordagem há um novo tipo de inteligência, que implica o equilíbrio entre o mental, os sentimentos e o corpo, incluindo-se os valores, e atuando-se com a lógica do terceiro incluído; na disciplinar a inteligência é analítica, a lógica é binária e há exclusão dos valores. Pode-se dizer que, pela abordagem transdisciplinar, há uma evolução do conhecimento, ou seja, o conhecimento permanece aberto para sempre. A definição dos critérios de seleção dos projetos foi estabelecida, então, pela necessidade de que a pesquisa tivesse abrangência nacional, face ao fato de que deveria tomar referências mais amplas para empreender a aventura do estudo proposto — compreender as concepções da EJA, por entender que concepções, porque históricas, têm temporalidade e espacialidade, são multidimensionais, organizando-se segundo diversas ordens de fatores que não permanecem duradouramente, mas são sensíveis aos movimentos dos sujeitos nas suas ações de fazer e desfazer, pensar e transformar o mundo. Burke (1992, p. 24-25) discutindo a perspectiva da história como um problema dos historiadores sociais contemporâneos, observa 10 Nicolescu (2003, p. 46-47) parte da idéia inicial de que Realidade (com R maiúsculo), é tudo aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas, porque o real, por definição, está oculto para sempre (aquilo que é). Por nível de Realidade, diz o autor, “deve-se entender um conjunto de sistemas invariante à ação de um certo número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas subordinadas às leis quânticas, que divergem radicalmente das leis do mundo macrofísico. Isso quer dizer que dois níveis de realidade são diferentes se, ao passar de um para o outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (por exemplo, da causalidade)”. A visão transdisciplinar parte dos questionamentos de Edmund Husserl e de outros pesquisadores sobre os fundamentos da ciência, descobrindo a existência de diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito-observador, o que já fora afirmado por diferentes tradições e civilizações, mas baseada em dogmas religiosos ou em explorações do universo interior. Essa forma de visão propõe “considerar uma Realidade multidimensional, estruturada em múltiplos níveis, que substituiria a Realidade unidimensional, num único nível, do pensamento clássico”. (NICOLESCU, 2003, p. 48). 29 o quanto difícil é descrever ou compreender a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança, indicando que um foco de atenção deve estar posto no “processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro”. Este, portanto, consistiu em mais um importante alerta para o exercício empreendido de captar as concepções de EJA, como me propus. Os critérios, então, construídos, foram considerados isoladamente ou cruzados um com outro, reforçando-se e/ou intensificando-se. São eles: Abrangência nacional — independente da proposta/concepção, a prática está sendo realizada em vários estados da federação, por um ou mais organismos, envolvendo um largo número de sujeitos, o que quase sempre contraria as lógicas da EJA, de pequenas experiências, localizadas. Antiguidade e permanência da organização na rede pública — independente da concepção, o fato de estar institucionalizada, ininterruptamente, como modalidade de atendimento, no sistema de ensino. Necessidade de oferecer resposta específica, considerando a realidade de uma dada região/sujeitos — verificar a consistência de propostas que se orientaram pela ação de EJA com formato próprio, considerando a especificidade de uma região. A metodologia previu, assim, o estudo prévio das origens e sentidos que direito à educação assume na história como fundamento para melhor apreender as proposições de programas/projetos e suas formulações conceituais, assim como a compreensão de práticas desenvolvidas, quando possível, pela voz do coordenador, do dirigente, do professor/educador confrontando-as quanto ao pensar (dos especialistas que formulam) e o fazer cotidiano dos sujeitos que coordenam, dirigem, realizam essas propostas. Porque propostas não definem, necessariamente, seus fazeres, suas práticas, busquei a perspectiva metodológica da experiência, em maior aproximação com os quefazeres de algumas delas, no intuito de poder compreender as apreensões dos sujeitos que as desenvolvem, na expressão de suas concepções, nos contextos socioculturais em que se dão. Desde o início orientei a construção metodológica do projeto pela noção de redes e de complexidade, procurando tecer um modo de apreender não apenas as expressões conceptuais dos projetos e práticas, mas as teias que se formam entre eles, relacionadas às diversas dimensões da vida sociopolítica em que se dão/são possíveis. Mas, apesar da minha determinação, ditada pela experiência que vivencio há tantos anos com projetos de EJA e 30 sujeitos, que me levava à quase certeza de que só chegaria a capturar suas concepções se os pensasse pela perspectiva da complexidade, como redes, o esforço feito não chegou a me assegurar que tenha sido bem-sucedida na tentativa metodológica, o que exige a leitura de meus pares e estudiosos da área, para apontar e auxiliar meu próprio juízo crítico, quanto ao que consegui formular por meio desse percurso intentado. Não se trata de negar ou desqualificar a abordagem definida mas, exatamente, como por ela proposto, dialogicamente interrogá-la para perceber o quanto o exercício da pesquisa possibilitou aproximar-me ou não da intenção original, tratando essa produção como “obra aberta”, pela possibilidade de garantir a ambigüidade, fundamental e constante em qualquer “obra” em qualquer tempo, no dizer de Eco (1988, p. 25-26), que “representa um modelo hipotético”, embora elaborado com a ajuda de numerosas interpretações concretas. Estava aí o desafio: aproximar as enunciações e compreensões sobre redes, a complexidade e as formulações da transdisciplinaridade, que percebo muito próximas do que as redes vêm apontando. Por ser esse um campo novo para transitar, empreendi, mais uma vez como cigana, a aventura de tentar dialogar com essas concepções, em torno do meu objeto, compreendendo-o, não pela análise, mas pela busca de um outro modo de conhecer, que intentei produzir como metodologia de pesquisa. Alguns autores nacionais vêm encabeçando a discussão sobre redes de conhecimentos, em contraposição à metáfora da árvore, e para isso vêm se valendo de estudos empreendidos por um grupo de pesquisadores de diversas áreas, em busca de modelos explicativos mais adequados ao lugar epistemológico do conhecimento na contemporaneidade. Morin, um desses pensadores, junto a outros como Prigogine, Maturana representam os mais conhecidos, embora Basarab Nicolescu, Lima de Freitas, o próprio Morin e muitos outros tenham participado do Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, ocorrido no Convento da Arrábida,
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