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MEDICINA PRÉ-COLOMBIANA Paulo Tubino Elaine Alves Era pré-colombiana, culturas pré-colombianas, período pré-colombiano, América pré- colombiana são termos utilizados para designar as civilizações que existiam na América antes da chegada de Cristóvão Colombo, em 1492. A América pré-colombiana compreende todos os períodos da pré-história e da história antes das influências européias no continente americano; na prática, inclui a história das culturas indígenas sob seus diversos aspectos, inclusive os referentes à medicina. Foram encontrados vestígios indiscutíveis da presença humana, entre 12.000 e 11.500 anos atrás, na América do Norte (Califórnia, EUA e México) e na América do Sul (Chile, Peru e Brasil). Esses indivíduos não eram originários do próprio continente americano e, embora haja controvérsias, há duas hipóteses principais, não excludentes: 1) Os primeiros humanos teriam vindo a pé da Ásia durante a última glaciação, através do Estreito de Bering 1 (coberto nessa época por uma camada de gelo que uniu o continente americano ao asiático). 2) Os grupos humanos teriam partido em pequenas embarcações de ilhas da Polinésia e da Oceania e, navegando pelo oceano Pacífico, chegado à América do Sul e se espalhado por todo o continente. As culturas da América pré-colombiana tinham organização política e social avançada, tradições artísticas, templos religiosos monumentais e cidades de alto valor arqueológico como Cuzco, Machu Picchu, Teotihuácan, Cidade do México, Palenque. A ciência pré-colombiana alcançou seus pontos mais altos com a descoberta do número zero pelos maias, os calendários e a roda (que era conhecida, embora não fosse usada para o transporte). O estudo da medicina pré-colombiana é relacionado, mais frequentemente, às grandes civilizações indígenas das Américas: astecas, maias (ambos na Mesoamérica) e incas (nos Andes). Entretanto, houve outras civilizações importantes na era pré- colombiana como, por exemplo: os algonquinos e os índios pueblo na América do Norte; os olmecas e toltecas (de Teotihuácan), que antecederam os astecas, na Mesoamérica; os mapuches, chinchas, moches, valdívias e guaranis na América do Sul. Em 1519, quando o conquistador espanhol Hernán Cortés (1485-1547) e seus seguidores cruzaram o Golfo do México pela primeira vez, esperavam encontrar nativos primitivos como os que tinham encontrado em algumas ilhas do Caribe. Entretanto, foram recebidos pelos astecas que tinham formas avançadas de governo, cidades planejadas, habilidades de engenharia e arquitetura com sistemas antiterremoto, um sistema de escrita e de registro histórico por meio de pictogramas, agricultura desenvolvida, uma compreensão avançada da matemática e outras ciências, inclusive da medicina. Os espanhóis constataram que a capital asteca Tenochtitlán (atual Cidade do México) rivalizava com as capitais européias de então (figura 1). Os maias, estabelecidos ao sul, na península de Yucatán, Guatemala e Honduras, embora em declínio (já haviam abandonado algumas de suas cidades, talvez em consequência de alguma doença contagiosa epidêmica, já que há pictogramas maias representativos da febre amarela ou “vômito negro”), também exibiam uma sofisticação cultural e científica raramente encontrada no Velho Mundo. Deve ser mencionado que ainda mais ao sul, nos Andes, havia o extenso Império Inca. Mas, vários séculos antes de Cristo, nas regiões costeiras do Peru, já havia comunidades organizadas com rica história cultural. Como exemplo, os chinchorros, que viveram onde hoje é o norte do Chile e sul do Peru, tinham em sua cultura múmias feitas por volta de 5000 a.C., ou seja, muito mais antigas que as egípcias. Francisco Pizarro (1476?-1541), o explorador e conquistador espanhol do Peru, possivelmente inspirado por Cortés, iniciou suas expedições em 1524. Em 16 de novembro de 1532 1 Estreito de Bering: estreito entre o Cabo Dezhnev – ponto extremo oriental do continente asiático, na Sibéria – e o Cabo Príncipe de Gales – o extremo ocidental do continente americano, no Alasca – com 82 km de largura e profundidade entre 30 e 50 m. Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 2 emboscou e capturou Atahualpa, o último imperador inca. No ano seguinte Pizarro invadiu Cusco com tropas indígenas e derrubou o Tawantinsuyu (império inca, em quíchua). Figura 1 – Tenochtitlán na época dos astecas (La gran ciudad de Tenochtitlán). Mural de Diego Rivera (1886-1957), Palácio Nacional, Cidade do México, México. Portanto, a América era um “Novo Mundo” apenas para os europeus, pois sua cultura pode ser até mais antiga que a do chamado “Velho Mundo”. SACRIFÍCIOS HUMANOS Várias civilizações pré-colombianas faziam sacrifícios humanos e os astecas se destacavam por seu uso em grande escala. Para muitos povos antigos, o Sol era um dos principais deuses ou o deus principal. Foi o caso dos egípcios (Rá), dos astecas (Huitzilopochtli) e mesmo dos índios guaranis da América do Sul, incluindo o Brasil (Tupã). Os astecas acreditavam que, antes do aparecimento do homem, uma raça de gigantes ou deuses se sacrificara para a manutenção do sol e que era necessário continuar essa prática. Pensavam que o sangue sustentava o sol e construíram altares de sacrifício onde, com facas afiadas de obsidiana, os sacerdotes rasgavam o coração ainda batendo de seres humanos vivos. Era uma oferenda a Huitzilopochtli, com o objetivo de restaurar o sangue perdido, uma vez que o sol estava envolvido em uma batalha diária. Os sacrifícios humanos impediriam o fim do mundo que poderia acontecer a cada ciclo de 52 anos. Assim, inúmeras pessoas em toda a Mesoamérica foram sacrificadas e, para manter um suprimento adequado para o sacrifício, as guerras locais muitas vezes tinham a finalidade expressa de fornecer vítimas. Estima-se que na reconsagração da Grande Pirâmide Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 3 de Tenochtitlán, em 1487, tenham sido sacrificados até 80.400 prisioneiros. Embora os números sejam difíceis de quantificar, porque os textos astecas foram destruídos pelos missionários cristãos entre 1528 e 1548, cerca de vinte mil pessoas eram sacrificadas anualmente e há relatos de canibalismo. Os espanhóis citavam essa prática abominável para justificar a conversão forçada ao cristianismo e a subjugação das populações nativas. Em consequência, destruíram a maior parte dos registros locais, inclusive a literatura e a história de muitas culturas. A MEDICINA PRÉ-COLOMBIANA Os povos que viveram na América tinham diferentes níveis culturais, políticos, econômicos e sociais, mas apesar disso compartilhavam uma tradição mágico-religiosa e tinham conceitos semelhantes sobre as doenças e suas práticas curativas. Na Mesoamérica, as medicinas asteca e maia eram um pouco mais desenvolvidas do que as outras no que se refere ao diagnóstico e tratamento das enfermidades, tanto na medicina interna como externa. A medicina pré-colombiana estava ligada à religião (porque certos deuses eram responsáveis por doenças, enquanto que outros protegeriam seus devotos), à magia (porque muitas doenças, que seriam causadas por feitiços de inimigos ou rivais, tinham que ser curadas por meios mágicos) e à ciência (conheciam as propriedades curativas das plantas e de alguns minerais). A magia e a religião eram mais importantes que a ciência, mas as práticas de magia se mesclavam com os procedimentos sabidamente eficazes quando havia uma necessidade imediata: uma ferida ou uma dor intensa, por exemplo. As funções de médico, curandeiro e sacerdote eram, em geral, exercidas pela mesma pessoa. O feiticeiro usava uma roupa cerimonial e um ritual de gestos enquanto se ajoelhava junto ao doente, esfregava a parte doente e sugava rapidamentea causa da doença, que apresentava em seguida: pontas de flechas, sapos pequenos. O feiticeiro se diferenciava por suas roupas e pelo modo de vida distinto; seus enfeites significavam distinção e superioridade sobre os outros membros do grupo, mas também produziam um aspecto terrível que iria impressionar e assustar os demônios. Os pais ensinavam a profissão a seus filhos e esses herdavam o cargo. O médico desfrutava de grande consideração na sociedade pré-colombiana. Os procedimentos cirúrgicos simples, em geral, eram confiados a persona- gens menores. Havia o xamã, cuja presença predominava nos extremos norte e sul do continente, que se caracterizava pelo uso do transe. Suas características, semelhantes às dos xamãs siberianos, seriam um apoio à teoria de que os primeiros habitantes das Américas teriam vindo da Ásia. MAIAS As características do sacerdote-curador eram comuns a vários povos pré-colombianos, mas adaptadas à organização social de cada grupo. Entre os maias, uma teocracia, a arte de curar era confiada a sacerdotes organizados em uma verdadeira sociedade médica e cujo conhecimento teria sido herdado dos deuses. Além desses, havia feiticeiros de menor status que não faziam parte da casta sacerdotal, responsáveis pela sangria, pelo tratamento de feridas, abertura de abscessos e redução e tratamento das fraturas. A obstetrícia era praticada por parteiras que usavam massagens abdominais após o parto para “restaurar o útero e levar os intestinos para suas posições normais”. Entre os maias as doenças eram sempre relacionadas à religião e a conceitos éticos. Textos maias dão referências repetidas da crença de que o abuso sexual, os pecados e a desobediência eram os responsáveis pelo aparecimento das epidemias. Embora a prática do sacrifício humano ocorresse em menor número que nas sociedades astecas, sangravam as vítimas, extraíam os intestinos dos prisioneiros de guerra e também seus corações. Assim, tinham algum conhecimento de anatomia e uma terminologia anatômica própria com cerca de 150 termos. ASTECAS As doutrinas e práticas médicas dos astecas eram avançadas, mas entremeadas de elementos religiosos. A medicina era praticada por homens e mulheres com treinamento especial associado à Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 4 religião e astrologia. Conheciam anatomia e usavam terminologia anatômica, assim como tinham algum conhecimento da anatomia interna como resultado da prática comum de sacrifícios humanos, com a retirada do coração pelos sacerdotes. Os astecas extraiam o coração e a pele das vítimas e distribuíam partes do corpo cortando-o em pequenos pedaços para banquetes rituais, o que tornava os sacerdotes e seus auxiliares familiarizados com músculos, articulações, ossos, artérias, veias e as vísceras maiores. Na coroação de Moctezuma II, por exemplo, logo após a conquista espanhola, cinco mil cativos otomi foram sacrificados. Entre os astecas, a profissão médica tinha caráter hereditário. Era dever de um pai ensinar as funções de médico para seu filho; no entanto, ao filho não era permitida a prática enquanto seu pai estivesse vivo. Havia especialidades; a cura clínica (que usava ervas e manipulações externas, combinadas com invocações e mágicas) era a mais comum. Além do “clínico”, havia os especialistas em arrancar dentes, atendimento ao parto e fixação de fraturas. As feridas eram limpas e fechadas com misturas vegetais ou ovos de pássaros mergulhadores e cobertas com penas ou bandagens feitas de pele. Moctezuma I, muitos anos antes da chegada dos espanhóis, mantinha um viveiro de plantas medicinais em seu palácio que eram fornecidas para o resto do império; os astecas preferiam as drogas que induziam purgação, vômitos ou suor para expulsar os maus espíritos. Deve-se mencionar a preocupação com a saúde pública em Tenochtitlán: havia sistema de drenagem para os resíduos; latrinas públicas; o lixo era recolhido e enterrado fora dos limites da cidade; as ruas eram limpas. Evidências arqueológicas e observações dos espanhóis sugerem que a água potá- vel disponível para os habitantes da cidade era melhor que a da maioria das cidades européias do século XVI. A medicina asteca tinha muito prestígio com os espanhóis de modo que Cortés avisou ao rei Carlos V que era desnecessário o envio de médicos espanhóis. Além do avançado conhecimento anatômico e botânico, tinham ética profissional e davam grande valor aos fatores psicológicos no tratamento das doenças. Considerando-se o poderio do Império Asteca, a princípio é difícil compreender como Hernán Cortés, com cerca de 600 homens e suprimento limitado de cavalos e armas de fogo, foi capaz de conquistá-lo. Certamente uma poderosa aliada foi a varíola, doença até então desconhecida nas Américas e que se espalhou rapidamente por todo o México depois da chegada dos espanhóis. INCAS Ao contrário dos maias e astecas, os incas não desenvolveram um sistema de escrita, mas codificaram e relataram informações usando quipus (figura 2), cordas com nós de várias cores. Embora ainda totalmente não decifrados, os quipus parecem funcionar não só como ábacos com dados de censo e relatórios financeiros; se os quipus registraram palavras tanto quanto números, representam um sistema único de escrita, mas esta é uma possibilidade ainda controversa. Outra importante fonte de informação sobre os incas (e sobre as civilizações que os antecederam) foi a cerâmica; desde 1800 a.C. os povos que habitaram a região do atual Peru faziam objetos de cerâmica. Nesses objetos podem ser identificadas doenças e malformações. A crença no caráter punitivo da doença era geral e a confissão ritual dos pecados, prática terapêutica. Aparentemente, os incas tinham conhecimentos médicos e cirúrgicos bem desenvolvidos. Um grupo de elite de médicos hereditários atendia o imperador inca, mas outros médicos, cirurgiões, herbalistas e curadores cuidavam da população em geral. Os métodos terapêuticos incluíam o uso de ervas medicinais, banhos, sangria, massagem e várias formas de tratamento de feridas. Além do manejo das feridas, fraturas e luxações, os cirurgiões peruanos executavam operações maiores, tais como amputações e trepanações. Os incas fizeram várias descobertas farmacológicas; usavam muitos vegetais, especialmente o quinino (da casca da chinchona) no tratamento das febres da malária, com grande sucesso. Banhavam os ferimentos com uma cocção, ainda morna, de casca de pimenteiras. As folhas de coca eram usadas tanto para acalmar quanto estimular, como analgésicos e para minorar a fome; os chasqui (mensageiros corredores que levavam mensagens por todo o império inca) as utilizavam para obter energia extra. Outras drogas derivadas de plantas eram atropina, ipecacuanha, curare, teofilina e muitas outras ainda empregadas na farmacopéia atual. Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 5 Figura 2 – Quipu (detalhe). Museu Nacional de Antropologia, Arqueologia e História do Peru, Lima, Peru. O quipu consta de uma corda principal (sem nós) da qual dependem outras (geralmente com nós) de diversas cores, formas e tamanhos. As cores se identificam como setores; a cor parda, como no exemplo acima, se refere ao governo. É possível que as cores e talvez o tipo de trançado das cordas indiquem os objetos, enquanto que os nós fariam referência às quantidades, incluindo o número zero (fotografia dos autores). Em 1743, o médico e naturalista francês Pierre Barrère (1690-1755), que viveu cinco anos em Caiena (Guiana Francesa), publicou o livro Nouvelle Relation de la France Equinoxiale no qual mostrava objetos de borracha que havia visto na América do Sul (uma seringa para enema, um anel e uma bola), informando pela primeira vez aos europeus que os índios sul-americanos manufaturavam esses objetos com a seiva de uma árvore.As antigas culturas mesoamericanas não usavam o cautchu (goma ou borracha que resulta da coagulação do látex de diversas plantas) somente para fazer bolas para a disputa de jogos que realizavam, mas também para fazer esparadrapos primitivos que os médicos traziam em suas bolsas para o tratamento de doenças reumáticas e da pleurisia. DEFORMAÇÕES CRANIANAS INTENCIONAIS A modificação corporal por motivos estéticos ou rituais é tão antiga quanto o ser humano. Práticas como a circuncisão nos judeus, a perfuração dos dentes nos antigos maias, a clitoridectomia nas culturas subsaarianas (ao sul do deserto do Saara), a perfuração nasal ou do lóbulo da orelha na Ásia e na África e a deformação craniana nas culturas do Caribe, amazônica e pré-incaica, são alguns exemplos. A deformação craniana intencional é o resultado da distorção das direções normais de crescimento dos crânios de crianças por forças aplicadas externamente, intencionalmente ou não. Os restos humanos mais antigos em que foi encontrada a deformação craniana intencional são de neandertais (Homo neanderthalensis, c. 350.000 a 29.000 anos antes do presente) procedentes das cavernas de Shanidar, no Iraque. Outros crânios humanos, encontrados na Europa, com deformações artificiais são do Neolítico (c. 5000 a.C.) e da Idade do Bronze (c. 4000-1500 a.C.). Entretanto, foi na América que esse costume alcançou sua maior extensão. Foram encontrados crânios chinchorros de 8000 a.C. e Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 6 crânios maias de 2000 a.C. A prática da deformação craniana foi encontrada também nos índios do Caribe e nas regiões andinas. As deformidades eram conseguidas com várias técnicas como a aplicação de pequenos pedaços de madeira ou faixas compressivas nas cabeças dos recém-nascidos para modificar o eixo de crescimento da cavidade craniana. Todas as culturas andinas e da costa do Peru provocaram deformações cranianas, tradição esta que persistiu até 1752 quando foram proibidas sob o domínio colonial espanhol. Além de propósitos estéticos, as deformações tinham cunho religioso, simbolizavam nobreza e identificavam as classes dominadoras (o crânio alongado era reservado à aristocracia). Outra hipótese é que os crânios deformados simulariam uma aparência feroz, útil em combates tribais e nas guerras. A primeira consequência dos processos artificiais de deformação craniana é a alteração do processo normal do fechamento das suturas cranianas. Vários desses crânios apresentaram ossificação precoce das suturas, enquanto que outros apresentaram suturas que ficaram sem se fechar até idade mais avançada. Foram encontradas superposições de ossos, principalmente entre as escamas do temporal e os parietais. Em metade dos crânios deformados foram encontrados ossos wormianos (ossos supranumerários interpostos nas suturas interósseas) em todas as suturas. Usualmente os ossos wormianos aparecem apenas na sutura lambdóide. Deve ser mencionado que não foram encontradas evidências de que o processo deformador craniano pudesse afetar a inteligência ou o curso do pensamento dos indivíduos submetidos a esses procedimentos. TREPANAÇÕES A trepanação é um dos procedimentos cirúrgicos mais antigos realizados pelo ser humano. Estudos de paleontologia mostraram que as trepanações eram feitas desde os períodos Neolítico e Mesolítico (cerca de 8000 a.C.). Na América do Sul – nas culturas paracas, nazca e mochicas (Peru e norte do Chile) e huai, tiahuanaco, chimu e inca (Peru e Bolívia) – foi onde esse procedimento cirúrgico teve grande avanço. A prática da trepanação era comum nas culturas pré-colombianas. Cerca de 5% das múmias encontradas na costa peruana tinham evidências de trepanação. As trepanações nas culturas pré-colombianas foram praticadas tanto em homens como em mulheres, por motivos místicos e rituais ou médicos. É possível que tivessem finalidade terapêutica: tratar defeitos congênitos por displasias ósseas, tumores, surdez, epilepsia, enxaquecas e para tratar doenças mentais deixando sair os maus espíritos. Segundo o médico, anatomista e antropólogo francês Paul Broca (1824-1880), muitas trepanações eram feitas em crianças para a cura de convulsões. Na cultura paracas (pré-incaica) as indicações mais freqüentes eram: tratar cefaléias secundárias às deformações cranianas ou fraturas cranianas pelas freqüentes guerras. Dos crânios estudados, um grande número apresenta sinais de sobrevivência pós-operatória. Eram usadas facas de obsidiana (tipo de vidro natural, de cor preta ou escura, produzido por vulcões quando a lava esfria rapidamente; as lâminas de obsidiana podem ter uma borda de corte tão fina quanto a dos bisturis de aço cirúrgico de alta qualidade) com cabos de madeira, para trepanar e tumis (facas cerimoniais), que usavam para cortar o couro cabeludo. Faziam parte do arsenal cirúrgico talhadeiras (escopos) de bronze, pinças de cobre e agulhas de sutura. No antigo Peru a neurocirurgia era adiantada e sofisticada. Foi evidenciada a delicadeza que os cirurgiões tinham ao operar, pois preservavam importantes sulcos e circunvoluções cerebrais. Havia poucas infecções, pois usavam ervas antissépticas. A anestesia usada não é conhecida, mas é provável o uso da coca. Curas e recuperação eram obtidas em cerca de 70% dos casos. MEDICINE-MAN Entre os índios norte-americanos, medicine-men eram mágicos ou feiticeiros que anunciavam poderes sobrenaturais para curas invocando espíritos. Correspondem aos xamãs, originariamente descritos na Sibéria, mas existentes com características muito semelhantes em outros lugares do mundo. Um xamã é um indivíduo que depois de haver sentido dentro de si um chamado religioso e de haver Tubino P & Alves E. Medicina pré-colombiana, 2012 . 7 passado por um período de iniciação, adquire uma série de capacidades: cair em transe extático, voo mágico ou domínio do espaço durante o transe, domínio dos espíritos e do fogo. De acordo com Laín Entralgo (2006), o xamã é tanto visionário quanto charlatão, curador e mestre de vida. Medicine era um termo que significava mistério e nada mais. Medicine-man significava mystery-man. Havia a medicine-bag (ou mystery-bag). Embora qualquer um pudesse ter sua medicine-bag, usualmente seu proprietário deveria ser o medicine-man ou xamã. A medicine-bag era feita com pele de animais, como pássaros ou répteis, ornamentada e geralmente fixada a alguma parte da roupa ou carregada nas mãos. Não havia medicamentos (medicines) nas medicine-bags, pois eram fechadas e seladas com atos religiosos e raramente eram abertas. Eram tidas como proteção por toda a vida. Aos 15 anos um jovem estava na idade de formar sua medicine. Saia do alojamento dos pais, ficava cerca de cinco dias em jejum deitado no chão, invocando o “Grande Espírito” para protegê-lo em sua vida. Ao adormecer, o primeiro animal que aparecesse em seu sonho era considerado o animal designado pelo Grande Espírito para ser seu protetor. Voltava à casa dos pais, matava a sede e a fome, e saia a procurar o animal para fazer dele a sua medicine-bag. Levava-a para as batalhas e se a perdesse tinha que tirar outra de um inimigo morto, senão não poderia voltar à tribo; isto feito poderia retornar mais estimado que antes. Quando morria essa “bolsa-mistério” era sepultada junto com ele. Referências/Leitura selecionada sugerida BOSCH, J.; PETRUCELLI, R.J. Medicine in the pre-columbian Americas. In: LYONS, A.S.; PETRUCELLI, R.J. Medicine: an illustrated history. New York: Harry N. Abrams, 1987. cap. 3, p. 43-55. DALRYMPLE-CHAMPNEYS, W. Preventive and Curative Medicine in Ancient Peru [Abridged]. Proc R Soc Med., London, v. 51, n. 6, p. 385-393, 1958. ENTRALGO, P.L. Medicina de los pueblos primitivos. In: ______. Historia de la medicina. Barcelona: Masson, 2006. cap. 2, p.6-11. GUERRA, F. Maya medicine. Med Hist., London, v. 8, n. 1, p. 31-43, 1964. GUERRA, F. Aztec medicine. Med Hist., London, v. 10, n. 4, p. 315-338, 1966. MAGNER, L.N. Native civilizations and cultures of the Americas. In: ______. A history of medicine. 2nd ed. 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