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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/303551238 O direito à educação domiciliar Book · May 2016 CITATIONS 0 READS 8,511 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Direito Penal Contemporâneo View project ALEXANDRE MAGNO FERNANDES Moreira Banco Central do Brasil 52 PUBLICATIONS 5 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by ALEXANDRE MAGNO FERNANDES Moreira on 27 May 2016. The user has requested enhancement of the downloaded file. 1 O Direito à educação domiciliar 2 Prefácio Em “O Direito à educação domiciliar”, Alexandre Moreira compilou um recurso abrangente e útil de uma importante questão para a comunidade de educação domiciliar no Brasil. As questões abordadas no livro serão úteis para qualquer pessoa que tenha algum interesse nesta forma de educação, que tem crescido rapidamente. A maneira pela qual um país, em última análise, aborda a questão da educação domiciliar, revela muito sobre a cultura cívica, política e dirigente de uma nação. A questão apresenta um nexo jurídico, político e cultural dos direitos dos pais, crianças e sociedade na educação das gerações futuras. Dr. Joseph Murphy, diretor associado da Vanderbilt School of Education, identifica a educação domiciliar tanto como um movimento social quanto como uma forma alternativa de educação. O interesse em educação domiciliar está crescendo no Brasil. Isso fica claro a partir dos processos judiciais que foram iniciados, bem como o fato de que uma conferência mundial sobre educação domiciliar foi realizada em março de 2016 no Rio de Janeiro, onde os principais pesquisadores de educação, advogados e políticos se reuniram para discutir o tema Home Education: it’s a right (Educação Domiciliar: é um direito). O Congresso Brasileiro tem considerado uma possível legislação, e um caso de 2016, pendente no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da educação domiciliar, indicam que o movimento de educação em casa no Brasil chegou a um ponto crítico. O Brasil é o maior país livre e democrático na América do Sul e tem influência global, portanto como os formuladores de políticas brasileiros e juízes atenderão às demandas de seus cidadãos por liberdade de praticar a educação domiciliar, afetará dramaticamente os brasileiros, mas também muitos outros além de suas fronteiras. Hoje, existem mais de dois milhões de crianças educadas em casa nos Estados Unidos. Pesquisas demonstram que as crianças que são educadas em casa estão bem preparadas acadêmica e socialmente para participar de uma democracia liberal. Em comparação com 3 a média da população, pesquisas sugerem que crianças educadas em casa são mais civicamente engajadas, empreendedoras, envolvidas na sociedade, e a educação domiciliar foi tema de debate político intenso ao longo de duas décadas. Pesquisas também revelam que não existe uma correlação positiva entre a regulamentação e resultados para crianças educadas em casa. Isto significa que os altos níveis de regulamentação não implicariam resultados mais positivos. A crescente comunidade de educação domiciliar, em todo o globo, está se engajando com formuladores de políticas em todos os níveis, para garantir que eles tenham poderes para fornecer essa forma positiva de educação aos seus filhos. Muitos interpretam o direito das crianças e dos pais na educação como uma garantia ao direito à educação domiciliar. Advogados pela educação domiciliar, como eu, também enxergam numerosos documentos internacionais de direitos humanos estabelecem claramente que as crianças, em sua maioria, estão sob os cuidados de seus pais, cuja autoridade e responsabilidade para tomar decisões educacionais são respeitadas pelo Estado. Alexandre era redator principal dos Princípios do Rio (www.therioprinciples.org), que estabelecem a forma de como o direito de educação domiciliar deveria ser visto no âmbito do quadro internacional contemporâneo de direitos humanos.i Infelizmente, parece que muitas pessoas confundem o ensino obrigatório com frequência obrigatória na escola, especialmente escolas públicas. Esta visão, contudo, não é a melhor referência à luz dos direitos dos pais e crianças quanto à educação. O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais articula claramente que os pais têm o direito de enviar seus filhos para escolas não administradas pelo Estado ou financiadas por fundos públicos. A Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu que os pais têm o direito fundamental de dirigir a criação educacional de seus filhos. Em um caso famoso de 1925 o tribunal emitiu estas palavras: “A teoria fundamental da liberdade sobre a qual todos os governos desta União repousam, exclui qualquer poder 4 geral do Estado para padronizar suas crianças, forçando-as a aceitar o ensinamento de apenas professores públicos. Uma criança não é a mera criatura do Estado; aqueles que a nutrem e dirigem o seu destino possuem o direito, juntamente com o elevado dever, de reconhecê-la e prepará-la para obrigações adicionais”. Neste livro, Alexandre discute as questões mais importantes que os formuladores políticos precisam lidar sobre a educação em casa. Estas incluem o papel da família na sociedade e na educação de uma criança, a história da educação e o fenômeno da educação em casa à luz dos padrões atuais, a dignidade individual do ser humano, a importância da neutralidade ideológica por parte do Estado, o pluralismo, e o nexo de direitos parentais e os melhores interesses da criança. À medida que o Brasil trilha seu caminho como uma nação desenvolvida e uma sociedade livre, é importante que a educação não se torne monopólio de uma instituição. Devido ao fato de que o propósito principal da educação é permitir o florescimento humano, esta deveria ser a mais individualizada possível. E educação domiciliar é a educação mais individualizada disponível. Há muitos argumentos práticos e persuasivos em favor da permissão da educação domiciliar, em um sistema político pluralista; mas o respeito à dignidade humana e ao valor inerente e individual do indivíduo está entre os mais convincentes. O livro de Alexandre é uma importante contribuição para a literatura no contexto de uma das mais importantes sociedades democráticas emergentes do mundo, e ajudará formuladores de políticas públicas e cidadãos a considerar os argumentos jurídicos e filosóficos mais importantes e relevantes. MIKE DONNELLY Director of Global Outreach Home School Legal Defense Associationii 5 Introdução Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu Vai voando, contornando a imensa curva norte-sul Vou com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul Pinto um barco a vela branco navegando É tanto céu e mar num beijo azul Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo E se a gente quiser ele vai pousar Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida Com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida De uma América a outra consigo passar num segundo Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo 6 Um menino caminha e caminhando chega no muro E alilogo em frente a esperar pela gente o futuro está E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar Sem pedir licença muda nossa vida Depois convida a rir ou chorar Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar Vamos todos numa linda passarela De uma aquarela que um dia enfim Descolorirá Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo Que descolorirá E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo Que descolorirá Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo Que descoloriráiii Ouvir Toquinho cantar Aquarela como trilha sonora de um comercial de lápis de cor é uma das grandes lembranças da minha infância. Aos ouvidos de um menino de oito anos de idade vivendo no interior de Minas Gerais, essa música não apenas soava sumamente bela, mas também conseguia tocar o coração ao revelar verdades sobre a vida ainda inacessíveis à mente racional. Hoje ao ouvi-la ainda me emociono, pois percebo mais de três décadas depois que a vida realmente é uma aquarela, ou talvez várias aquarelas, sobre 7 a qual nós constantemente desenhamos (traçamos mentalmente nossos planos), colorimos (nos envolvemos com esses planos) finalmente deixamos a aquarela se descolorir (os planos, realizados ou não, passam a fazer parte da nossa memória e se esvanecem com o passar no tempo). Apesar desses planos todos, não sabemos como será o nosso futuro, por quais caminhos trilharemos e em quais destinos chegaremos. Não sabemos nem quem vamos nos tornar nessa caminhada: talvez o menino, caso pudesse ver-se décadas depois, não reconheceria a si mesmo nesse adulto. Soa absurdo pedir que alguém se prepare para uma longuíssima viagem, sem destinos definidos, sem duração determinada, sem nem ao menos saber com certeza quem vai acompanhá-lo nessa viagem. Porém, é exatamente isso que a vida pede a cada um de nós. A vida pede que estejamos prontos para um amanhã que depende de forças absolutamente fora de nosso controle. Já dizia Martin Heidegger que os seres humanos são simplesmente “jogados no mundo” ao nascer, chegando em uma realidade para a qual não demos a menor contribuição. Talvez o mais exato seja dizer que somos jogados no mundo todos os dias ao acordar, obrigados a lidar com uma realidade quase sempre fora do nosso controle. E o que precisamos para realizar esse embate cotidiano com um mundo assustadoramente maior que nós? Melhor dizendo, como podemos transformar esse embate em uma dança entre o eu e o ambiente que o cerca, na qual a tensão permanente entre ambos é transformada em harmonia e beleza? Para responder essa pergunta, bibliotecas inteiras poderiam ser construídas com as formulações altamente sofisticadas de mestres da ética e da religião. Não há tempo, porém, para que um mero ser humano leia e absorva tão vasta obra, fruto da sabedoria acumulada de toda a humanidade. Não há também opção: é preciso viver aqui e agora e é preciso também se preparar para o futuro incerto. Uma das mais antigas e mais urgentes questões da humanidade consiste em como realizar essa preparação para o futuro. Para a maioria dos adultos, essa pergunta não faz mais sentido: a vida deve ser vivida cotidianamente, dia após dia, com a torcida de uma velhice serena e de uma morte indolor. De minha parte, creio que eles estão mortalmente errados: 8 o hoje é sempre o pai do amanhã e nossas escolhas atuais determinarão nosso futuro mesmo que não pensemos nisso. Não podemos escapar: a vida também é uma preparação para a morte. Com as crianças, porém, é diferente: prometemos a elas que depois de vários anos de preparação, estarão prontas para viver. Deixarão de ser meras “pessoas em formação”, como diz o Estatuto da Criança e do Adolescente, para se tornar “pessoas plenamente formadas” e prontas para atuar em sociedade em nome próprio, sem a necessidade de apoio formal de nenhum adulto. E para isso, a Constituição Federal diz que dos quatro aos dezessete anos, a pessoa deve ser obrigatoriamente “educada”. Não há o mínimo consenso, porém, sobre o que seja essa exatamente esse processo de preparação para o futuro denominado de educação. Seria alguma forma de cultivo em que a pessoa, como uma planta, recebe os estímulos necessários para realizar seu potencial? Em outras palavras, a educação seria simplesmente o cumprimento do comando de Nietzsche: “torna-te quem tu és”? Ou, por outro lado, seria a introdução da criança ao patrimônio cultural da humanidade, apta a transformar um ser biológico em um ser humano? Ou, na forma mais pragmática, seria apenas a preparação para a uma vida economicamente produtiva, tornando as pessoas aptas ao mercado de trabalho? Afinal de contas, as crianças devem mesmo ser educadas por adultos ou podem fazer isso por si mesmas? Os questionamentos não terminam e certamente nunca terminarão pelo simples motivo de que sempre haverá diversas visões sobre o adulto que se pretende construir e o modo como deve ser feita essa construção. No meio de tanta polêmica sobre o que é educação, sobre como as crianças devem ser educadas e mesmo se devem ser formalmente educadas, é paradoxal todo o esforço que tem sido feito pelo Estado para que a educação esteja necessariamente centrada na instituição escolar. Afinal de contas, as crianças precisam de escola para se tornarem adultos saudáveis, felizes e produtivos? Para algumas crianças, a resposta é certamente positiva, mas não há evidências de que essa resposta 9 seja a mesma para a maioria das crianças. Certamente, a escola não é a opção mais adequada para todas as crianças, mesmo porque não existe essa opção. A experiência tem demonstrado que existem tantas maneiras de se educar quanto existem crianças no mundo. Nenhum ser humano percorre um caminho exatamente igual aos demais. Tentar impor um modelo idêntico para todos não apenas vai contra essa experiência como também viola a dignidade de cada criança, tratando-a meramente como parte de uma massa amorfa e não como uma pessoa a parte que deve ser respeitada em sua individualidade. Esse tipo de mentalidade centralizadora e autoritária tem sido responsável por intenso sofrimento de milhões de crianças por todo o País, que têm seu bem-estar atual gravemente prejudicado em nome da preparação para um futuro que, na imensa maioria das vezes, não tem nada a ver com seu potencial, seus talentos, suas deficiências e seus desejos. Dessa maneira, a infância de hoje termina por ser brutalmente sacrificada em nome de um “adulto ideal”, concebido artificialmente pelo sistema, que pouco ou nada tem a ver com o potencial da criança. Estamos, enfim, sacrificando a alma de nossas crianças em nome de uma criatura futura que somente existe na cabeça de uma elite intelectual. Sim, a criança é frágil e precisa ser protegida, cuidada e amparada. Porém, somente os adultos que a amam têm real condições de fazer isso, pois naturalmente o interesse deles consiste na realização dos interesses da criança. Deixar a educação nas mãos daqueles que não tem amor pela criança significa na prática submetê-la a um tratamento indigno e profundamente desrespeitoso com sua individualidade. Nem todas as famílias, porém, têm condições de efetivamente dirigir a educação dos filhos, como determina nosso Código Civil. Este livro fala das famílias que não apenas têm condições de dirigir a educação dos filhos, mas principalmente têm disponibilidade e vontade para fazer isso. A educação domiciliar não é meramente uma alternativa à escola; muito mais do que isso, consiste no mais integral cumprimento dos deveres decorrentes do poder familiar. Essencialmente, educar 10 os filhos em casa é provavelmente a maiormanifestação de amor que os pais podem dar a eles. Sabemos, porém, que a criança não pode viver apenas de amor: ela precisa efetivamente ser educada, preparada para a vida adulta. Em outras palavras, a educação precisa ser eficiente, precisa cumprir seus objetivos. Milhões de famílias no mundo todo e milhares de famílias no Brasil têm demonstrado que isso é possível por meio da educação domiciliar. Na verdade, as crianças educadas essas famílias têm mostrado resultados bem melhores do que aquelas educadas no sistema escolar, mesmo em escolas privadas. Se esses fatos fossem suficientes para falar por si, este livro seria absolutamente inútil. Infelizmente, muitas vezes toneladas de evidências podem não significar nada para as autoridades públicas. Estamos afinal em um Estado Democrático de DIREITO, onde tudo deve ser justificado a partir de normas jurídicas. Com essa pretensão o livro foi escrito: a de traduzir na linguagem jurídica a experiência concreta desses milhares de famílias no Brasil. Faço votos de que este livro ajude a tornar a vida dessas famílias um pouco menos difícil, para que elas possam se concentrar naquilo que realmente interessa: a educação de seus filhos. Vejo esta obra também como um subsídio para todos aqueles que, educando em casa ou não, acreditam e lutam por mais liberdade educacional. Desejo por fim que este livro se torne, no futuro próximo, uma peça de museu, reminiscência de uma época em que ainda se considerava necessária a elaboração de complexas teses jurídicas para explicar o óbvio ululante, qual seja, que os pais não apenas podem educar seus filhos em casa como também são as pessoas mais capacitadas e mais interessadas na educação de seus próprios filhos. 11 Índice I – Educação: conceitos fundamentais II – A família 1. Conceito e espécies de famílias 2. O regime jurídico da família 3. Familismo na Constituição Federal III – O fenômeno da educação domiciliar 1. A educação dirigida pelos pais 2. Abordagens e situações de educação domiciliar 3. Motivações para a adoção da educação domiciliar 4. Situação da educação domiciliar no mundo e no Brasil IV – Questões jurídicas fundamentais 1. A dignidade da pessoa humana e a educação infantil 2. A neutralidade ideológica do Estado 3. A liberdade de consciência e de crença na educação infantil 4. O direito de transmitir determinada cultura às novas gerações 5. O pluralismo político 6. Os direitos das associações 7. As relações do poder familiar com o poder estatal 12 V – O direito à instrução dirigida pelos pais 1. A educação como direito social e o princípio da subsidiariedade 2. O pluralismo político aplicado à educação 3. O princípio da proteção integral ou do melhor interesse da criança Conclusões Apêndices Reflexões sobre educação e família Declaração de princípios do Rio de Janeiro sobre educação domiciliar 13 I – Educação: conceitos fundamentais We don't need no education We don’t need no thought control No dark sarcasm in the classroom Teachers leave them kids alone Hey! Teachers! Leave them kids alone! All in all, it's just another brick in the wall All in all, you're just another brick in the walliv A música Another Brick in the Wall, da qual foi retirado o trecho acima, é provavelmente a manifestação mais famosa de repúdio ao sistema escolar. Lançada no final de 1979, alcançou em 1980 o primeiro lugar das paradas em países tão diversos como Estados Unidos, Israel e Nova Zelândia. A música chegou a ser proibida pelo regime racista da África do Sul, pois havia se tornado um verdadeiro hino nos protestos contra a segregação nas escolas sul-africanas. Ainda hoje, Another Brick in the Wall é considerada uma das melhores músicas de todos os tempos.v A gigantesca repercussão dessa música demonstrou a existência de uma percepção compartilhada em vários países do mundo de que há algo essencialmente errado com a educação tal qual a concebemos hoje. Infelizmente, a banda inglesa Pink Floyd também cometeu um erro, que passou despercebido por quase todos que ouviram a música. Esse erro foi a confusão entre educação e escolarização. Bem, não precisamos jogar toda a culpa em Roger Waters & cia., pois esse erro é largamente disseminado. E não é o único: instrução, por exemplo, também é frequentemente associada com escolarização.vi Da mesma forma, os termos professor e educador são frequentemente tomados como sinônimos. vii Sem dúvida alguma, o termo “educação” é o de mais problemática definição. Vários sentidos, muitas vezes com pouquíssima relação entre si foram se agregando à palavra “educação” com o passar do tempo. viii A razão para essa infindável diversidade semântica 14 foi a excepcional circunstância de que, a partir do Iluminismo, a educação passou a ter uma forte conotação emotiva, significando “o instrumento fundamental de transformação individual e social”.ix Nesse sentido, a educação passou a ser um símbolo agregador de todas as transformações sociais e individuais visualizadas pelas mais diversas correntes ideológicas. x Entre as várias definições reconhecidas de educação, destaco: “Educação desenvolve no corpo e na alma do aluno toda a beleza e toda a perfeição de que ele é capaz.” (Platão) “A educação é a criação da mente sadia em um corpo sadio. Desenvolve a faculdade do homem, especialmente sua mente, para que ele possa ser capaz de desfrutar a contemplação da verdade suprema, a bondade e beleza.” (Aristóteles) “A educação é o desenvolvimento da criança de dentro.” (Rousseau) “A educação é desdobramento do que já existe em germe. É o processo através do qual a criança faz com que o interno torne-se externo.” (Froebel) “A educação é o desenvolvimento harmonioso e progressivo de todos os poderes e faculdades de inatas do ser humano – físicas, intelectuais e morais.” (Pestalozzi) “A educação é o completo desenvolvimento da individualidade da criança para que ele possa fazer uma contribuição original para a vida humana de acordo com o melhor de sua capacidade.” (T. P. Nunn) xi Apesar dessa diversidade de definições, é possível identificar uma essência comum a todas elas: a educação diz respeito a um desenvolvimento, uma maturação, um florescimento do potencial individual.xii Nesse sentido, a educação não é um pensamento ou uma teoria, mas uma forma de ação concreta sobre o indivíduo: Educação é ação, e a definição de Durkheim parece-nos excelente: “A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não amadureceram pela vida social.” Ação de uma personalidade sobre outras, criação de comunicações psicológicas entre seres humanos, a educação pertence ao domínio da arte: a arte de criar condições favoráveis a essa ação profunda, suscetível de orientar a evolução de um sujeito, a arte de manejar 15 certas técnicas de ação, a arte de conduzir para os objetivos determinados aqueles cujo encargo nos pertence.xiii Analiticamente, é possível constatar que a educação: a) Compreende diversos processos de aprendizagem no decorrer da vida, sem limitação a uma situação específica, como a escolar;xiv b) Consiste essencialmente no desenvolvimento de um poder inato da pessoa; c) É um processo dinâmico, que se desenvolve de acordo com as mudanças na situação concreta da pessoa; d) Em regra, é um processo tripolar, que requer a participação do educador, do educando e da sociedade em que eles vivem. xv xvi A educação pode ser realizada fundamentalmente de modo: a) Informal: “ocorre no curso de atividades adultas mundanas nas quais os jovenstomam parte de acordo com sua habilidade. Não há uma atividade executada apenas para ‘educar as crianças’.”xvii; b) Formal: existe um processo educacional específico, destacado da vida cotidiana, que se destina à transmissão de conhecimentos, hábitos e habilidades para as novas gerações. xviii Enquanto a educação informal parte de uma relação pessoal entre o educador e o educando (por ex., pai e filho), a educação formal é centrada no conteúdo, universalmente padronizadoxix. A educação formal é realizada usualmente dentro do ambiente escolar; c) Não formal: qualquer atividade educacional organizada realizada fora do sistema estabelecido. Envolve grupos comunitários e outras organizações. Existem os seguintes tipos de educação não formal: I) Educação paraformal: atividades reconhecidas por autoridades educacionais e que correm paralelamente ao sistema educacional. É o caso 16 da educação à distância, dos programas de tutoria e de aulas complementares para pessoas com problemas de aprendizagem; II) Educação popular: iniciativas educacionais explicitamente dirigidas aos grupos marginais da população, de forma concreta e aproveitando-se de seus conhecimentos anteriores; xx III) Atividades de desenvolvimento pessoal: realizadas por meio do mercado privado de ensino com o objetivo de atender demandas de caráter individual. No Brasil, essas atividades acontecem nos “cursos livres”, que recebem essa denominação por não requererem reconhecimento do Ministério da Educação. São exemplos dessas atividades os cursos de idiomas, esportes, artes plásticas e informática; xxi IV) Treinamento profissional: inclui os vários programas de treinamento profissional e vocacional organizados por firmas, sindicatos, agências privadas e até escolas formais. Seu objetivo é capacitar profissionais para atender às necessidades das empresas. xxii Idealmente, a educação formal e não formal distinguem-se nos seguintes aspectos: xxiii Formal Não formal Propósitos Longo prazo & geral Curto prazo & específica Baseada em certificação Não baseada em certificação Tempo De ciclo longo De ciclo curto Preparatório Recorrente Tempo integral Meio expediente Conteúdo Padronizada Individualizada Absorção Produção Centrada na academia Centrada na prática Requisitos de admissão determinam a clientela A clientela determina os requisitos de admissão 17 Sistema de administração Baseada na instituição, isolada do ambiente. Baseada no ambiente, relacionada à comunidade. Estruturada rigidamente. Flexível. Centrada no professor. Centrada no aluno. Utilização intensiva de recursos. Economia de recursos. Controle Externo Autogoverno Hierárquico Democrático Por sua vez, a “instrução se refere à formação intelectual, formação e desenvolvimento das capacidades cognoscitivas mediante o domínio de conhecimentos sistematizados”. xxiv Nesse sentido, instrução é, essencialmente, a transmissão de conhecimentos e habilidades. A instrução não é um fim em si mesmo, mas apenas um dos meios de se realizar a educação, como explica José Carlos Libâneo: Há uma relação de subordinação da instrução à educação, uma vez que o processo e o resultado da instrução são orientados para o desenvolvimento das qualidades específicas da personalidade. Portanto, a instrução, mediante o ensino, tem resultados formativos quanto converge para o objetivo educativo, isto é, quando os conhecimentos, capacidades e habilidades propiciados pelo ensino se tornar princípios reguladores da ação humana, em convicções e atitudes reais frente à realidade. xxv O ensino “corresponde a ações, meios e condições para a realização da instrução; contém, pois, a instrução. (...) o ensino é o principal meio e fator da educação – ainda que não o único – e, por isso, destaca-se como campo principal da instrução e educação”.xxvi O ensino pressupõe necessariamente uma intenção (objetivo a ser alcançado por aquele que se submete ao ensino) e em caráter triádico, pois se refere a quem ensina, à quem se ensina e ao que é ensinado. Nesse sentido, o ensino é muitas vezes visto como mero sinônimo de educação, mas trata-se, na verdade, de apenas uma das formas de realização do processo educacional. Nada impede, por exemplo, que a educação ocorra sem um educador (aquele que ensina): essa é a situação do autodidatismo, no qual a aprendizagem ocorre sem o ensino.xxvii A aprendizagem consiste na “aquisição de uma técnica qualquer, simbólica, emotiva ou de comportamento: isto é, uma mudança nas respostas de um organismo ao ambiente, que 18 melhore tais respostas em vista da conservação e do desenvolvimento do próprio organismo”xxviii. A aprendizagem tem três dimensões: a) humana: relacionamento interpessoal (professores, alunos, direção, funcionários); b) político-social: época histórica, políticas governamentais, etc.; c) técnica: definição de objetivos, seleção de conteúdos, técnicas e recursos de ensino. Cultura, em sentido antropológico, engloba tudo aquilo que o ser humano produz para garantir sua sobrevivência e desenvolvimento. Abrange desde atividades essencialmente materiais, como a agricultura,xxix até obras de caráter mais intelectual, como a literatura e as artes. A Constituição Federal adotou esse conceito ao definir patrimônio cultural brasileiro como “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216, caput). A transmissão da cultura se faz por meio da educação, formal, não formal e mesmo informal. Escolarização (ou educação escolar), por sua vez, refere-se a todos os processos de caráter educacional controlados por uma instituição específica, a escola. Em termos jurídicos, escolarização é sinônimo de submissão a padrões homogêneos definidos nacionalmente; no caso do Brasil, esses padrões constam da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional – também conhecida como LDB), que delimita expressamente seu âmbito de aplicação: “Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (art. 1º, § 1º).xxx A escolarização não é apenas a educação institucionalizada (isto é, conduzida por estruturas burocráticas altamente reguladas, as escolas), mas também uma ideologia xxxi, um mito xxxii, uma religião xxxiii e um processo educacional xxxiv. Educador é simplesmente aquela pessoa responsável pela educação de outrem. Sua relevantíssima função social consiste na transmissão seletiva da cultura às novas gerações. Nesse sentido, o educador determina quais manifestações culturais são relevantes o bastante para serem internalizadas pelos educandos. Não é exagero dizer que o conjunto de possibilidades de vida imagináveis por determinada geração foi determinado majoritariamente pelos educadores dessa geração. 19 Professor ou docente é a pessoa responsável pela educação, ou mais, estritamente, pela transmissão de conhecimentos a outras pessoas. A atividade do professor é o ensino, que pode ser realizado tanto em caráter informal (na educação domiciliar, por exemplo, o ensino é responsabilidade dos pais) quanto profissionalmente, dentro de um ambiente escolar como integrante de uma profissão. Existem duas espécies fundamentais de professores: a) Os professores instrutores: são responsáveis apenas pela transmissão de conhecimentos. Não têm o poder de determinar o que, porque e para que transmitir, mas somente prestam um serviço tendo em vista os fins já determinados por outrem. Geralmente, consideram-se instrutores ou facilitadores aqueles que atuam na educação não formal(por exemplo, em cursos de línguas estrangeiras, de artes marciais e de mecânica); b) Os professores educadores: são simultaneamente educadores e instrutores, pois são responsáveis tanto por transmitir conhecimentos e habilidades como também por selecionar os bens culturais e as finalidades com que eles são transmitidos. O professor educador transmite ao educando a cultura filtrada de acordo com sua ideologia e visão de mundo. Essa função é exercida pelos pais e mais controvertidamente pelos profissionais do sistema escolar. O quadro a seguir sintetiza as categorias de professores: Atividade formal Atividade informal Instrutores Professores inseridos no sistema escolar. Instrutores de cursos livres. Educadores Professores e outros profissionais do sistema escolar. Pais e responsáveis por crianças e adolescentes. Intelectual, em sentido lato, é todo aquele que, dotado de cultura consideravelmente maior que a média da população, reflete sobre as realidades sociais e propõe soluções para os problemas dessa sociedade. A classe dos intelectuais é tradicionalmente denominada de intelligentsia. Na conhecida classificação das espécies de poder realizada por Max Weber, o poder intelectual (ao lado do militar e do político) tem destacada importância, 20 uma vez que determina a ação alheia sem a necessidade da utilização da força física ou de meios financeiros. Extremamente influente no Brasil é a distinção realizada por Antônio Gramsci entre intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos: Daqui a designação de intelectuais “orgânicos” distintos dos intelectuais tradicionais. Estes, para Gramsci, eram basicamente os Eram os intelectuais estagnados no mundo agrário do Sul da Itália. Eram o “clero”, “os funcionários”, “a casa militar”, “os acadêmicos” voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo que não fazia mais sentido. (...) (...) “Orgânicos”, ao contrário, são os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão. Por isso, estão ao mesmo tempo conectados ao mundo do trabalho, às organizações políticas e culturais mais avançadas que o seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade. Ao fazer parte ativa dessa trama, os intelectuais “orgânicos” se interligam a um projeto global de sociedade e a um tipo de Estado capaz de operar a “conformação das massas no nível de produção” material e cultural exigido pela classe no poder. Então, são orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo, elaboram uma concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o domínio estatal da classe que representam.xxxv De acordo com essa classificação, os professores, responsáveis pela educação, seriam necessariamente intelectuais tradicionais ou orgânicos. Na doutrina pedagógica brasileira, há praticamente um consenso no sentido de que os professores não apenas são intelectuais, mas principalmente têm o dever moral de serem intelectuais orgânicos, ou em outros termos, intelectuais transformadores. xxxvi Maria Lúcia de Arruda Aranha, autora do mais influente manual de filosofia da educação no Brasil, afirma essa vinculação entre professor e intelectual orgânico de forma assaz contundente: Ser um educador intelectual transformador é compreender que as escolas não são espaços neutros de mera instrução, mas carregados de pressupostos que representam as relações de poder vigentes e convicções pessoais nem sempre explicitadas. Imaginar que a escola seja um local apolítico, em que são transmitidos conhecimentos objetivos e apartados do 21 mundo das injustiças sociais, é manter uma postura conservadora. Perigosamente conservadora, por contribuir com a manutenção do status quo.xxxvii Ideologia tem duas concepções: a neutra e a crítica. De acordo com a primeira, ideologia é uma visão de mundo compartilhada por determinado grupo; é, nesse caso, sinônimo de ideário. Na concepção crítica, de fundo marxista, ideologia é a estratégia utilizada pelos intelectuais a serviço de uma classe para representar falsamente a realidade em benefício dessa classe. Para propagar a ideologia dominante e manter o sistema mediante o consenso da população, o Estado contaria com aparelhos ideológicos, quais sejam, instituições como a família, a religião, a escola, o sistema legal, a cultura e a comunicação. xxxviii Propagandaxxxix ou doutrinação é uma forma de comunicação que busca influenciar o comportamento dos destinatários em direção a determinada causa ou ideologia. A modificação comportamental, por sua vez, consiste em um estágio mais avançado da doutrinação, pois utilizada técnicas empiricamente demonstradas para aumentar ou diminuir a frequência de um comportamento. Há controvérsia a respeito da possibilidade de uma diferenciação essencial entre educação propaganda ou doutrinação. xl Porém, considerando a educação no sentido clássico de “formação integral do ser humano”, é possível realizar uma série de distinções entre educação e doutrinação ou propaganda, como será detalhado no quadro a seguir.xli Doutrinação e propaganda Educação Unilateral: Diferentes ou opostos pontos de vista são ignorados, deturpados, subrepresentados ou denegridos. Multifacetada: As questões são examinadas a partir de muitos pontos de vista; os lados opostos são equitativamente representados. Usa generalizações, declarações “totalizantes” e despreza referências e dados específicos. Usa qualificadores: as declarações são apoiadas em referências e dados específicos. Omissão seletiva: Dados cuidadosamente selecionados – e mesmo distorcidos – para apresentar apenas o melhor ou o pior caso Equilibrado: Apresenta as amostras de uma ampla gama de dados disponíveis sobre o assunto. Linguagem usada para revelar. 22 possível. A linguagem é usada para esconder. Uso enganador das estatísticas. Referências estatísticas qualificadas com respeito ao tamanho, duração, critérios, controles, fonte e subsídios. Aglomeração: ignora distinções e diferenças sutis. Tenta reunir elementos superficialmente semelhantes. Raciocina por analogia. Discriminação: Assinala as diferenças e distinções sutis. Use analogias com cuidado, apontando diferenças e casos de inaplicabilidade. Falso dilema (ou/ou): apenas duas soluções para o problema ou duas maneiras de ver a questão - o “caminho certo” (o caminho do orador ou do escritor) e o “caminho errado” (qualquer outra forma). Alternativas: Há muitas maneiras de resolver um problema ou visualizar uma questão. Apelos a autoridade: declarações selecionadas de autoridades utilizados para encerrar uma discussão. Abordagem “Só o especialista sabe”. Apelos à razão: Declarações de autoridades e partes envolvidas utilizados para estimular o pensamento e a discussão. “Especialistas raramente concordam”. Apelos ao consenso ou “efeito arrastão”: “Se todo mundo está fazendo isso, então devem estar certos”. Apelos aos fatos: fatos selecionados a partir de ampla base de dados. Aspectos lógicos, éticos, estéticos e psicoespirituais considerados. Apelos às emoções: Usa palavras e imagens com fortes conotações emocionais. Apelos à capacidade das pessoas para respostas fundamentadas e atenciosas: usa explicações e palavras emocionalmente neutras. Rotulagem: usa rótulos e linguagem depreciativa para descrever os defensores de pontos de vista opostos. Evita rótulos e linguagem depreciativa: aborda o argumento, e não as pessoas que apoiam um ponto de vista específico. 23 Promove atitudes de ataque e/ou de defesa com o objetivo de vender umaatitude ou produto. Promove atitudes de abertura e de pesquisa. O objetivo é descobrir. Ignora os pressupostos e os vieses embutidos. Explora os pressupostos e os vieses embutidos. O uso da linguagem promove a falta de consciência. O uso da linguagem promove maior consciência. Pode levar à pobreza de espírito e à intolerância. Pode levar à compreensão e à visão mais abrangente. Estudos citados escondem os conflitos de interesse das fontes de financiamento. Estudos citados revelam os conflitos de interesse das fontes de financiamento. As estatísticas sempre são apresentadas para mostrar o máximo de dano do problema e mínimo de danos da solução. As estatísticas são apresentadas para mostrar vários aspectos do problema, nem sempre a partir de uma abordagem maximalista ou minimalista. Socialização é o processo de absorção e disseminação das normas culturais de um determinado grupo social. Em outros termos, é o modo como a cultura é transmitida a uma pessoa e retransmitida por essa mesma pessoa; também é conhecida como educação informal. Os agentes de socialização consistem nas pessoas e instituições que auxiliam na integração do indivíduo na sociedade. Esses agentes podem ser: a) primários: são as pessoas naturalmente mais próximas do indivíduo, ou seja, os familiares e amigos; b) secundários: são as instituições sociais nas quais o indivíduo é inserido, como escola, igreja e local de trabalho.xlii Pedagogia é a ciência da educação. Em sentido estrito, diz respeito apenas à educação das crianças e jovens (pedagogia vem do grego paidós, que significa criança).xliii Em sentido amplo, tem por objeto qualquer espécie de educação. xliv Didática é o campo da pedagogia que tem por objeto os modos de realização do ensino. Concepções pedagógicas (ou concepções educacionais) são as diversas teorias que buscam fundamentar o saber pedagógico. São reconhecidas as seguintes concepções: xlv 24 a) Concepção tradicional: o aluno é considerado receptor passivo de informações preestabelecidas pelo sistema ou instituição educacional, que deve criteriosamente selecionar e preparar os conteúdos a serem transmitidos às novas gerações. A avaliação da aprendizagem baseia-se na capacidade de reprodução fiel das informações ensinadas. A relação professor-aluno é marcada por forte hierarquização e autoritarismo; b) Concepção comportamentalista ou behaviorista (tecnicismo): o conhecimento é externo ao indivíduo e deve ser por ele descoberto como resultado direto de sua experiência. Cabe à Educação o papel de estabelecer um roteiro de ações rigorosamente controlado, que conduza o aluno a atingir objetivos de ensino pré- determinados. A transmissão dos conteúdos deve levar ao desenvolvimento de habilidades e competências; c) Concepção humanista: privilegia os aspectos da personalidade do sujeito que aprende. Corresponde ao “ensino centrado no aluno”. O conhecimento, para essa concepção, existe no âmbito da percepção individual e não se reconhece objetividade nos fatos. A aprendizagem se constrói por meio da ressignificação das experiências pessoais. O aluno é o autor de seu processo de aprendizagem e deve realizar suas potencialidades. A educação assume um caráter mais amplo, e organiza-se no sentido da formação total do homem e não apenas do estudante; d) Concepção cognitivista: entendem o ser humano como um sistema aberto, ou seja, consideram sua capacidade de processar novas informações, integrando-as a seu repertório individual, reconstruindo-as de forma única e subjetiva continuamente ao longo da vida, em direção à constante autossuperação, e incorporando estruturas mentais cada vez mais complexas. Nessa abordagem, o professor é entendido como mediador entre o aluno e o conhecimento. Cabe a ele problematizar os conteúdos de ensino, criando condições favoráveis à aprendizagem, e desafiar os alunos para que cheguem às soluções por meio de um processo investigativo; e) Concepção sociocultural: No Brasil, Paulo Freire é o representante mais significativo da abordagem sociocultural. Nessa perspectiva, o ser humano não 25 pode ser compreendido fora de seu contexto; ele é o sujeito de sua própria formação e se desenvolve por meio da contínua reflexão sobre seu lugar no mundo, sobre sua realidade. Essa conscientização é pré-requisito para o processo de construção individual de conhecimento ao longo de toda a vida, na relação pensamento-prática. Visa à consciência crítica, que é a transcendência do nível de assimilação dos dados do mundo concreto e imediato, para o nível de percepção subjetiva da realidade como um processo de relações complexas e flexíveis ao longo da história. Glossário Educação Conceito “A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda não amadureceram pela vida social.” (Durkheim) Características Compreende diversos processos de aprendizagem no decorrer da vida. Desenvolve um poder inato da pessoa. Varia de acordo a com situação concreta da pessoa. Participantes: educador, educando e sociedade. Classificação Formal Conceito Realizada em estabelecimentos de ensino e regulamentada pelo Estado. Classificação Ensino fundamental E. médio. E. superior. Informal (ou não intencional) Não há um processo educativo separado da vida cotidiana da criança. 26 Não formal Conceito Cursos livres, sem regulamentação estatal. Classificação Educação paraformal Educação popular Atividades de desenvolvimento pessoal Treinamento profissional Instrução Transmissão de conhecimentos e habilidades. Ensino Ações, meios e condições para a realização da instrução; contém, pois, a instrução. Aprendizagem Aquisição de conhecimentos e habilidades. Cultura Tudo aquilo que o ser humano produz para garantir sua sobrevivência e desenvolvimento. Escolarização (ou educação escolar) Processos de caráter educacional controlados por uma instituição específica, a escola. Educador A pessoa responsável pela educação de outrem. Professor (ou docente) Conceito Pessoa responsável pela educação, ou mais, estritamente, pela transmissão de conhecimentos a outras pessoas. Atividade Informal Fora do ambiente escolar; não constitui uma profissão. Profissional Dentro de um ambiente escolar como integrante de uma profissão. Classificação Instrutores São responsáveis apenas pela transmissão de conhecimentos. Educadores São simultaneamente educadores e instrutores. 27 Intelectual Conceito Pessoa que reflete sobre as realidades sociais e propõe soluções para os problemas dessa sociedade. Classificação de Gramsci Tradicional Intelectual ainda preso a uma formação socioeconômica superada. Orgânico Intelectual que participa da formação de uma nova sociedade; também chamado de intelectual transformador. Ideologia Concepção crítica (marxista) Estratégia utilizada pelos intelectuais a serviço de uma classe para representar falsamente a realidade em benefício dessa classe. Aparelhos ideológicos do Estado Conceito Instituições sociais que propagam a ideologia da classe dominante no Estado. Espécies Religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, cultural e de informação. Doutrinação (ou propaganda) Conceito Forma de comunicação que busca influenciar o comportamento dos destinatários em direção a determinada causa ou ideologia. Modificação comportamental Consiste em um estágio mais avançado da doutrinação, pois utilizada técnicas empiricamente demonstradas para aumentar ou diminuir a frequência de um comportamento. Socialização Conceito Processo de absorçãoe disseminação das normas culturais de um determinado grupo social. Agentes de socialização Primários Pessoas naturalmente mais próximas do indivíduo: os familiares e amigos. 28 Secundários Instituições sociais nas quais o indivíduo é inserido, como escola, igreja e local de trabalho. Pedagogia Conceito Ciência da educação. Didática Campo da pedagogia que tem por objeto os modos de realização do ensino. Concepções Pedagógicas Conceito São as diversas teorias que buscam fundamentar o saber pedagógico. Classificação Tradicional Comportamentalista ou behaviorista (tecnicismo) Humanismo Cognitivista Sociocultural II – A família 1. Conceito e espécies de famílias Família! Família! Papai, mamãe, titia Família! Família! Almoça junto todo dia Nunca perde essa mania Mas quando a filha quer fugir de casa Precisa descolar um ganha-pão Filha de família se não casa 29 Papai, mamãe, não dão nenhum tostão (...) Família! Família! Vovô, vovó, sobrinha Família! Família! Janta junto todo dia Nunca perde essa mania Mas quando o neném Fica doente Uô! Uô! Procura uma farmácia de plantão O choro do neném é estridente Uô! Uô! Assim não dá pra ver televisão (...) Família! Família! Cachorro, gato, galinha Família! Família! Vive junto todo dia Nunca perde essa mania 30 A mãe morre de medo de barata Uô! Uô! O pai vive com medo de ladrão Jogaram inseticida pela casa Uô! Uô! Botaram cadeado no portãoxlvi A geração que nasceu nas décadas de 1960 e 1970 foi a primeira a ter o rock nacional como sua grande referência musical e talvez a última a ter uma noção mais estabilizada do termo “família”. Como ilustra a simpática música dos Titãs, a família era vista como um lugar onde vários conflitos e desavenças aconteciam, mas mesmo assim as pessoas estavam reunidas essencialmente por relações de consanguinidade (“Vovô, vovó, sobrinha”). Analogamente, “família” ainda incluiria relações afetivas entre pessoas sem vínculo de consanguinidade, os amigos mais próximos, e mesmo entre pessoas e animais (“Cachorro, gato, galinha”). Se levarmos ainda mais longe essa analogia, “família” incluiria quaisquer relações sociais que tivessem, ao menos retoricamente, algum grau de afetividade, como empresas, associações e sindicatos. Porém, mesmo que apenas intuitivamente, todos nós sabíamos que família “pra valer” abrangia apenas aquelas pessoas pelas quais nós tínhamos relações de parentesco.xlvii Para as demais, isso não passava de uma figura de linguagem (era como chamar os amigos mais próximos de “irmãos”). Essa noção relativamente bem definida de família tem sido progressivamente contestada por movimentos sociais que procuram inflar a sua abrangência (para incluir, por exemplo, uniões informais, casais gays ou mesmo uniões afetivas de mais de duas pessoas) ou mesmo para destruir o próprio conceito de família, considerada como uma instituição criada na era patriarcal que não teria mais função na sociedade contemporânea. Por isso, mais do que nunca, é preciso identificar as diversas definições de família, além das variadas formas de estruturas familiares. 31 A palavra “família” tem origem no latim pater familias (chefe de família) e famulus (servos), e incluía, portanto, o chefe de família, seus descendentes e servos (a mulher não era necessariamente parte da família do marido). Apenas no final do século XVII “família” passou a designar, na Europa, o conjunto dos pais e dos filhos. Bronisław Malinowski (1884-1942), antropologista polonês, declarou que a família era uma instituição universal, cuja definição compreendia três elementos: a) um grupo delimitado de pessoas (uma mãe, um pai e seus filhos) que reconhecem uns aos outros e são distinguíveis de outros grupos; b) um espaço físico definido, um lar e uma casa; c) um conjunto peculiar de emoções, “amor familial”. Essa definição foi objeto de muita controvérsia uma vez que nem sempre essas características estavam presentes nas estruturas familiares estudadas pelos antropólogos ao redor do mundo. Considerando que a universalidade da família derivaria de uma necessidade humana constante, a criação das novas gerações,xlviii parece-me que seria mais adequado considerar a família, estruturalmente, como qualquer grupo doméstico que contenha ao menos um adulto e uma criança sob a dependência desse adulto. A família também pode ser definida funcionalmente, ou seja, de acordo com o seu papel social. Nesse sentido, a função primária da família é a perpetuação da sociedade, tanto biologicamente, por meio da procriação, quanto culturalmente, por meio da educação informal (socialização) ou formal. Secundariamente, a família tem diversas funções, dentre as quais se destacam: a) satisfação das necessidades sexuais de homens e mulheres; b) provimento das necessidades básicas de seus membros; c) unidade econômica primária, que estabelece a divisão do trabalho de acordo com o gênero e a idade; d) segurança de seus membros; 32 e) provimento de um ambiente de afetividade e amor. No Brasil, a definição de família adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é especialmente relevante, uma vez que é considerado não apenas nos censos realizados pelo instituto, mas também na definição de diversas políticas públicas: Família – conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação estabelecida entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família, e por normas de convivência as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica. Consideram-se como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas cada uma, que residam na mesma unidade domiciliar (domicílio particular ou unidade de habitação em domicílio coletivo).xlix Muito se tem falado sobre a “decadência” e a “transformação” da família. O foco dessa discussão, porém, parece-me deslocado. Considerando que a existência da instituição “família” somente se justifica no exercício de sua função primária, a perpetuação da sociedade, por meio da criação e educação das novas gerações, a verdadeira questão é quão bem cada tipo de família pode exercer essa atribuição. Assim, quanto melhor a família exerce sua função primária, mais funcional ela é; por outro lado, quanto menos eficaz for a família no exercício de sua função, mais disfuncional ela é. Abstraindo as questões ideológicas que contaminam severamente o debate público, é possível distinguir empiricamente a funcionalidade e a disfuncionalidade de cada espécie de estrutura familiar. Para isso, serão consideradas as seguintes estruturas familiares, definidas nos termos do New Family Structures Study (NFSS) – Novo Estudo de Estruturas Familiares, realizado pelo professor Dr. Mark Regnerus da Universidade do Texas com quase 3.000 adultos de 18 a 39 anos: l Estrutura familiar Descrição Relação entre os pais Adotado Criança adotada por um ou dois estranhos (pessoas não relacionadas com a criança) Variados status conjugais e de relacionamento entre o(s) pai(s) adotivo(s) 33 no momento do nascimento ou antes de 2 anos de idade. Divorciado mais tarde ou guarda conjunta Criança vivia com a mãe e o pai biológicos do nascimento até a idade de 18 anos, seja através de guarda conjunta ou em uma família intacta que mais tarde passou pordivórcio. Os pais biológicos não estão atualmente casados um com o outro. Mãe tinha uma relação lésbica Criança vivia com a mãe (biológica ou adotiva) que teve um relacionamento romântico do mesmo sexo por algum período de tempo. 91% dessas crianças viviam com a mãe enquanto ela estava em um relacionamento do mesmo sexo; 57% viviam com sua mãe e sua parceira durante pelo menos 4 meses; e 23% viviam com sua matriz e sua parceira durante pelo menos 3 anos. Família biológica intacta Criança vivia com seus pais biológicos, casados entre si, do nascimento até os 18 anos. Pai e mãe biológicos foram casados durantes toda a infância da criança e permanecem casados. Pai em um relacionamento gay Criança vivia com o pai (biológico ou adotivo) que teve um relacionamento romântico do mesmo sexo por algum período de tempo. 42% dessas crianças viviam com o pai enquanto ele estava em um relacionamento do mesmo sexo; 24% viviam com seu pai e o parceiro dele durante pelo menos 4 meses; e 2% viviam com o pai e seu parceiro durante pelo menos 3 anos. 34 Pai ou mãe solteira Criança vivia principalmente com um de seus pais biológicos, que não se casou (ou não se casou novamente) antes que a criança atingisse 18 anos de idade. Os pais biológicos são divorciados ou nunca se casaram. Família mista Criança vivia principalmente com um de seus pais biológicos que se casou com alguém que não seja o outro pai biológico da criança antes que a criança atingisse 18 anos de idade Os pais biológicos ou tinham divorciado ou nunca haviam se casado; o pai que tinha a guarda era casado. Nessa pesquisa, ficaram extremamente nítidas as diferenças de cada estrutura familiar para o desenvolvimento futuro da criança. No quadro a seguir, são enumerados alguns desses resultados (em azul são destacadas as proporções mais favoráveis e em vermelho as mais desfavoráveis): Estrutur a familiar Maconha li Cigarro lii Prisão liii Declarou-se culpadoliv Recebem assistência social Desem- prega- dos Adotado 1,33 2,34 1,31 1,19 27% 22% Divorcia- do mais tarde 2,00 2,44 1,38 1,30 31% 15% Mãe tinha uma relação lésbica 1,84 2,76 1,68 1,36 38% 28% 35 Família biológica intacta 1,32 1,79 1,18 1,10 10% 8% Pai tinha uma relação gay 1,61 2,61 1,75 1,41 23% 20% Pai ou mãe solteira 1,73 2,18 1,35 1,17 30% 13% Família mista 1,47 2,31 1,38 1,21 30% 14% A tabela acima demonstra que em todos os aspectos considerados, a família biológica intacta é que proporciona a melhor condição de vida para o adulto formado dentro dessa família.lv A conclusão dos pesquisadores não deixa dúvidas de que este é o melhor arranjo familiar: (...) serem criadas por uma família biológica intacta apresenta claras vantagens para as crianças sobre outras formas de parentalidade. Particularmente, o estudo fornece evidências que as gerações anteriores de cientistas sociais foram incapazes de coletar - evidências sugerindo que as crianças de famílias biológicas intactas também superam seus pares que foram criados em lares de um pai que teve relações do mesmo sexo. Portanto, esse novo estudo reafirma e fortalece a convicção de que o melhor padrão para criar os filhos ainda é a família biológica intacta.lvi 2. O regime jurídico da família O casamento é essencial para unidades familiares estáveis e fortes, que por sua vez são essenciais para proteger a estabilidade da nossa sociedade. (Até mesmo alguns a favor do casamento homossexual reconheceram esse fato e tentam usá-lo para promover sua própria posição!) (Declaração do parlamento australiano)lvii 36 Juridicamente, família é a comunidade formada por indivíduos unidos em razão de: a) casamento (realizado entre cônjuges) ou união estável (realizado entre companheiros); e/ou b) parentesco, consanguíneo (relativo às pessoas que compartilham um ascendente comum), por afinidade (relativo aos parentes consanguíneos do cônjuge) ou por adoção (ato jurídico que estabelece a relação de filiação sem que haja a consanguinidade). lviii São legalmente previstas duas espécies de família: a) a família natural, “comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes” (Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, art. 25, caput); e b) a família extensa ou ampliada, “aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” (ECA, art. 25, parágrafo único). Curiosamente, a Constituição Federal utiliza, além do vocábulo “família”, também a expressão “entidade familiar”. Nesses termos, a família é decorrente do casamento enquanto que a entidade familiar compreende a união estável e a comunidade formada por apenas um dos pais e seus filhos.lix A doutrina tem usado os dois termos como sinônimos, mas é clara a intenção do constituinte de estabelecer um regime jurídico diferenciado para cada caso, mesmo que as diferenças sejam apenas secundárias.lx Nos termos da Constituição, a família, ou a entidade familiar,lxi pode ser classificada em: a) a família biparental: comunidade formada por dois adultos, unidos por meio de casamento (art. 226, §§ 1º e 2º) ou de união estável (art. 226, § 3º)lxii, e os eventuais filhos ou netos que tiverem; e b) a família monoparental: comunidade formada por apenas um dos pais e seus descendentes, sejam filhos ou netos (art. 226, § 4º). 37 Família Conceito Comunidade formada por indivíduos unidos em razão de Casamento ou união estável Parentesco Consanguíneo Por afinidade Por adoção Classificação Quanto à abrangência Natural Extensa ou ampliada Quanto aos pais Biparental Monoparental No atual contexto constitucional, a família, como agrupamento, deve ter sua função compatibilizada com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais se destaca a “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, inc. III); com os objetivos fundamentais da República, principalmente a promoção do “bem de todos” (art. 3º, inc. IV); e com os direitos e garantias individuais, com destaque para a igualdade substancial (art. 5º, caput). lxiii Nesse contexto, a família se torna, nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald, um “instrumento de proteção avançada da pessoa humana”. lxiv De acordo com esses autores: É simples, assim, afirmar a evolução de uma família-instituição, com proteção justificada por si mesmo, importando não raro violação dos interesses das pessoas nela compreendidas, para o conceito de uma família instrumento do desenvolvimento da pessoa humana, evitando qualquer interferência que viole os interesses de seus membros, tutelada na medida em que promova a dignidade de seus membros, com igualdade substancial e solidariedade entre eles (arts. 1º e 3º da CF/88). (...) Desse modo, avulta afirmar, como conclusão lógica e inarredável, que a família cumpre modernamente um papel funcionalizado, devendo, efetivamente, servir como um ambiente propício para a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como o alicerce fundamental para o alcance da felicidade. lxv 38 A família tem algumas semelhanças com o Estado. Primeiramente, ambos têm uma finalidade em comum: proteger os direitos fundamentais de seus membros, possibilitando que eles usufruam o máximo bem-estar possível. Os direitos fundamentais,apesar de serem dirigidos primordialmente ao Estado, são providos primariamente pela família que, se contar o mínimo de estabilidade, atua com eficiência consideravelmente maior que o Estado. Por exemplo, os direitos à vida, à segurança, à alimentação, ao lazer, à moradia são providos em primeiro lugar pela família, somente se justificando a atuação estatal nas situações em que a família não tem condições de prover esses direitos adequadamente (trata-se do conhecido princípio da subsidiariedade, que será analisado mais a frente). Além disso, família e Estado tem em comum a previsão expressa dos responsáveis pelo exercício do poder, com a determinação das competências dessas autoridades. Enquanto a Constituição Federal trata detalhadamente da distribuição do poder político entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o Código Civillxvi e o Estatuto da Criança e do Adolescentelxvii definem as competências daqueles que exercem o poder familiar, ou seja, o pai e a mãe. É notável ainda que a CF estabeleça deveres apenas para duas instituições: o Estado, juntamente com seus agentes públicos, e a família, representada pelos pais. Nesse sentido, é dever da família: a) “a educação” (art. 205, caput); b) “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227, caput); e c) “amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (art. 230, caput). Além disso, é dever dos pais “assistir, criar e educar os filhos menores” e dos filhos maiores “ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (art. 229). 39 As nítidas semelhanças entre a família e o Estado conferem a ela um status único entre as instituições da sociedade civil: a de uma entidade semiestatal. A autonomia privada, fundamento do princípio da dignidade humana e principal contrapeso ao poder estatal, é fundamentalmente exercida em dois níveis: individual e associativo. Quanto à família, espécie de associação, parte da doutrina a considera mais do que autônoma, mas até mesmo soberana.lxviii Vide, a esse respeito, a contundente lição do administrativista chileno Eduardo Soto Kloss: Família que nasce do poder soberano de um homem e de uma mulher que se dão mutuamente e em que ambos são “cossoberanos”, comunidade de vida e amor que constitui a primeira e mais radical forma de sociedade humana, “autônoma” em seus fins e bens, “independente de todo o poder estatal e “soberana” na sua potencialidade de gerar direitos, anteriores e superiores ao Estado. lxix Os qualificativos dados à família pelo ordenamento jurídico reforçam esse entendimento. No art. 226, caput, da CF, a família é denominada de “base da sociedade”, ou seja, o fundamento e o suporte de todas as demais estruturas sociais. Em decorrência, não é possível “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º, inc. I) sem que a família tenha força suficiente para formar indivíduos capazes de conduzir adequadamente as demais estruturas sociais, inclusive o próprio Estado. Os documentos internacionais de direitos humanos também qualificam a família da mesma forma: a) a Declaração Universal de Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, dispõe que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade” (Artigo 16, inciso III); b) a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, promulgada também em 1948, dispõe que a família é “elemento fundamental da sociedade” (Artigo VI); c) o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado pela ONU em 1966, dispõe que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade” (Artigo 23, inciso I); exatamente nestes termos também dispuseram: 40 I) o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pela ONU em 1966; II) a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgado pela ONU em 2007 e recepcionada no Brasil com status de emenda constitucional;lxx e III) a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), promulgada pela Organização dos Estados Americanos em 1967 e adotada no Brasil em 1992; d) finalmente, a Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pela ONU em 1989, dispõe que a família é o “grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças”.lxxi Neste ponto, cabe enfatizar que nenhuma norma jurídica tem função meramente decorativa ou retórica. Pelo contrário: por definição, a norma jurídica, e mais ainda a norma constitucional, é promulgada com a finalidade de produzir efeitos na realidade social. Portanto, a incomparável importância dada à família faz com que essa instituição tenha poderes e atribuições da mais notável relevância, merecendo não apenas um específico ramo jurídico, o Direito de Família, mas também a mais intensa proteção do e contra o Estado. Família Concepções Tradicional Instituição (fim em si mesma) Contemporânea Instrumento (proteção dos direitos individuais de seus membros) Semelhanças com o Estado Finalidade: proteção dos direitos fundamentais de seus membros. Previsão expressa dos responsáveis pelo exercício do poder, com a determinação das competências dessas autoridades. Previsão de deveres Deveres familiares Educação 41 Da família como um todo Assegurar os direitos das crianças, adolescentes e jovens Amparar os idosos Dos pais Assistir, criar e educar os filhos menores. Dos filhos maiores Ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Natureza jurídica Entidade semiestatal, soberana na realização de suas funções típicas. Qualificações Base da sociedade Núcleo natural e fundamental da sociedade Elemento fundamental da sociedade Elemento natural e fundamental da sociedade Grupo fundamental da sociedade 3. Familismo na Constituição Federal O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen classificou o Estado de bem-estar social em três tipos fundamentais:lxxii a) Liberal: as regras para a habilitação aos benefícios são estritas e muitas vezes associadas ao estigma; os benefícios são tipicamente modestos. O Estado, por sua vez, encoraja o mercado, tanto passiva – ao garantir apenas o mínimo – quanto ativamente – ao subsidiar esquemas privados de previdência; b) Conservador/corporativista: predomina a preservação das diferenças de status; os direitos são ligados à classe e ao status. Este corporativismo está por baixo de um edifício estatal inteiramente pronto a substituir o mercado enquanto provedor de benefícios sociais; por isso a previdência privada e os benefícios ocupacionais extras desempenham realmente um papel secundário. Os regimes corporativistas são muito comprometidos com a preservação da família tradicional. Creches e outros serviços semelhantes prestados à família são claramente subdesenvolvidos; 42 o princípio de “subsidiariedade” serve para enfatizar que o Estado só interfere quando a capacidade da família servir os seus membros se exaure. c) Socialdemocrata: A política de emancipação do regime socialdemocrata dirige-se tanto ao mercado quanto à família tradicional. Ao contrário do modelo corporativista-subsidiador, o princípio aqui não é esperar até que a capacidade de ajuda da família se exaura, mas sim de socializar antecipadamenteos custos da família. O ideal não é maximizar a dependência da família, mas capacitar a independência individual. Neste sentido, o modelo é uma fusão peculiar de liberalismo e socialismo. O resultado é um Estado de bem-estar que garante transferências diretamente aos filhos e assume responsabilidade direta pelo cuidado com as crianças, os velhos e os desvalidos. Por conseguinte, assume uma pesada carga de serviço social, não só para atender as necessidades familiares, mas também para permitir às mulheres escolherem o trabalho em vez das prendas domésticas.lxxiii O segundo tipo de Estado de bem-estar social (conservador/corporativista) baseia-se numa concepção denominada de familianismo (ou familismo), segundo a qual a família é a mais importante fonte de bem-estar para os indivíduos. A família é, portanto, uma instituição, na verdade a mais importante instituição social. Por essa razão, a família deve ser protegida e respeitada pelo Estado, que somente pode exercer funções típicas da família quando esta comprovadamente não puder realiza-las. Assim, em um regime no qual predomine a concepção familista, o principal recebedor da assistência social do Estado é a família e não o indivíduo. A Constituição Federal de 1988 nitidamente adotou o Estado de bem-estar social conservador, fundamentado na concepção familista. Não por acaso o primeiro objetivo da assistência social é a “proteção à família” (CF, art. 203, inc. I). A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS,lxxiv por sua vez, determina que uma das “diretrizes estruturantes da gestão do SUAS” é a “matricialidade sociofamiliar” (art. 5º, inc. IV), ou seja, deve haver a “centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos” (Política Nacional de Assistência Social – PNAS, p. 18).lxxv Essa concepção da central da família nas políticas sociais não é algo novo no Brasil, como bem salienta Andréa Pacheco de Mesquita: 43 Ao discutir a centralidade da família nas políticas públicas é importante salientar que no Brasil, segundo Pereira, “a instituição familiar sempre fez parte integral dos arranjos de proteção social”, e acrescenta ainda que, “os governos brasileiros sempre se beneficiaram da participação autonomizada e voluntarista da família na provisão do bem-estar de seus membros” (2006, p.29). Assim, não é algo novo a participação da família, mas o que se coloca hoje é o novo papel que está sendo atribuído. Se antes a família (principalmente a mulher) participava através do cuidado aos dependentes e na reprodução de atividades domésticas não remuneradas, como bem coloca Potyara (2004), hoje ela passa a ser centralidade nas políticas públicas (saúde, educação, assistência social). Chegando a ser um eixo estruturante da gestão do Sistema Único de Assistência social – SUAS: a matricialidade sociofamiliar.lxxvi Assim, quando a Constituição Federal determina que apenas a família “tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput), isso significa que a família é a destinatária preferencial das políticas sociais, como saúde, educação, e assistência social. Como destacado acima por Mesquita, compete à família decidir autonomamente como distribuir esses benefícios entre seus membros. Presume-se, dessa maneira, que a família tem maior capacidade e competência que o Estado para gerir benefícios sociais para os membros da família. Exemplo dessa política é o conhecidíssimo bolsa-família, benefício que é distribuído não individualmente, mas a cada grupo familiar, e que ainda determina obrigações específicas para esse grupo familiar, como a obrigatoriedade de vacinação dos filhos. Tipos fundamentais de Estado de bem- estar social Liberal Conservador/corporativista Socialdemocrata Familianismo (ou familismo) Concepção segundo a qual a família é a mais importante instituição da sociedade, devendo ser protegida e respeitada pelo Estado. Constituição Federal de 1988 Adotou o Estado de bem-estar social conservador, baseado em uma concepção familista das políticas sociais. III – O fenômeno da educação domiciliar 44 Educação de hoje em dia Observando a juventude de hoje em dia É uma anarquia não sei onde vai pará Com essa moda de educação moderna Muitos direitos, pouco dever pra cobrá Antigamente se educava na família Mostrava a trilha, pra não ter que castigá Diz um ditado, “quem não cuida da raiz Depois que cresce não consegue endireitá” Eu sou do tempo da benção e a senhoria Onde a hierarquia, nos fazia obedecê Só pelo olhar de atravessado dos meus pais É o que bastava e já sabia o que fazê Hoje na escola cada um com celular Na sala de aula poucos prestam atenção O professor vai explicando a matéria E os alunos com fone escutando som Eu tenho pena do pobre do professor Que ganha pouco e não consegue ensiná Com tanto aluno, sem o mínimo interesse 45 No fim do ano só o que resta é reprová Antigamente uma vara de marmelo Ou um chinelo, imperava pra exemplá Tinha um ditado “quem obedece seus pais Dificilmente da polícia apanhará” Mas hoje em dia tudo é muito diferente E dar conselho nem sei se pode também Mais de uma coisa, tenho certeza, não muda Que rédea curta e carinho sempre faz bemlxxvii É quase impossível discordar do lamento expresso nessa música. Nos últimos anos, temos testemunhado um fenômeno coletivo de “desistência (ou renúncia) familiar”, no qual progressivamente a família delega a outras instituições sociais as suas atribuições mais típicas. Parece que sobra para a imensa maioria das famílias a função mais rudimentar de todas: o sustento dos filhos. Dá-se as condições materiais necessárias para a sobrevivência e o conforto dos filhos e deixa-se todo o restante para o Estado e para outras instituições sociais. Isso aconteceu de forma mais marcante quanto à atribuição mais fundamental da família: a educação dos filhos. Quase não se educa mais em casa. O cotidiano das crianças brasileiras, de qualquer nível socioeconômico, é marcado por uma divisão entre o espaço da escola (reservado à educação) e o da casa (reservado basicamente aos cuidados materiais, sendo o tempo livre quase totalmente preenchido pela televisão). E isso não provoca nenhum escândalo em nossa sociedade (aliás, escândalo no Brasil parece ter que envolver sempre desvio de dinheiro público...), apesar de sua extrema gravidade: todos os dias, milhões de famílias por todo o país descumprem seu dever natural (e obrigação constitucional) de educar os próprios filhos, de prepará-los para a vida adulta. Do descumprimento dessa função essencial, que gera a disfuncionalidade da família, até a pura e simples desagregação 46 familiar, costuma haver um caminho incrivelmente curto, que muitas vezes é percorrido sem que se tenha consciência de seu destino final. Por outro lado, cresce o número de famílias que resolveram trilhar o caminho oposto, ou seja, que tomaram para si a responsabilidade pela educação de seus filhos. Muitas dessas famílias ainda se utilizam de estabelecimentos escolares por razões meramente práticas (para elas, as escolas são um “mal necessário”, funcionando como “creches mais sofisticadas”, pois é preciso deixar as crianças em algum alugar enquanto ambos os pais trabalham); nos períodos em que toda a família se encontra em casa, a prioridade absoluta é a educação dos filhos, ou seja, a transmissão da cultura familiar para as novas gerações. Essas famílias tentam compatibilizar as demandas da vida contemporânea com a educação dos filhos, lutando para transmitir o que têm de melhor e buscando cumprir seus deveres naturais e jurídicos. Seu grande mérito talvez seja reconhecer a sabedoria do famoso
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