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História da Alta Idade Média Carlos Falcão História da Alta Idade Média Prezados alunos, sejam bem-vindos ao estudo da Alta Idade Média. Nosso objetivo é expor o significado desse período histórico, observar e analisar os seus aspectos culturais, econômicos e políticos. Para tanto, o livro foi divido em dez capítulos. No primeiro capítulo, discutiremos os conceitos que buscam definir o que é a Idade Média e a sua periodização. Assim, trataremos das concep- ções formuladas por medievalistas como Jacques Le Goff e Hilário Franco Júnior. No segundo capítulo, daremos atenção à desestruturação do Império Romano do Ocidente. Ou seja, como ocorreram fracassos econômicos, o recuo demográfico e o chamado processo de ruralização. Ainda, mencio- naremos alguns aspectos fundamentais relacionados ao Império Romano do Oriente, também conhecido como Império Bizantino. O destaque, no terceiro capítulo, é dado para as invasões germânicas. Nesse sentido, buscaremos descrever como os bárbaros vindos de fora do Império Romano conseguiram empreender ações colonizadoras. E, tam- bém, sua articulação com a cultura romana e o cristianismo. No quarto capítulo, o imperador Carlos Magno ganha evidência. Foi a partir dele que a coletividade cristã ocidental afirmou-se como dominante em uma Europa em construção. A própria identidade europeia constitui-se a partir desse período. O quinto capítulo é sobre a formação de uma hierarquia eclesiástica, a partir da desestruturação do Império Romano. Citaremos as características do clero secular, a constituição dos mosteiros, o que são as relíquias e sua Apresentação iv Apresentação importância para a comunidade religiosa cristã. E, para finalizar, o concei- to de hierofania que é marcado pela manifestação do sagrado. No sexto capítulo, trataremos especificamente da filosofia cristã. Dis- cutiremos os seus pilares, citaremos os fundadores, a Patrística e a esco- lástica. Também será uma das pautas o surgimento da religião islâmica na península arábica. O sétimo capítulo apresentará definições de tempo para os medievos e sua relação com o cotidiano. No oitavo, a educação será o tema principal. No nono, invocaremos as artes e como as cidades medievais se estrutura- vam. Para finalizar, o décimo capítulo privilegiará a cultura medieval, suas diversas faces e também as invenções criadas durante esse período. Importante destacar que este livro, mesmo tratando da Alta Idade Mé- dia, que tem sua periodização vinculada, desde a desestruturação do Im- pério Romano, por volta do século IV, até o século X, quando temos o princípio do feudalismo, muitas vezes, romperá estas fronteiras periódicas. Ou seja, algumas temáticas podem ser tratadas mesmo depois do século X, como, por exemplo, quando escrevemos sobre as cidades medievais, não nos vinculamos somente ao que ocorreu na Alta Idade Média, mas também acabamos por discutir sua nova constituição, a partir do surgimento da burguesia que se dá já na Baixa Idade Média. Esperamos sinceramente que este livro contribua para os seus estudos. Um grande abraço! Carlos Falcão 1 Conceitos de Idade Média e Periodização .............................1 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente ..........................................18 3 As Invasões Germânicas .....................................................35 4 O Império Carolíngio, Invasões e a Construção da Europa ....52 5 Hierarquia Eclesiástica, Relíquias e Hierofania .....................68 6 A Filosofia Cristã e o Islã.....................................................84 7 O Tempo e o Cotidiano .....................................................102 8 A Educação na Idade Média ..............................................120 9 Artes e Cidade ..................................................................137 10 Cultura e Invenções da Idade Média .................................153 Sumário Conceitos de Idade Média e Periodização ÂÂNeste capítulo de abertura do nosso livro, trataremos especificamente sobre diversos conceitos acerca da Idade Média. Assim, buscaremos entender melhor qual o seu significado em tempos passados e como se configu- ram esses conceitos nos dias atuais. Também, observa- remos como os historiadores podem dividir cronologica- mente esse período histórico. Carlos Falcão Capítulo 1 2 História da Alta Idade Média Conceitos No século XVI, foi elaborado um conceito sobre Idade Mé- dia. Segundo Hilário Franco Júnior (2006, p. 11), representou “uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de dar nome aos momentos passados”. De acordo com o histo- riador, expressava um desprezo, um preconceito, em relação ao período localizado entre o século XVI e a Antiguidade Clás- sica. Ou seja, tudo o que estivera entre o próprio século XVI e as civilizações dos gregos e dos romanos “não passara de um hiato”, um intervalo sem criatividade literária ou artística, portanto, um tempo intermediário. Conforme Hilário Franco Júnior, para entendermos melhor a Idade Média, é importante percebê-la sobre diversos pontos de vista. Nesse sentido, é interessante observar como o perío- do foi percebido por óticas distintas. Assim, veremos, como a Idade Média foi conceituada pelos humanistas, iluministas, ro- mânticos, historiadores do século XX e pelos próprios homens e mulheres do período medieval. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 3) a Idade Média é: “um constructo humanista, o sucesso do conceito deve-se sem dúvida ao vigoroso desenvolvimento do latim e da gramática nas escolas secundárias. Nessas escolas as ideias humanísticas floresceram, porque o estudo de línguas clássicas constituía a base do currículo. Havia a expectativa de que com o estudo das biografias de homens famosos e da Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 3 história de antigas culturas, inclusive poesia e re- tórica, as novas gerações se elevariam à imagem idealizada dos heróis da Antiguidade. Até o século XIX o latim continuou a ser a língua da educação universitária, para que todos os intelectuais ficassem imersos no banho da Antiguidade.” Se a Idade Média é um constructo humanista, destacamos, entre diversos pensadores, Francesco Petrarca (1304-1374), poeta apaixonado pela Roma Antiga que caracterizou a Idade Média como tenebrae, palavra que pode ser traduzida por ne- voeiro. Segundo Franco (2006, p. 11), assim, “nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas”. Sobre Petrarca, Jacques Le Goff reconhece um espírito medieval como o de outros hu- manistas. Segundo Le Goff (2008, p. 56): “Ele pretende reencontrar a Antiguidade em toda a sua pureza, uma vez que a Antiguidade é a idade ‘alta’, da qual os homens, ai de nós, não deixaram de se afastar. Petrarca tem a impressão de que um verdadeiro Renascimento está surgindo, que a cris- tandade poderá ver o fim do túnel medieval. E se ele quer reencontrar esse verdadeiro e grande passado, livre das críticas acumuladas ao longo do tempo, é também reformar uma Igreja Católica comprometi- da com o século, carregando o peso da cidade ter- restre, muito afastada daquela Civitas Dei que Santo Agostinho celebrava.” Segundo Le Goff (2008, p. 57) “Os humanistas julgavam que estavam saindo de um período sem nome, de um interme- 4 História da Alta Idade Média diário”. Retomaram uma teoria judia das Idades do Mundo, na qual a humanidade estaria na sexta e última idade. De acordo com Le Goff (2208, p. 57), alguns diziam que “os homens se apequenavam e ‘envelheciam’: seriam anões em relação aos ‘gigantes’ dos tempos heroicos, intrinsecamente gastos. Outros chegavam a pretender que nascemos mais ‘velhos’ do que nossos ancestrais”. O bibliotecário papal, Giovanni Andrea, em1469, confor- me Franco (2006, p. 11), “falava em media tempestas, literal- mente ‘tempo médio’, mas também com o sentido figurado de ‘flagelo’, ‘ruína’”. O conceito de tempo médio tornou-se tão forte que Giorgio Vasari popularizou o termo Renascimento em contraste com outras expressões que surgiram no período como medium tempus ou media tempora. De acordo com Le Goff (2008, p. 56): “Está muito clara essa ideia de ‘meio’ no inglês, com Middle Ages, no espanhol Edad Media ou no Mittelalter alemão – ainda que o alemão, com Al- ter, introduzam, mais que a noção de idade, uma conotação ‘venerável’: a palavra alt (antigo) induz um certo prestígio. Observa-se, ao contrário, em francês, a evolução depreciativa da palavra Moyen [média]. A conotação estritamente formal de ‘mé- dio’ – intermediário – quase desapareceu: fala-se com um certo desprezo de um resultado médio, de um espetáculo médio, de um nível médio etc.” O pintor Rafael Sanzio (1438-1520) chamou a arte medie- val de gótica, pois não apresentava padrões clássicos e tinha Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 5 sinônimo de algo bárbaro. Esse tipo de crítica também foi re- alizada por escritores, tais como François Rabelais que desig- nava a Idade Média como a “espessa noite gótica”, conforme Franco (2006, p. 11) Já no século XVIII, a expressão médium aevum começa a prevalecer, sendo usada pelo Francês Charles de Fresne Du Cange em 1678. Assim, mantinha-se o sentido básico renas- centista, conforme Franco (2006, p. 12): “a Idade Média teria sido uma interrupção no pro- gresso humano, inaugurado pelos gregos e roma- nos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, para o século XVII os tempos ‘medievais’ te- riam sido de barbárie, ignorância e superstição. Os protestantes criticavam-no como época de suprema- cia da Igreja Católica. Os homens ligados às pode- rosas monarquias absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de fragmentação política. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade comercial. Os intelectuais racio- nalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores espirituais.” Ainda no século XVIII, em que predominava um sentimento antiaristocrático e clerical, o preconceito em relação à Ida- de Média tornou-se mais acentuado, pois se tratava de um momento em que a nobreza e o clero determinavam as re- gras e detinham intenso poder na sociedade. O Iluminismo, guiado pela luz da Razão, nos explica Franco (2006, p. 12), “censurava, sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco 6 História da Alta Idade Média apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso po- lítico de que a Igreja desfrutara”. Entre os filósofos iluministas, um dos quais combateu for- temente a religião, está Voltaire (1694-1778). Ele chamava a igreja de “a infame”. Outro iluminista que criticou a religião foi Denis Diderot (1713-1784). Escreveu que “sem religião, seríamos um pouco mais felizes”. O século das Luzes, que foi o XVIII, lançou a Idade Média na escuridão, assim como já havia se construído uma ima- gem pessimista do período, naquele momento, o preconceito acentuou-se. Segundo Le Goff (2008, p. 59): “Os ingleses dirão mesmo Dark Ages, ‘Idades Som- brias’. A Idade Média não é mais, depois do século XVIII, o período incolor que os medievais pensavam viver, mas um período sombrio, enfeixado entre o passado esplendoroso da Antiguidade e o futuro luminoso dos filósofos. É um tempo oco, caracteri- zado pela ausência da razão e ausência de gosto. A palavra gótico – antes da reabilitação feita por Walter Scott e Chateaubriand – torna-se sinônimo de feiúra, de esquisitice, de falta de jeito... essa de- preciação buscava, claro, atingir a Igreja. Voltaire o diz explicitamente em seu Ensaio sobre os costumes, 1756: obscurantismo clerical e Idade Média são uma só e única coisa.” No século XIX, os românticos percebem a Idade Média como o momento de origem das nacionalidades. A nostalgia romântica contribuía para a visão de uma Idade Média posi- Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 7 tiva, ou seja, conforme Franco (2006, p. 13) “um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exage- rado ao cientificismo”, também era vista como “época de fé, autoridade e tradição”. Na visão romântica, são valorizadas as recordações, os sonhos, os sentidos; dessa forma, ocorre uma modificação de se entender a Idade Média, já que o ilu- minismo, como corrente filosófica, valorizava a razão e não a fé, própria do pensamento medieval. Franco (2006, p. 13) destaca diversas obras românticas que são ambientadas no cenário histórico medieval: “Fausto (1808 e 1832) de Goethe, O corcunda de Notre-Dame (1831) de Victor Hugo, os vários romances históricos de Walter Scott (1771-1832), dentre eles Ivanhoé e Contos dos cruzados, diver- sas composições de Wagner como Tristão e Isolda (1859) e Parsifal (1882).” Importante destacar, segundo Franco (2006, p. 13), que a Idade Média conceituada por humanistas, iluministas e ro- mânticos ainda a mantinha incompreendida, já que os primei- ros a viam com um olhar pessimista, enquanto, os últimos a exaltavam. Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 4) destacam que a literatura romântica escrita por Sir Walter Scott, Heinrich Heine e Victor Hugo além de ser inspirada em um passado grandioso medieval foram contrastantes em relação ao racionalismo do iluminismo e também às ideias dos revolucionários franceses. Um exemplo marcante, relacionado ao romantismo é do historiador Jules Michelet (1798-1874). De acordo com Fran- 8 História da Alta Idade Média co (2006, p. 13), Michelet escreveu seis volumes dedicados à Idade Média (1833-1844) definindo-a “como aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou quando pequenos, aqui- lo que foi nosso pai e nossa mãe, aquilo que nos cantava tão docemente no berço”. Exaltava a Idade Média. Interessante destacar que, nas reedições de 1845-1855, passou a falar negativamente do período. No século XIX, foram construídas na Europa réplicas das torres de catedrais góticas. Segundo Blockmans e Ho- ppenbrouwers (2012, p. 4) “Os prédios dos Parlamentos em Londres e Budapeste têm estilo neogótico, assim como a prefeitura de Munique”. Dessa forma, conforme esses dois historiadores, a Idade Média anteriormente difamada passa- va a ser elogiada. Periodização Foi somente no século XX que se percebeu a importância de tentar enxergar a Idade Média com os olhos dela mesma. Isso ocorre em função de uma mudança na própria maneira do historiador encarar a história. Ou seja, não caberia ao his- toriador julgar o que se passou, seu principal cargo está em compreender a história, sendo assim, para entender a Idade Média, nada melhor do que percebê-la a partir do próprio olhar. Portanto, podemos começar entendendo a Idade Média a partir de si mesma. Conforme Franco (2006, p. 14), a Idade Média: Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 9 “Trata-se de um período da história europeia de cerca de um milênio, ainda que suas balizas cro- nológicas continuem sendo discutíveis. (...) já se fa- lou, dentre outras datas, 330 (reconhecimento da liberdade de culto aos cristãos), em 476 (deposição do último imperador romano) e em 698 (conquis- ta muçulmana de Cartago) como ponto de partida da Idade Média. Para o seu término, já se pensou em 1453 (queda de Constantinopla e fim da Guer- ra dos cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 1517 (início da Reforma Protestante).” Percebe-se que não há uma unanimidade entre os historia- dores sobre as datas exatas em que o período iniciou ou qual foi o seu término. As balizas podem ser diferentes de historia- dor para historiador. Sendo assim, os problemas relacionados à Idade Média continuam. SegundoFranco (2006, p. 15), “O período que se esten- deu de princípios do século IV a meados do século VIII sem dú- vida apresenta uma feição própria, não mais ‘antiga’ e ainda não claramente medieval”. A transição do período antigo para o medieval ainda não é clara. Ainda de acordo com Franco (2006, p. 15): “talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve início a convivência e a len- ta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Elementos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade 10 História da Alta Idade Média Média: herança romana clássica, herança germâni- ca, cristianismo.” Esses elementos fundadores da Idade Média vão ser trata- dos ao longo deste livro. Porém, vejamos resumidamente cada um desses elementos sobre a ótica de Franco (2006, p. 15). O primeiro elemento trata-se da profunda crise do século III quando o Império Romano tenta sobreviver com o estabele- cimento de novas estruturas, tais como, o caráter sagrado da monarquia, da aceitação de germanos no exército imperial, da petrificação da hierarquia social, do crescente fiscalismo sobre o campo, do desenvolvimento de uma nova espiritua- lidade que possibilitou o sucesso cristão. Mesmo com todas essas mudanças na estrutura, não foi possível evitar a deca- dência do império. Em relação ao segundo elemento, a herança germânica, de acordo com Franco (2006, p. 15): “a penetração germânica intensificou as tendências estruturais anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso da pluralidade política substituindo a unidade roma- na, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia seu caráter mediterrânico.” Sobre o cristianismo, o terceiro elemento destacado por Franco (2006, p. 15), “possibilitou a articulação entre roma- nos e germanos, o elemento que, ao fazer a síntese daquelas duas sociedades, forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval”. Dessa forma, completada a integração Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 11 entre esses três elementos, chegamos ao período chamado de Alta Idade Média, de acordo com Franco (2006, p. 15-16), momento ocorrido em meados do século VIII até fins do século X. Segundo o historiador: “Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos magno, mas sem inter- romper as fortes e profundas tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal. Contudo, para se alcançar essa efêmera unidade, a dinastia Carolíngia precisou ser legitimada pela Igreja, que pelo seu poder sagrado considerava-se a única e verdadeira herdeira do Império Romano. Em contrapartida, os soberanos Carolíngios entregaram um vasto bloco territorial italiano à Igreja, que dessa forma se corporificou e ganhou condições de se tor- nar uma potência política atuante.” Além de uma Primeira Idade Média e a Alta Idade Média, podemos nomear mais dois períodos subsequentes para a Idade Média. São eles a Idade Média Central, decorrente de uma crise geral do século X, quando o Estado carolíngio sofre com contra- dições internas e uma nova onda de invasões realizadas, sobre- tudo por vikings, muçulmanos e magiares. Teria sido a época do feudalismo e sua ocorrência se dá dos séculos XI ao XIII. Na Idade Média Central, a sociedade cristã ocidental se reorganiza em torno das Cruzadas e de uma expansão po- pulacional. Segundo Franco (2006, p. 16), “Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de mão de obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada”. 12 História da Alta Idade Média Para finalizar, o último período dentro da Idade Média é conhecido como Baixa Idade Média que aconteceu do século XIV aos meados do século XVI. Nas palavras de Franco (2006, p. 16): “com suas crises e seus rearranjos, representou exa- tamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento”. A Idade Média vista pelo século XX, então, utiliza de uma periodização que pode ser encarada com balizas diferentes para cada autor. Vimos, aqui, a periodização defendida por Hilário Franco Júnior. Essa é uma divisão, da Idade Média, em quatro períodos. No entanto, é importante destacar que podemos reconhe- cer dois períodos básicos da História Medieval. Os quais são utilizados para dividir, por exemplo, as duas disciplinas, refe- rentes ao medievo, em nosso curso de Licenciatura em Histó- ria. São eles a Alta Idade Média (dos séculos V ao X) e a Baixa Idade Média (dos séculos XI ao XV). Portanto, essa será a divisão que utilizaremos durante o curso. Já vimos como a Idade Média foi construída conceitual- mente por diversas vertentes. Mas ainda falta pensar como os medievos encaravam o conceito de tempo, já que eles próprios nunca nomearam seu próprio tempo de medieval. Segundo o historiador Franco Hilário Júnior (2006, p. 17), o conceito que os próprios medievos tinham de Idade Média pode ser encara- do por duas grandes vertentes: a do clero e a dos leigos “essa Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 13 bipolarização quanto à História partia de duas visões distintas quanto ao tempo”. Na antiguidade e na vida cotidiana do camponês, havia a aceitação de um tempo cíclico. Esse tempo era marcado pelo mito do eterno retorno. Dessa maneira, para as primeiras so- ciedades, o registro do tempo se relacionava com o biológico. Nesse sentido, segundo Franco (2006, p. 17), essas sociedades não transformavam o tempo em História, portanto, não tinham a consciência de sua irreversibilidade. Franco explica que essa concepção sofre sua primeira rejeição com o Judaísmo “que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História”. O cristianis- mo, por sua vez, se apropria dessa ideia enfatizando: “o caráter linear da História, com seu ponto de par- tida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chega- da (Juízo Final). Portanto, linear, mas não ao infinito, pois há um tempo escatológico – que só Deus co- nhece – limitando o desenrolar da História, isto é, da passagem humana na Terra.” A liturgia cristã, ao mesmo tempo em que investiu na re- petição periódica da Natividade, a Paixão e a Ressurreição de Cristo, leva o fiel a um sentimento de retorno, uma volta ao tempo em que ocorreram esses eventos. Portanto, não foi abo- lida a teoria cíclica, mas reinventada. Pelo menos até o século XII, conforme Franco (2006, p. 17-18) “os medievos não sen- tiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época”. 14 História da Alta Idade Média Uma ideia que esteve presente na Idade Média era que se caminhava para o Fim dos Tempos. Pode-se dizer que catás- trofes vivenciadas ou ouvidas pelos sujeitos do medievo eram interpretadas como sinais relacionados com o Apocalipse. De acordo com Franco (2006, p. 18) “Havia uma difundida visão pessimista do presente, porém carregada de esperança no imi- nente triunfo do Reino de Deus”. Para finalizar este capítulo, pode-se dizer, segundo Blo- ckmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 9) que o termo Idade Média só tem significado no contexto europeu e situa-se nas fronteiras do Cristianismo. Nesse sentido, estudaremos a Euro- pa a partir da desestruturação do Império Romano até o início da Modernidade e concentraremos nossos estudos em uma cultura da cristandade europeia. No próximo capítulo, vamos tratar da desestruturaçãodo Im- pério Romano e das suas configurações antes da Idade Média. Referências bibliográficas: BLOCKMANS, Win; HOPPENBROUWERS, Peter. Introdução a Europa Medieval, 300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012. JUNIOR,Hilário Franco. A Idade Média Nascimento do oci- dente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 15 Questões: 1. Sobre o conceito de Idade Média elaborado no século XVI, assinale a resposta que não corresponde ao pensamento desse período: A) expressava um desprezo, um preconceito, em relação ao período localizado entre o século XVI e a Antiguida- de Clássica. B) tudo o que estivera entre o próprio século XVI e as civi- lizações dos gregos e dos romanos “não passara de um hiato”, um intervalo sem criatividade literária ou artísti- ca, portanto, um tempo intermediário. C) expressava a valorização do medievo, considerado um período de intensa criatividade, um estágio intermediá- rio para a propagação do futuro da cristandade. D) o conceito de Idade Média formulado pelo século XVI significou uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de dar nome aos momentos passados. E) a importância de tentar enxergar a Idade Média com os olhos dela mesma ocorreu a partir do século XVI. 2. A Idade Média é “um constructo humanista, o sucesso do conceito deve-se, sem dúvida, ao vigoroso desenvolvimen- to do latim e da gramática nas escolas secundárias”. Essa afirmativa que define a Idade Média como um constructo humanista é uma citação de: A) Karl Marx e Engels. B) Eric Hobsbawm. C) Jules Michelet. 16 História da Alta Idade Média D) Blockmans e Hoppenbrouwers. E) Nenhuma das respostas anteriores. 3. Relacione os pensadores aos conceitos formulados sobre Idade Média. 1. Francesco Petrarca. 2. Giovanni Andrea. 3. François Rabelais. 4. Jules Michelet. ( ) designava a Ida- de Média como a “espessa noite gótica”. ( ) falava em media tempestas, literalmente tempo médio, mas também com o sentido figurado de flagelo, ruína. ( ) definiu-a como aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou quando pequenos, aquilo que foi nosso pai e nossa mãe, aquilo que nos cantava tão docemente no berço. ( ) caracterizou a Idade Média como tenebrae, palavra que pode ser tra- duzida por nevoeiro. Assinale a alternativa com a sequên- cia correta: A) 3, 4, 2, 1. B) 3, 2, 4, 1. C) 4, 2, 3, 1. D) 2, 3, 1, 4. E) 1, 4, 3, 2. 4. Leia a afirmação a seguir e complemente selecionando a resposta correta. Para o historiador Hilário Franco Júnior, o cristianismo possibilitou: A) a articulação entre romanos e germanos, o elemen- to que, ao fazer a síntese daquelas duas sociedades, forjou a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval. Capítulo 1 Conceitos de Idade Média e Periodização 17 B) a propagação da fé cristã sem conhecer limites. Todos os pagãos foram cristianizados permitindo a edificação das almas que anteriormente não conheciam a palavra de Deus. C) a articulação entre romanos e germanos, sem eliminar as identidades de cada um dos grupos, permitindo que ocorresse a ascensão e domínio de uma cultura nórdica politeísta em que Odin e seu panteão eram extrema- mente valorizados. D) a renovação do contrato entre romanos e bárbaros vin- dos do sul, forjando sua escolha espiritual e construindo a noção de Europa. E) Nenhuma das alternativas anteriores. 5. O cristianismo enfatiza o caráter linear da História. Três momentos básicos marcavam sua linearidade: ponto de partida, inflexão e chegada. Assinale a resposta correta que corresponde aos momentos que caracterizam essa li- nearidade cristã: A) Nascimento, Idade adulta e Morte. B) Início, meio e fim. C) Origem, desenvolvimento e apocalipse. D) Gênese, Natividade e Juízo Final. E) Nenhuma das alternativas anteriores. Respostas: 1-C, 2-D, 3-B, 4-A e 5-D. Desestruturação do Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente ÂÂNo segundo capítulo do nosso livro, discutiremos como se desenrola a desestruturação do Império Romano do Ocidente, principalmente em termos econômicos e de recuo demográfico, levando a um processo de ruraliza- ção. Para finalizar, abordaremos brevemente alguns as- pectos básicos sobre o Império Romano do Oriente. Carlos Falcão Capítulo 2 Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 19 Fundações da europa moderna De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwer (2012, p. 1) “As fundações da Europa moderna e da maioria do mundo mo- derno encontram-se na Idade Média europeia”. Entre essas fundações, os historiadores citam: “a disseminação do Cristianismo, o estabelecimento de áreas com linguagem comum, a formação dos Estados já com sementes de consciência nacional, a urbanização de determinadas regiões, o desenvolvi- mento renovado de pensamento racional e científi- co empírico, a criação de estruturas políticas funda- mentadas em representação e a expansão das redes comerciais.” Segundo os pesquisadores, mesmo após o declínio do Im- pério Romano e das invasões bárbaras, a riqueza do sul da Europa proporcionava a chance de desenvolvimento. Isso se dava em função da vantagem dessa região estar associada ao mar mediterrâneo. Dessa maneira, foi possível uma economia estável e de troca cultural entre cristãos e muçulmanos. Porém, esse momento de renovação estrutural ainda teve de passar pela construção da própria Europa. Esse processo se dá, em primeiro lugar, com a desestruturação do Império Romano. Recuo demográfico Desde o século II, no Império Romano, ocorre um recuo de- mográfico significativo. O aparelho estatal romano sofre com 20 História da Alta Idade Média uma crescente desorganização que leva à diminuição das im- portações de alimentos. Segundo Hilário Franco Júnior (2006, p. 19), essas importações permitiram por séculos “a existência de uma grande população urbana”. A falta de alimentos con- tribuiu para o esvaziamento das cidades levando cada região a produzir os itens dos quais necessitava. Ao mesmo tempo em que ocorria esse esvaziamento, aumentava a insegurança, segundo Franco (2006, p. 19) “bastava uma má colheita para que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse”. Portanto, percebe-se que esse recuo demográfico está asso- ciado intimamente com a alimentação, que sofre em função de um aparelho estatal incapaz de gerenciar a produção. Ou seja, esse gerenciamento não dá conta de possibilitar o acesso de todos aos gêneros alimentícios. Assim, pode-se dizer que a baixa densidade demográfica estaria associada à pobreza, já que as pessoas mais abastadas teriam condições de suprir suas necessidades. Fome, pobreza e recuo demográfico constituíam um verdadeiro ciclo vicioso no período em que o Império Ro- mano se desestruturava caminhando para o esfacelamento. Na tentativa de evitar esse recuo demográfico intenso, no século V, um imperador romano proíbe que moças menores de 14 anos entrem para o clero, visando que possam casar e, consequentemente, ter filhos. Também pressiona as viúvas a se casarem novamente, impondo punições jurídicas como perder metade de seus bens se não estiverem casadas depois de cinco anos após a morte do esposo. Para amenizar essa situação, cometeram-se atrocidades tais como sacrificar recém-nascidos do sexo feminino. Dessa maneira, os medievos teriam menos bocas para alimentar. Em Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 21 contrapartida, preservando-se os nascidos do sexo masculino, apostava-se em uma produção mais eficaz. A recuperação populacional, mesmo com essas medidas, teria se dado somente ao final do império carolíngioe com as invasões dos vikings, dos magiares e dos muçulmanos. A Europa Jacques Le Goff (2007, p. 19) afirma que “A Idade Média foi, particularmente, pela noção de renascença, mas também, de maneira mais difusa, um barqueiro da Antiguidade”. Nesse sen- tido, percebe-se pela metáfora do historiador que a Idade Mé- dia transportou a antiguidade junto de si. Ou seja, preservou o patrimônio cultural antigo que pôde ser redescoberto, estudado e cultuado pelos renascentistas. Assim, veremos que a própria noção de Europa é uma herança cultural vinda da antiguidade. Primeiro, vejamos como Le Goff (2007, p. 20) define Euro- pa. O historiador, na citação abaixo, concentra-se em aspec- tos geográficos: “A Europa é o final do continente euro-asiático. Apresenta uma diversidade de solo e de relevo que ancoram na geografia a diversidade, que é uma das características da Europa. Mas, ao mesmo tempo, elementos geográficos unificadores que se impõe. A extensão das planícies que favorecerá a cultura dos cereais desenvolvida pela Idade Média e que continua sendo hoje um dos pontos fortes, embo- 22 História da Alta Idade Média ra controvertido, da economia europeia comum. Há também a importância das florestas que, com a pe- netração, a exploração e os arroteamentos, fará da floresta medieval o mundo de dupla face da abun- dância em madeira, em caça, em mel, em porcos misturados com javalis, e da selvageria, dualidade que persistirá até na Europa de hoje. Outro elemento geográfico unificador da Europa evidente na Idade Média, a presença do mar e a extensão das costas, que, apesar do medo do mar entre os homens e as mulheres da Idade Média, os levará a domá-lo atra- vés de importantes inovações tecnológicas, como o leme de roda de popa ou a bússola vinda da China.” Conforme Le Goff (2007, p. 21), é do clima temperado europeu que homens e mulheres da Idade Média “louvarão as estações intermediárias, a primavera e o outono, que têm sempre um lugar tão grande na literatura e na sensibilidade europeia”. Vale dizer, muito bem lembrado por Le Goff, que esses homens e mulheres do medievo não estavam preocu- pados com noções ecológicas, algo que somente começa a ocorrer de maneira concreta no século XX. Retomando a ideia de herança antiga. Herança que foi transmitida pela Idade Média, do patrimônio cultural, uma verdadeira barqueira de valores, conforme Le Goff (2007, p. 21), dá-se em diversos aspectos. O primeiro deles é o nome da própria Europa: “A Europa começou sendo um mito, uma concepção geográfica. O mito faz nascer a Europa no Orien- Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 23 te. É no mais antigo leito de civilização nascido no território do que se tornará a Europa que a palavra e a ideia aparecem: a mitologia grega. Mas é um empréstimo tomado do Oriente. É o embarcamento, no século VIII a. C., de um termo semítico que de- signava para os marinheiros fenícios o pôr do sol. A Europa surge como a filha de Agenor, rei da Fenícia, atual Líbano. Ela teria sido raptada por Zeus, o rei dos deuses gregos, que se apaixonou por ela. Meta- morfoseado em touro, ele a teria levado a Creta, e de seus amores teria nascido Minos, rei civilizador e legislador que se torna depois de sua morte um dos três juízes dos Infernos. Os gregos dão, portanto, o nome de europeus aos habitantes da extremidade ocidental do continente asiático.” A antiguidade, além de legar o nome ao continente euro- peu, também concede a herança do herói. Entre os gregos, eram conhecidos diversos heróis, tais como Hércules, Perseu ou ainda Jasão. Na Idade Média, o herói se cristianiza, tor- nando-se a figura de um santo ou mártir. Os santos serão os heróis do medievo. O humanismo presente na antiguidade é modificado pelo cristianismo, mas, durante o renascimento cultural, retorna com aspectos que resgatam o mundo greco- -romano. Mesmo a liturgia cristã se apega ao passado roma- no, a bebida da aristocracia, o vinho, se torna sagrado nos momentos de culto. Segundo Le Goff (2007, p. 24) “A Europa Medieval saiu diretamente do Império Romano”. O historiador francês afirma que “a primeira herança capital é a língua, veículo de civiliza- 24 História da Alta Idade Média ção”. Assim, os europeus medievais escrevem e falam latim. O latim somente recuará após o século X com a utilização das línguas vulgares, ou seja, as línguas românicas: espanhol, francês italiano e português. As quais perpetuaram o patrimô- nio cultural e linguístico europeu. A ruralização O mundo romano era fortemente urbanizado. Com a sua desestruturação, ocorre uma ruralização que altera a ordem econômica do período. Segundo Le Goff (2007, p. 47), desse processo resultam a: “ruína das estradas, das oficinas, dos entrepostos, dos sistemas de irrigação, das culturas. É uma re- gressão técnica que bate particularmente a pedra que deixa o lugar a uma volta da madeira como material essencial na construção. O reflexo da po- pulação urbana para a zona rural não enche o va- zio deixado pela regressão demográfica. No lugar da cidade, urbs, é a vila, o grande domínio, que se torna a célula econômica e social de base. A uni- dade de exploração e de povoamento é a mansa, de superfície muito variável, mas em geral pequena, capaz de manter apenas uma família. A economia monetária recua dando lugar a um aumento da tro- ca. O comércio de grande raio de ação quase de- saparece, com exceção de matérias indispensáveis como o sal.” Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 25 A ordem econômica, como se pode perceber, é alterada pela ruralização. A estrada medieval, por exemplo, torna-se muito diferente da romana. A romana dispunha de aspectos técnicos superiores e objetivos militares. Já a estrada medieval servia para o deslocamento de indivíduos que “andam ou em- purram suas carroças, utilizam asnos e cavalos em estradas de terra, não retilíneas, deslocando-se segundo as igrejas a visitar ou os mercados móveis a frequentar”, de acordo com Jacques Le Goff (2007, p. 25). O estado romano intervinha na economia assegurando rendimentos de impostos para manter em atividade a produ- ção. Isso significa para o império, segundo Blockmans e Ho- ppenbrouwers (2012, p. 21): “manter um exército imenso nas fronteiras, pagar um enorme serviço civil e abastecer as cidades com víve- res a preços que até mesmo as pessoas mais pobres podiam pagar. A produção dos domínios estatais destinava-se a essa finalidade. Estradas, portos, esta- belecimentos comerciais e canais foram construídos com intuitos militares veteranos com uma proprieda- de rural nas províncias da periferia do Império.” Com a dificuldade financeira do Estado romano, devido à redução dos rendimentos, ocorreu uma diminuição de co- mandantes de navios e mercadores trabalhando no território do império, isso já nos séculos IV e V. Um dos grandes gastos que esvaziava as riquezas do Estado era investir na defesa das fronteiras. Fazia-se necessário manter exércitos para evitar o ataque de hordas bárbaras e até mesmo subornar alguns des- 26 História da Alta Idade Média ses indivíduos para que não atacassem os territórios vincula- dos ao império. Sem dúvida, a falta de segurança que se abateu sobre as regiões rurais causava queda na produção agrícola e redução no fluxo dos impostos, o que acarretava menos recursos e, portanto, desestruturação econômica. De acordo com Block- mans e Hoppenbrouwers (2012, p. 22): “O pagamento do exército exigia o dispêndio de grandes somas, mas o ressentimento em relação ao crescente ônus dos impostos aumentou. Uma solu- ção temporária foi desvalorizar a moeda, porém, isso acarretou mais e mais transações na mesma moeda, e o dinheiro ficou escasso. O fornecimento de víveres às cidades ficoumais difícil quando o sis- tema de distribuição do Estado ruiu.” Algumas medidas foram adotadas pelo Império para tentar amenizar a crise econômica. Uma delas foi vincular heredita- riamente a terra onde trabalhavam os mancipia e os coloni, a partir de 332. Os coloni eram os arrendatários ou proprietá- rios de terra, enquanto os mancipia tratavam-se de escravos. Conforme Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 22), essa medida objetiva “enfrentar a escassez de mão de obra, mas ao mesmo tempo limitava a liberdade pessoal dos fazendeiros”. Esses tipos de medidas obrigatórias aplicaram-se em outros setores da sociedade. Por exemplo, os filhos dos mercadores estavam obrigados a seguirem a profissão dos pais. Com a economia desestruturada, as cidades acabaram sofrendo, de modo que a ruralização se intensificou. Ao des- Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 27 parecer, o poder de compra da aristocracia citadina, esses membros da sociedade, retiraram-se para suas propriedades rurais. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 22), era essa a estratégia utilizada pelos patrícios, que, des- sa forma, “podiam supervisionar diretamente a produção e estavam seguros de ter meios de subsistência”. A proteção às fronteiras do Império Romano acarretou muitos gastos. Segundo Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 22), tratava-se de carregar “uma imensa carga fiscal e uma enorme intervenção do governo na economia”. A expansão territorial exigiu rearticular o sistema de produção e distribui- ção, além de aumentar o número de funcionários e novas leis. O império não conseguiu ser bem-sucedido, pois intervinha intensamente na economia. Ou seja, o “Estado reprimiu a ini- ciativa econômica e a base ruiu”, de acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 22). Durante os séculos IV e V o mundo romano, essencialmen- te urbano, dá lugar ao processo de ruralização. Ocorre uma redução na circulação de moedas até restarem somente as de bronze. Conforme Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 23) “As moedas de ouro e prata circulavam menos como dinheiro, e cada vez mais eram usadas como presentes entre as elites”. Nesse processo, as cidades deixaram de ser centros de consumo e de atração para mercadores. Como vimos, no início do capítulo, a população reduzira- -se significativamente. No século V, restavam em torno de 30 milhões de pessoas na Europa Ocidental, sendo que, por volta do século II, podia ser calculada em torno de 40 a 50 milhões de indivíduos. 28 História da Alta Idade Média Com o crescente processo de ruralização, o Estado vai per- dendo o poder. Sendo que, em seu lugar, os grandes proprie- tários de terra começam a se destacar como lideranças locais. Fortaleciam o seu poder com o apoio de pessoas menos favo- recidas. Já, nesse momento, esses senhores de terra começa- ram a oferecer proteção aos indivíduos mais vulneráveis dessa sociedade. Em troca, acabavam renunciando a pequena pro- priedade que ainda possuíam e, no final das contas, deixavam de ser homens e mulheres livres, na concepção que hoje temos de liberdade. Ou seja, eram livres para ir e vir, mas como seu sustento estava ligado à terra, essas pessoas ficavam presas a ela, e, consequentemente, a um senhor. De acordo com Blo- ckmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 24): “Na falta da autoridade do Estado um homem com poder tinha a capacidade de decidir quanta pressão exerceria em seus dependentes potenciais. Essas re- lações econômicas e sociais criadas nas ruínas do final do Império Romano caracterizaram o início da Idade Média.” O Império Romano do Oriente O imperador Constantino escolheu a cidade de Bizâncio para ser sua capital. A cidade ficava no Bósforo, muito bem localizada estrategicamente, fazia fronteira entre dois conti- nentes. O nome da cidade, originalmente grego, foi mudado para Constantinopla em homenagem ao imperador. Além de estar em um território estrategicamente privilegiado Blockmans Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 29 e Hoppenbrouwers (2012, p. 24) afirmam que a escolha do imperador devia-se ao “crescimento demográfico e, provavel- mente econômico, da região oriental do Império Romano”. Fora isso, estava interessado em distanciar-se de “uma clas- se senatorial italiana rebelde, que se apegava, por exemplo, teimosamente aos antigos deuses romanos”. Constantino ti- nha interesse em propagar o cristianismo tornando-o tão forte quanto os cultos anteriores. Para afirmar seu poder, Constantino e Constâncio II, seu filho, investiram em um projeto de construção arrojada. De- sejavam construir igrejas cristãs grandiosas ocupando local de destaque e centralidade naquela parte do mundo romano. Junto a isso, reformaram e aumentaram edificações caracte- rísticas da cultura romana, tais como foros, termas, teatros e pistas de corrida, de acordo com Blockmans e Hoppenbrou- wers (2012, p. 25). Em contraste com o declínio populacional de Roma e do império do lado Ocidental, Bizâncio teve um crescimento po- pulacional elevado entre os séculos IV e V. As construções comprovavam a força do Oriente, entre elas podemos des- tacar, segundo Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 26): “O centro cerimonial da cidade ficava diretamente no Bósforo: compunha-se do grande Palácio impe- rial, da pista de corridas (hipódromo), da primeira Santa Sofia, a igreja dedicada à ‘sabedoria sagra- da’ ou o Espírito Santo, do prédio mais importante do governo (o Silention, a basílica do silêncio) e do foro de Constantino. Havia também um senado bi- zantino à parte.” 30 História da Alta Idade Média O imperador Justiniano (527-565) deu forma a um pro- jeto de restauração do império, no qual Bizâncio teria autori- dade sobre Roma. De acordo com Blockmans e Hoppenbrou- wers (2012, p. 26) a política de renovação de Justiniano tinha quatro alicerces: “a recuperação das regiões que haviam sido perdi- das; a elucidação e codificação da legislação ro- mana; uma política econômica baseada no apoio do aparato militar; e o estabelecimento da unidade religiosa.” Foi Justiniano que transformou a Igreja de Santa Sofia, na igreja mais majestosa do mundo cristão. Ele era defensor e solidário à religião cristã e também à igreja bizantina. Chegou a combater com violência hereges, entre os quais os adeptos do monofisismo, corrente encabeçada por indivíduos da Síria e do Egito. Enquanto o Império Romano Ocidental sofria com a de- sestruturação do Estado, o Império Romano do Oriente brilha- va. Suas trajetórias históricas seguiram estradas diferentes. No Ocidente, a Europa medieval começava a nascer da síntese entre a cultura romana, a cultura germânica e o cristianismo. Já, no Oriente, a igreja ortodoxa floresceu na antiga Bizâncio trilhando caminhos próprios. No terceiro capítulo do nosso livro, trataremos das inva- sões germânicas. Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 31 Referências bibliográficas BLOCKMANS, Win; HOPPENBROUWERS, Peter. Introdução a Europa Medieval, 300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012. JUNIOR, Hilário Franco. A Idade Média Nascimento do oci- dente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Rio de Ja- neiro: Editora Vozes, 2007. Questões: 1. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwer, na Idade Média, encontram-se as fundações da Europa moderna. Assinale a resposta correta que corresponde às fundações citadas por esses historiadores: A) Disseminação do cristianismo e do islamismo, estabele- cimento de áreas comuns de linguagem fundamentada no latim, consciência política, ruralização intensa, reno- vação do pensamento greco-romano, estruturas políti- cas monárquicas e expansão das rotas comerciais. B) Disseminação do cristianismo, estabelecimento deáre- as comuns de linguagem, sementes de consciência nacional, urbanização de determinadas regiões, reno- vação do pensamento racional, estruturas políticas fun- damentadas em representação e expansão das redes comerciais. 32 História da Alta Idade Média C) Disseminação do paganismo em contraste com o cris- tianismo, áreas com linguagens comuns, consciência religiosa exacerbada, urbanização e ruralização euro- peia, democracia e expansão das redes capitalistas. D) Disseminação do cristianismo bizantino em áreas oci- dentais, utilização homogênea do latim em todas as áreas, renovação do pensamento laico, estruturas polí- ticas complexas e expansão das redes comerciais. E) Nenhuma das alternativas anteriores. 2. Assinale a resposta correta que corresponde a elementos que contribuíram para a desestruturação do Império Ro- mano: A) Aparelho estatal desorganizado, recuo demográfico, falta de alimentos, insegurança, fome e pobreza. B) Riqueza, militarismo, superpopulação e ruralização. C) Abastecimento precário de itens de luxo, decadência da filosofia romana e urbanização acelerada. D) Dificuldade em manter a segurança nas fronteiras, con- flito entre religiões, aumento populacional desenfreado e cidades sem administração. E) Nenhuma das alternativas anteriores. 3. Na tentativa de evitar o recuo demográfico intenso do sé- culo V, foram tomadas algumas medidas no Império Ro- mano. Assinale a respostas correta: A) Moças menores de 16 anos são proibidas de entrar para o clero, as viúvas são pressionadas a casar no- vamente, no máximo, em um período de 5 anos após Capítulo 2 Desestruturação do Império Romano do Ocidente... 33 a morte do esposo e são cometidas atrocidades como sacrificar recém-nascidos do sexo masculino. B) Moças de 18 anos são proibidas de entrar para o cle- ro, as viúvas são pressionadas a casar novamente, no máximo, em um período de 2 anos após a morte do esposo e são cometidas atrocidades como sacrificar recém-nascidos do sexo feminino. C) Moças menores de 14 anos são proibidas de entrar para o clero, as viúvas são pressionadas a casar no- vamente, no máximo, em um período de 5 anos após a morte do esposo e são cometidas atrocidades como sacrificar recém-nascidos do sexo feminino. D) Moças menores de 16 anos são proibidas de entrar para o clero, as viúvas são pressionadas a casar no- vamente, no máximo, em um período de 2 anos após a morte do esposo e são cometidas atrocidades como sacrificar recém-nascidos do sexo masculino. E) Moças e moços menores de 14 anos são proibidos de entrar para o clero, as viúvas e os viúvos são pressio- nadas a casar novamente, no máximo, em um período de 5 anos após a morte dos cônjuges e são cometidas atrocidades como sacrificar recém-nascidos. 4. Leia as proposições sobre o nome Europa: I. Termo se- mítico que designava para os marinheiros fenícios o pôr do sol. II. A Europa surge como a filha de Agenor, rei da Fenícia, atual Líbano. Ela teria sido raptada por Deus em um ato de loucura. III. A Europa deve o seu nome a cultura bizantina e aos cruzados que a idolatraram no século X. Assinale a resposta correta: 34 História da Alta Idade Média A) As proposições I, II e III estão corretas. B) As proposições I e II estão corretas. C) As proposições II e III estão corretas. D) As proposições I e III estão corretas. E) Somente a proposição I está correta. 5. O mundo romano era fortemente urbanizado. Com a sua desestruturação, ocorre uma ruralização que altera a or- dem econômica do período. Assinale a resposta correta que designa alguns resultados desse processo: A) ruína das cidades, das pontes, das igrejas, das universi- dades e da produção de utensílios. B) ruína das estradas, das oficinas, dos entrepostos, dos sistemas de irrigação, das culturas e regressão técnica. C) ruína dos entrepostos, dos contatos comerciais, acultu- ração, perseguição aos pagãos, técnicas avançadas no campo e rompimento de relações do Império Romano do Ocidente com o Império Romano do Oriente e com os povos islâmicos. D) alteração da vida cotidiana, diminuição da compra dos artigos de luxo, abastecimento precário dos alimentos, superpopulação e valorização da vida ascética em de- trimento de outras modalidades de vida religiosa. E) Nenhuma das alternativas anteriores. Respostas: 1-B, 2-A, 3-C, 4-E e 5-B. As Invasões Germânicas ÂÂNesse terceiro capítulo, damos destaque a uma breve introdução sobre a sociedade romana e o processo de ruralização. Em seguida, tratamos das invasões e as conquistas dos povos que se infiltram no território roma- no. Veremos as relações dos germanos com os romanos e como as invasões acabam se tornando o início de um processo de colonização que terá consequência na for- mação de reinos monárquicos no antigo império em de- cadência. Carlos Falcão Capítulo 3 36 História da Alta Idade Média A sociedade romana Com o processo de ruralização ocorrido no Império Romano, a própria sociedade se modifica. O recuo demográfico atingia as camadas urbanas, médias e também as rurais. Os peque- nos proprietários de terra sucumbiram aos laços de dependên- cia. Nesse sentido, um camponês livre tornava-se dependente de um grande proprietário. O Estado, ao oprimir a população com impostos pesados, visando à manutenção das estruturas do Império, acabava por inviabilizar a independência dessas camadas sociais. Fato que gerava o patrocinium, ou seja, uma espécie de vínculo entre duas partes. Sem condições de se sus- tentar, os camponeses, conforme Hilário Franco Júnior (2006, p. 84) entregavam “sua terra a um importante e influente per- sonagem, colocando-se sob sua proteção”. Entre os traba- lhadores livres urbanos, foram impostas a obrigatoriedade de seguir o ofício dos pais. Conforme Franco (2006, p. 85) esse segmento foi sendo reunido “em collegiae (corporações) de acordo com a especialização, para facilitar o controle estatal”. O Império Romano tinha na força do trabalho escravo um dos seus principais trunfos econômicos. No entanto, com a expansão do império e seus decorrentes problemas, surgia o colono, um novo tipo de trabalhador rural. De acordo com Franco (2006, p. 85) “Para os marginalizados que abandonavam as cida- des, e para os camponeses livres sem terra, receber um pequeno lote de um latifundiário, entregando em troca parte de sua produção anual, representa- Capítulo 3 As Invasões Germânicas 37 va alimento e proteção naquela época de carestia e insegurança.” Segundo Franco (2006, p. 85) “o colono surgia do avilta- mento da condição do trabalhador livre e da melhoria da con- dição do escravo”. Portanto, estava vinculado ao pedaço de terra que ocupava. Era, assim como a terra, uma propriedade. Se a terra fosse vendida, era vendida junto com o colono. Suas obrigações eram pesadas. Pela Lei, o colono era livre, no en- tanto, na prática sua condição era de escravo da terra. Essa relação da sociedade romana com a terra vai ser fun- damental para a compreensão do processo de transformação econômica que ocorre nos limites da antiguidade e início do período medieval. Nesse contexto social e econômico, tam- bém estão ocorrendo às invasões germânicas no que é cha- mado de primeira grande onda. A segunda onda de invasões ocorre durante o Império Carolíngio e será tratada em capítulo posterior. Invasões O Império Romano Ocidental presenciou a primeira grande onda de invasões germânicas na noite de inverno de 31 de de- zembro de 406. Ocorreu durante uma marcha, de suevos, vân- dalos e alanos, através do Reno gelado. Desse primeiro movi- mento impactante, outras invasões de peso ocorreram poucos anos depois como comenta Perry Anderson (2007, p. 108): 38 História da Alta Idade Média “em 410, os visigodos,sob as ordens de Alarico, sa- quearam Roma. Duas décadas mais tarde, os vân- dalos tomaram Cartago, em 439. Por volta de 480, o primeiro sistema rudimentar de Estado bárbaro se havia estabelecido em solo que antes fora romano: os burgúndios na Savoia, os visigodos na Aquitânia, os vândalos no Norte da África e os ostrogodos na Itália. O caráter dessa terrível irrupção inicial – que em épocas posteriores proporcionou com suas ima- gens arquetípicas o começo da Idade Média – era realmente muito complexo e contraditório: foi ao mesmo tempo o mais radicalmente destrutivo as- salto dos povos germânicos ao Ocidente romano, e o mais notadamente conservador nesse aspecto para o legado latino. A unidade econômica, política e militar do Império Ocidental foi fragmentada de maneira irreparável.” O historiador Jacques Le Goff (2007, p. 37) também co- menta sobre a primeira grande onda. No entanto, já considera que seu início se dá por volta do século III. Afirma que a gran- de instalação dos germanos no Império teria ocorrido a partir da “invasão geral dos germanos na Itália, na Gália, depois na Espanha, em 406-407, com a tomada de Roma por Alarico em 410”. Esse impulso germânico de invasões se prolonga, conforme Le Goff (2007, p. 37): “durante os séculos V e VI, depois da entrada dos germanos do leste, visigodos e ostrogodos, e a gran- de onda dos suevos, vândalos e alanos que transpu- seram o Reno no começo do século V; é o lento im- Capítulo 3 As Invasões Germânicas 39 pulso para o oeste e o sul da Gália dos burgúndios, dos francos e dos alamanos. É também a travessia do Mar do Norte pelos jutos, anglos e pelos saxões, que precipita a refluxo dos bretões da Grã-Bretanha para o extremo oeste da Gália. Enfim, a última con- quista germânica sobre o antigo território do Impé- rio é a dos lombardos, que penetram na Itália na segunda metade do século VI. Para substituí-los ao leste do Reno foram estabelecidos saxãos, frísios, tu- ríngios, bávaros.” Na concepção de Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 47-48), as grandes migrações, em seu início, não tiveram rela- ção com o contato entre romanos ou bárbaros, mas, sim, com o surgimento dos hunos nas estepes das Ásia central. Segundo os historiadores: “O terror causado por esses nômades altaicos nas terras ao redor do Mar Negro provocou a fuga de um grande grupo de godos. Em 376 esse grupo re- cebeu permissão de cruzar o Danúbio, porém, as autoridades romanas não receberam essa enorme massa de refugiados de uma maneira humanitária. Os godos revoltaram-se e um exército do Império Romano do Oriente, sob o comando do imperador Valente, foi dizimado perto de Adrianópolis, em 378. Os godos receberam o status de foederati e um ter- ritório na atual Sérvia, mas ainda não ficaram satis- feitos. Sob o comando de um novo líder poderoso, Alarico, eles revoltaram-se de novo e atacaram a Trácia logo após o ano 390. Durante a primeira dé- 40 História da Alta Idade Média cada do século V, Alarico foi à Itália duas vezes como um foederatus do imperador do Império Romano do Oriente, que queria extinguir o poder de Stilicho no Ocidente. Alarico nunca chegou a ameaçar Ravena, a capital do Império Romano do Ocidente, mas em 410 dominou e saqueou Roma, a cidade eterna, um fato chocante na época. Ele morreu logo depois no sul da Itália. Seu sucessor partiu imediatamente da Itália e levou os godos para a Gália.” Conforme os grupos de invasores começavam a entrar no Império, constituíam assentamentos. Esses assentamentos fo- ram muito diversificados entre si, assim como ocorreram dife- rentes formas de migrações. Segundo Blockmans e Hoppen- brouwers (2012, p. 50-51): “O único fator comum foi que em todos os lugares os recém-chegados eram minorias pequenas, mes- mo na região da atual Inglaterra, onde por muito tempo os estudiosos tiveram uma visão diferente. Às vezes, os bárbaros invasores formavam um grupo tão pequeno que não conseguiam controlar ime- diatamente o território que alegavam ter dominado. Eles se entrincheiravam em lugares seguros centrais, de onde nos primeiros anos tentavam aterrorizar os proprietários de terras nativos. Estamos mais acos- tumados a esse padrão de assentamento no impé- rio dos vândalos do Norte da África. Uma variante desse padrão só poderia ocorrer em áreas onde o sistema de impostos romano ainda estivesse intac- to, como na Itália ocupada pelos ostrogodos no iní- Capítulo 3 As Invasões Germânicas 41 cio do século VI. Lá, por algum tempo, os bárbaros receberam pagamento de impostos em forma de produtos, em geral grãos, assim como os soldados regulares das legiões romanas haviam recebido no passado. No entanto, esse sistema sempre foi um acordo temporário que, mais cedo ou mais tarde, se convertia em ocupação de terra.” Pode-se dizer que o principal motivo das invasões, segundo Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 51) era a coloniza- ção. A partir do momento em que esses assentamentos tor- nam-se presentes no império, ocorre uma aproximação entre conquistadores e conquistados. No entanto, vale dizer que essa aproximação, sem dúvida, não foi fácil ou sem resistência de ambos. Por exemplo, de acordo com Franco (2006, p. 85-86): “A fraqueza demográfica germânica ajuda a expli- car a recusa à miscigenação em certos reinos, tal- vez como forma de preservação de identidade. Para tanto havia certa segregação, com bairros separa- dos para romanos e bárbaros nas cidades da Itália ostrogoda, com a função militar proibida aos roma- nos em diversos reinos, com os germanos em quase todos os locais usando sua roupagem tradicional, que os distinguia facilmente dos nativos. Foram proi- bidos os matrimônios mistos, determinação de uma lei romana de 370 e que os germanos mantiveram em alguns reinos até meados do século VII.” As diferenças entre romanos e invasores também se encon- tram na religião. Conforme Franco (2006, p. 86) “os ostro- 42 História da Alta Idade Média godos, visigodos, vândalos, burgúndios, suevos e lombardos adotaram o arianismo, heresia que os afastava da população romana católica”. Dessa maneira, era bem possível que seguir uma opção religiosa diferente significasse para esses povos conservar uma identidade própria. Os godos até mesmo cria- ram obstáculos jurídicos para impedir que romanos adotassem o arianismo. Franco (2006, p. 86) também cita que “francos, alamanos, alanos, anglos e saxões permaneceram ligados ao paganismo”. Essa barreira teria sido removida somente “a par- tir do momento em que os francos, em 496, e os visigodos, em 587, se converteram ao catolicismo e acabaram em diferentes momentos sendo imitados pelos demais germânicos”. É importante destacar que os povos que viviam além das fronteiras do império eram chamados pelos romanos de bár- baros. Bárbaro é uma palavra de origem grega e designava todos àqueles que não falavam grego. Nesse sentido, também, para os romanos, significava encarar esses grupos com uma mistura de sentimentos, tais como admiração, receio, medo, intimidação, aversão e desprezo. Para os romanos, causava estranhamento estar em conta- to com esses grupos de bárbaros. No caso dos alemães, por exemplo, segundo Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 35) “tinham cabelos compridos louros avermelhados, cheiravam mal e bebiam, estavam sempre à procura de briga e não eram confiáveis”. Percebe-se que o aspecto físico ajudava na con- figuração de um preconceito levando a crer também que por serem brigões não poderiam ser confiáveis. No entanto, é fato que esse aspecto selvagem, para os romanos, fazia com que generais do império tivessem escoltas de bárbaros do norte. Capítulo 3 As Invasões Germânicas 43 Também é interessante notar que quando começaram a ocorrer contatos frequentes entre os bárbaros e os cidadãosdo império, foram construídas barreiras e fortalezas nas fronteiras. O que se objetivava era controlar o intenso tráfico que ocorria nos limites do império e não simplesmente evitar a entrada de estrangeiros. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 36): “a expansão contínua do império resultara no in- gresso e incorporação de enormes populações es- trangeiras. Elas aos poucos se romanizaram, mas nunca perderam sua diversidade étnica. O Império Romano tinha uma mistura efervescente de culturas, com um grande componente bárbaro.” O período de migrações foi realizado por bárbaros seden- tários e nômades. Dessa maneira, percebe-se que esse proces- so foi distinto entre cada um dos tipos mencionados. Confor- me Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 36): “Nas densas florestas das planícies e cadeias de montanhas ao norte e ao nordeste do Império Ro- mano havia bárbaros em comunidades agrícolas, camponeses que moravam em pequenos vilarejos controlados por aristocracias guerreiras nativas. A divisão rudimentar desses bárbaros do norte e do nordeste em celtas, alemães e eslavos, citada com frequência na literatura moderna, não se fundamen- ta em antigos etnógrafos. Ela baseia-se na pesquisa filológica dos remanescentes linguísticos ‘bárbaros’ da pré-história europeia.” 44 História da Alta Idade Média Esse primeiro grupo referido pelos historiadores é o dos sedentários. Já os bárbaros nômades dividiam-se em duas ca- tegorias principais: os da estepe e os do deserto. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 37): “Eles andavam com suas grandes manadas de ca- valos, carneiros e camelos, pelas estepes interminá- veis da Eurásia e nos desertos do Norte da África, da Arábia e da Síria. Essas economias pastoris só poderiam existir por meio do contato regular com comunidades agrícolas para trocar animais e peles por grãos ou outro produto da terra.” Existiam relações violentas com esses grupos. Os nôma- des nem sempre estavam abastecidos de víveres capazes de manter as suas necessidades básicas de sobrevivência. Diante desse fato, entravam em combate contra ou mesmo exigiam tributos dos bárbaros sedentários. A partir do momento em que ocorre um acúmulo de riquezas, e certa centralização po- lítica, os grupos nômades começam a se sedentarizar. Os nômades das estepes, de acordo com Blockmans e Ho- ppenbrouwers (2012, p. 37-38) eram cavaleiros extraordiná- rios, tinham grande competência nas artes marciais e excelen- tes arqueiros. Conforme os historiadores, “Seus percursos por lugares inóspitos tornaram-nos fortes e resistentes”. Dessa ma- neira, também se criou um sentimento de solidariedade entre todos os tipos de grupos bárbaros, diante da ameaça contínua que sofriam. Em consequência desse fator, outra característica que acabaram por adquirir foi a cultura da violência. Ainda de acordo com os historiadores citados, os bárbaros, quan- Capítulo 3 As Invasões Germânicas 45 do colocavam suas diferenças de lado, formavam “grandes confederações multiétnicas que se transformavam em terríveis máquinas de lutas em tempos de guerra”. As invasões em território romano já eram registradas por escritores do final da antiguidade. De acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 41-42), eles descreviam o fluxo de bárbaros no império de maneira sombria: “gostavam de metáforas referentes ao mar: ‘ondas zangadas’ de impiedosos godos, vândalos e hunos que atacavam as fronteiras do outrora tão podero- so império e que, por fim, foram submergidos pelas hordas dos bárbaros.” Mesmo na época de Júlio Cesar, os bárbaros eram uti- lizados em operações militares. Sua presença nos exércitos romanos, no final do Império, de acordo com Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 42) ocorrera quando os romanos decidiram adotar uma nova estratégia “não mais defender as fronteiras do império com legiões que se estendiam por todo o comprimento da fronteira”. Dessa forma, começaram a se firmar acordos entre romanos e bárbaros. Entre os acordos mais importantes estava o foedus, segundo Blockmans e Ho- ppenbrouwers (2012, p. 43): “Os primeiros foedera (no sentido literal ‘tratados’, no singular foedus) foram firmados com os sálios, uma das duas confederações de povos em que se dividiram os antigos francos logo após 340. Os sá- lios tiveram permissão de instalarem-se em Betuuwe, na região do Baixo Reno, mas nos séculos seguin- 46 História da Alta Idade Média tes eles colonizaram as atuais regiões de Brabante e Flandres. Acordos semelhantes forma feitos com muitos outros grupos de bárbaros. Em um estágio posterior o foedus significou apenas um contrato entre mercenários. Não havia uma submissão for- mal nem uma conexão com a defesa das fronteiras. Além disso, os foedera deram direito que os bár- baros recebessem pagamento. A fim de assegurar esse pagamento, mesmo em períodos em que não havia trabalho para seus guerreiros, os líderes dos grupos mercenários bárbaros tentavam obter uma alta patente militar no exército romano. Childerico, pai do rei franco Clóvis, foi um desses guerreiros que alcançou esse poder nos últimos anos no Im- pério Romano do Ocidente. Childerico intitulava-se rex (rei), mas, além disso, tinha o título romano de magister (general).” O aumento de soldados estrangeiros nas legiões romanas regulares aumentou durante o período em que Dioclesiano (284-305) governou. Isso ocorreu em função do recuo de- mográfico. E continuou ocorrendo aos que sucederam esse imperador. Dessa maneira, com o aumento dos bárbaros no exército, sua importância começa a adquirir efeitos práticos. Ou seja, os principais líderes estrangeiros passam a ocupar níveis mais elevados na hierarquia militar. De acordo com Blo- ckmans e Hoppenbrouwers (2012, 43): “Após a morte de Teodósio (378-395) na parte ocidental do Império Romano, o verdadeiro poder estava frequentemente nas mãos dos comandan- Capítulo 3 As Invasões Germânicas 47 tes vândalos como Stilicho e o scirii, Odoacer. Em 476, Flavius Odoacer, depôs o último imperador do oeste, em uma revolução palaciana e se auto- proclamou ‘rei dos bárbaros’ (rex gentium) da Itália. No Oriente, o alamano Aspar foi comandante entre 431 e 471, e um dos homens mais poderosos de Constantinopla.” Com as invasões bárbaras, consequentemente, começa- ram a se formar reinos bárbaros por toda a parte do Império Romano. Sendo a monarquia forma predominante de governo na Europa medieval, de acordo com Blockmans e Hoppen- brouwers (20012, p. 51). Segundo esses historiadores, a con- tribuição romana para a formação dos novos reinos se consta- ta, por exemplo, na admiração que os chefes bárbaros tinham pelos romanos. Essa admiração pode ser constata em diversos aspectos. Os conquistadores desejaram se unir às famílias ro- manas mais importantes pelo casamento. Mesmo os principais líderes se vangloriando de suas origens, como Teodorico, que era de antigas famílias reais de godos, intitulava o seu reino italiano de res publica romana, ou seja, Estado romano. Ou- tros reis bárbaros, de acordo com Blockmans e Hoppenbrou- wers (2012, p. 51-52), como Sigismundo “dizia ser um solda- do do imperador. Depois de derrotar os visigodos em 507 e 508, Clóvis realizou banquetes triunfais nos quais, seguindo o antigo regime romano, se vestia com trajes púrpuras”. Block- mans e Hoppenbrouwers (2012, p. 52) afirmam que os roma- nos esforçaram-se para manter as lideranças bárbaras como amigos. Por isso, concediam-lhes títulos de nobreza ou os altos postos militares fazendo reverência à sua descendência ilustre. 48 História da Alta Idade Média Nas monarquias instauradas pelos conquistadores, come- çaram a ocorrer duas tendências em relação à sucessão. Uma delas era a hereditariedade com vistas à formação de uma dinastia e a outraprevia eleições realizadas pelos nobres me- lhor posicionados hierarquicamente naqueles grupos. Vejamos esse exemplo de Blockmans e Hoppenbrouwers (2012, p. 52): “A maioria dos visigodos adotou uma base sucessória eleitoral, ao passo que os anglos e os saxões na Inglaterra e os francos e os lombardos optaram pelo regime de sucessão hereditária de uma família”. A partir do início do século VI, já se pode observar uma configuração dos principais reinos que se formaram na Euro- pa ocidental. Os visigodos possuíram o reino mais extenso, estendendo-se do Vale do Loire até o sul da Península Ibérica. Outros reinos que se destacaram nesse período foram os dos ostrogodos, visigodos, francos, vândalos, anglo-saxões, bur- gúndios e suevos. Nesse processo de invasões e conquistas, formaram-se di- versos reinos que baseavam sua política na monarquia. No século VIII, surge mais uma vez um império de grande força na Europa. Esse é o império carolíngio, o qual será destaque como tema do próximo capítulo. Referências bibliográficas: ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. Capítulo 3 As Invasões Germânicas 49 BLOCKMANS, Win; HOPPENBROUWERS, Peter. Introdução a Europa Medieval, 300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012. JUNIOR, Hilário Franco. A Idade Média Nascimento do oci- dente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Rio de Ja- neiro: Editora Vozes, 2007. Questões: 1. Leia as proposições sobre o colono na Idade Média: I. Pela Lei, o colono era livre, no entanto, na prática, sua condi- ção era de escravo da terra. II. Se a terra fosse vendida, era vendida junto com o colono. III. Surgia do aviltamento da condição do trabalhador livre e da melhoria da condi- ção do escravo. Assinale a resposta correta: A) As proposições I, II e III estão corretas. B) As proposições I e II estão corretas. C) As proposições II e III estão corretas. D) As proposições I e III estão corretas. E) Somente a proposição I está correta. 2. Assinale a resposta que complementa corretamente a afirmação a seguir. Para Blockmans e Hoppenbrouwers o principal motivo das invasões germânicas era: A) a destruição do império romano. B) a colonização. C) a propagação da religião dos seus deuses nórdicos. 50 História da Alta Idade Média D) a realização de intensificar e monopolizar o comércio de artigos singulares. E) Nenhuma das respostas anteriores. 3. Como era conhecida a heresia que afastava os ostrogo- dos, visigodos, vândalos, burgúndios, suevos e lombardos da população romana católica? A) Calvinismo. B) Islamismo. C) Arianismo. D) Protestantismo. E) Nenhuma das alternativas anteriores. 4. O significado de bárbaro, aos olhos dos romanos, repre- sentava: I. Os povos que viviam além das fronteiras do império. II. Grupos invasores que causavam uma mistura de sentimentos, tais como admiração, receio, medo, inti- midação, aversão e desprezo. III. Grupos aliados que con- tribuíram para a expansão do império e da religiosidade cristã. A) Proposições I e II estão corretas. B) Proposições II e III estão corretas. C) Proposições I, II e III estão corretas. D) Proposições I e III estão corretas. E) Apenas a proposição III está correta. 5. Os bárbaros nômades podiam ser divididos em duas cate- gorias principais. Assinale a resposta correta: Capítulo 3 As Invasões Germânicas 51 A) Os bárbaros da estepe e os do deserto que andavam com suas grandes manadas de dromedários, camelos e carneiros em territórios do Egito e da Mesopotâmia. B) Os bárbaros do oriente e os do ártico que andavam com suas grandes manadas de cavalos, bois e carnei- ros em territórios da Eurásia, do Norte da África, da Arábia e da Síria. C) Os bárbaros sedentários e os camponeses do Norte da Europa que circulavam por todo continente asiático. D) Os bárbaros da estepe e os do deserto que andavam com suas grandes manadas de cavalos, carneiros e ca- melos em territórios da Eurásia, do Norte da África, da Arábia e da Síria. E) Nenhuma das alternativas anteriores. Respostas: 1-A, 2-B, 3-C, 4-A, 5-D. O Império Carolíngio, Invasões e a Construção da Europa ÂÂNesse capítulo, trataremos do governante sagrado para entender como Carlos Magno se torna tão im- portante para a coletividade cristã ocidental. Em seguida, relataremos as invasões que ocorrem no império carolín- gio. Dessas invasões, veremos como se dá o processo que constrói a Europa. Carlos Falcão Capítulo 4 Capítulo 4 O Império Carolíngio, Invasões e a Construção da Europa 53 O governante sagrado Na antiguidade, um rei poderia ser idolatrado como um deus ou sacerdote. Já na Idade Média, o monarca “tinha inquestio- nável caráter sagrado”, conforme Hilário Franco Júnior (2006, p. 49). Para ter o caráter sagrado, não bastava querer. Era importante formar aliança com quem podia transformar um rei comum em um líder sagrado. Portanto, não é por acaso que Pepino, o Breve, por volta do século VIII, legitima o seu poder recorrendo a uma cerimônia que tinha o Antigo Testamento como objeto sagrado que validava seu posto. Essa cerimônia, desde o século VII, era realizada pelos visigodos com o ato de se derramar um óleo considerado santo sobre a cabeça do rei que assumia o cargo. Esse evento era chamado de unção régia. De acordo com Franco (2006, p. 50): “Tratava-se, pois, de um rito de passagem que sa- cralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus. Desde então, todo o rei para ser visto como tal pre- cisou ser submetido àquele rito.” Submeter-se ao rito, portanto, sacralizava o monarca tor- nando-o um indivíduo especial, capaz de governar os seus súditos. Um fato curioso, diferente da sacralização, ocorreu na Grã-Bretanha. Acreditava-se que o rei Arthur voltaria de Ava- lon para governar àquelas terras. Segundo Franco (2206, p. 50) “em 1554, Filipe II de Espanha casou-se com Maria Tudor e precisou solenemente jurar que renunciaria ao trono inglês se Arthur o reivindicasse”. 54 História da Alta Idade Média Carlos Magno Com a desestruturação do Império Romano e a consequente colonização feita pelos germanos, o estado organizado e ur- banizado dá lugar ao processo de ruralização e a composição de diversos novos reinos que modificam o panorama político europeu. Esses grupos invasores tinham como base de sua or- ganização política a família e a tribo. Ou seja, não dispunham de cidades ou estados. Conforme Franco (2006, p. 52) “As relações sociais entre eles não se regiam pelo conceito de ci- dadania, mas de parentesco”. Desse modo, demorou algum tempo para que houvesse um reino de fato mais coeso, politizado e com características de império. Nesse sentido, a Idade Média, somente vai pre- senciar o surgimento de um governo imperial a partir de Car- los Magno. Tratou-se de uma renovação na política que não ocorria desde as invasões bárbaras que desestruturaram o im- pério. Para fazer um império, conforme Franco (2006, p. 54), as condições reunidas se apresentaram no século VIII, durante o reino franco. Isso se dá, segundo o historiador, em função de Carlos Magno ter tido a anuência da Igreja para tornar-se um monarca. Franco (2006, p. 54) nos lembra que: “os francos tinham sido os primeiros germânicos a se converter ao catolicismo romano, em fins do século V. Depois, em 732, Carlos Martel derrotara os mu- çulmanos na célebre batalha de Poitiers, ganhando o prestígio de um verdadeiro salvador da Cristanda- de. Seu filho, Pepino, o Breve, consolidou o pacto franco-papal. Em troca da deposição do último rei Capítulo 4 O Império Carolíngio, Invasões e a Construção da Europa 55 da dinastia Merovíngia e de sua própria entroniza- ção como rei dos francos, em 751, Pepino arrancou
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