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Anais do Seminário do INES Surdez diversidade social 2001

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Ministério da Educação 
Secretaria de Educação Especial 
Instituto Nacional de Educação de Surdos 
Departamento de Desenvolvimento Humano, 
Científico e Tecnológico 
ANAIS DO SEMINARIO DO INES 
Surdez: Diversidade Social 
19 a 21 de setembro de 2001 
Rio de Janeiro 
Anais do VI Seminário Nacional do INES - Setembro 2001 
Surdez e Diversidade Social 
Aos Autores e Leitores de nossas Publicações 
Infelizmente tivemos inúmeros contratempos com a produção desta revista, 
afetando inclusive a qualidade gráfica com separações inadequadas de sílabas, dentre 
outros problemas. 
Embora tenha passado por inúmeras revisões estes permaneceram na edição 
final. 
Abaixo relacionamos os mais relevantes cm forma de errata. 
Esperamos que no próximo número tenhamos superado esta adversidade. 
Carinhosamente, 
Comissão de Publicação 
ERRATA 
Pag. 11 - onde se le "nada esperar por pretos", leia-se "nada esperar dos pretos". 
Pag. 24 - onde se le "de outras crianças que as quais são", leia-se "de outras 
crianças 
as quais são". 
Pag. 35 - onde se le "mais deverá ser devolvida a tribo", leia-sc "mas deverá ser 
devolvida tribo". 
Pag. 35 - onde se lê ", e vicejando de indignação", leia-se "vicejando de 
indignação". 
Pag. 36 - onde se le "eles assistem impacientes a nossa capacidade", leia-sc "e eles 
assistem a nossa incapacidade". 
Pag. 39 - onde se le "Elizabeth, Elaee", leia-se "Beth, Elaine". 
Pag. 55 - onde se le "deferindo", leia-se "diferindo". 
Pag. 63 - onde se le "considerá-lo como capaz", leia-sc "considerá-lo como 
incapaz". 
Pag. 74 - nos créditos incluir o nome da Prof". Jurema Santos Souza - Supervisora 
do Projeto 
Presidente da República 
Fernando Henrique Cardoso 
Ministro de Estado da Educação 
Paulo Renato Souza 
Secretária de Educação Especial do MEC 
Marilene Ribeiro dos Santos 
Diretora-Geral do Instituto Nacional 
de Educação de Surdos 
Stny Basílio Fernandes dos Santos 
Diretora do Departamento de Desenvolvimento 
Humano, Científico e Tecnológico 
Solange Maria da Rocha 
Coordenadora de Projetos Educacionais 
Monica Azevedo de Carvalho Campello 
Divisão de Estudos e Pesquisas 
Nádia Maria Postigo 
CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte 
Sindicato Nacional de Livros, RJ. 
S474s 
Surdez Diversidade Social 
(organização) INES, Divisão de Estudos e Pesquisas - Rio de Janeiro 
Inclui bibliografia 
I. Surdos - Educação - Congressos: I. Instituto Nacional de Educação de 
Surdos (Brasil). Divisão de Estudos e Pesquisas. 
II. Título 
96-2048 
CDD-371.912 
C D U - 373.33 
131296 161296 002373 
ANAIS DO SEMINARIO: 
Surdez - Diversidade Social 
Edição 
Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES 
Produção Gráfica 
Gráfica e Editora Skill Line 
Tiragem 
4.000 exemplares 
Comissão de Publicação 
Professor André Luiz da Costa e Silva 
Psicóloga Carla Verônica Machado Marques 
Fonoaudióloga Marisa Marins Viola 
Fonoaudióloga Monica A. de C. Campello 
Professora Simone Ferreira Conforto 
Professora Solange Maria da Rocha 
Rua das Laranjeiras, 232 
CEP 22240-001 
Rio de Janeiro - RJ - Brasil 
Telefax: (0xx21 ) 2285-7284 e 2285-7393 
e-mail: ddhctl @ ines.org.br 
Instituto Nacional de Educação de Surdos 
Agradecimentos 
À incansável equipe do DDHCT, 
aos profissionais do INES 
e 
às alunas do CEAD. 
Sumário 
Editorial 11 
Conferências 
Sociedade e Diversidade: Mistura ou Diferença 
Otávio Velho 15 
Um Olhar Psicanalitico a Respeito da Questão da Identidade 
do Surdo 
Leny Magalhães Mrech 23 
Oficina-Palestra de Cultura e Diversidade 
Nelson Pimenta 24 
Palestras 
Escola para Todos - um Olhar pelo Mundo 
Monica Pereira dos Santos 27 
Anacronismo nas Representações Sociais de Cidadãos 
Surdos e Políticas Públicas 
Solange Maria da Rocha 35 
Projeto Dicionário Virtual de LIBRAS 
Tanya A. Felipe 37 
Mesas Redondas 
Educação e Profissionalização de Surdos no Brasil. Ações da 
SEESP, INES, FENEIS 
Luzimar Camões Peixoto 
Stny Basilio F. dos Santos 
Tanya Amara Felipe 49 
Diversidade na Família 
Heloise Gripp Diniz 52 
Esmeralda Peçanha Stellig 55 
Helenita Cardoso Silva 58 
Tany Mary S. de Andrade 59 
Cidadãos Surdos no Ensino Superior: Um Direito e Muitas 
Dificuldades 
Graziella C. Faini 62 
Mauro S. Ribeiro 65 
Alex Curione 66 
André Sampaio 72 
Aspectos Históricos dos Movimentos Sociais e Políticos dos 
Cidadãos Surdos - Uma Experiência Curricular no INES 
Heloise Gripp Diniz 
Marcus Vinicius F. Pinheiro 
Ronise Conceição de Oliveira 74 
O Cidadão Surdocego: Socialização e Escolarização 
Maria Aparecida Cormedi 81 
Shirlei Rodrigues Maia 87 
Márcia Regina Gomes 91 
Bioética - Surdez 
Surdez também uma Diversidade Genética 
Edi Lúcia Sartorato 96 
Autonomia Reprodutiva e Justiça: um Estudo de Caso 
sobre a Sudez 
Debora Diniz 98 
Escola Especial para Surdos 
Lorena Kozlowski 105 
Maria Joaquina Nogueira da Silva 108 
Thais Enê Fagundes Silva 111 
Apresentação de Trabalhos 
Língua de Sinais e Fonoaudiologia - um Encontro Necessário 
Ana Paula Santana 
Priscilla Mara Ventura Amorim 119 
Programa de Capacitação para Educadores que Atuam com 
Alunos Deficientes Auditivos ou Surdos no Ensino Regular 
Buffa MJMB, Nevenfeld Mel. Oliveira K.F. 120 
Meu Livro Eletrônico Regional: Uma Experiência de Autonomia 
da pessoa Surda no Processo de Alfabetização 
Rita de Nazareth Souza Bentes 
Lúcia Cristina Bessa de Brito Coelho 
Maria do Carmo Ferreira Gomes 121 
Fonoaudiologia e Surdez: Possibilidade de Atuação na 
Linguagem Escrita 
Graziella Nascimento Esteves 
Patrícia Rodrigues de Sordi 
Heloisa Arruda Boechat 
Prof. Dra. Maria Cecília M. Pinheiro Lima (orientadora) 122 
Resultados de uma Investigação acerca da Inclusão Escolar 
do Deficiente Aditivo 
Palamin, M.E.E. Bortoleto, R.H.; Rodrigues, O.M.R.P; Motti, T.F.G.; 
Castanho, RM 123 
Superando Limites 
Jane Strey 
Ivonete Julia Andrade 
Sandra Aparecida Jorge Paleto 
Antonio Carlos dos Santos Souza 124 
Competência Pictórica do Surdo: um Futuro Profissional 
Tânia Maria de Oliveira Nery 126 
Editorial 
A Contribuição das Diversidades 
"O macho adulto branco sempre no comando, riscar os índios, nada esperar 
por pretos". 
Caetano Veloso reflete na sua música "Estrangeiros" a questão das hegemonias. 
A trama social enreda-se nas relações de poder e significações que definem destinos 
de sujeitos, grupos, nações e estados. uma trama violenta de relações de lassidão. 
No jogo das hegemonias acima descrito, acrescentamos o macho, adulto, branco, 
que anda, vê e ouve. 
O que está fora disso? Quase todo mundo. As mulheres, as crianças, os velhos, 
os surdos, os cegos, os negros, os homossexuais e mais uma enxurrada de segmentos 
sociais que têm sua existência significada longe da respeitabilidade, das políticas, do 
acesso aos bens materiais e intelectuais da cultura humana e da vida produtiva. Por 
isso mesmo são essas pessoas, organizadas em suas identidades negadas, que estão 
movendo o mundo, desestabilizando as favas contadas. Incomodam quando 
distanciadas do que minimamente se espera de conforto existencial físico. 
Associações, ONG's, passeatas, manifestos promovem ações tendo como 
aliados eternos a arte. Dra. Nise da Silveira reescreveu a história da esquizofrenia com 
a mediação da arte. Bispo do Rosário fica como artista na memória coletiva. Sua 
esquizofrenia, apenas uma remissão. 
As manifestações artísticas são acolhimentos de diversidades aceitas, e 
desveladas em linguagem. Na arte ou em parceria com ela, o homem "enlouquece" no 
sentido de transcender para não "enlouquecer" no sentido de adoecer. E quando é que 
adoece? Quando se distancia da diversidade. Quando guetifica-se e homogeiniza-se. 
Sufoco, violência existencial, destruição psíquica, vocação para as massas. Movimento 
contra a natureza humana.Vitória de Tanatos (Deus do mal). Opressão, vida de 
mercado, liberalismos novos. 
O que pode nos apontar Eros, a vitória da vida, da solidariedade, do bem? 
como desvendar essa trama? 
A trama da legião de excluídos que tiveram suas existências únicas agrupadas 
em categorias para serem abortadas em vida. Contra-ato. Contra-senso. 
Hoje, organizadas, essas existências apontam uma luz em direção a todos nós. 
Tratados como deficientes, diferentes, incapazes, carentes, raça inferior, credo 
inferior, hoje vêem-se e querem ser vistos como diversidades. Queremos também. 
Queremos muito e intuímos o quanto juntos podem realizar de transformações 
nesse mundo. 
Lancemos um olhar para a surdez e para os surdos. Querem ser significados 
como identidade. Mais uma de tantas da diversidade humana. Mais que uma identidade, 
um segmento com uma língua própria, com uma língua própria onde sua escolaridade 
e relações sociais devam ser majoritariamente desenvolvidas com ela. Sua lingua. 
uma ressignificação que não deve ser, em sua ação, um fim em si, visto como 
mais um gueto autofágico de nada adiantaria. 
Ressignificar a surdez é contribuir para a desconstrução da homogenização em 
que estamos imersos. Portanto, desguetificar-se para entrar no enredo social com sua 
diversidade. 
Se tôda essa movimentação for no sentido do mesmo, o mundo surdo, a arte 
surda, a vida surda, de nada terá valido essa ruptura de paradigma (deficiência x 
diversidade). Será do mesmo para o mesmo. 
como as escolas irão se preparar para esses desafios? 
Em um Congresso Internacional de Reabilitação, observa-se um rapaz pintando 
um quadro com um pincel nos lábios, um jovem com ar de intelectual em uma cadeira 
de rodas lê bastante concentrado. Observando mais detalhadamente, não tem as duas 
pernas. O jovem cego toca "Aquarela do Brasil" ao piano, mulheres vaidosas desfilam 
em cadeiras de rodas. Cada uma de estilo diferente. Diversidades. 
Estaremos todos dispostos à interação? 
Leis, declarações, documentos não têm força para deslocar paradigmas. Só os 
atores vivos do processo poderão. 
Escola inclusiva é a escola da alteridade. Quem pode? Todos podemos? Vamos 
apostar? 
Finalmente nos aprontaremos para o outro? 
E as mil e uma faces da relação ensino-aprendizagem, grande entrave, tormento 
dos professores e alunos, como fica? 
Sócrates, o pensador grego, de tantos séculos e pelo menos dois milênios atrás, 
utilizava como estratégia dialógica a maièutica. Refletindo sobre a profissão de sua 
mãe, que era parteira, e observando sua prática, entendeu que, assim como uma 
criança é retirada do ventre materno, as idéias e concepções que uma pessoa tem 
sobre si mesma e sobre todas as coisas também devem ser partejadas. 
Partejadas através do questionamento paulatinamente aumentado em seu grau 
de complexidade até que possa formar um conceito sólido, crítico e significado em sua 
própria existência. Nessa perspectiva os sujeitos são construídos dialeticamente e 
não como meros repetidores de valores, com os quais nem sempre concordam e, por 
vezes, ao reproduzi-los, deles ficam reféns. 
O posicionamento crítico diante do conhecimento de mundo, do saber formal e 
da própria vida deveria ser objetivo primeiro nos processos educacionais. As 
disciplinas seriam instrumentos de saberes organizados a serviço do pensamento 
crítico. Segundo esse raciocínio, todo ser humano estaria, então, contribuindo, com 
sua diversidade, para as questões que desafiam a humanidade. Essa relação, portanto, 
em bases sócio-interacionais, estabeleceria o diálogo crítico entre as diversidades 
promovendo a construção de novos enredos. 
Solange Rocha 
Conferências 
Sociedade e Diversidade: 
Mistura ou Diferença 
Otáv io Velho 
Museu Nacional, 
Universidade Federal 
do Rio de Janeiro 
Carlos Lessa publicou, no número de julho de 2000 de Ciência Hoje, um artigo 
("Globalização e Crise: alguma esperança?") extremamente importante para o esforço 
ainda incipiente de relançar o debate no interior do pensamento crítico, praticamente 
imobilizado há mais de uma década por um conjunto de eventos hoje já sobejamente 
conhecidos. O texto vem somar-se a um conjunto significativo de intervenções que 
Lessa vem fazendo de diversas formas, desde conferências públicas, passando por 
entrevistas escritas e televisionadas, artigos, livros e a própria participação firme e 
esclarecida na política universitária. uma atividade que serve de exemplo raro para os 
que acreditam que a atividade acadêmica deva estar em sintonia e diálogo com a 
sociedade e com os problemas do nosso tempo. 
A meu ver, pelo menos três pontos devem ser exaltados nessa última contribuição 
de Lessa: 
1. O reconhecimento dos processos de "globalização" e "pós-modernidade", sem 
se perder em questões nominalistas estéreis. Para além das difíceis questões 
conceituais ainda por resolver e independentemente dos nossos desejos, aceita 
que os termos, pelo menos, apontam para processos sociais objetivos, que 
incluem mas não se reduzem a processos anteriormente conhecidos, à política 
econômica de eventuais governos e/ou às estratégias de determinados atores 
sociais, particularmente as grandes empresas multinacionais. A sinalização é o 
que importa. Essa atitude é sobretudo um grande passo adiante em relação à 
postura que considera tudo isso mera fantasia ou artimanha, e não um terreno 
a ser disputado, o que na prática tende a traduzir-se em derrotismo. Representa 
a retomada de uma postura que norteava os clássicos da Economia Política, o 
que parece ser uma preliminar indispensável, sem a qual não se pode fazer uma 
crítica verdadeira, ultrapassando a imobilidade do ressentimento. 
2. O aceno com a idéia de "esperança", o que permite encarar os fatos, por mais 
desagradáveis que pareçam. Embora hoje talvez possamos prescindir da dialética 
- com todo o peso filosófico do século XIX que carrega -, não há dúvida de que 
não se deva jogar fora a criança junto com a água. E a criança, a meu ver, é no 
caso a aposta, a esperança de que a complexidade objetiva dos processos 
sociais impeça que algum ator social tome posse desses processos e controle 
plenamente os seus desdobramentos; embora, como veremos, a idéia de esperança 
também possua outras implicações. 
3. O retorno a atores sociais concretos (como o "povão" e a classe média), a 
ultrapassagem de uma análise economicista e a centralidade conferida às questões 
da cultura. Lessa, assim, retoma e renova mais uma vez a melhor tradição da 
Economia Política, apoiado em sólida formação cultural, e abre a possibilidade 
de diálogo com outras tradições de estudo. 
É óbvio que ao abordar corajosamente um amplo leque de temas. Lessa não 
pretende estar dizendo a última palavra sobre tudo, mas sim querendo estimular a 
nossa imaginação, o nosso entusiasmo e o debate. É juntando-se a esse espírito que as 
considerações aqui esboçadas são feitas, de modo extremamente resumido, tomando 
o texto publicado em CH como inspiração inicial, mas não única. 
Em ciências sociais (como na politica) é crucial tentar distinguir nos processos 
sociais o que é irreversível do que não é. Os últimos anos foram testemunhas do 
desmantelamento de muitas estruturas institucionais que pareciam sólidas, fadadas 
apenas a um desenvolvimento normal. Nada mais justo, portanto, que consideremos 
também com ceticismo os ideólogos que pretendem cristalizar os novos processos 
que hoje parecem dominar a cena mundial, sobretudo a onipotência do mercado. Nada 
mais justo e saudável. Lessa aposta na volta do Estado nacional como referência 
política central, o que permitiria uma nova aliança entre o "povão", sempre inventivo, 
e a classe média desiludida com os benefícios do mercado e do novo cenário por ele 
dominado. Deixemos de lado por necessidade a rica etnografia apresentada por Lessa. 
Porém, registre-seque um encanto adicional que sua análise reserva para um 
antropólogo está justamente na importância que empresta às questões normalmente 
abordadas pela Antropologia. E fiel a uma tradição da Economia brasileira que no 
passado permitiu interessantes experimentos interdisciplinares. Mas isso é raro. 
Outro autor, que também sempre teve sensibilidade antropológica, é o historiador 
Eric Hobsbawm. Em livro recente aborda alguns dos mesmos temas de Lessa. Embora 
de um ponto de vista da "periferia" sua síntese possa parecer insuficiente, faz, a meu 
ver, considerações preciosas sobre a política e o Estado no mundo contemporâneo, 
cujas vicissitudes não se restringiriam à limitada história do neoliberalismo. Segundo 
Hobsbawm, o que estamos presenciando não é propriamente um enfraquecimento do 
Estado, a não ser nas extensas áreas em que efetivamente tem ele se esvanecido 
(particularmente na África, mas também na Ásia Ocidental e Central, e talvez nos 
Bálcãs e na Colômbia). De fato, quem, por exemplo, milita na universidade pública 
brasileira, é testemunha dos crescentes poderes orwellianos do Estado, exponenciados 
pelos recursos eletrônicos e contraditórios com um discurso (neo)liberal. Aantropóloga 
britânica Marilyn Strathern já alcunhou para isso a expressão "cultura da auditoria". 
O que na verdade estaria ocorrendo, diz Hobsbawm, é que "os cidadãos estão menos 
dispostos do que antes a obedecer às leis do Estado" (p. 42). O contraste entre o 
respeito às regras dos tribunais por parte dos que nos Estados Unidos nos anos 50 
foram acusados de atividades comunistas e o comportamento dos estudantes e radicais 
da Nova Esquerda a partir de 1968, "como se não mais reconhecessem os princípios 
fundamentais que regiam a condução dos assuntos públicos", é revelador. E imagino 
que nos próprios Estados Unidos o desenvolvimento da noção de "desobediência 
civil" seja um marco não menos significativo. Para Hobsbawm, indicações dessa 
tendência na própria Europa remontam aos anos 40. O protesto social, que havia sido 
institucionalizado como parte do processo político normal, quase como um ritual, 
vai-se assemelhando a revoltas. E em muitos casos, até na própria Europa, o Estado 
mostra-se incapaz durante longos períodos de eliminar forças armadas organizadas 
no interior do território nacional. Há como que uma queda de "racionalidade", pelo 
menos do ponto de vista de uma concepção moderna de política e de um futuro 
ideologicamente programado. 
Posta desta forma, a questão ganha outra dimensão. Assustadora para quem, 
apesar de reconhecer teoricamente que o Estado moderno é uma construção humana 
de poucos séculos e que boa parte da humanidade historicamente não o conheceu, 
naturalizou a sua (oni)presença e a sua legitimidade. Por outro lado, é importante que 
se diga que a contestação do Estado não é a única. O próprio Hobsbawm sugere uma 
fórmula mais geral (que não explora) quando diz que, após o século das pessoas 
comuns, a disposição para aceitar uma autoridade superior não pode ser mais 
pressuposta. No terreno da religião, por exemplo, assiste-se hoje ao surpreendente 
paradoxo do enfraquecimento das estruturas institucionais convivendo com o 
crescimento de uma religiosidade difusa, como que desorganizada, espécie de guerrilha 
no território das grandes religiões, mas também desrespeitando os limites e invadindo 
territórios que o Grande Acordo Moderno reservara para outras instituições (médicas, 
mercantis, jurídicas, etc). Desse ângulo, diria mesmo que não é só o mercado que 
invade tudo, mas são em geral as fronteiras institucionais que são sacudidas. Quase 
que tanto se pode dizer que a religião (ou a política) se mercantiliza, quanto que a 
religião (ou a política) penetra na esfera do consumo. Questão de perspectiva. Boa 
parte das controvérsias religiosas hoje gira em torno da demanda moderna por uma 
definição clara e unívoca do religioso e a cada vez mais freqüente contestação (pós-
moderna?) das definições, na prática, desses limites (Giumbelli, E.). 
Parece ser esta a nova era em que estamos ingressando, desconhecida e 
perturbadora. Qualquer previsão é, mais do que nunca, arriscada. Mas parece razoável 
supor, diante do exposto, que a pretensão ao domínio absoluto da lógica de mercado 
não se sustentará por muito tempo. A posteriori talvez venha a ser vista como um 
momento de um processo mais geral. O fundamentalismo neoliberal já apresenta 
alguns indícios de esgotamento e o sucesso da China e da Malásia na superação da 
última crise financeira, tanto quanto o desastre russo, é apenas uma das razões e sinal 
disto. Significa, então, que teremos o retorno ao Estado como fundamento? Pela 
lógica do que venho desenvolvendo, não. Seria uma ilusão. Ao contrário, parece que 
teremos de nos acostumar à ausência de um fundamento sólido para a vida social. O 
que não significa, evidentemente, que a ação estatal não possa ser relançada, uma vez 
passada a euforia neoliberal. Mas de que Estado e de que nação se tratará? 
Lessa nos recorda alguns elementos comumente associados à nossa identidade 
brasileira que, como não foram característicos do regime autoritário de 1964, pelo 
contrário, não teriam por que ser questionados: cordialidade, não-violência, ausência 
de segregação e tolerância. Eis, mais uma vez, um tema caro aos antropólogos, que 
nem sempre é apropriado nas análises políticas: o de uma sociedade que não se 
confunde com o mundo oficial e seus projetos de nação e nem, necessariamente, com 
as alternativas apresentadas pelas elites. No entanto, a partir de alguns setores da 
sociedade, esses elementos da suposta identidade brasileira vêm sendo de fato 
questionados, e talvez não tanto simplesmente por uma espúria associação com o 
regime militar. O próprio sincretismo, competência que Lessa (e muitos outros) 
exalta como valor síntese, tem sido contestado. Até que ponto, pergunta-se, trata-se, 
na apresentação desses valores, também de uma construção das elites, pelo menos na 
maneira de organizar elementos efetivamente presentes? Lessa, em seu texto, associa 
a pós-modernidade ao consumismo e ao modismo. Imagino que essas contestações 
possam ser consideradas parte dessa "onda". Dever-se-ia, talvez, explorar melhor até 
que ponto o consumo é, hoje, realmente (como também se tornou moda ou senso 
comum dizer), apenas terreno do niilismo ou se, pelo contrário, pode ser um lugar de 
produção de valor; de formas inusitadas, mas ricas. O sociólogo inglês Colin Campbell 
vem investigando isso, emprestando ao consumo uma nobre ancestralidade no 
Romantismo do século XIX que merece atenção. 
Mas de qualquer forma, é inegável que a "onda" associada à globalização e à 
pós-modernidade trouxe ao debate público questões cuja legitimidade poucos 
contestariam abertamente em nome da nossa identidade. E o caso da pauta levantada 
pelo movimento feminista e a do ambientalismo, que tendem a globalizar-se cada vez 
mais. Será que o mesmo poderá vir a acontecer em relação à denúncia do sincretismo 
do "pé na cozinha" no terreno das relações interétnicas? E possível, mas aí a questão 
talvez seja mais espinhosa, como ficou claro no drama coletivo que vivemos nas 
comemorações dos "quinhentos anos". Até um artigo de Genética publicado 
originalmente em CH (Sergio Pena e outros, "Retrato Molecular do Brasil", Vol. 27, 
no. 159) foi amplamente apropriado para mostrar que somos, de fato, biologicamente 
misturados, não fazendo sentido - dessa limitada perspectiva - as reivindicações de 
identidade étnica por parte de indígenas e negros. No plano da cultura, criou-se até 
um emblema: o chinelo de dedo. O fato de boa parte dos nossos indígenas utilizar-se 
desse simples e prático artefato cultural japonês sugeriria que também aí a identidade 
étnica (bem como a temática do multiculturalismo) não se sustentaria. O chinelo de 
dedo, que pode ser usado, por exemplo, pelos índios Waurá,a cuja rica cosmologia 
somos introduzidos logo após o artigo de Lessa, no mesmo número de CH (Aristóteles 
Barcelos Neto, "Monstros Amazônicos: Imagens Waurá da (Sobre)Natureza", Vol. 
27, no. 162), torna-se critério de (não)indianidade. E a ausência de história 
apresentando-se como imposição. Curioso imaginar a que levaria a aplicação de critério 
análogo a nós mesmos. Se é que isso já não é feito: o McDonald's parece ser o nosso 
chinelo de dedo e, no final, todos são acusáveis de inautenticidade e infidelidade à 
cultura. No entanto, se o que resta no primeiro caso (o do chinelo de dedo) é o 
diagnóstico salvador do sincretismo, nesse segundo parece que há uma mudança na 
lógica, produzindo-se a bela sugestão primitivista do canibalismo cultural orientando 
a inventividade popular. Só que essa possibilidade é negada a nossos canibais originais, 
por medo, talvez, não confessado na acusação de inautenticidade, de que se afirmem 
excessivamente, em prejuízo do "todo" nacional. Fora do sincretismo os índios só 
podem ser exaltados como ícones ou reduzidos a "fragmentos". 
E interessante como esse tipo de posicionamento, nas comemorações dos 
"quinhentos anos", abarcou praticamente todo o arco político e intelectual das nossas 
elites, sugerindo que de fato estamos aqui lidando com elementos ideológicos muito 
profundos. Só que ao mesmo tempo, como sugere o próprio Lessa, é inegável que a 
posição contrária vem crescendo, e não apenas nas elites. A ponto, por exemplo, de 
hoje ter-se revertido o declínio numérico das populações indígenas. Reversão devida 
não apenas a alguma melhoria nas condições sanitárias, mas porque mais gente do 
"povão" hoje se identifica como índio, mesmo tendo que "inventar" tradições, no que 
estão em muito boa e ilustre companhia, conforme já mostrou o próprio Hobsbawm. 
E o mesmo ocorre no caso dos negros. 
A Antropologia diz que é preciso estranhar o familiar. Mas quantos de nós 
somos capazes de enxergar o óbvio? Por exemplo, a ausência de negros nas nossas 
universidades públicas, sobretudo na pós-graduacão. É crível, ainda, justificar isso 
em nome do sincretismo? Ou é de fato necessária a ajuda de um olhar estranho para 
estranhar? Por outro lado, uma vez mostrado o óbvio, poucos de nós não nos 
sensibilizamos de alguma maneira, embora possamos divergir no tratamento da questão. 
Não será isso sinal de que a cultura não é unívoca e de que portanto essas estranhezas 
encontram eco "aqui dentro"? Nesse caso, a oposição entre externo e interno precisaria 
ser revista. Sem perder de vista os elementos de poder envolvidos, nem sempre 
evidentes para uma análise que não se queira banal, o "externo" pode ser um recurso 
heurístico necessário e constitutivo de nós mesmos. Assim como o seria, do "outro 
lado", o primitivismo, a que voltaremos mais adiante. 
A ênfase, então, por vezes exaltada (além de exaltadora) na cordialidade, na 
não-violência, será pura representação da realidade? Ou será exorcismo agonístico 
dos seus contrários, remédio contra males que espreitam bem da esquina? O regime 
militar, afinal, por mais que se queira, não foi basicamente produto alienígena. E até 
a esperança talvez traga embutida, aflita, a desesperança. Mesmo o amor-próprio - e 
isso, significativamente, sugere o próprio Lessa - é um sentimento delicado, e o de 
inferioridade ameaça sempre ressurgir. Talvez como parte de uma grande ciclotimia, 
sobretudo das elites, grandes promotoras desses auto-retratos. Vale a pena, então, 
simplesmente tentar levantar a gangorra, mais uma vez? Temo que isso não nos tire 
do lugar, mas apenas realimente essa visão implicitamente dualista do mundo, que na 
verdade não corresponde ao que predomina no plano da cultura, que está sendo 
sugerido aqui nao ser unívoca. 
Lessa diz que a pós-modernidade fragmenta-nos por raça, sexo, idade, etc. E 
que não há substituto para a pátria, a não ser o consumo. Já mencionei a necessidade 
de tratar de modo novo o consumo. Mas sem dúvida é a partir dessas questões que se 
trava a polêmica; embora talvez tivéssemos, então, que acrescentar classe (muitos já 
o fizeram) às identidades fragmentadoras do ponto de vista do "todo". E 
compreensível, até certo ponto, o medo da fragmentação. Mas é preciso apostar que 
os processos não-controlados podem ser virtuosos. O risco contido na.defesa obsessiva 
da integração não deve ser esquecido. Lessa já o experimentou na própria universidade 
e denodadamente se opôs ao que ocorre quando um grupo se arvora, ancorado no 
poder do Estado, em árbitro do que é ou não "radicalismo". E a ironia está em que o 
fazem justamente em nome do "jogo democrático", que Lessa sugere como antídoto, 
justamente, para os "radicalismos". Portanto, a questão é complexa: é precisamente 
em torno do que se entende por democracia que se deve travar o debate crucial para 
os nossos destinos. Isso tem sido encoberto lançando-se mão do espectro do binômio 
radicalismo-ditadura diante de manifestações dos movimentos sociais que, nesses 
tempos em que o alinhamento automático ao Estado é cada vez menos a regra geral, 
tornam-se cada vez mais normais. Normais a não ser para os últimos a saber, os 
ciosos e inseguros de suas prerrogativas. O espectro da ditadura, estimulando a 
obsessão pelo controle, é brandido para forçar a aceitação de uma concepção restrita 
de democracia, apresentada como a única. O sistema representativo, cuja crise no 
mundo todo (também compreensível pelo já exposto) é ignorada, é utilizado como 
barreira contra uma democracia de cunho mais participativo. 
Aqui talvez se atinja um outro real paradoxo dos nossos tempos: o dos 
"progressistas" conservadores (ao lado dos conservadores que apostam na mudança). 
Fazem pós-modernidade sem sabê-lo. Para neutralizar as ciclotimias, talvez seja 
preciso buscar o "caminho do meio". A exaltação da fragmentação não cabe. Porém, 
igualmente não cabe a nostalgia de um fundamento sólido, pois que também ele tende 
a se desmanchar no ar; ou seja, a se fragmentar. como ocorre cada vez mais na vida 
conjugai, talvez tenhamos que nos acostumar com a costura de parcerias e arranjos, 
ao invés de casamentos e alianças mais amplas. Um pouco por toda a parte as 
instituições são postas em cheque e o enrijecimento em sua defesa derrota-se a si 
mesmo. Tem efeito paradoxal, porque retira-lhes o espírito original, retroalimentando 
os elementos mesmos que as tornam suspeitas. Talvez a genuína aceitação das 
"fragmentações" seja o único cacife possível para se entrar no jogo da sua transmutação, 
que não se sabe em que direção poderá se dar. 
A História brasileira, nesse ponto, pode ajudar. Aqui não cultivamos em demasia 
uma visão essencialista de nós mesmos e as elites tiveram menos sucesso que em 
outras partes em fixá-la, mesmo não se podendo negar-lhes qualquer eficácia ideológica. 
Sempre nos vimos em movimento, nos fazendo, ambíguos. Ambigüidade que 
representa uma sábia consciência, bem adequada à nova era, de que os opostos não se 
excluem, como nos dualismos. Guerra e paz, dentro e fora, malandros e heróis, Dona 
Flor e seus dois maridos: Gilberto Freyre (Benzaquen de Araújo), Jorge Amado e 
Roberto DaMatta (Geiger e Velho) já o disseram. Aí também residiria o sincretismo 
"bom", enquanto modo de operar; mas subordinado à ambigüidade, o operador maior, 
o meta-operador, que o contextualiza de modo diferente de sua reificação ideológica, 
ele mesmo sincretismo tendo que supor, sem excluir, o seu oposto. Se não nos 
distinguimos de modo unívoco substantivamente, pelo menos nesta visada, nesta 
epistemologia, neste modo de ver e de atuar o fazemos, em relação a muitos povos, 
sobretudo do Ocidente, que hoje vivem o drama da penosa revisão das suas identidades 
e de seus modos de pensar, que antes nos pareciam um ideal a atingir. Eis o paradoxo 
do nosso primitivismo, elaborado literariamente no interior do nosso Modernismo 
(Geiger):não se põe nos começos, como arquétipo, mas vai sendo digerido como 
antídoto, que nos acompanha, contra as ilusões de uma modernidade auto-suficiente, 
em todas as suas versões. 
O Estado brasileiro provavelmente será relançado. Mas jamais será o mesmo. 
A administração dinâmica de nossas diferenças, mais que uma integração pressuposta, 
deverá ganhar espaço. Não haverá retorno de filho pródigo, nem redescoberta, porque 
não haverá a que retornar ou redescobrir. Menos metafísica e mais pragmatismo do 
chinelo de dedo. Foi essa a lição do nosso sincretismo, que, agora, é desafiado a 
transmutar-se para que não sirva de encubridor das diferenças, mas continue a prestar 
o seu serviço ajudando para que essas diferenças não se reifiquem, como já aconteceu 
lá onde ele esteve ausente. Nossa criatividade, bem lembrada por Lessa, deve permitir 
que descubramos como realizar a alquimia, a acrobacia sem rede desse duplo 
movimento, no âmbito de uma identidade (com aspas) não-essencialista e ambígua, 
em que os opostos (e as diferenças) não se excluam. 
Sinais dessas possibilidades, no entanto, precisam ser buscados agora. O 
próprio Estado se move por vezes de modo não controlado pelos governantes e com 
fronteiras pouco nítidas. Por vezes, também, isso é mais perceptível lá no terreno 
tradicional dos antropólogos brasileiros, no interior do país, onde muitas pessoas 
desconhecem tanto o patriotismo, quanto o consumismo. Impressionaram-me nesse 
ano de 2000, no Médio Purus (Amazonas), os modos pelos quais se sente a presença 
do Estado. Pelo menos nessa área avança o reconhecimento das terras indígenas, sem 
dúvida como resultado de um conjunto de forças que ultrapassa o país. Em 
conseqüência, dá-se uma inversão dos papéis tradicionais na região, já que os índios 
são "federais". A lógica é a do reforço das diferenças, criando-se, por exemplo, uma 
assistência à saúde separada para brancos e índios e forçando-se uma definição étnica. 
Contra isso e em nome da "mistura" colocam-se os grupos políticos locais, embora 
essa ideologia da mistura mostre nitidamente seus limites na queixa de que no Sul do 
país se considera que todos os habitantes do Amazonas são índios ou no espanto 
diante da hipótese de se votar num candidato indígena a vereador (sem falar do 
espanto diante da permanência de pesquisador em aldeia onde, no entanto, 
iconicamente, tudo seria "natural"). Por outro lado, o Estado não tem forças para agir 
sozinho, mas depende de "parcerias" com organizações não-governamentais, igrejas, 
prefeituras e associações indígenas (no caso, atualmente, a Organização dos Povos 
Indígenas do Médio Purus, fundada há cinco anos). Sozinhos, todos são incompletos, 
não fazem sistema. A incompletude impõe uma espécie de integração, provisória, 
mas que não se identifica com subordinação à lógica do mercado. E como num 
caleidoscòpico quebra-cabeças, desses em que podem sobrar peças. As coisas só 
acontecem quando há uma confluência de vários atores, o que também permite maior 
vigilância sobre a utilização dos recursos, assunto melindroso e crítico. São muitas 
energias humanas e interações envolvidas e a "química" entre as pessoas é um elemento 
crucial. As questões de meio ambiente também carreiam recursos em função de uma 
pauta extra-local, provocando tensões com os hábitos e costumes consagrados. 
Há muitas diferenças em relação ao período de minha primeira pesquisa na 
Amazônia há mais de trinta anos, quando o Estado mostrava-se onipotente na intenção 
e impotente na prática, como no caso paradigmático da Rodovia Transamazônica. 
Tudo isso, delicado e contraditório, é, mais uma vez, menos produto de uma intenção 
de governo e mais do surgimento de novas forças sociais em complexa interação. E 
preciso tentar entender o que está sendo gestado. E de tabela tudo isso sugere 
igualmente a importância do trabalho de pesquisa, que ajuda a manter os pés no chão 
do existente. Trabalho antenável às grandes questões do nosso tempo, que, por sinal, 
vão além das do Estado, da política e dos supostos centros de decisão. A própria 
"despolitização", tão lamentada, pode ser tomada, em sua positividade, como um 
ceticismo realista e saudável, baseado na experiência concreta, e que nada tem de 
anacrônico, prestando-se a comunicar-nos a fluidez das fronteiras e apontar para 
outras realidades fora da política. Não é justo, nem proveitoso, pensar e medir (auditar?) 
a riqueza da vida social exclusivamente do ponto de vista de sua instrumentalização, 
pois esse movimento, por si, já compromete a capacidade de compreendê-la e resguardá-
la, reforçando com isso os modos de pensar, as epistemologías dominantes. Os 
nossos evangélicos, por exemplo, sobretudo os pentecostais, não devem ser vistos 
apenas como os novos portadores de uma ética protestante progressista (tal como 
também não são agentes da CIA, como já foi costume dizer antes que fizessem valer 
sua presença). 
Menos distinções claras e nítidas e mais complexidade e fluidez. Mistura e 
diferença. Sistemas vivos, não mecânicos, que podem ser parte de sistemas maiores. 
Sistemas nem sempre lógicos ("racionais") ou conscientes, mas que, no entanto, 
buscam a auto-regulação e adiar a entropia por meio de comunicações que se dão em 
inúmeros níveis e de múltiplas e insuspeitadas maneiras. Isso tudo exige de muitos de 
nós (entre os quais me incluo) uma penosa reeducação. Benefício da crise, o que traz 
a esperança de enxergarmos com novos olhos - mais janelas que projetores -, não o 
que estaria por vir, mas o que já está entre nós. Esperança no presente porque se 
aceita a aventura da vida, o que talvez permita concentrar as energias e agir com mais 
eficácia, respondendo às questões que estão efetivamente postas. 
Sugestões de leitura: 
BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. - Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a Obra 
de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 
CAMPBELL, C. - The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism. 
Oxford: Blackwell Publishers, 1995(1987). 
GEIGER, A. - uma Antropologia sem Métier: Primitivismo e Crítica Cultural no 
Modernismo Brasileiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional 
(UFRJ), 1999. 
GEIGER, A. e VELHO, O. - "A liminaridade antropofágica de Roberto DaMatta ou 
Tupi or not tupi? A virtude está no meio" in GOMES, L., BARBOSA, L. e 
DRUMMOND, J. A. (orgs.), O Brasil Não É Para Principiantes: Carnavais, 
Malandros e Heróis 20 Anos Depois. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 
GIUMBELLI, E. - O Fim da Religião: Controvérsias acerca das "seitas" e da 
"liberdade religiosa" no Brasil e na França. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: 
Museu Nacional (UFRJ), 2000. 
HOBSBAWM, E. - O Novo Século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 
STRATHERN, M. - "A avaliação no sistema universitário britânico". Novos Estudos 
Cebrap, no. 53, março de 1999, pp. 15-32. 
VELHO, O. - "Globalização: Antropologia e Religião". Mana - Estudos de 
Antropologia Social. Vol. 3, no. 1, abril de 1997, pp. 133-53. 
Um Olhar Psicanalitico a Respeito da Questão da Identidade 
do Surdo 
Profa. Dra. Leny Magalhães Mrech 
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo 
Súmula: Serão discutidos, a partir das mais recentes pesquisas e 
encaminhamentos da teoria psicanalitica lacaniana, os principais impasses que 
geralmente acontecem no processo de constituição da criança surda. Para isto serão 
apresentadas as principais diferenças entre as abordagens da Psicologia e da 
Psicanálise. Em segundo lugar, a forma como as teorias de desenvolvimento e a teoria 
psicanalitica têm lidado com os conceitos de desenvolvimento e estrutura, tendo em 
vista o processo de constituição da criança surda. Em terceiro lugar, abordar-se-á de 
que maneira os conceitos de identidade e os processos de identificação têm sido 
trabalhados pelas teorias do desenvolvimento e pela teoria psicanalitica. Por último,serão privilegiados os efeitos dessas discussões na prática do professor de Educação 
Especial, Educação Inclusiva e do ensino regular. 
Oficina-Palestra de Cultura e Diversidade 
Nelson Pimenta 
com a oficina que acabamos de fazer, vivenciamos uma situação em que a 
diversidade se impôs. Houve momentos em que foi difícil relativizar valores e aceitar 
as diferenças. A vida e a sociedade são assim, temos que conviver com a diferença e 
com a oposição o tempo todo. 
Eu me chamo Nelson Pimenta e nasci em Brasília, no dia 6 de setembro de 
1963. Mudei-me com a família para o Rio de Janeiro em 1976. Fui o primeiro ator 
surdo a se profissionalizar no Brasil, estudei no NTD (National Theatre of the Deaf) 
de Nova Iorque, sou pesquisador de Língua de Sinais e já atuei como instrutor de 
teatro e de Língua de Sinais Brasileira em diversas instituições de ensino, entre elas o 
INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) e a FENEIS (Federação Nacional de 
Educação e Integração de Surdos). Atualmente estudo para graduação em Cinema 
pela Universidade Estácio de Sá. Em 1999 criei, com Luiz Carlos Freitas, a LSB 
Vídeo, empresa com a missão de contribuir para o aprimoramento da educação dos 
surdos. Montamos uma equipe de trabalho com profissionais da área de educação que 
acreditam que a situação de exclusão social em que muitos surdos brasileiros se 
encontram poderia ser evitada a partir da construção da identidade surda nos indivíduos, 
possibilitando a luta por seus direitos e promovendo a conscientização de seus 
deveres. 
Eu sou surdo e sou feliz. Minha trajetória de sucesso começou na família, com 
a absoluta aceitação da diversidade da minha natureza, principalmente por parte de 
minha mãe, que desde a descoberta da surdez teve a intuição de que o mais importante 
em sua relação comigo seria termos uma comunicação satisfatória, partindo do princípio 
de que ela deveria se adequar à forma de comunicação mais fácil e natural para mim, 
e não o contrário. Logo descobriu que essa forma era com os sinais e adotou a língua 
de sinais em nossa casa. Por causa disso, cresci acreditando que a comunicação do 
mundo era dessa forma, através dos sinais, e, portanto, nunca cogitei que eu pudesse 
ser diferente. Meu referencial nunca foi a audição e sim a surdez, o que contribuiu, 
definitivamente, para a construção da minha identidade como um indivíduo com 
elevada auto-estima e autoconfiança, ao contrário de outras crianças que às quais são 
impostos modelos de comportamento e comunicação adequados a quem tem audição 
e, com isso, passam a ter os ouvintes como referência. Invariavelmente, essas crianças 
crescem com baixa auto-estima, acreditando serem deficientes por não conseguirem a 
mesma performance que os ouvintes na fala e na escrita. 
Mais tarde descobri que eu sou, de fato, diferente da maioria, e minha luta 
começou no sentido de que a surdez seja reconhecida como apenas mais um aspecto 
das infinitas possibilidades da diversidade humana. Ser surdo não é melhor ou pior do 
que ser ouvinte, é apenas diferente. E ser surdo é diferente de ser deficiente auditivo. 
Se um de vocês aqui presentes, que ouve e que, por isso, tem a cultura da audição, ou 
seja, se comunica através da fala, gosta de música e do barulho do mar etc, perder a 
audição, certamente será um deficiente auditivo, pois estará com um déficit, uma vez 
que perdeu algo que já teve um dia. Mas eu nasci surdo e, como só se perde aquilo que 
se tem, nunca perdi a audição, pois nunca a tive. Eu tenho o direito de viver assim, e 
o mundo tem o dever de aceitar minha diferença. 
Sou surdo e sou feliz. 
Palestras 
Escola para Todos - um Olhar pelo Mundo 
Monica Pereira dos Santos' 
I - Introdução 
Este artigo tem como objetivo discutir e defender a existência de um sistema 
educacional que se proponha a atender, com qualidade, a todo o seu alunado, 
independente de suas características particulares originadas de suas habilidades, origem 
cultural, étnica, religiosa, opção sexual ou qualquer outro aspecto que o diferencie. 
Pretende ainda mostrar o que as pesquisas internacionais têm apontado como 
principais obstáculos à viabilização de uma educação democrática e de qualidade para 
todos, bem como mostrar que argumentos têm sido utilizados para combater esses 
obstáculos, removendo-os, ou pelo menos minimizando-os. 
As experiências relatadas nas pesquisas podem ser consideradas como iniciativas 
tomadas por esses países em relação à transformação de suas escolas numa direção 
cada vez mais inclusiva de seu alunado. Se essas experiências não devem, por um 
lado, ser tfaduzidas ao pé da letra para o contexto brasileiro, elas podem e devem, por 
outro, servir de fontes de inspiração para que possamos repensar nossa própria 
realidade e prática. 
Partimos do princípio de que não há, em contexto algum, grupos que possam 
ser considerados homogêneos. A escola é, em especial, o lugar por excelência em que 
a heterogeneidade se encontra presente, e esta deve ser celebrada como um recurso, ao 
invés de ser vista como um problema. Argumentamos que sem uma perspectiva de 
celebração das diferenças, através da qual velhos paradigmas educacionais relativos a 
uma prática pedagógica excludente possam ser combatidos e transformados, o objetivo 
de uma escola de qualidade para todos pode ser inviabilizado. 
Dividimos o material subseqüente em duas partes. Na primeira, estaremos 
discutindo o que é a escola para todos no que diz respeito a suas origens históricas, 
aos seus objetivos e ao porquê de sua existência. A segunda parte tratará de apontar 
os obstáculos mais comumente encontrados nos diferentes contextos mundo afora, e 
a relatar o que tem sido sugerido para enfrentá-los. 
II - O que é a escola para todos? 
2.1 - Origens - de onde ela vem? 
A idéia de escolas que atendam a todo o seu alunado se origina de uma 
movimentação histórica a favor da democratização e humanização da educação em 
diversos países. Suas origens já foram apresentadas em diversos artigos e livros, 
tanto na literatura nacional quanto internacional (ver, por exemplo, Carvalho, 2000, 
1998; Santos, 1997, 1998 a, 1998b, 1999; Werneck, 1997). A despeito dé uma ou 
outra visão diferenciada sobre os autores quanto ao assunto, todos concordam em 
que, historicamente, a origem da noção de escola para todos remonta há pelo menos 
'Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Brasil (Universidade 
Federal do Rio de Janeiro). 
quatro décadas, quando da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos 
(1948). 
A própria existência desse documento denota o ano de 1948 como um 
importante marco no sentido da expressão, em declaração, de preocupações ligadas 
aos direitos básicos de qualquer cidadão do mundo. Entre tais direitos, já se encontra 
o relativo à educação. 
Na verdade, tais preocupações não foram manifestas ao acaso. Tratava-se de 
uma época pós-Segunda Guerra Mundial, em que o desemprego e a recessão econômica 
assolavam muitos dos países líderes e outros, aliados e inimigos na Guerra. As 
desigualdades sociais, decorrentes de propostas político-econômicas que primavam 
principalmente pela prosperidade econômica dos países, tornaram-se ainda mais 
gritantes. No campo da produção científica, estudos comprovavam cada vez mais 
tôda uma série de discriminações e exclusões ocorrendo nos mais variados terrenos da 
vida humana. Era, portanto, imperativo uma tomada de atitude pública e manifesta, 
nos termos de uma Declaração Universal, a respeito das desigualdades constatadas e 
da reafirmação da necessidade de se combatê-las. 
A partir desta época a luta pelo reconhecimento dos direitos humanos, bem 
como pela sua proteção, se acirrou e se organizou. Grupos minoritários que sofriam 
o peso maior da exclusão inauguraram seus próprios movimentos de defesa, 
constituindo grandes redes de defesae produção de conhecimentos que propiciassem 
a adoção de alternativas, em todos os campos, para que uma vida mais digna fosse 
garantida aos seus membros. Esses grupos ganharam força política, e passaram também 
a exercer influência na elaboração de políticas mais humanistas em seus respectivos 
países. 
A educação, um dos principais campos por meio dos quais se promove a 
formação humana, não ficou de fora. Nos sistemas de ensino, constatava-se a exclusão 
de vários grupos sociais, pelos mais variados motivos, ora explícitos, ora velados. 
Havia grupos que sequer conseguiam acesso à educação e outros que, mesmo 
usufruindo dela, eram vulneráveis às mais variadas práticas de discriminação que 
culminava em sua exclusão. 
As décadas de 60 a 90 preocuparam-se especialmente com a investigação 
científica desse quadro. Constatou-se que a exclusão se dava por motivos de etnia, de 
religião, de gênero, de condições sociais, de supostas incapacidades físicas ou mentais, 
entre vários outros aspectos. A escola seguia sua pedagogia, preponderantemente 
elitista, e a premissa básica era a de que cabia aos alunos adaptarem-se a ela e a sua 
cultura seletiva. As avaliações, a didática, tudo colaborava para a manutenção de uma 
escola única, inflexível, em que as diferenças não possuíam nenhum valor - pelo 
contrário, eram no mínimo inconvenientes. O pressuposto, equivocado, era o de que 
uma educação "correta" deveria ser uma só para todos, em princípio e na prática, 
como se todos fossem iguais. como se todos aprendessem pelas mesmas vias, 
movidos pelos mesmos interesses e com a mesma motivação. 
A questão que as realidades sociais nos apresentavam, no entanto, pela da 
constatação cada vez mais alarmante dos índices de fracasso e exclusão dos indivíduos 
dos mais variados setores das sociedades, era: embora sejamos todos iguais em valor 
(como seres humanos), isso não significa que somos todos iguais também em nossa 
forma de ser. Em outras palavras: apesar de termos declaradamente o mesmo valor 
comò seres humanos, e conseqüentemente os mesmos direitos a uma vida digna, não 
vivemos de forma homogênea. Pertencemos a grupos variados, temos características 
(físicas, familiares, históricas, religiosas, culturais, de gênero, psíquicas, etc.) variadas, 
e isso por si só implica a consideração, por parte de qualquer serviço social, de que 
para que atenda, de fato, a todos com maior igualdade, é preciso considerar as diferenças 
na organização desses serviços. 
Inverte-se, assim, o pressuposto: uma educação "correta", democrática, justa, 
jamais poderia ser a mesma para todos no que diz respeito à sua prática, embora sim 
no que diz respeito aos seus princípios. O princípio de que a educação deve 
proporcionar uma formação social básica a todo e cada ser humano deveria ser 
preservado. Mas as práticas através das quais tal princípio se manifesta não podem 
ocorrer sem flexibilidade e variação. Porque nem todos têm a mesma motivação para 
aprender, nem todos aprendem melhor apenas ouvindo (há os que preferem ver, os 
que preferem tocar, os que preferem exercitar, os que preferem falar...), e nem todos 
querem aprender a mesma coisa. Portanto, uma escola de qualidade para todos deve 
levar esses aspectos em consideração. 
2.2 - Objetivos - para que serve a escola para todos? 
uma escola para todos serve, portanto, como meio reconhecido através do qual 
os membros de uma sociedade possam ter acesso ao conhecimento e, mais do que 
isso, à produção deste, como indivíduos ativamente participantes e construtores de 
seu próprio meio. A escola de qualidade para todos reconhece a importância de seu 
próprio papel na formação de sociedades mais justas e luta para extinguir ou minimizar 
todo e qualquer tipo de exclusão: dentro e fora de sala de aula. Ela serve ao objetivo 
mais amplo de constituição de sociedades - e conseqüentemente de um mundo - em 
que as diversidades sejam vistas como riquezas, e nunca como problemas. Pois como 
nos diz Booth: 
A necessidade de se pensar inclusivamente em educação nunca foi tão importante 
quanto nesta última década. Temos sido dolorosamente relembrados do quanto 
a paz e a estabilidade ficam abaladas quando a diversidade deixa de ser 
valorizada.(in: Savolainen et alii, 2000, p. 29). 
Nesse sentido, cabe lembrar sua estreita associação com o que hoje se chama 
educação inclusiva. Essa relação fica explícita num dos documentos internacionais 
mais importantes da década de 90, que reafirma os princípios expressos em 1990 na 
Declaração Mundial sobre Educação para Todos: a Declaração de Salamanca (1994). 
Em sua versão original (inglesa), lê-se, na página 78 de suas linhas de ação, no tocante 
aos recursos necessários para que tais linhas tenham efeito: 
O desenvolvimento de escolas inclusivas como o meio mais eficaz de sé atingir 
a educação para todos deve ser reconhecido como uma política-chave no 
plano governamental e a ele [ao desenvolvimento - nota da autora] deve ser 
dado um lugar privilegiado no planejamento do desenvolvimento nacional. 
Em outras palavras, fica claro que a inclusão em educação é a filosofia com base 
na qual uma educação para todos possa, de fato, acontecer. Ao planejarem seu próprio 
desenvolvimento, as nações deverão levar em conta que a educação para todos, 
princípio básico de desenvolvimento nos dias de hoje, é alcançada quando 
fundamentada numa filosofia - de inclusão - que leve em consideração a diversidade 
presente nas sociedades e seus sistemas de ensino. Isso deve acontecer em todos os 
níveis: no da organização das instituições educacionais (formais e não formais), na 
administração de sistemas (educacionais e outros), na formulação e implementação 
de políticas (nacionais e internacionais), e, acima de tudo, nas práticas sociais 
(pedagógicas e outras). 
2.3 - Justificativa - por que uma escola para todos? 
Assim, justifica-se a escola para todos. Fundamentada no reconhecimento da 
importância de se lutar contra as exclusões - e conseqüentemente promover a inclusão 
-, ela estará promovendo um mundo cujas relações internacionais e intranacionais se 
darão de forma mais justa, mais igualitária. 
Ill - como a escola para todos tem sido promovida? 
3.1 - Obstáculos e seu enfrentamento 
Sete têm sido os temas orientadores de ações nacionais propostos pela 
Declaração de Salamanca (1994): (a) Política e organização; (b) Fatores escolares; (c) 
Recrutamento e treinamento de pessoal de educação; (d) Serviços externos de apoio; 
(e) Áreas prioritárias; (f) Perspectivas comunitárias e (g) Recursos requeridos. 
Em cada um desses temas, as pesquisas levantam o que se podem considerar 
obstáculos ainda presentes - e conseqüentes ações necessárias - para que a educação 
para todos seja promovida. Discutiremos aqui os três primeiros temas, considerados 
mais imediatamente ligados ao assunto do presente artigo. Cabe esclarecer, no entanto, 
que todos possuem igual importância para o contexto brasileiro, e que o "corte" de 
alguns neste artigo dar-se-á meramente em função dos limites de espaço. 
A respeito do primeiro tema (política e organização), ele afirma a importância 
de se operacionalizarem as políticas em todos os níveis, com apoio mútuo entre 
comunidades e governos locais e nacionais. De nada adianta formular políticas sem 
elaborar estratégias para sua implementação. Entre as estratégias, encontra-se a de 
engajar tais políticas às realidades das comunidades em que serão aplicadas e a de 
assegurar maneiras pelas quais elas sejam de fato implementadas localmente. 
Um outro aspecto levantado como obstáculo no tocante ao tema política e 
organização refere-se à separação que se verifica em vários países entre educação 
pública e a educação privada: 
Em muitos países existe um vasto setor privado cuidando dos mais privilegiados 
e o Estado provendo educação básica nas áreas mais pobres. Tal educaçãoé 
geralmente vista como tendo um valor baixo e isso em si constitui uma grande 
pressão a favor da exclusão, bastante difícil de ser combatida. (Savolainen et 
alii, 2000, p. 21) 
Ainda um terceiro aspecto do tema refere-se à existência de políticas e legislações 
que estabelecem as categorias "especial" e "regular", e a associação da política de 
inclusão como sendo parte de uma estratégia reservada a um segmento "especial" da 
população - o de deficientes. Booth (in Savolainen et alii, 2000) critica isso, dizendo 
que legislações separadas apenas impedem um exame acurado das pressões excludentes 
dentro do sistema como um todo, prejudicando, assim, o desenvolvimento da inclusão 
- que, conforme dito anteriormente, constitui fundamento básico ao para a 
implementação da escola para todos e não diz respeito apenas às deficiências, embora 
estas façam, também, parte do espectro da inclusão. 
Quanto ao segundo tema, fatores escolares, podem-se destacar, para efeitos 
deste artigo, questões relativas ao projeto político-pedagógico da escola, à flexibilidade 
curricular, à avaliação, dentre muitos outros. O projeto político-pedagógico, novidade 
trazida ao contexto brasileiro pela Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação 
Nacional, numa perspectiva de educação para todos, deveria preocupar-se com o 
desenvolvimento de uma cultura inclusiva dentro da escola, com apoio interno e 
externo. uma vez mais, é a Declaração de Salamanca ( 1994, p. 67, versão inglesa) que 
delineia o assunto: 
O desenvolvimento de escolas inclusivas que sirvam a uma grande variedade 
de alunos de áreas tanto rurais quanto urbanas requer: a articulação de uma 
clara e poderosa política de inclusão junto com uma provisão financeira 
adequada - um eficiente esforço de informação pública para combater 
preconceitos e criar atitudes informadas e positivas - um extenso programa de 
orientação e treinamento de pessoal - e a provisão dos serviços de apoio 
necessários. Mudanças em todos os seguintes aspectos da escolarização, bem 
como de muitos outros, são necessárias à contribuição para o sucesso de 
escolas inclusivas: currículo, ambiente físico, organização da escola, pedagogia, 
avaliação, treinamento de pessoal, ética da escola e atividades extra-
curriculares. 
No contexto de nossa legislação, fica claro, portanto, que se tais aspectos não 
são contemplados no projeto político-pedagógico das escolas, a educação para todos 
e sua fundamentação filosófica (inclusão) correm o risco de ficar apenas no plano das 
idéias. 
Quanto à flexibilidade curricular, preconiza-se que para que a educação seja de 
qualidade para todos, é necessário que se adapte o currículo aos interesses, ritmos e 
necessidades do alunado, e não o contrário, como tem tradicionalmente acontecido. A 
idéia é que as escolas estejam aptas a estimular o melhor desempenho por parte de 
todo o seu alunado, levando-se em consideração o fato de que a aquisição de 
conhecimentos não se limita à instrução formal. como propõe a Declaração de 
Salamanca (1994, p. 68, versão inglesa): 
O conteúdo da educação deveria ser orientado a altos padrões e às necessidades 
dos alunos com vistas a habilitá-los a participar ativamente no seu 
desenvolvimento. O ensino deveria ser relacionado à experiência dos próprios 
alunos e a preocupações práticas afim de melhor motivá-los. 
A avaliação, conseqüentemente, precisa ser repensada. uma perspectiva 
formativa de avaliação deveria ser adotada, de modo que, com o acompanhamento 
freqüente do processo de ensino-aprendizagem, possíveis "problemas" no percurso 
pudessem logo ser identificados e abordados. Portanto, tanto o percurso de ensino do 
professor quanto o de aprendizagem do aluno seriam avaliados com freqüência. 
Sistemas educacionais que ainda fazem uso da repetição de ano como forma de 
"correção" do fracasso estão decididamente ultrapassados. É Booth (in: Savolainen 
et alii, 2000, p. 22) quem nos incita a pensar sobre o assunto: 
Em sistemas que tentam corresponder à diversidade do alunado, tentam-se 
introduzir políticas flexíveis de avaliação. A repetição tem sido questionada, 
bem como práticas padmnizadoras. Tais práticas se baseiam na premissa de 
que as turmas devem ser homogêneas. A inclusão implica valorizar a 
diversidade das turmas e a adaptação do ensino no sentido de apoiá-las. 
Chegamos, assim, ao terceiro tema escolhido para análise: recrutamento e 
treinamento de pessoal de educação. Tal como acontece com os outros temas, também 
neste há uma variedade de aspectos a serem discutidos, potencialmente considerados 
como obstaculizantes à educação de qualidade para todos. 
Um primeiro aspecto freqüentemente mencionado sobre esse tema com respeito 
ao sucesso de uma educação de qualidade para todos trata da necessidade premente 
de um bom preparo de docentes para a tarefa de educar para a diversidade. A própria 
Declaração de Salamanca (1994, p. 70, versão inglesa) sugere: 
Programas de formação de professores deveriam prover a todos os licenciandos 
e futuros professores (primários ou secundários) uma orientação positiva em relação 
às deficiências, desenvolvendo uma compreensão do que pode ser alcançado em 
escolas com serviços locais de apoio disponíveis. O conhecimento e as habilidades 
requeridas são primariamente aquelas de um bom ensino e incluem a identificação das 
necessidades especiais, a adaptação de conteúdos curriculares, a utilização de tecnologia 
de apoio, procedimentos de individualização do ensino para atender a uma maior 
variedade de habilidades, etc. Em escolas de estágio de professores, atenção específica 
deveria ser dada ao preparo desses profissionais para exercerem sua autonomia e 
utilizar suas habilidades em adaptar o currículo e o ensino a fim de atender as 
necessidades dos alunos, bem como a fim de colaborar com especialistas e cooperar 
com as famílias. 
Felizmente, a legislação brasileira corrobora essa idéia em algumas legislações, 
pelo menos no que diz respeito ao alunado composto pelos deficientes. Dentre elas 
podemos citar a Portaria Interministerial 1973, de 1989, e a própria LDB 9394, de 
1996. Na primeira, há a sugestão da inclusão de disciplinas relativas às deficiências 
em vários cursos de licenciaturas, e outros, das áreas médicas e para-médicas. Na 
segunda, no próprio Capítulo V, referente à Educação Especial, destaca-se, no artigo 
59, o seguinte trecho: 
Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais 
(...) professores com especialização adequada em nível médio ou superior 
para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular 
capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns. 
Ainda que se possa fazer uma série de ressalvas quanto aos aspectos propostos 
na LDB - como, por exemplo, o de reforçar dois tipos de formação de professores, o 
especial e o regular, realimentando a separação entre "educações" especial e regular -
, trata-se de um avanço, no caso brasileiro, a idéia de que todo professor deva ser 
preparado para atender à diversidade em sala de aula. 
Outro aspecto relevante a respeito da formação de educadores refere-se à 
presença de um professorado representativo de grupos excluídos exercendo a profissão. 
É Booth (in: Savolainen et alii, 2000, p. 26) quem nos auxilia uma vez mais a esse 
respeito, e complementa o aspecto anterior: 
Em muito países, o professorado não é representativo de grupos excluídos. 
Em muitos cursos de formação de professores a inclusão é considerada em 
sessões separadas, usualmente associadas com alunos deficientes ou 
categorizados como tendo necessidades educacionais especiais, ao invés de 
permear a perspectiva educacional em todos os cursos. Isto desencoraja o 
desenvolvimento de perspectivas inclusivas de ensino. Em alguns casos as 
qualificações não permitem que professores especialistas lecionem para turmasregulares. Tem havido um crescente reconhecimento de que qualquer 
especialização deve ser precedida por uma formação geral comum. 
E ainda um terceiro aspecto a ser levantado refere-se ao treinamento em serviço 
e capacitações. E crescente na literatura a ênfase dada à importância de se planejarem 
tais atividades em consonância com um projeto de desenvolvimento da escola como 
um todo. E, mais do que isso, têm-se tornado cada vez mais populares e bem-
sucedidas as experiências em que se agrupam escolas a fim de se otimizar e enriquecer 
recursos. Recorremos uma vez mais a Booth (in: Savolainen et alii 2000, p. 26-27), 
finalizando o assunto: 
O agrupamento de centros de aprendizagem amplia os recursos disponíveis 
para treinamento e disseminação [de conhecimentos - nota da autora]. Os 
agrupamentos poderiam incluir centros especiais e regulares de aprendizagem 
compartilhando recursos como um passo rumo a uma maior inclusão. Em 
muitos países professores assistentes são empregados para apoiar alunos 
deficientes. Deve haver uma clara estratégia sobre como esse profissional 
pode apoiar a aprendizagem e participação de todos os alunos. 
como se vê, se em cada escola cada professor fosse compreendido como um 
recurso em potencial para a promoção da inclusão, provavelmente estaríamos 
discutindo outros aspectos, menos básicos, de promoção de uma educação para 
todos, com qualidade. 
IV - Conclusões 
São muitos os obstáculos à promoção da educação para todos, mas também 
têm sido muitas as alternativas encontradas nos mais variados países no sentido de 
superar tais obstáculos. A falta de recursos, ainda que constitua um problema real e 
sério a ser considerado em todo esse processo, não é, e nem pode ser, suficiente para 
justificar uma desistência, ou mesmo o fracasso da promoção de uma escola de 
qualidade para todos. Cumpre, acima de tudo, compreender que a educação 
fundamentada na filosofia de inclusão não é um ideal ao qual devemos pretender 
chegar um dia, mas um processo que já se encontra em andamento e cujo fim não 
existe. Tal processo tem seu peso maior nas atitudes que assumimos perante o 
mundo que desejamos ter. Estaremos sempre lutando por uma educação para todos 
na medida em que estivermos lutando pela inclusão de alunos, ou seja, contra sua 
exclusão da participação nos currículos e na vida da comunidade escolar como um 
todo. E ao lutar por uma educação para todos, estaremos continuamente preparando 
um mundo que abrace cada vez mais a todos. 
Bibliografia 
BRASIL/MEC. Lei no. 9394 de dezembro de 1996 de Diretrizes e Bases da Educação 
Nacional. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1996. 
CARVALHO, Rosita Edler (2000). Removendo Barreiras para a Aprendizagem. Porto 
Alegre: Mediação. 
(1998). Temas em Educação Especial. Rio de Janeiro: 
WVA. 
SANTOS, Monica Pereira dos (1997). Educação Especial, Inclusão e Globalização: 
Algumas Reflexões. Espaço - Informativo Técnico e Científico do INES, vol.7, 
p.13-21. 
. (1998a). Revisitando a Inclusão sob a Ótica da 
Globalização: Duas Leituras e Várias Conseqüências. In: SILVA, Luiz Heron da 
(Org.). A Escola Cidadã no Contexto da Globalização. Petrópolis: Vozes. 
. (1999). Educação Inclusiva: Redefinindo a Educação 
Especial, (no prelo) 
SAVOLAINEN, Hannu; KOKKALA, Heikki e ALASUUTARI, Hanna (2000). 
Meeting Special and Diverse Educational Needs: Making Inclusive Education a 
Reality. Helsinki: Ministry for Foreign Affairs of Finland. 
UNESCO/Ministry of Education and Science of Spain (1994) Final Report - World 
Conference on Special Needs Education: Access and Quality. Salamanca, Spain, 
7-10 de junho de 1994. 
WERNECK, Claudia. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Rio de 
Janeiro: WVA(1997. 
Artigos de Sites: 
SANTOS, Monica Pereira dos. (1998b). Globalização: Duas Leituras e um Exemplo. 
Rhevisão - Recursos Humanos em Revista - No. 4, jul-ago. http:// 
www.revistas.net/rhevisão/4/index.shtml. 
Declaração Universal dos Direitos Humanos. http://www.um.org/Overview/rights.html 
Anacronismo nas Representações Sociais de Cidadãos 
Surdos e Políticas Públicas 
Solange Maria da Rocha1 
Brasília, MEC, agosto de 2001, cidadãos surdos, oriundos de quase todos os 
estados brasileiros, estiveram por uma semana na capital federal. Financiados pelo 
poder público, capacitaram-se para capacitarem professores, alunos surdos e 
comunidade em geral em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). 
Ao ser reconhecida como língua de instrução para alunos surdos em nossas 
escolas, LIBRAS apresenta enorme potencial para mudar velhos paradigmas. Se é 
língua, o surdo desloca-se no espaço de nosso imaginário. como nativos dessa língua, 
vão subsidiar os sistemas de ensino para viabilizarem projetos bilíngües. Então, a 
história dá uma guinada. 
Da condição de impotentes, deficientes, com ínfima ou nenhuma capacidade de 
abstração, transformam-se em docentes de seus docentes. Estaremos portanto, 
sincronicamente, vivendo uma inserção do surdo no espaço real e imaginário da 
cidadania? 
Rondônia, Porto Velho, agosto de 2001. Informada de que a área dos índios 
Parecys ficava naquele estado, senti-me estimulada a contar uma história envolvendo 
esses índios e o INES, ocorrida em 1922. uma história que, antes de contá-la, tornou-
se desimportante diante do que me contaram os profissionais sobre esses índios. 
A criança Parecy que apresenta alguma diferença física, sensorial ou mental não 
tem direito à vida. Cabem aos pais cumprir um doloroso ritual de tortura até a morte. 
Julguei que estaríamos em outras idades, mas o relato era atual e não acabaria ali. uma 
mulher Parecy deu luz a gêmeos, um menino e uma menina, ambos surdos. Pelos 
imperativos da cultura, caberia ao casal cumprir o ritual esperado. Não conseguiram, 
deram cabo de suas vidas e os demais elementos da tribo se incumbiram da missão. 
Cumprida pela metade, pois uma das crianças, a menina, depois de torturada e enterrada, 
sobreviveu e foi resgatada por outros elementos da mesma tribo. Talvez, para estes, 
a surdez estivesse em outro plano de representação. Hoje, está na FUNAI, mais 
deverá ser devolvida à tribo. 
De volta ao hotel, comentei o fato com os colegas, e vicejando de indignação, 
quando o motorista virou-se e concluiu: 
- Isso é coisa dos índios, é deles, é da cultura deles. 
O que é exatamente "coisa dos índios" ? Eliminá-las ou salvá-las? 
No entanto, o que mais impressiona é que ele, o motorista, não chegou na 
menina. Na análise dele e de tantos, em outras tantas circunstâncias, não existe a 
menina, o menino, o adolescente, a mulher, o homem. Não tem nada disso, só o 
estigma, só a marca, só o ferro imaginário torrando a carne real. Não são cidadãos, são 
marcas. É aí que está o cerne da questão. 
Políticas públicas, quando desenvolvidas, ficam irremediavelmente atreladas 
às representações que se tem dos sujeitos sociais. 
Em que espaços reais e imaginários transitam os surdos no plano das 
representações e dos discursos hegemônicos? 
'Diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano, Científico e tecnológico do 
INES, Pedagoga, historiadora e mestre em educação - UERJ 
Dizer que entre as comunidades indígenas brasileiras são eliminados é um erro. 
Entre as que conhecemos encontramos posturas distintas. uma, pela presença de 
surdos, é bilíngüe.Noutra, os surdos não freqüentam a escola da aldeia e ficam em 
casa, segregados, sem convívio com as outras crianças. Tal como nós, fora das aldeias. 
Nesse mesmo farto agosto, uma publicação evangélica foi distribuída no INES 
aos seus alunos. Um exemplar me chegou às mãos. Chama-se Carta Viva, e a manchete 
diz: "Surdos curados em todo o país". Em seu interior, depoimentos de cura. 
Curar a surdez. Curar a doença, o doente. 
O doente? Então aqui ele se re(apresenta) como doente. 
Nesses tempos de Escola paraTodos, o impacto dessa proposta acomete a 
todos. Não há ninguém indiferente. E aí, caímos numa guerra juvenil, contra ou a 
favor, escolhendo caminhos para os tímidos alcances de nossa consciência. Lançando 
um olhar pouco mais profundo, evitando politicagem epidérmica, encontraremos 
uma massa de excluídos de potencial impressionante, aprisionados nos paradigmas 
da doença, da cura, da mudez e do nao. Submetidos a um anacronismo perverso de 
não terem escolas por não estarem aptas para eles, ou não terem escolas por não 
estarem aptos para elas. 
E o tempo passa sem cerimônia e eles assistem impacientes a nossa capacidade, 
desembarcando nas políticas públicas como coitados, mudinhos, deficientes. Espectro 
de cidadania é espectro de cidadão. 
O que temos oferecido a eles? 
Exclusão é saber que em torno de 70% de crianças surdas em idade escolar 
nunca freqüentou uma escola. 
Não são conhecidas, não freqüentam espaços públicos, não são vistas e ninguém 
se sente preparado para trabalhar com elas. Esta é a realidade brasileira. Suas famílias 
não as representam como capazes. Qualquer coisa serve. Estão representadas como 
o nada, o nada que leva os Parecys a exterminá-las. 
As 30% restantes vivem outras exclusões: ou estão agrupadas em espaços 
especiais com crianças que a escola regular não quer ou estão nas classes regulares 
isoladas e espetacularizadas. 
Onde a informação não circula, a desinformação reina. 
Não adianta usar o passado como fonte de pesquisa estática, identificar o que 
aconteceu e ficar julgando. O passado torna-se nefasto quando se embrenha no presente 
e se estabelece com suas verdades num tempo em que outras já o superou. 
E a outra Idade Média situada no futuro, como dizia Caetano. 
Para construção de Políticas Públicas, devemos bem conhecer os sujeitos a 
serem beneficiados, examinar com intensidade como os representamos, principalmente 
se eles forem sujeitos passivos de nossas políticas e não tiverem, pelos mais variados 
motivos, oportunidade de estar construindo junto. 
Se forem sujeitos ativos de sua história, tanto melhor para todos nós. 
Projeto Dicionário Virtual da LIBRAS 
Tanya A. Felipe1 
1. Introdução 
As Comunidades urbanas surdas no Brasil têm como fatores principais de 
integração a utilização da língua de sinais brasileira ou, como os surdos a denominam, 
a língua brasileira de sinais - LIBRAS - e os esportes, por isso têm uma distribuição 
hierárquica com a Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS): 7 
Federações/ Liga Desportivas e 60 associações/clubes/sociedades/congregações, em 
várias capitais e cidades do interior, e a Federação Nacional de Educação e Integração 
dos Surdos - FENEIS - com sede no Rio de Janeiro e regionais em Belo Horizonte, 
São Paulo e Porto Alegre. 
Em muitas dessas comunidades há interferência de grupos religiosos, 
representados por pessoas ouvintes com domínio da LIBRAS ou de outra língua dos 
sinais estrangeira. A ocorrência deste último caso tem favorecido uma utilização de 
"estrangeirismos", ou seja, uso de sinais diferentes dos utilizados em outras 
comunidades brasileiras. 
Admitindo-se que há dois tipos de bilingüismo, o individual e o social, e que a 
diglossia estaria em nível coletivo e seria a coexistência de duas ou mais variedades de 
língua ou línguas, pode-se afirmar que as comunidades urbanas dos surdos no Brasil 
são bilíngües por possuírem membros bilíngües que utilizam duas línguas em uma 
situação de diglossia: a língua portuguesa - a variante superposta utilizada nas escolas 
e com os ouvintes da comunidade maior à qual também estão inseridos, e a LIBRAS, 
a variante informal usada entre os surdos e nas suas associações (Felipe, 1888,1989a, 
1990, 1991a, 1992a, 1993a, 1995). 
Devido à tradição oralista, há surdos que só querem falar, usando sempre o 
português, e outros que, devido ao fato de não dominarem bem a LIBRAS, usam um 
bimodalismo, ou seja, falam português enquanto sinalizam, como os ouvintes quando 
começam a aprender alguma língua de sinais. 
Mas as escolas podem ser um dos fatores de diversificação, favorecendo a 
integração ou desintegração das comunidades surdas porque, dependendo da 
metodologia adotada, elas, até bem pouco tempo, rejeitavam a LIBRAS e, 
conseqüentemente, as crianças não podiam conhecer suas comunidades e não 
aprendiam a variedade local de sua língua, podendo apenas, em escolas mais liberais, 
comunicarem-se através de dialetos restritos ao ambiente escolar. 
O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro, mesmo 
ainda sem uma proposta bilíngüe generalizada, é fator de integração porque as crianças 
e adolescentes se comunicam em LIBRAS e vários professores já sabem ou estão 
aprendendo com "professores surdos" além de oferecer cursos também para os pais 
dessas crianças e estar modificando a proposta curricular, inserindo o ensino sistemático 
'Professora Doutora Tanya Felipe é Professora Titular da Universidade de Pernambuco, 
coordenadora do Grupo de Pesquisa da FENEIS - Rio de Janeiro e Coordenadora, em nível 
nacional, do Programa LIBRAS o idioma que se vê - Cursos de LIBRAS: Metodologia para 
o ensino de LIBRAS para Instutores/ Agentes Multiplicadores e Curso de LIBRAS para 
ouvintes. 
da LIBRAS em tôdas as séries. Essa prática está acontecendo também em várias 
outras escolas de surdos pelo país. 
Por outro lado, várias escolas que não estão ainda articuladas com as 
comunidades surdas, ou por falta de interesse ou por estarem em cidades que não 
possuem associação de surdos, trabalham ainda somente com uma metodologia neo-
oralista, o que faz com que as crianças surdas desenvolvam um dialeto entre elas para 
uma comunicação mínima, ficando totalmente desintegradas da cultura surda, sendo 
consideradas, apenas, como deficientes auditivas (DA). 
Essa tradição oralista fez surgir também diferenças em relação ao uso da LIBRAS 
pelas comunidades surdas; assim, há comunidades que possuem mais sinais em relação 
a outras, que utilizam a datilologia, sinais soletrados, ou um mesmo sinal para conceitos 
diferentes. 
Para se conhecer melhor a LIBRAS têm surgido iniciativas em termos de estudos 
lingüísticos, materiais de divulgação não especializados e elaboração de dicionários 
por instituições religiosas, públicas e privadas. A partir da pesquisa dessas publicações 
e da necessidade de se elaborar um dicionário com bases lingüísticas, surgiu essa 
proposta que estamos agora apresentando. 
Sabemos que posteriormente teremos que acrescentar novos sinais, já que 
optamos por colocar somente aqueles reconhecidamente utilizados pelas comunidades 
surdas e, como estão surgindo novos sinais, gostaríamos que os surdos de todo o país 
nos ajudassem nessa coleta de dados para a segunda edição. Desenvolvemos esse 
trabalho árduo, exaustivo, desafiador, em oito meses, e por isso sabemos que é 
passível de erros, que gostaríamos que nos fossem informados para que possamos 
revê-los e corrigi-los futuramente. 
2. Organização do Dicionário Digital Bilíngüe da LIBRAS 
2.1. Metodologia de trabalho 
2.1.1. Formação da equipe: 
Para a elaboração do Dicionário Digital Bilíngüe da LIBRAS, houve a 
preocupação em formar uma equipe de especialistas nas áreas de lingüística com 
conhecimento da LIBRAS, lexicografía e informática, e surdos que tivessem um 
ótimo domínio em LIBRAS, conhecessem bem a língua portuguesa e já tivessem 
participado de pesquisa ou estivessem envolvidos com educação de surdos. Assim, 
no mês de dezembro foi organizada essa equipe que ficou composta por: 
• Coordenador administrativo-financeiro, Guilherme Lira, responsável pela 
organização da equipe, gerenciamento da verba, prestação de contas e relatório 
final, supervisor da equipe de informática e filmagem; 
• Coordenadora administrativa, Prof. Solange Rocha (INES), responsável pela 
escolha dos componentes

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