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1 Patriarcado e Economia Política: um jeito romano de organizar a casa1 Ivoni Richter Reimer* INTRODUÇÃO Uma leitura profunda de textos bíblicos deve buscar entender o cotidiano vivido pelas pessoas, pelo povo que protagoniza nessas narrativas, a fim de melhor entender também a fé vivenciada e o seu testemunho que chega até nós através destes escritos. Deste cotidiano fazem parte a construção das relações de gênero, relações econômicas, políticas, culturais... Este artigo quer ajudar a entender a construção das relações econômicas e de gênero a partir de elementos centrais da estrutura ideológica que sustenta o Império Romano, em cuja realidade viviam também as comunidades judaico-cristãs originárias. Vamos analisar o patriarcado também em sua expressão patrimonial e política. Com isso, podemos melhor compreender os esforços, as estratégias, os sofrimentos e as conquistas de crianças, mulheres e homens nas comunidades judaico-cristãs na construção de um movimento contra-cultural que buscava reconstruir dignidade, autonomia e liberdade em suas vivências de comunhão e partilha. A forma de construir suas relações econômicas também testemunha a respeito de como pensavam e viviam sua teologia, isto é, de como acreditavam que Deus quer que organizem e administrem seus bens e suas relações de produção. A partir da experiência da solidariedade e justiça vivenciadas com Jesus, cuja presença continua viva nas comunidades, era possível ir construindo um modo de vida que agradasse a Deus tanto no campo espiritual quanto material. Em Jesus, as comunidades tinham um referencial para saber 1 Texto publicado: RICHTER REIMER, Ivoni (Org.). Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: CEBI; Sinodal, 2006. p. 72-97. * Ivoni Richter Reimer, doutora em Filosofia/Teologia, pastora na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), professora no Dpto. de Filosofia e Teologia da Universidade Católica de Goiás (vice- coordenadora do Mestrado em Ciências da Religião), no Seminário Teológico Batista no Sul do Brasil (Mestrado em Teologia) no Rio de Janeiro e no Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (Novo Testamento). Assessora nacional do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). Membro da comissão de Questões Internacionais e Direitos Humanos da Federação Luterana Mundial (Genebra). Membro da comissão da Década pela Superação da Violência do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC). 2 como Deus quer administrar a sua casa, sua criação. Este jeito, como veremos, entra em choque frontal com o sistema da “pax romana”. 1 SOBRE PERCEPÇÕES E REALIDADES PATRIARCAIS O Império Romano, cujo sistema da “pax romana” domina sobre tudo e sobre todas as pessoas de povos conquistados2, é o mundo dentro do qual foram vivenciadas e elaboradas as experiências de fé narradas no Novo Testamento. É um mundo de subjugação e dominação patriarcal em todos os níveis, seja familiar, social e político. Esta dominação é realizada na macroestrutura e na microestrutura. O historiador romano Tácito, que viveu nos anos 55 a 113, testemunha sobre essa situação vivida pelos povos dominados, dizendo na perspectiva dos mesmos: ... mais perigosos do que todos são os romanos... Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir nenhum país para ser devastado por eles, revolvem até o próprio mar... Saquear, matar, roubar – isto é o que os romanos falsamente chamam de domínio, e ali onde, através de guerra, criam um deserto, isto eles chamam de paz... As casas são transformadas em ruínas, os jovens são recrutados para a construção de estradas. Mulheres, quando conseguem escapar das mãos dos inimigos, são violentadas por aqueles que se dizem amigos e hóspedes. Bens e propriedades transformam-se em impostos; a colheita anual dos campos torna-se tributo em forma de cereais; sob espancamentos e insultos, nossos corpos e mãos são massacrados na construção de estradas através de florestas e pântanos... (TÁCITO, Agricola 30-31). O patriarcado romano, portanto, é de dominação e ocupação geopolítica, de exploração de recursos naturais e humanos, de violência física, sexual e psicológica contra todas as pessoas, de expansão e construção na base do trabalho escravo e da imposição de impostos e tributos. Este patriarcado é a macroestrutura, dentro da qual se organizará a vida, a conivência e a resistência a partir de microestruturas como a casa, a comunidade, a associação profissional. Este patriarcado, como veremos adiante, não defina apenas as relações a nível do macrosistema, mas também e principalmente a partir do microsistema que se reflete principalmente nas relações da casa. 2 Sobre o assunto do sistema da “pax romana” que se reflete em todos os níveis de vida da população, veja principalmente Klaus Wengst, 1991; Nestor O. Míguez, 1995, pp. 22-33. 3 No campo da teologia cristã, no entanto, já tornou-se senso comum a afirmação de que a origem de todo o mal provém do patriarcado judaico, ou seja, que o patriarcado é fruto da religião e cultura judaicas. Esta afirmação, porém, é falsa e discriminatória, pois e na medida que pressupõe e objetiva um postulado para o qual Jesus e a igreja seriam os exemplos contrários ao modo de viver judaico. Nisto transparecem um antijudaismo religioso e uma negação implícita da matriz judaica do próprio Jesus, do movimento jesuânico e de várias correntes nas origens da igreja. Mais correto seria, portanto, dizer que também o judaísmo apresenta características patriarcais dentro de seu contexto histórico-político mais amplo. Contudo, o patriarcado não era algo exclusivo da sociedade e religião judaicas; ele era um sistema vigente em todas as sociedades do Mar Mediterrâneo, vigorando ideológica e legalmente sustentado dentro do sistema romano. Nele, tanto o sistema familiar quanto o político eram patriarcais. A exclusividade da autoridade jurídica do chefe/“cabeça” estendia-se sobre todos os membros de uma casa e sua família extensa, inclusive sobre os filhos e as filhas adultos e sobre as propriedades de toda a família. Algo semelhante acontecia a nível político-social. Diante do sistema de dominação patriarcal romana, o patriarcado judeu é o patriarcado de um povo oprimido, buscando sua sobrevivência cultural, social e religiosa dentro de um contexto que lhe é hostil. Esse patriarcado judeu não pode ser identificado com o patriarcado do poder dominante romano. Por isso, o cristianismo pode ser entendido como um movimento de renovação intra-judaico que participa das estruturas patriarcais do judaismo e que luta, como os demais movimentos, pela vida e pela identidade dentro das condições do patriarcado romano. É nesse contexto que o Novo Testamento e outros escritos da época devem ser entendidos. Devemos entender os textos do Novo Testamento, também os que narram experiências de mulheres, tanto na perspectiva da história, cultura e religião do judaismo quanto na perspectiva das condições históricas do mundo do sistema romano. Para melhor conhecermos o patriarcado no mundo do Novo Testamento dentro das condições históricas do Império Romano, devemos ver como este patriarcado se auto-apresenta. Para isso, nada melhor do que analisar algumas teorias filosófico- políticas romanas que foram elaboradas “sobre o Estado”. Essas teorias repercutiram e 4 influenciaram também a história da igreja cristã. É no contexto dessas elaborações que se define também a função social de homens, mulheres e crianças nas casas, na igreja e na sociedade. O gênero enquanto categoria de análise nos ajuda a entender esta dinâmica entre as teorias e as experiências cotidianas. Entre os grandes ideólogosda teoria estatal romana encontra-se Cícero3. Ele elaborava sua teoria em discussão com outros e o fazia, ciente de defini-la a partir da auto-compreensão e da ótica da classe dominante romana. Essa teoria influenciou muito a história do cristianismo ocidental. De forma exagerada - mas mesmo assim acertada – poderia dizer que quem quiser conhecer as origens do cristianismo patriarcalizado e capitalizado encontra mais material e informações em Cícero do que no próprio Novo Testamento.4 2 DEFINIÇÃO DO PATRIARCADO EM CÍCERO Cícero escreve várias obras. Entre elas figura um dos mais importantes livros desse ideólogo estatal romano, chamado De Re Publica (“Sobre as Coisas Públicas”), escrito entre 54-51aC. Aqui, Cícero define o Estado como patriarca: “Nisso, o nome ‘rei’ nos encontra com um esplendor patriarcal, como de um homem que se preocupa com seus súditos como se fossem seus filhos” (re publ I 54). Interessante observar que temos, já aqui, uma relação direta entre família patriarcal e Estado patriarcal. Cícero não quer afirmar o reinado, mas a sua estrutura patriarcal de dominação. E ele coloca uma diferenciação entre o domínio de um senhor e o domínio de um pai: Mas temos que nos conscientizar sobre as diferentes formas de dominar, bem como de servir. Pois, como se diz, assim como o espírito domina sobre o corpo, assim ele também domina sobre o desejo, mas com a seguinte diferença: Sobre o corpo ele domina como um rei sobre seus súditos ou como um pai sobre seus filhos, mas sobre o desejo ele domina como um senhor sobre seus escravos, porque ele os mantém dentro dos limites e quebra a sua vontade (re publ III 37). 3 Aqui nos ocuparemos mais com Cícero. Sabemos, porém, que também Platão e Aristóteles foram pilares fundamentais na construção ideológica do patriarcado dentro do sistema de dominação romana. Sobre essa discussão, veja Marga J.Stroeher, 1998, pp. 92-118. 4 Quero, aqui, expressar meu agradecimento à minha orientadora de doutorado, professora dra. Luise Schottroff, com a qual já discutíamos sobre economia, gênero e teologia em 1988, conforme registrado no Reader elaborado a partir de nossos workshops, no qual baseia parte da pesquisa a seguir. 5 Aqui percebemos, entre outras coisas, a forma dualista na argumentação de Cícero. O espírito se sobrepõe ao desejo, ao corpo; desejos e pessoas escravas devem ser dominados para quebrar-lhes a vontade própria. Destaca-se a convicção de que dominação política sobre cidadãos livres somente é legítima se for como a dominação paterna/real e não como a dominação senhorial. Aqui transparece o fato de Cícero elaborar uma teoria de Estado a serviço da elite romana, a partir da experiência do pai proprietário e do senhor. Para os cidadãos livres, o soberano deve agir como rei ou pai; para as demais pessoas, como um senhor de escravos e escravas. Portanto, na concepção de Cícero existem dois tipos de domínio: Dentro dessa concepção, a dominação patriarcal, do pai que é proprietário, acontece em quatro níveis, relacionando-a com o domínio de: Nos quatro níveis, a dominação baseia na desigualdade ideologicamente estipulada como “natural” entre Deus e as pessoas, governantes e governados, pais e filhos, espírito e corpo. A nível humano, trata-se sempre da dominação de um homem sobre seus dependentes, nos vários níveis. Em relação à dominação no Estado, Cícero também afirma que é “natural” que os “espiritualmente melhores estão colocados sobre dominação do corpo � dominação sobre as crianças relação de pai – filhos dominação do desejo � dominação sobre escravos � Deus(es) sobre pessoas � Estado (governo) sobre a res publica � Pai sobre a casa � Espírito sobre o corpo 6 os desprivilegiados” (re publ I, 51), entendendo-se que os primeiros pertencem à elite dominante. A dominação do patriarca, nos quatro níveis, tem sua fundamentação na dominação que o pai exerce na casa. Esta dominação baseia e se legitima a partir do sustento que o pai garante para suas crianças, que devem obediência submissa ao pai. Já aqui é relevante destacar uma diferença fundamental entre a lógica ou ética romana e a judaica: enquanto que a ideologia romana afirma a obediência submissa como resposta ao sustento garantido pelo pai, o judaísmo elabora uma teologia, na qual as crianças devem honrar e respeitar pai e mãe (veja Êx 20; Lv 19), estando as crianças desobrigadas da obediência ao pai, caso este pedisse algo que transgredisse algum dos mandamentos divinos. A vontade e o domínio do pai não são absolutos, mas sempre relativos diante da Torá. Voltando ao contexto romano: A casa patriarcal possuidora de propriedade é paradigmática na construção da sociedade romana. Ela é colocada como célula básica social, da qual nasce a necessidade do aparato do Estado que é organizado e dirigido em analogia à casa, mesmo quando nele se encontram mais do que um homem governando. O governo do Estado, no entanto, sempre é questão de um homem que melhor saiba dominar a grande casa, o Estado. Portanto, trata-se de um homem possuidor de propriedades que governa sobre os demais homens, todas as mulheres, crianças e pessoas escravas. 2.1 A Família Como Célula-Base da Sociedade Patriarcal Ainda hoje diz-se que a família é a célula-base da sociedade. Isso é muito antigo e provém da ideologia dominante romana. Na verdade, a família patriarcal é a célula- base social do patriarcado. Esse tem seu início no casamento (re publ I,38). Essa sua tese, Cícero desenvolve melhor em seu outro livro chamado De officiis (“Sobre as Profissões”): Visto que por natureza o comum entre os seres vivos é que eles têm o desejo da procriação, é certo que a primeira formação social baseia no próprio casamento; a segunda nos filhos, e então vem a comunidade de uma casa e a comunhão de uma propriedade. Isto é a origem da comunidade citadina... Depois vem a ligação entre irmãos [...] cunhados [...] (de off I,54). 7 Procriação e amor paterno são a célula-base da casa patriarcal, e essa é a base da existência econômica de seus membros. Cícero pensa na casa de um homem rico, que tem propriedades. Trata-se de latifundiários e grandes comerciantes. Profissões artesanais, de diaristas e as consideradas “sujas” não são dignas de um homem livre = cidadão. A propriedade do patriarca tem que ser garantida e protegida pelo Estado (de of. II, 73). O Estado não está aí para defender os interesses do povo, mas os interesses de patriarcas proprietários. Assim, impulsos “naturais” e propriedade são fundamento da casa patriarcal e têm, no Estado organizado, também sua ordem legal e religiosa: casamento e filhos legítimos (!) são essenciais para a felicidade do Estado bem organizado (re publ V,7). São raras as vezes que mulheres são mencionadas por Cícero. Elas aparecem somente nesta perspectiva: de esposas em sentido legal e patriarcal, que geram filhos legítimos como herdeiros. Há uma diferença na relação entre patriarca e seus filhos, descrita como “amor natural”, e entre patriarca e sua esposa, só marginalmente incluída nesse amor (de off I,12). Normalmente a mulher não aparece, é mantida invisível, silenciada: “Amados são os pais (homens), amados também são os filhos, parentes e conhecidos” (de off I, 12. 58). 2.2 As Mulheres e a Honra dos Homens A mulher da classe alta romana, componente da casa patriarcal, recebe comida e proteção. Mas não pode ser proprietária ou herdeira (re publ III, 17), nem possuir dinheiro. Somente em algumas exceções a filha de um homem rico pode ser herdeira. Cícero menciona mulheres quando a questão é casamento, filhos legítimos e honra do pai/marido.Esta “honra” está ligada à sexualidade da esposa ou filha: dela são exigidas tanto a virgindade e a fidelidade matrimonial quanto o suportar a violência sexual, caso for vítima de tal agressão. Esta compreensão da sexualidade da mulher existe, porque mulheres pertencem à esfera de poder do patriarca. Qualquer forma de violência sexual praticada por terceiros é invasão nessa esfera do pai ou do marido (re publ II, 46. 62), não sendo considerada agressão ao corpo da própria mulher. 8 As culturas mediterrâneas têm a honra e a vergonha como valores centrais5. Isso significa, para a vida familiar, que honra é um dos bens mais preciosos do homem e que precisa ser constantemente defendida e garantida. Isso também significa que a honra, boa reputação e respeito social não residem primordialmente no indivíduo, mas na família, especialmente nas mulheres. Os homens defendem sua própria honra e a honra de sua família mediante um comportamento digno com os outros homens, mediante sua bravura sexual e também protegendo e controlando as mulheres da família, já que a reputação de virtude sexual das mulheres é que é o elemento mais volátil na honra da família. (OSIEK, 1995, p.12) A honra da mulher, portanto, concentra-se na sua reputação de respeitabilidade, cujo componente básico é a virgindade pré-matrimonial e a exclusividade marital. Na sociedade patriarcal, a mulher é considerada basicamente nesta classificação sexual, apresentando grande perigo para a honra familiar. Por isso, meninas sempre foram menos quistas do que meninos. Eram elas as primeiras a serem mortas, abandonadas ou vendidas para a escravidão, quando recém-nascidas6. Qualquer espécie de violência, entre elas a sexual, era tida não como agressão contra a dignidade da vida da menina/mulher, mas como ofensa contra o pai, irmãos e marido.7 É interessante perceber, neste contexto, a elaboração de legislações que asseguram uma indenização por danos morais, paga não às mulheres que sofreram a agressão, mas aos homens de sua esfera de domínio. O mesmo vale para pessoas escravas que, dentro do sistema econômico escravagista da época, eram consideradas como propriedade de seus senhores, um “instrumento que serve à realização de vida de seus proprietários”8. Caso alguém danificasse uma pessoa escrava, estaria interferindo diretamente na propriedade alheia, diminuindo o valor daquele bem e, por isso, deveria indenizar o 5 Sobre esse tema, veja Bruce J.Malina, 1995, p.45-80. 6 Veja a este respeito, Carolyn Osiek, 1995, p.13. 7 Neste tocante, é interessante observar que, quando Agostinho, na história da igreja, trata do fundamental amor à pátria e da fidelidade matrimonial, ele vai se reportar exatamente a essa expressão ideológico-política de Cícero. Veja Agostinho, epist. 91,3; confira Cícero, re publ IV, 7 8 Esta opinião circulava entre os ideólogos da época, aqui representada por Aristóteles, Política I, 1253b; maiores comentários sobre isto, veja M.I.Finley, 1981, p.86-87. 9 senhor da mesma9. Consideradas e tratadas como propriedade, não importava restaurar a dignidade ou o valor da pessoa maltratada. A vida pública, na sociedade patriarcal, pertencia quase que exclusivamente ao homem. É no âmbito de famílias campesinas e da classe baixa urbana, no trabalho e no sustento das famílias, que teremos um quadro histórico-social diferenciado. Ali, as mulheres estavam lado a lado com os maridos. Isto ainda não significa automaticamente que elas poderiam livre e igualitariamente opinar e decidir sobre a condução da vida pessoal, familiar e de relações públicas. Ideologicamente também estas famílias e pessoas poderiam estar reproduzindo o status quo elitista patriarcal. Por outro lado, é mais fácil visualizarmos, nestes substratos sociais, ações e elementos que permitem falar da construção contra-cultural das relações de gênero, classe, etnia e de geração. Neste espaço é que se inserem as experiências e narrativas bíblicas sobre protagonismos e transgressões de mulheres, homens e crianças no primeiro século. Em suma: tarefa e função da mulher no patriarcado é definida claramente como ser-mãe dos filhos legítimos de um determinado pai para a manutenção do Estado patriarcal. Um dos castigos imputados a mulheres solteiras e a homens sem filhos era o pagamento de um imposto em Corinto, destinado a alimentar os cavalos do Estado (Cícero, re publ. II, 36). Além disso, é necessário observar que a Cícero não interessa mencionar a realidade de vida, profissão, trabalho ou sobrevivência de mulheres numa casa patriarcal decadente e empobrecida. Esta perspectiva, ao contrário, encontramos majoritariamente nos relatos evangélicos e em algumas cartas do Novo Testamento. 2.3 A Imagem do “Caos” na Perspectiva Patriarcal Existem dois textos que, para Cícero, descrevem uma imagem de terror. Trata-se do “caos” que poderia acontecer num Estado, onde houvesse liberdade e igualdade para todas as pessoas. Desses textos também resulta o dado que mulheres eram controladas na sua sexualidade e que elas não podiam participar do poder social e político por causa da exigência da sua subordinação à dominação de um patriarca. A 9 Sobre esta realidade, veja Ivoni Richter Reimer, 1992, p.97-100. 10 democracia romana residia no fato de que a governabilidade do Estado deve ser garantida através do exercício de poder e dominação de homens livres e proprietários10. A idéia de uma democracia com liberdade, que continuava sendo discutida a partir de Platão11, conduziria a um desajuste total nesta lógica e ideologia dominantes tão vigorosamente construídas, e significaria, portanto: que não mais existe em nenhuma casa um cabeça, e esse caos repercute até na vida dos animais. Chega a tal ponto que o pai teme o filho, o filho não respeita o pai; não existe mais nenhum sentimento de honra... não mais existe diferença alguma entre cidadão e estrangeiro; o professor teme o aluno e o bajula, e os alunos desprezam o professor; os jovens pensam ser tão importantes como os velhos, e os velhos se prestam a esse jogo dos jovens para agradá-los e para não parecerem chatos. E então acontece que também os escravos almejam uma maior liberdade, as esposas reivindicam o mesmo direito que os homens, e no âmbito de uma tão grande liberdade até os cães e os cavalos e talvez até os burros corram por aí tão livres que teremos que lhes dar passagem [...](CÍCERO, re publ I, 67). Percebe-se, nesta passagem, uma hierarquia decadente na valoração dos grupos, estando as mulheres colocadas em sexto lugar, apenas antes dos “cães, cavalos e burros”: 10 Sobre essa questão de propriedade, principalmente de terra, veja abaixo, no capitulo 3. 11 Platão também trabalhava com o pressuposto da dominação patriarcal baseado na “natureza”. Mesmo assim, vislumbrava outras possibilidades públicas também para a mulher. Veja Platão, República VIII, 455d-e: “Não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher enquanto mulher, nem própria do homem enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em ambos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do que o homem”. pais(homens) � filho cidadão � estrangeiro professor � aluno velhos � jovens � escravos � esposas � animais 11 Esta hierarquia de valores ideologicamente construída não ocupa apenas o espaço privado da casa, mas também o espaço público. Afinal,nesta época e no século seguinte, discutia-se muito a questão da propriedade coletiva (veja At 2 e 4!) e a participação das mulheres e dos escravos na vida política. Platão era um filósofo que, mesmo grandemente também orientado pela ideologia patriarcal, se colocava a favor destas questões. Contra ele dirigem-se as palavras de Cícero: Será que também as esposas e as crianças serão declaradas como bens coletivos? Será que não mais existirá nenhum laço de sangue, nenhum gênero específico, nenhuma família, nenhum parentesco consagüíneo, e tudo será como uma manada de gado solto desordenadamente por aí? Será que os homens não mais mostrarão auto-domínio e as mulheres não mais terão castidade?... Sim, ele [Platão] até abriu a prefeitura para as mulheres, cedeu- lhes o serviço militar, bem como os cargos de funcionários e mandatários. Quão grande desgraça virá sobre a cidade, na qual as tarefas dos homens serão assumidas pelas mulheres! (re publ IV, 5). As esposas, dentro da relação matrimonial, são mencionadas apenas aqui na fala de Cícero, nessa situação “caótica”. Para ele, liberdade sexual para mulheres tem por consequência também a sua participação no exercício do poder público. E tudo isto para ele é um absurdo. É neste contexto que precisamos refletir a situação contra-cultural que se inaugura em movimentos religiosos, entre eles o judaico-cristão, nos quais mulheres ocupam posição de liderança na administração das igrejas que se organizam a partir das casas! Além disso, devemos observar a partir daqui a importância das práticas coletivas de partilha e comunhão vivenciadas nas comunidades. Estas são formas de resistência não-violenta e manifestações contraculturais na organização de um outro mundo que vai se fazendo possível – “apesar de você”, pra lembrar da canção de Chico Buarque como afirmação sutil contracultural dentro da realidade da ditadura brasileira. 2.4 Diferença “Natural” e Concepção Patriarcal de Justiça Até aqui podemos concluir que poder patriarcal é poder que dirige e governa arbitrariamente a vida de outras pessoas que lhe são dependentes e submissas. O patriarca governa tudo, desde a concepção da divindade até os animais da casa. Este 12 poder está nas mãos de poucos homens, aos quais muitas pessoas estão sujeitas à obediência submissa. Socialmente há divisão de classes, e na eleição não é o povo, mas somente os homens ricos e livres que têm o poder da escolha. Do proletariado (que não tem propriedade), o Estado espera a “prole” (re publ II, 40) que trabalhará para os ricos, sustentando a ordem patriarcal da sociedade. É nesse contexto que Cícero até chega a cogitar que os escravos devessem ser equiparados aos diaristas, para que o Estado pudesse exercitar “justiça”. Diz ele: “é necessário fomentar sua produtividade e oferecer o justo salário” (de off I, 41). Esta é a única reflexão sobre justiça em relação a pessoas desprivilegiadas. Mas ela não é tão humanitária quanto possa parecer. Atrás dessa reflexão certamente encontram-se as eternas reclamações dos senhores acerca da preguiça e do desrespeito dos escravos, bem como a reflexão econômica de que diaristas sobrevivem à sua própria custa e que isso custaria menos para os senhores.12 Para Cícero é “natural” que uma pessoa escrava nasça escrava ou se torne escrava. Todas as diferenças sociais lhe são “naturais”13. Portanto, justo é aquilo que serve àqueles que têm poder no Estado; justo é aquilo que tem proveito para o homem rico, mesmo se for injusto para com a mulher, as crianças e pessoas escravas. As diferenças “naturais”, nas quais se baseia a estrutura de poder do patriarcado cicerônico-romano são as diferenças entre: 12 É bom trazer à memória as relações histórico-econômica nos processos abolicionistas dos séculos 18 e 19, bem como comparar esta situação com a passagem de Mateus 20,1-16! 13 O mesmo também vale para Platão e Aristóteles, Política I, 1252b 25-30; I, 1254 a 20, onde afirma que todas as pessoas são marcadas pela natureza, “uns para comandar, outros para obedecer”. A superioridade do masculino sobre o feminino é “natural”, e por isso é “natural” e uma questão de honra da mulher que ela permaneça em silêncio (I, 1260 a 30). classe alta/elite � “resto” do povo homem livre � pessoas escravas homem � mulher espírito � corpo 13 Dentro desse contexto, no qual os grupos subordinados não participam de nenhum exercício de poder, existem certas práticas que são como rituais da subordinação das mulheres: elas não bebem vinho (re publ IV, 6); uma mulher de má fama não recebe o beijo de cumprimento dos parentes. E mesmo assim, apesar de todos os esforços e práticas, não deve ter sido fácil impor a subordinação às mulheres, pois Cícero propõe, depois de muita discussão e elaboração de sua teoria sobre o funcionamento do Estado e da sociedade, a necessidade de existir um educador “que ensine aos homens como ter influência determinante sobre as mulheres” (re publ IV, 6). A seguir queremos aprofundar alguns aspectos econômicos centrais que sustentam esse patriarcado, vinculando política e economia com a sua base de sustentação ideológica. 3 ECONOMIA POLÍTICA NO SISTEMA PATRIARCAL O sistema patriarcal somente sobrevive quando sustentado e reproduzido ideológica e economicamente. Trabalharemos aqui com o pressuposto da economia política que visualiza o patriarcado patrimonial para elaboração de uma economia estatal e doméstica.14 Em primeiro lugar é necessário refletir sobre o fato de não podermos transferir para a Antiguidade os conceitos hodiernos e seus pressupostos. Evidente que as pessoas daquela época também trabalhavam, vendiam, compravam, trocavam, tinham moedas, pagavam e recolhiam impostos..., mas tudo isso ainda não estava organizado como um todo. Fazia parte do sistema, mas não estava de todo sistematizado. Isso talvez explique porquê Cícero ou outro filósofo-ideólogo não escreveu nenhuma obra sobre Economia, mas incluía reflexões econômicas dentro de seus escritos sobre Política, Estado, Profissões... 14 Esta análise baseia principalmente em estudos realizados por Nestor O. Míguez, na América Latina. Alguns de seus principais artigos estão acessíveis na Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, como consta nas referências bibliográficas. A nível internacional reporto-me ao estudo realizado por vários autores e autoras, organizado em livro por Kuno Füssel e Franz Segbers em 1995, com vasto material documental e epigráfico, também indicado nas referências bibliográficas. 14 “O lucro é insaciável”. Esta afirmação é de um dos sete sábios da Ásia Menor, da cidade de Mitylene, na ilha de Aeolis, no mar Egeu (próximo de Pérgamon). Este sábio chama-se Pittakos, e colocou já antes de Aristóteles, Xenofontes, Platão e Cícero, a essência de uma economia política dentro de um sistema de relações não igualitárias. “A forma econômica – bem como o esclarecimento de sua maneira de funcionar – é determinada pela maneira de como ela está encaixada no sistema político”15. Este encaixe determina também o interesse da economia e a serviço de quem ela está elaborada. O conceito economia política é aqui utilizado, pressupondo que o trabalho não é apenas um ato para a sobrevivência humana, mas uma relação social e um fazer sociológico, e que a distribuição dos meios de produção e dos frutos do trabalho dependem da organização social de uma sociedade. 3.1 A Mais-Valia do Império Romano Concentrada na Agricultura A maioria das pessoas vivia direta ou indiretamente dos bens provenientes do campo. Propriedade de terra16 consistia tanto em fonte de bens materiaiscomo também de valores morais. Assim, dizia-se que somente proprietários tinham moral e honra para defender. Após a ocupação militar, os funcionários do Império Romano colonizavam a maioria das cidades (colônias) através do assentamento de cidadãos romanos nas províncias, em sua maioria veteranos de guerra. Estes recebiam, dos funcionários romanos, pequenas propriedades rurais, habitadas e trabalhadas anteriormente pelo povo da terra, que fora escravizado, transportado para outros lugares e periferias de cidades como mão-de-obra escrava ou diarista. Estas propriedades bastavam para o auto-sustento familiar, não tendo como função suprir a alimentação das cidades e do império. O que prevalecia, desde a República, era o latifúndio com sua dinâmica de dominação escravagista. A maioria dos latifúndios espalhados pelo Império pertencia a famílias senatoriais. Isso indica para a crise econômica vivenciada pela maioria da 15 Kuno Füssel, 1995, p. 39. 16 Sobre a questão da terra, veja Ivoni Richter Reimer, 2002, p.106-110. 15 população: escravidão, endividamento, perda de terra, migração e miséria eram o outro lado da moeda do enriquecimento de poucas famílias no Império.17 Após a ocupação da maioria dos países em torno do mar Mediterrâneo, que “rendeu” enormes contingentes de escravos e escravas que eram vendidos nas “bolsas de valores” e “mercados” da época, o processo de escravização restringe-se à economia, principalmente através de dívidas, hipoteca de terra e perda das mesmas. Aumenta o número de pessoas desempregadas, que migram para as periferias das cidades e passam a desenvolver toda espécie de artesanatos e manufaturas. É ali que se desenvolve o pequeno comércio: a venda das mercadorias produzidas para sustento próprio. É este o contexto no qual vivem a maioria das comunidades judaico-cristãs originárias. Não era esse pequeno comércio que florescia e enriquecia quem dele vivia. Quem enriquecia eram as famílias latifundiárias que, adaptando-se à crise econômico- escravagista, passaram a arrendar as suas terras para gente que sabia cultivar a terra. Quem arrendava a terra era chamado de colonus e pagava quantias estipuladas por contrato. Com a experiência, os proprietários, entre eles o imperador como pater 17 Sobre a questão da dívida e o conseqüente processo de perda de terra, escravização e venda dos membros da família em Haroldo Reimer e Ivoni Richter Reimer, 1999, especialmente p. 125-139. O quadro abaixo baseia em informações extraídas de Kuno Füssel, 1995, p.41-42. Pequenas propriedades tinham em média 10 iugera (= 2,5 hectares). No final da República, os latifúndios de senadores mediam entre 150-300 iugera. Este quadro se altera no século 1: os latifúndios aumentam em tamanho, o que também demonstra a crescente concentração de renda nas mãos de famílias senatoriais. No final do século 1, dos 29 maiores latifúndios do Império, 16 pertenciam a elas! Destas, a metade equivalia a 50 até 100 milhões de denários (o salário anual de um legionário era 300 denários; uma casa numa cidade no interior da Itália valia 400 denários; um diarista recebia 1 denário/dia; o preço de um escravo girava em torno de 200-500 denários). As terras senatoriais muitas vezes perfaziam quase o total do território de algumas províncias. 16 famílias do Império, dividiam seus latifúndios em parcelas menores em troca de juros para os pequenos agricultores que não eram escravos. Era esse sistema que garantia a produção de alimentos e a entrada de dinheiro para os cofres imperiais. A terra arrendada era uma fonte de lucro para os senhores e ao mesmo tempo aprofundava a dependência daqueles agricultores. Essa dinâmica político-econômica perdura até o século 4, sendo esse tipo de agricultura a fonte para toda a riqueza espelhada principalmente nas cidades junto às elites. Há que se considerar que exatamente os grandes latifundiários eram simultaneamente também os grandes comerciantes, chamados de émporoi.18 Assim, há uma circularidade de lucro e investimento: aquisição de novas terras, novos rendimentos... Isso oferecia maior segurança para as entradas monetárias aos latifundiários do que emprestar dinheiros nos rudimentares bancos urbanos, mesmo que esses rendessem mais em menos tempo, mas não eram tão seguros como a propriedade da terra. A renda provinda desses investimentos era utilizada no consumo de produtos de luxo (trazidos de todas as partes do Império), no entretenimentos de adeptos políticos, na manutenção de projetos públicos tipo “pão e circo”, na diversão de tropas militares ou grupos de guarda privada (de imperadores, altos funcionários e latifundiários). A aplicação da renda em nova aquisição de terra tinha também o objetivo de garantir o status quo e político, bem como a segurança da propriedade, visto que a compra de terra oferecia menos risco de perda ou prejuízos do que qualquer outro negócio. 3.2 A Estrutura Sócio-Política da Sociedade Romana e a Administração Econômica da Classe Estatal Do ponto de vista da elite romana, a estrutura sócio-política do sistema da “pax romana” era organizada basicamente a partir das relações de poder e das atividades econômicas que beneficiavam a classe estatal romana. Vejamos: 18 São estes grandes comerciantes, por exemplo, que são mencionados em Ap 18,11-17 na visão da destruição da grande cidade como lugar de corrupção e acumulação de riqueza. 17 a) Relações de poder: classe, categoria e status no Império Romano. É importante ressaltar que a forma de dominação central é patriarcal-patrimonial. Esta se caracteriza através da indiscutível apropriação pelo pater familias das coisas que os membros da família produziam através de seu trabalho. Esse modelo de dominação centrado na família patriarcal leva ao surgimento de três categorias: senadores, cavaleiros e decuriões (vereadores). O que era uma categoria? Trata-se de um determinado grupo juridicamente aceito entre a população. Esse grupo tem privilégios formais bem como limitações quanto à participação no governo, no exército, na lei, na economia, na religião, casamento e na sua posição na relação hierárquica com outras categorias. A pertença é hereditária, p.ex. na diferenciação entre patrícios e plebeus. Às famílias senatoriais pertenciam algumas centenas de famílias, e a sua pertença baseava em nascimento nobre e riqueza. No tempo de Augusto, a quantia para pertencer a esta categoria foi aumentada de 400 mil sestércios para um milhão de sestércios.19 Para a categoria de cavaleiros valem os mesmos critérios dos senadores, mas a quantia mínima é de 400 mil sestércios. Esse grupo, por isso, é maior e socialmente subordinado àquele. A categoria dos vereadores forma a terceira categoria aristocrática. Origem e riqueza são igualmente as exigências. O mínimo de dinheiro exigido é 100 mil sestércios. Essas três categorias exerciam seu poder senhorial sobre os principais meios de produção (terra, escravos, dinheiro) para apropriação daquilo que é produzido por outros, bem como tinham o privilégio do princípio timocrático20 de participação em funções de poder no Estado, de acordo com sua situação social e econômica. Por isso elas pertencem à “classe do Estado”. Para tal não é necessário apenas ter dinheiro (como banqueiros, grandes comerciantes...), mas também ter uma ascendência e origem “honrosa”: nascer de boa e rica família. Os integrantes dessas categorias perfazem o topo da pirâmide social; abaixo deles estão os cidadãos livres, e bem 19 Um denário correspondiaa 4 sestércios, a quantia necessária para a sobrevivência diária de uma pessoa. 20 Poder que baseia na riqueza que alguém possui. 18 embaixo estão as pessoas escravas. Entre as pessoas livres diferenciava-se entre quem nascia livre e quem era pessoa liberta; classificava-se as pessoas ainda entre cidadãos romanos e não-cidadãos. Esta última diferenciação (cidadãos e não-cidadãos) foi perdendo importância no decorrer do Império. Ao invés disso, destaca-se a diferença entre a elite e as massas (honestiores et humiliores). O Estado do Império Romano não era um Estado de direito como algumas poucas democracias hodiernas o conhecem, pois o direito dependia dos interesses da classe dominante que se expressava também legal e juridicamente. Quem não possuía propriedade(s) não tinha direito; quem tinha poucos bens podia ter a esperança de obter o direito com o aumento de sua propriedade; quem tinha grandes propriedades sabia que tinha direito. Não existia uma classe média “autêntica”. Na verdade havia a minoria rica e a maioria empobrecida. Entre esta maioria é possível destacar pessoas que trabalhavam com pequeno comércio, artesanato e confecção de tecidos, sandálias, tendas, artefatos e que sobreviviam com o seu trabalho. Entre estes “pequenos” estavam também as pessoas escravas, consideradas como propriedade móvel e não como pessoa. Também entre seus integrantes havia conflitos, p.ex. entre os que faziam o trabalho braçal pesado e os que trabalhavam intelectualmente para seus senhores, o que é tematizado na literatura romana. E bem abaixo de todas essas pessoas estavam aquelas que já tinham perdido tudo: mendigas, doentes, abandonadas. Eram essas pessoas “pequenas” que perfaziam, na sua quase totalidade, as comunidades judaico- cristãs nas origens. A estrutura sócio-econômica da sociedade romana pode, por fim, ser descrita como uma estrutura hierárquica de categorias que no todo tinha caráter de classe. b) As atividades econômicas da classe estatal romana O pater familias é o sujeito determinante da economia romana. Um aspecto de sua honra está no aumento de seu “patrimônio”. Os “notáveis” eram homens que realizavam atividades com o objetivo de enriquecimento. A administração de um patrimônio como posse de terra exigia do proprietário a fiscalização dos trabalhadores da terra, o controle dos “guardas” e arrendatários bem 19 como a comercialização dos produtos. Além disso, ocupavam-se também com a prática da usura. Significativo para tal era o sistema romano de valor, concentrado na ideologia da relação patrimonial de poder. É nessa perspectiva que Cícero, Tácito e Plínio vão tratar aspectos econômicos. Para eles trata-se de refletir como as atividades econômicas são compatíveis como os valores tradicionais, principalmente as virtudes patrimoniais e suas formas de garantir a identidade. O que prevalecia era a manutenção do patrimônio. As atividades econômicas da elite estatal estavam distribuídas conforme a pertença às categorias. Assim, somente representantes dos cavaleiros é que podiam assumir o arrendamento dos impostos nas províncias, visto que essa atividade não era compatível com a categoria dos senadores. O prestígio social, o status de emprestar dinheiro e arrendar, que tradicionalmente era menos digno do que o status de um proprietário de terra, não permitia que os membros da categoria senatorial realizassem, ao lado de suas funções, a profissão de “coletores de impostos”. É a “moral pública” que fiscaliza o exercício dessas atividades. O fundamento econômico das diferentes atividades no setor do mercado e das finanças é a propriedade de terra. O que fazer, quando não se tem esses pressupostos? Para um rico pater familias os escravos e os libertos podem assumir uma função não-autônoma de agentes de transmissão econômica, ou seja, eles podem realizar certos negócios em nome do seu dono para aumentar o patrimônio do dono, trabalhando como artesãos e comerciantes. Escravos de confiança ou libertos também podem realizar a atividade de administradores de bens de seus senhores – cuidar dos bens, vigiar outros trabalhadores, fazer as transações comerciais. Estes, enfim, são alguns pilares sobre os quais baseia a economia romana. Importante é perceber historicamente que esta atividade econômica baseada e carregada pelo patrimônio do pater familias é a instância decisiva na passagem da economia doméstica estrita para a economia lucrativa regulamentada pelo Estado. 20 3.3 Sistema de Impostos e Obrigação Litúrgica: Os Dois Pólos de Regulamentação da Economia Estatal Romana O sistema de impostos21 transforma a “economia da casa” imperial em grande sujeito econômico do Império. Ao mesmo tempo, interfere nas possibilidades de pessoas comuns ficarem ricas através de produção, distribuição e consumo. Esse processo ainda é complementado pela obrigação moral pública às liturgias. “Liturgias” são as doações/prestação de serviços que os ricos faziam em benefício do Estado para alguma obra pública... Essas liturgias = munera não podem ser confundidas com impostos ou bondade e filantropia, mas era algo exigido, um tributo por causa da fama social e do poder político. Visto que uma das principais fontes de expansão do Império Romano são as conquistas de terras através de guerras, o exército era um dos aparatos estatais, do qual advinham as maiores despesas. Havia aproximadamente 250 mil soldados que necessitavam de seus soldos. Para isso destinava-se grande parte das liturgias e dos impostos. Um detalhe sobre a anexação de terras ao Império através das guerras é que a própria população das províncias anexadas precisava prestar contas como se fosse arrendatária. Cícero afirma: “Nossos impostos e nossas províncias são igualmente propriedades rurais do povo romano”.22 Essa economia precisa ser justificada ideologicamente. No mesmo texto mencionado, Cícero afirma que ambos, impostos e províncias, são como dinheiro de indenização por guerras perdidas e um dinheiro de proteção para a “paz” garantida pelos romanos para a província. Legitima-se – via lei e ideologia estatal - a ligação entre dinheiro, violência e “pacificação”, como já vimos no texto de Tácito. Das províncias imperiais eram cobrados dois impostos diretos: o imposto sobre os produtos do campo (tributum agri) e o imposto capitis que era cobrado da população que não possuía terra!! Suetonio nos informa dos montantes que eram enviados anualmente a Roma: Gália e Egito pagam 40 milhões de sestércios (1 denário = 4 21 Maiores informações sobre impostos, veja neste livro no artigo de Uwe Wegner. 22 Cícero, ad Verres, II, 7, apud Kuno Füssel, 1995, p. 50. 21 sestércios). Plutarco afirma que o total de impostos recolhidos anualmente chega a 340 milhões de sestércios.23 O imposto básico era pago parcialmente com alimentos: da Cicília como dízimo; do Egito e da África bem mais. O transporte para Roma era pago pelos que tinham que pagar o imposto. O imposto capitis foi fixado na Síria e na Judéia após o exílio de Arquelau (6dC) para os homens dos 14 aos 65 anos; para as mulheres dos 12 aos 65 anos. A simples existência torna a pessoa obrigada a pagar impostos independentemente de sua classe.24 Havia ainda outros impostos (pedágio, imposto por libertação de escravos, alfândega...). Esse sistema foi sendo aprimorado no tempo do imperador Claudio (41- 54). A entrada dos impostos foi arrendada aos publicani. Para cobrar os impostos era necessário saber quanto as pessoas possuíam e o que produziam. Para isso servia o censo – confecção de listas de pessoas que serviam simultaneamente para os impostos e para as guerras (recrutamento)25. Mais tarde, ainda sob vigência destes e outros impostos, a população continuasofrendo cada vez mais. Lactâncio, escritor cristão de origem romana (250-340), afirma que o censo era feito com violência, tortura e acrescentava-se mais à propriedade do que de fato tinha. Não se respeitava idosos, crianças, doentes. Às crianças acrescentava-se idade; aos idosos diminuía-se idade. 26 Daí podemos entender as rebeliões na Judéia contra os impostos por ocasião do censo. 4 PERSPECTIVAS Até aqui tratamos de apresentar partes importantes da ideologia, dos sujeitos, estratégias e práticas do jeito romano de organizar e administrar a sua casa, o Império Romano. Também já apontamos para movimentos de resistência que provêm das camadas populares, que eram exploradas e marginalizadas dentro daquele sistema. 23 Confira em Kuno Füssel, 1995, p.51, com mais bibliografia. 24 Conforme Tertuliano (Apologeticum 13), o imposto capitis era considerado uma vergonha, enquanto que o imposto sobre o produto era considerado “apenas” uma diminuição do valor da produção. 25 Veja Lc 2,2. Sobre isso, o historiador Josefo relata mais detalhadamente em Antiquitates 18,1,1,504. 26 Veja citação completa no artigo de Uwe Wegner, onde trata da realização de censos. 22 Este quadro de referência é fundamental para leituras e pesquisas bíblicas, porque ajuda a melhor entender a vida das pessoas das e para as quais os textos falam. Temas como dívida, trabalho diarista, empobrecimento, a existência de pessoas escravas nas comunidades, a inquietação com os impostos e com a violência, as relações de gênero, de etnias e classes que aparecem nos textos do Novo Testamento estão exatamente inseridos neste contexto amplo do Império Romano que vai estendendo o seu jeito de administrar a sua “casa conquistada” a todas as regiões, cidades e campos. Perceber como os textos e as práticas comunitárias e pessoais subjacentes a estes textos se posicionam e reagem diante desta realidade faz parte da tarefa não apenas metodológica de análise, mas também de reflexão e avaliação teológica. Nos textos encontram-se pistas importantes para perceber a fé, o testemunho e o jeito como pessoas e comunidades pensam que Deus gostaria de ver a sua casa, toda a criação, ser administrada. Este jeito normalmente bate de frente com o jeito romano de administrar. Isto transparece, por exemplo, nas parábolas do credor incompassivo (Mt 18,23-35) e dos trabalhadores na vinha (Mt 20,1-16). Isto se evidencia também em textos que mostram mulheres e homens transgredindo as normas patriarcais de dominação na medida em que vão contruindo novas formas de relações e de vida (Lc 8,1-3; At 2,42-47; Gl 3,27-28; Rm 16,1-16 e muitos outros). É necessário, portanto, aprender a desmascarar os discursos dos dominadores que se coloca na boca e na escrita de ideólogos, filósofos, escribas... a partir do cotidiano vivido pela maioria. Este cotidiano está presente nos textos bíblicos. Este cotidiano, nas suas práticas transgressoras e renovadoras, quer ser entendido também como um novo jeito de administrar a casa em todas as suas relações. Nessa construção contracultural colocam-se também a fé e a teologia, a construção e a vivência do simbólico e comunitário como representação do sagrado no qual se crê e o qual embala os corações para perseverar nesta construção de novas práticas, de um lugar, no qual se torna possível simplesmente ser feliz! Este poderia ser o objetivo de uma economia que baseia sua razão de ser na comunhão, partilha, justiça e solidariedade que já é fruto da fé num Deus que administra sua casa com justiça, que levanta as pessoas quebrantadas, que da cova salva as pessoas injustiçadas e as 23 transforma em novos sujeitos de construção de um mundo melhor, no qual floresce a paz que vem da justiça que não prescinde do perdão. REFERÊNCIAS FINLEY, M.I. Die Sklaverei in der Antike. Geschichte und Probleme. Munique: C.H.Beck, 1981. FÜSSEL, Kuno; SEGBERS, Franz (ed.). “…so lernen die Völker des Erdkreises Gerechtigkeit. Ein Arbeitsbuch zu Bibel und Ökonomie. Luzern: Exodus; Salzburg: Anton Pustet, 1995. FÜSSEL, Kuno. Die politische Ökonomie des Römischen Imperiums in der frühen Kaiserzeit, in: FÜSSEL, Kuno; SEGBERS, Franz (ed.). “…so lernen die Völker des Erdkreises Gerechtigkeit. Ein Arbeitsbuch zu Bibel und Ökonomie. Luzern: Exodus; Salzburg: Anton Pustet, 1995. p. 36-59. MALINA, Bruce J. El mundo del Nuevo Testamento: perspectivas desde la antropología cultural. Estella (Navarra): Verbo Divino, 1995 (traduzido do inglês 1994). MÍGUEZ, Nestor O. Contexto sociocultural da Palestina. Revista de Interpretação Bíblica Latinoamericana, Petrópolis; São Leopoldo, v. 22, p. 22-33, 1995. OSIEK, Carolyn. “O Novo Testamento e a Família”. Concilium, Petrópolis, v. 260, p.10- 20, 1995. REIMER, Haroldo; RICHTER REIMER, Ivoni. Tempos de Graça: o Jubileu e as tradições jubilares na Bíblia. São Leopoldo: CEBI, Sinodal; São Paulo: Paulus, 1999. RICHTER REIMER, Ivoni. Uma escrava profetisa e missionários cristãos: experiência de libertação? Considerações sobre At 16, 16-18. 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