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VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO em percurso da psicologia geral à aplicada* Achilles Delari Junior** L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural * ** * Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐ logo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo. Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) ** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐ mail: delari@uol.com.br. “Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência do novo homem. Sem ela a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. Entretanto, esta ciência do novo homem será também psicologia. Por isso hoje man‐ temos suas rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão se parece com o cachorro, animal ladrador (Ética, teorema 17, Escólio)” — Lev Vigotski (1927/1991, p. 406)*** Palavras Iniciais Tem sido muito importante no Brasil a contribui‐ ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐ ção e às práticas pedagógicas de modo geral. As‐ sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐ sentada e discutida no contexto de cursos de for‐ mação de educadores, tanto quanto nas discipli‐ nas da formação do psicólogo ligadas aos temas do desenvolvimento humano e das relações de ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso não é despropositado. A educação tem um lugar fundamental na proposta de Vigotski para uma “nova psicologia”. Segundo ele “a educação é a primeira palavra que [a nova psicologia] mencio‐ na” (VIGOTSKI, 1926/1991, p. 144). Isso implica mencionar a palavra “educação” numa acepção antropológica, isto é, conceber que só o ser hu‐ mano é capaz de educar‐se, de aprender com a experiência histórica das gerações anteriores e assim constituir a sua própria vivência como ser singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos, na família, na escola, nas demais instituições em que se estabeleçam nossas relações com outras pessoas, seja essencial na constituição das fun‐ ções psíquicas propriamente humanas, de nossa SUMÁRIO Palavras iniciais.............................................................01 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03 1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...) .........08 1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐ rico‐cultural...................................................................12 2.1 Unidade psicofísica..................................................12 2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13 2.3 Consciência: psiquismo propriamente humano .....17 2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20 2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25 3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐ gem histórico‐cultural ..................................................30 3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31 3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐ ca...................................................................................32 Para continuar o diálogo ..............................................37 Referências ...................................................................38 *** Todas as citações para títulos que na bibliografia consta‐ rem em língua estrangeira são de minha autoria exceto Vi‐ gotski (1929/1989) e Puzirei (1989a) – cujas traduções do inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐ cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐ ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐ ki, com fins didáticos de contextualização histórica, por se tratar da referência principal do texto. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 2 de 40 consciência em especial e nossa personalidade como um todo. Contudo, neste texto pretendo relembrar que Vigotski não produziu exclusivamente uma psico‐ logia educacional ou escolar, nem sua teoria se restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐ zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e principalmente, de uma contribuição geral à psico‐ logia concreta do homem (ver VIGOTSKI, 1929/ 1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐ sar a atuação do psicólogo em diferentes contex‐ tos práticos, como a promoção de saúde mental: nas práticas sociais comunitárias, nos sistemas públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐ lho, entre outros... Tanto quanto em qualquer situação em que se efetivem simultaneamente: (a) relações simbolicamente mediadas entre as pes‐ soas, (b) constituição social de sentidos para tais relações e (c) significação para nossa própria vi‐ vência no curso desse processo. Trabalharemos aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐ tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando compreender o ser humano na concretude de suas relações sociais, a um só tempo: situa‐o na especificidade delas (na família, no namoro, na escola, no trabalho, na vida comunitária, na luta por direitos civis, no lazer, na atividade lúdica, na criação artística, noutras instituições, etc.); e arti‐ cula tais contextos específicos no conjunto sistê‐ mico, inter‐funcional, dinâmico e contraditório da personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐ vimento histórico. Por um lado, o que há de geral no psiquismo hu‐ mano solicita contextualização. Se todo o ser hu‐ mano é um constante tornar‐se, aquilo em que nos tornamos demanda situações reais para a realização do nosso devir. Se todo o ser humano é um animal social, o nosso modo de sermos sociais implica relações com outras pessoas que não nos estão pré‐determinadas e só acontecem no pró‐ prio ato, por vezes tenso, de se estabelecerem e de se refazerem. Se todo o ser humano é um ser simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos sociais criam e recriam para codificar sua experi‐ ência histórica e dar‐lhe/impedir‐lhe acesso às novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a significação, como características gerais da vida propriamente humana colocam‐nos, ao mesmo tempo, a necessidade de compreender o específi‐ co de sua realização para cada ser humano con‐ creto. Por outro lado, a nossa vivência mais espe‐ cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐ da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐ do com nossos semelhantes. Posto que nossa própria personalidade não tem como realizar‐se e desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐ soas, senão mediante processos sociais de signifi‐ cação, senão no fluxo de uma gênese histórica. Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐ nos” humanos, que só acontece em relação com os dois primeiros critérios, mas não pode, para nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐ ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite para o dia, exceto no caso mesmo de a própria humanidade deixar de existir. Sendo assim, a a‐ bordagemhistórico‐cultural não se apresenta aqui como visão “relativista” na qual o homem poderia ser social ou não, simbólico ou não, histórico ou não, dependendo da situação... A caracterização do humano como ser social, simbólico e histórico, compõe um conceito pertinente à constituição ontológica mais profunda e elevada da condição humana, no interior da abordagem teórica à qual estamos nos referindo. Ao mesmo tempo, essa generalidade concretiza‐se em sua dialética com a especificidade da condição singular de cada socie‐ dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada classe e grupo sociais, de cada ser humano em particular. Deduz‐se assim que não se trata de uma abordagem que só seria aplicada a um único contexto específico de relações sociais, seja ele a escola, o mundo do trabalho, as organizações comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por diante. A psicologia histórico‐cultural busca com‐ preender o ser humano, e assim ao seu contexto caberá articular sua condição genérica e vice ver‐ sa. Partindo desse princípio, dirigindo‐me, nesse momento, às componentes do grupo de estudos orientado em “Teoria histórico‐cultural (sócio‐ histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐ nizar uma breve introdução à contribuição de Vigotski, principal propositor da teoria histórico‐ cultural1 em psicologia. Neste texto introdutório, 1 Segundo Valsiner e Van der Veer (1996) “teoria histórico‐ cultural” é um termo cunhado por Vigotski e Luria para de‐ Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 3 de 40 para fins de exposição, abordarei: (1) princípios éticos em psicologia histórico‐cultural; (2) princí‐ pios de psicologia geral numa abordagem históri‐ co‐cultural; e (3) orientações gerais à psicologia aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo “para fins de exposição”, pois evidentemente a ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos da realidade humana na qual se dá a construção tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐ sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para fins de sistematização e/ou organização, focar‐se mais num aspecto do que em outro, os demais nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐ do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐ do prático de viver e relacionarmo‐nos engendra valores éticos. Nossos valores orientam práticas e opções por determinados modos de teorizar o real. Estes, por sua vez, (re)organizam ainda nos‐ sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐ liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐ lidamos valores. Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo tão abreviado e introdutório, é uma produção minha com base nas leituras que venho fazendo desde o final dos anos oitenta, articuladas às ex‐ periências que tive, às vivências que nelas se cons‐ tituíram e às que hoje também me perpassam. Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐ cias humanas, não há em teoria histórico‐cultural apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐ sicos. Minha orientação geral a qualquer pessoa nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐ lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte, portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como uma metonímia da parte pelo todo. O termo “teoria sócio‐ histórica da atividade” foi cunhado mais tarde por Leontiev. No Brasil existe uma diversidade de denominações, as quais por sua vez implicam diferenças teóricas e metodológicas na interpretação do autor clássico como: sócio‐interacionismo, sócio‐construtivismo, abordagem sócio‐cultural, abordagem sócio‐histórico‐cultural, etc. Não nos cabe entrar no mérito das disputas por qual denominação seria mais correta ou mais fiel à teoria do autor, pois a diversidade de leituras faz parte do processo social da apropriação de qualquer obra. Adotarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐ te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se o significado” (1924/2009, p. 41). que me pergunte por onde seria melhor começar a ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas se erguem ao redor de qual seria a melhor inter‐ pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐ sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos a partir de quem os lê, melhor seria avaliar tais leitores a partir dos primeiros. Nem sempre isso acontece na prática – algum grau de leitura intro‐ dutória sempre é necessário. Mas saibamos ape‐ nas que este texto é um posicionamento de um homem concreto com seus limites e potencialida‐ des, que pode e deve ser questionado em seguida, sob o critério da crítica e da leitura do próprio clássico a cujo estudo nos dedicaremos. De toda forma, as escolhas para as leituras a serem reali‐ zadas não são neutras, e se orientam pela visão de mundo e pelas características de personalidade social de quem as indica. Tais aspectos serão ex‐ plicitados ao longo deste texto, justamente como convite ao diálogo e à composição coletiva. 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐ cultural “O método, ou seja, o caminho seguido, é visto como um meio de cognição: mas o método é determinado em todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz” — Vigotski (1927/1996, p. 346) Quando falo aqui de ética não me refiro aos pa‐ drões de conduta que se formalizam em códigos de ética profissional, ou se normatizam em proce‐ dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐ quisa com seres humanos ou animais. Estes são importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao campo dos princípios e valores mais gerais que permitem inclusive formular tais códigos e orien‐ tar as normas de comitês como esses. Valores sem os quais eles se tornam destituídos de sentido ou exercidos apenas pelo motivo de fugir‐se à puni‐ ção. Fazer ou deixar de fazer algo apenas pelo critério de não ser punido em caso contrário é próprio do que poderíamos chamar de uma “ética fraca”. Uma ética substancial, sobretudo, diz res‐ peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐ tivos ao caráter bom ou ruim de suas próprias ações em termos das conseqüências que elas ve‐ nham a ter para nós e para nossos semelhantes. Historicamente, diferentes doutrinas éticas se Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 4 de 40 diferenciam, ademais, em termos do que definem como um “bem” a ser buscado e cuja ausência deve ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de um “bem que se quer” do que de uma “punição da qual fugir”. Desse modo as éticas que tiveram como valor e bem maior a felicidade, foram cha‐ madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐ zer como valor e bem maior se denominaram “hedonistas”. Àquelas que viam na utilidade das ações humanas o bem e ovalor maior, pôde‐se chamar de “pragmatistas”. E assim por diante2. Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐ tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que se constitui então como seu objetivo principal, sua meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐ nido. 1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos3 para um humanismo crítico na abordagem históri‐ co cultural. Certamente reduzir cada doutrina ética a uma única palavra é temerário, tanto quanto cabe lembrar que pode haver duas ou mais doutrinas sob uma só categoria geral e portadoras de traços específicos bem distintos – dependendo, por e‐ xemplo, do que se define como felicidade, tere‐ mos diferentes “eudemonismos”, e assim por diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de modo ilustrativo para articular o conceito de ética com o de um “bem” que se busca, que se almeja, que se tem então como valor maior. Trabalharei aqui com a interpretação de que a ética da obra de Vigotski, pautada em princípios marxistas, e como síntese ainda das demais tradições filosófi‐ cas e culturais às quais este autor se filia (como o espinosismo ou a própria tradição judaica na qual foi educado4), pode ser adjetivada como “huma‐ nista”, lato sensu. Não se trata do mesmo huma‐ nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐ 2 Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975). 3 Por “axiologia” entendo aqui apenas “discurso sistemático sobre os valores”, sobre sua hierarquia, sua apreciação e significação. O adjetivo “axiológico” aqui é utilizado apenas com a acepção de “relativo aos valores éticos” e aos juízos que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa atividade vital e de nossa relação com outras pessoas no interior dela. 4 Sobre a influência do judaísmo no pensamento de Vigotski ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008). pio de tomar o ser humano e a realização de suas potencialidades como um valor que se não for o principal, também não pode deixar de ser consi‐ derado como imprescindível e inalienável ao seu projeto em psicologia. Sobretudo, cabe o desta‐ que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐ alidades humanas só se realizam e se ampliam no âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐ dade, com os outros sociais, não sendo seu foco ético uma realização humana apartada daquela de nossos semelhantes, o outro não é impeditivo de nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das suas principais condições de possibilidade. Pode‐se interpretar que o valor da humanidade como bem a ser preservado e cultivado, do ponto de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a) em primeiro lugar não se traduz como humanismo ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐ seqüentemente, demanda, frente a outras orien‐ tações axiológicas, critérios próprios, como o seu entendimento quanto à superação, à cooperação e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐ mino “humanismo ingênuo”, lembre‐se que pro‐ priamente humanas não são só as denominadas “grandes realizações”, expressões maiores de criação artística, solidariedade ou luta pela vida e o bem comum. Não basta algo ser humano para ser bom. Também são humanos, ausentes noutros animais, muitos atos de crueldade, degradação da natureza e autodestruição da espécie. Tristes e‐ xemplos de ganância, expropriação, intolerância, terrorismo, tortura, genocídio, destruição em massa, dados ora pelo capitalismo fascista ou liberal ora até mesmo por certas orientações no dito “socialismo real”, são, infelizmente, também realizações humanas. Karl Marx dissera ser sua frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano eu considero alheio a mim”. Os males da humanidade fazem parte do que somos, reconhecermo‐nos como humanos é ver bens e males coletivos como algo de que so‐ mos todos potencialmente capazes e, em alguma medida, até mesmo responsáveis. A ética huma‐ nista que nos importa não elevará qualquer ato humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐ centar critérios diferenciadores frente ao huma‐ nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante. Outro aspecto que solicita critérios para definir de qual humanismo se trata, é o de não confundir toda ética que dá à humanidade valor central, Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 5 de 40 com uma visão “liberal” de ser humano. O libera‐ lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐ se social ascendente com o advento do capitalis‐ mo, coloca o “homem no centro” (antropocen‐ trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade Média, da “divindade no centro” (teocentrismo). Mas de que “homem” se tratava? Sem nos alon‐ garmos, apenas recordemos o que diferentes au‐ tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O conceito de homem do liberalismo surgido na Europa, com a modernidade, o advento do capita‐ lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐ légio de certo modelo masculino, branco, euro‐ peu, adulto, heterossexual, letrado, proprietário, entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se apresentar a idéia de tal ser humano constituir valor universal, ao mesmo tempo se impunha às mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐ ra humana um modelo derivado de interesses particulares, próprios de uma classe social restrita. Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009) é sério crítico do humanismo ocidental moderno hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐ ção social questionável tanto quanto o próprio conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu fim próximo. Ademais, o conceito liberal de ho‐ mem é, sobretudo, focado na nossa existência individual e na noção de que nossa liberdade é a priori para cada um de nós, algo que “nasce co‐ nosco”. Trata‐se da ideologia de que se todos so‐ mos naturalmente livres para vender nossa força de trabalho e para prosperar com nossos empre‐ endimentos pessoais, o fracasso ou sucesso de cada um será devido exclusivamente aos seus méritos e defeitos individuais. Se a ética humanista que se insinua na psicologia de Vigotski não se pauta no critério ingênuo do homem como ser essencialmente bom, nem no liberal com foco na sua realização individual, quais critérios acrescentar para o valor dado ao humano nessa abordagem, se ela ainda não advoga a “morte do homem”? Na minha compreensão, há pelo menos três ações próprias ao ser humano às quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza só em tese, mas também busca construir através de sua prática social, às quais podemos, de modo conciso, nomear como: (a) superação, (b) coope‐ ração e (c) emancipação. A noção de superação em Vigotski, entendida como ato e necessidade de superarmo‐nos, de irmos além dos nossos limites atuais, é ressaltada pelo estudioso russo Andrei Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e os valores fundamentais presentes em todo o pensamento de Vigotski” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra de Vigotski nos permite identificar nela uma forte “orientação ao ‘supremo’ no homem ou, para dizê‐lo com palavras de Dostoiévski, ao ‘homem no homem’,à sua organização psíquica e espiritu‐ al, desde o ponto de vista do que pode ser, em geral, o homem e dos caminhos que existem para este estado possível, dos caminhos que abre, em particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Tal orientação da abordagem histórico‐cultural ao que “podemos ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no sentido de mais elevado, mais avançado, implica, em outras palavras, que se vê o humano tanto como ser apto a ir além de seus limites, quanto como o que só se realiza quando se supera. Con‐ tudo, realizarmo‐nos como humanos, é algo que pode ocorrer ou não, em função de dadas condi‐ ções materiais, concretas. Uma das principais condições concretas para a superação humana é a cooperação entre as pessoas. Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição como força motriz da superação humana, a tradi‐ ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser humano só avance quando outro é sobrepujado ou derrotado. Se aquela visão supõe o “homem como lobo do homem”, e o outro como alguém a temer ou subjugar, esta supõe que até para ser‐ mos indivíduos necessitamos a presença e os cui‐ dados de outras pessoas para conosco. Se consi‐ derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote humano” e o tempo que demora para poder ga‐ rantir por conta própria a sua sobrevivência, já teremos noção do quanto necessitamos colabora‐ ção de alguém para virmos a ser nós mesmos e quanto podemos nos fazer necessários para al‐ guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado na própria teoria do desenvolvimento da persona‐ lidade e das funções da linguagem, do signo, se‐ gundo Vigotski. Para ele, a função das primeiras palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐ tiva, "expressar emoções", mas primordialmente indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐ to da linguagem "é, antes de tudo, um pedido de ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐ te, a primeira transposição dos limites da persona‐ lidade, isto é, uma colaboração..." (VIGOTSKI, 1931/2000a, p. 338). Ainda assim, a necessidade Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 6 de 40 de atuar junto a mais alguém para avançar em nossos potenciais não se restringe a aprendermos a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene, a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐ ações em que a superação de nossos limites exige a presença de outrem, mais experiente, que pro‐ porcione mediações necessárias e a quem dirija‐ mos solicitações. Se desejo aprender uma língua estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar alguma arte, devo recorrer a outros. Mas não se restringe a necessidade de cooperação a obter instrução de alguém mais experiente: também cooperamos com nossos pares, aprendemos com amigos, colegas, familiares. E ainda com as crian‐ ças, os mais novos, menos experientes que nós, seja por sua perspicácia, seja por lhes tentarmos ensinar algo – momento talvez em que mais de‐ vemos nos superar. Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos do outro, caberia eticamente lembrarmos que para irmos além do que já somos, o outro também é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas por natureza (humanismo liberal) também não somos altruístas por natureza (humanismo ingê‐ nuo). A cooperação é condição inevitável para o avanço de nossos potenciais, mas isso não signifi‐ ca que toda e qualquer relação social nos permita ir além. De fato, poderíamos ainda acrescentar que nem toda cooperação, sendo para o bem de um dado grupo, necessariamente o é para o bem da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐ do a derrota da democracia, liberais podem coo‐ perar formando cartéis monopolistas, dizendo‐se democratas, etc. Então, nesses casos, a superação pode estar sendo vista não como um constante processo de todos e cada um desafiarem seus próprios limites e tornarem‐se melhores em al‐ gum aspecto de sua personalidade, profissão ou trabalho criativo, mas apenas como uma forma obter mais benefícios pessoais ou corporativos e prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então formas de cooperação em função da restrição do potencial de avanço do outro, e até mesmo em função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐ zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐ lhante, ainda que num plano político bem distinto – o que têm de similar é a cooperação de um cole‐ tivo para a destruição do inimigo como um ganho e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐ junta leva a um aumento de força que tenha em conta uma cooperação mais generalizada e uma superação mais elevada, cabe articular esses dois primeiros critérios para o humanismo próprio à abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e decisivo: a busca da emancipação humana. Em outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐ nutenção da liberdade, no seu sentido mais pro‐ fundo e substancial. Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não é liberal poderá confundir o leitor, mas é preciso que se entenda que se trata justamente disso. O conceito de liberdade é uma construção da huma‐ nidade que veio sofrendo várias alterações na história do ocidente, desde a antiga polis grega ao ideário da Revolução Francesa e desse ao sonho socialista, nunca plenamente realizado, ou à pro‐ posta anarquista auto‐gestionária, também pou‐ cas vezes concretizada. Desse modo, carregando origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje os mais variados. Desde os mais ingênuos aos mais críticos, dos mais idealistas aos mais concre‐ tos, dos mais demagógicos aos mais francos, dos mais racionalistas aos mais apaixonados. Quando digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐ ro‐me ao liberalismo como ideologia política pró‐ pria do conceito europeu dominante desde a as‐ censão da burguesia como classe hegemônica. Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se o já destacado acima: o conceito liberal de liber‐ dade, tanto quando o de humanismo, é pautado fundamentalmente numa concepção individualis‐ ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐ ças individuais são fruto exclusivo da herança ge‐ nético‐molecular, e os méritos das pessoas são tratados como dons, capacidades abstratas, com as quais foram agraciadas independentemente de educação social ou desenvolvimento histórico. Supõe‐se, portanto, que um autor como Vigotski, cujas bases filosófico‐metodológicas estão forte‐ mente articuladas com uma tradição da ontologia do ser social marxista, não teria um conceito libe‐ ral de liberdade ou de emancipação humana. Há dois pontos que cabe destacar no conceito de liberdade/emancipação em Vigotski: (a) trata‐se de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma conquista que se obtém cooperando com alguém e não sozinho. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 7 de 40 Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐ vra “liberdade” em preferência à “emancipação”, nem o contrário. Contudo, entenda‐se que ao falarmos em “liberdade”concebemos o processo de permanentemente obtê‐la, e não como um estado ideal que atingido faz cessar a necessidade de buscá‐lo. E por “emancipação”, entenda‐se o mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto “movimento”. O bebê humano é o mais depen‐ dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐ ce menos preparado, o que demora mais tempo para atingir a forma adulta, o que precisa mais aquisições do ambiente para justamente poder lidar com ele. Sendo assim, é certo que não nas‐ cemos livres, nem autônomos. Portanto, todo um desenvolvimento humano é necessário para con‐ quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐ to e de ação, ou mesmo independência afetiva. Esse curso de desenvolvimento, na concepção de Vigotski, vai “do social ao individual”. A ênfase é distinta da de autores como Freud e Piaget (ver BRUNER, 2005), para quem a criança é um ser individual que só progressivamente se socializa. Na perspectiva da abordagem histórico‐cultural, nascemos já em mundo social, e só podemos nos manter vivos se em contato com outras pessoas. Assim, pela mediação delas, processualmente, vamos nos diferenciando e nos “subjetivando”, tomando consciência de nossa própria existência, constituindo nosso mundo privado e assumindo um lugar específico no mundo público no qual já estávamos situados desde sempre. Desse modo, não há qualquer liberdade a ser constituída que não passe pela relação com os outros. As próprias regras que, desde pequenos, aprendemos com os adultos e com outras crian‐ ças, são condição de possibilidade para o alcance de maior autonomia e liberdade de pensamento, ação e afeto, e não necessariamente impedimen‐ to. As modalidades de relação social que sejam impeditivas da autonomia humana não são consi‐ deradas, como em outras teorias, algo natural e regra inevitável do desenvolvimento psicológico, mas formas historicamente constituídas que po‐ dem predominar ou não. As quais, por sua vez, estão em constante tensão com aquelas relações que proporcionam o avanço para modos mais integrados de compor com o mundo e de obter e exercer maior poder de realização junto a ele. Pensemos apenas no exemplo da brincadeira da criança, na qual para haver um simples jogo são necessárias regras, mas brincar não só nos pode ser aprazível, como também permitir‐nos ir além do que está posto de imediato frente aos nossos olhos, avançando ao distante no tempo ou no espaço no ato da imaginação criadora. Por fim poderíamos, de passagem, destacar que, em Vi‐ gotski, o conceito de liberdade alia‐se ao de von‐ tade, o qual por sua vez se traduz pelos atos hu‐ manos que envolvem uma tomada de decisão, uma escolha. Diante de duas opções o ser humano necessita um ato volitivo para decidir o que have‐ rá de obter (realizar) e o que haverá de perder (deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que ela envolve, está posta nossa possibilidade de superação com relação aos determinantes de cunho estritamente condicionados pelos estímu‐ los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez, passam por um processo de desenvolvimento ao longo de nossas vidas, que é o desenvolvimento de nossa própria vontade ou “volição”. Em seu estudo sobre o “domínio da própria con‐ duta”, Vigotski (1931/2000b) explora mais deta‐ lhadamente esses aspetos. Num dado momento, ele retoma Marx e Engels para destacar que “o livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐ cidade de tomar decisões com conhecimento do assunto” (apud VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 300). Desse modo, as decisões mais livres não seriam aquelas que tão somente se toma com base no impulso, no fazer “como eu quero” ou “tudo que quero”, como dito no senso comum – pelo qual a ideologia liberal perpassa. Até porque uma ação tão somente “por querer”, sem que se intuam os motivos pelos quais se deseja, pode não ser tão livre quanto se imagine. Nota‐se que o conceito de liberdade aliado ao processo de tomada de consciência crítica, isto é, de percepção da dinâ‐ mica contraditória do real, lembra o conceito es‐ pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐ ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐ ção de paixões tristes, de receios, idéias e afetos, que nos imobilizem, por desconhecermos as cau‐ sas reais das coisas. E também por, desse modo, ignorarmos as nossas próprias possibilidades e limitações com relação à transformação ou manu‐ tenção do mundo que aí está. Vigotski assume, embora não explicite em quais termos, a identifi‐ cação de seus ideais éticos com os de Baruch de Espinosa: “Não podemos deixar de assinalar que nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 8 de 40 com as idéias que Espinosa desenvolveu em sua “Ética”” (VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 301). Caberá aprofundar as formulações aqui apresentadas. Mas, articulando indícios e arriscando nossa pró‐ pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário emancipatório em Vigotski com a busca social (na então União Soviética) de desenvolver o chamado “novo homem socialista”. Tal noção implicaria a ampliação das capacidades simbólicas e culturais de cada pessoa num contexto societário livre da expropriação de uma classe por outra (ver VI‐ GOTSKI, 1930/1994). Isto pode ser sintetizado no dito marxiano sobre o movimento de irmos “do reino da necessidade, para o reino da liberdade”. Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐ manidade. 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo que se orienta por um humanismo crítico e o critério ontológico da historicidade como recurso perti‐ nente Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐ tiva histórico‐cultural, tal como lida aqui, implica um movimento de negação dos valores dominan‐ tes, bem poderíamos atribuir a tal humanismo o adjetivo de “crítico”. Contudo, apenas o façamos com o cuidado de não substantivar esse adjetivo, para não criar rótulos que mais sirvam para dis‐ tanciar pessoas com metas comuns do que para aproximá‐las em projetos de cooperação por um bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐ erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐ mo”. Até porque “humanista” já fora desde o iní‐ cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐ neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐ rio fundamental para a psicologia de orientação histórico‐cultural. Disse Karl Marx que: “é certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser der‐ rocado pelo poder material, mas também a teoria se transforma em poder material logo que se apo‐ dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas quando argumenta ad hominem, e argumenta ad hominem quando se torna radical: ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (apud CHA‐ SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se argumenta “ad hominem”, não aqui no sentido vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐ lificando as características pessoais do outro para assim destituir de valor o seu argumento sem, contudo, mostrar em que tal argumento é falho – recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐ listas, políticose pseudo‐intelectuais. Mas sim no sentido mais profundo de argumentar “junto ao homem”, interpelando‐o em sua existência con‐ creta, pedindo‐lhe coerência entre palavras e vi‐ vências, falando‐lhe de coisas que lhe digam res‐ peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”, solicitando‐lhe responsabilidade e tomada de atitude. Evidentemente, para virmos um dia a argumentar assim precisaremos voltar o mesmo recurso para nós mesmos – do contrário, na ética do discurso poderá predominar a ação estratégica sobre a comunicativa5, nos termos de Habermas (1989). De todo modo, se no exemplo de Puzirei o “ho‐ mem no homem” é o que se extrai para o mais alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐ do, em suas raízes, ou seja, em nós mesmos – animais simbólicos, sociais e históricos. Sendo assim, a realização da emancipação, como con‐ quista permanente de maior liberdade será social não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐ cionar com outras pessoas para desenvolver sua capacidade de escolher, decidir voluntariamente, mas também por algo mais. O processo social de emancipação humana não é relativo só à emanci‐ pação de cada um, mas à de todo o conjunto da sociedade, na construção de práticas democráti‐ cas de convívio e de gestão do que é de interesse público. Sabemos, contudo, que em nossa socie‐ dade, as restrições são fortíssimas. Nossa demo‐ cracia é frágil, nossas instituições não são confiá‐ veis. E a ideologia de uma “liberdade” em termos liberais, de jargões como “cada um para si” ou “leve vantagem você também”, é hegemônica. Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto a agir ou não agir, com relação a esse estado de coisas. Se Marx fala do confronto entre arma da crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus politicus” também recorre a termos bélicos para 5 Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente tendo como objetivo a busca da verdade. Ainda segundo analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam de forma pura e ideal, mas na prática logram influenciar‐se mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou seja, de contradição inter‐constitutiva. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 9 de 40 dizer da liberdade humana: “se numa Cidade os cidadãos não tomam das armas porque estão aterrados pelo medo, não se pode dizer que aí exista paz e sim mera ausência de guerra. A paz não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐ nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma Cidade onde a paz é efeito da inércia dos súditos tangidos como um rebanho e feitos apenas para servir merece antes o nome de solidão do que de Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56). FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS (1) Aleksis Nikolaevitch Leontiev (1903‐1979); (2) Lidia Il’initchna Bojovitch (1908‐1981); (3) Aleksandr Romanovitch Luria (1902‐1977); (4) Serguei Leo‐ nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984). Não é necessário nos alongarmos a‐ qui no diagnósti‐ co da sociedade contemporânea, dita “pós‐moder‐ na”, também de‐ nominada “neoli‐ iberal”. Trata‐se de conteúdo cor‐ rente nas refle‐ xões críticas sobre políticas públicas e as que dedicam‐se a algum tipo de análise das insti‐ tuições atuais. Contudo, fica pos‐ ta uma tensão en‐ tre os valores que são o fundamento da ética da abordagem históri‐ co‐cultural, tal como a lemos, e os valores privile‐ giados no mundo contemporâneo, de modo geral, mais drasticamente em países periféricos e subal‐ ternos como o Brasil. Como agir de acordo com valores como os da psicologia vigotskiana, num país em que tais valores hegemonicamente são tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐ do não inexistentes ou totalmente ignorados? De fato, o marcador semântico para nós importante nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que é “hegemônico” é predominante, o que mais se destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐ rias, mas não é o “absoluto”, não prevalece de modo homogêneo, não existe sem fissuras – as quais podem surgir como contestações organiza‐ das, como desobediência civil, ou ainda como fraturas e convulsões de cunho retrógrado. A so‐ ciedade na qual foi criada a teoria histórico‐ cultural não existe mais, foi derrotada na chamada “Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o tempo que existiu não chegou a atingir todo o projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja indício justo disso. Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐ res soviéticos como Vigotski, Luria, Leontiev, Ru‐ binstein, Elkonin e Bojovitch (ver figura 1) vêm cobrar sentido, o ser humano nem sempre é o valor central e, quando sim, geralmente o é em termos liberais ou ingênuos. Nossa atitude não pode ser muito mais que a de distanciamento crítico. Como disse meu colega o pro‐ fessor Luiz Lastória (com. pessoal, 1998), parafrasean‐ do Adorno: “Se não há cura, aprofunda o diagnóstico”. Pro‐ postas apressadas de “cura”, sem o conhecimento real do que gera os “sintomas” pode implicar fatores etiológicos hiatro‐ gênicos, isto é, fa‐ tores patológicos gerados pela pró‐ pria ação do trata‐ mento. O que nos remete também ao alerta presente em Hipócra‐ tes, para quem a missão do profissional da saúde é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐ temente, estamos usando termos médicos de modo metafórico, não é esse nosso papel social. Mas trata‐se de uma analogia que pode ajudar‐ nos a refletir. Pode‐se a ela adicionar que “diag‐ nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐ sado. Diagnosticar é, na raiz grega, conhecer “a‐ travessando” a realidade, ou seja, desde o pro‐ fundo ao elevado, não se trata do sentido vulgar da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐ rio compromisso, com o ato de conhecer e com aquele que se deseja conhecer, na relação com o qual passaremos também a nos conhecer melhor, posto que estamos falando de um conjunto social do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não são as pessoas com quem trabalhamos objeto de piedade ou caridade, mas sujeitos co‐autores do mesmo processo histórico em que estamos inseri‐ dos e que (re)produzimos diariamente. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 10 de 40 Desse modo, em suma, cabe destacar que aos princípios éticos aqui insinuados, comentados, acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐ te abordá‐los com mais visibilidade. Trata‐se do princípio da historicidade dos valores. Se nossas relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐ lizar o mundo mediante a linguagem e de agir sobre ele mediante o uso de instrumentos, se constituem historicamente, o mesmo se aplica aos nossos valores morais, isto é, à nossa ética. Nos‐ sos valores se constituem historicamente, e tam‐ bém só historicamente podem se consolidarou se enfraquecerem dando lugar a outros. A história implica contradições e lutas entre projetos políti‐ cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐ ção a realização e/ou transformação dos nossos valores pode ocorrer. A busca de cooperação em função de superação constante, como conquista de uma mais potente emancipação humana, cons‐ titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐ vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas é uma interpelação que está posta. Trabalhar ins‐ tigados por tal desafio é como assumir um dito que ouvi de Paulo Freire em Curitiba, em 12 de junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer hoje para que o que não é possível fazer hoje seja feito amanhã”. Os limites do possível, segundo Vigotski, se ampliam na relação com o outro6 (ver VIGOTSKI, 1935/1989)7, tanto quanto podem se estreitar dependendo de como nos relacionemos com esse outro e de quem é ele ou pode ser para nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar, se possível, pelas relações mais potencializadoras. Descobrir quando é possível ou não, no mesmo ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio exercício da ética. 1.3 O método construtivo e a psicologia como constitutiva da vida humana Por fim, tendo já falado sobre o critério metodo‐ lógico da crítica e o ontológico da historicidade, como suportes para a ética, coloquemos também 6 Sobre a teorização da superação dos limites no desenvolvi‐ mento humano ontogenético e microgenético, mediante o conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29. 7 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a data de quando o trabalho teria sido concluído. Trata‐se de uma publicação póstuma, já que Vigotski morreu em 11 de junho de 1934. o critério do chamado “método construtivo”, tal como concebido por Vigotski, pois elucida um pouco o já falado sobre o “aprofundamento do diagnóstico”, como um ato no qual nos envolve‐ mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma, diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐ tência social e experiência histórica, no papel de psicólogos que não se desvincula dos nossos de‐ mais lugares simbólicos. Vejo esse momento da discussão com um ponto de conexão importante entre os valores gerais e a proposta de atuação do psicólogo que se orienta numa perspectiva histó‐ rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão já proposta anteriormente (DELARI JR., 2000), na qual me deparava com a trama de inter‐ constituição das linguagens teóricas que assumi‐ mos com a constituição de nossa própria subjeti‐ vidade, consciência e personalidade. De fato, o vínculo profundo dos valores éticos com a prática social e então com a prática profissional com um momento importante dela, em psicologia, está associado ao problema das relações entre o “abs‐ trato” e o “concreto”. Para o marxismo não há como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐ ção, porque o concreto não é mais só o “empíri‐ co”, ou seja, a experiência pela experiência. Para entendermos determinações concretas da reali‐ dade é preciso olhar para além do que se apresen‐ ta diretamente aos sentidos, ver o que não se mostra, ouvir o que não foi dito, conectar, rela‐ cionar, imaginar, interpretar, logo “abstrair”. Nes‐ se sentido entende‐se a proposição de Marx de que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma meta elevada, não só ponto de partida eventual. Mas para alcançarmos o concreto, a abstração não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a vida social, com as necessidades e lutas de cada sociedade. Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐ ria ao cientista, ao psicólogo crítico, também é certo que nem sempre conseguimos ascender ao concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐ boração abstrata da psicologia concreta.” (1929/ 2000, p. 35) seria como uma “autocrítica” que “não apenas mostra a liberdade e espírito crítico com que ele avaliava sua própria obra, mas tam‐ bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐ samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a ‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐ Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 11 de 40 cologia histórico‐cultural. Esta tendência poderia significar uma superação radical do ‘academicis‐ mo’ na psicologia tradicional” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal projeto para o futuro, visto do tempo de Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora as condições da psicologia atual não sejam muito melhores que as do período em que a perspectiva histórico‐cultural surgiu. Trata‐se de um projeto que solicita: “um movimento em direção a um tipo completamente novo de investigação, que, em virtude de alguns dos aspectos fundamentais do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em desenvolvimento, e de exigências fundamentais (derivadas deste último) de seus métodos, a sa‐ ber, externalização e análise, deve, ele próprio, ser implementado dentro do quadro organizado de alguma prática psicotécnica, servindo como um órgão necessário que torna possível a projeção, realização, reprodução e desenvolvimento dirigido dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐ cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐ lizado na história subseqüente da psicologia.” (PUZIREI, 1989a, p. 76) A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐ da, assim, a uma mudança radical em nossa pró‐ pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida e conduzida como um componente da própria constituição dos fenômenos ou processos que ela mesma estuda, como ciência, e com os quais ela atua, como profissão. Trata‐se de algo sério, por evidenciar nossa grande responsabilidade. Ao mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐ tido de ser coerente com o que a própria aborda‐ gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐ ção do humano, como ser social, simbólico e his‐ tórico. Coerente com seus conceitos psicológicos (teóricos) e metodológicos (meta‐teóricos). Psico‐ lógicos como os de que “toda a palavra é já uma teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de que a consciência se constitui justamente median‐ te o significado da palavra. Metodológicos como o de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐ va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐ co da sua existência social e histórica, é possível deduzirmos que as palavras de uma abordagem passam, de algum modo, a ser constitutivas das pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐ sam a trabalhar. Na medida em que nosso traba‐ lho é também e sempre um trabalho com os ou‐ tros, os nossos valores, os valores da abordagem que assumimos justamente por serem condizen‐ tes com os nossos ou por sentirmos que podem potencializá‐los, passarão a interagir com os valo‐ res de nossos interlocutores, as pessoas com quem trabalhamos, tensionando com eles, numa relação em que nos enriquecemos mutuamente e nos refazemos constantemente, se para tanto houver disposição. Sobre o processo pelo qual nosso trabalho com‐ põe‐se com nossa própriapersonalidade e a da‐ queles com quem nele dialogamos, deixo uma última sugestão de reflexão sobre o chamado “método construtivo” em pesquisa psicológica. Vejo‐o como pertinente também para a prática profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐ cava, na citação acima, sobre a articulação entre método de investigação e “prática psicotécnica”8. Vigotski diz que “um método construtivo implica duas coisas: (1) ele estuda antes construções do que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐ trói um processo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 55). “Construções” aqui está como sinônimo de “pro‐ cessos constituídos culturalmente”, aqueles que não são dados pela natureza em seu estado pri‐ meiro, mas emergem nela, pela transformação dela mediante a ação humana, planejada, dirigida a metas, visando atender nossas necessidades básicas e as que criamos socialmente, para além delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐ co‐culturais, símbolos, instrumentos, modos de usá‐los, relações humanas, papéis sociais, experi‐ ências partilhadas, modos de organizar nossas rotinas, procedimentos institucionais ou a contes‐ tação deles, enfim. Criações que, ao serem reali‐ zadas por nós, realizam ao mesmo tempo o que somos. Trata‐se então de um método de investi‐ gação, e porque não dizer de trabalho também, no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐ bém os construímos culturalmente, com nossos atos, nossa linguagem e nossa sensibilidade. Tal 8 Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐ técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐ KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐ a”, como se tornou comum no nosso contexto cultural. Ao contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente com relação à aplicação prática da psicologia frente às de‐ mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no mundo do trabalho, etc. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 12 de 40 concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐ rei de que a perspectiva iniciada por Vigotski se orienta para uma superação do academicismo em psicologia. Trata‐se justamente de uma psicologia que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐ lidade de seu trabalho, mas a toca “de mãos nu‐ as”, assumindo com ela um compromisso de com‐ posição partilhada. Dessa maneira os valores de que falamos aqui estão implicados na ação e no método, orientado às metas que eles definem. E abre‐se para nós o convite para produzir uma prática profissional do psicólogo que pronuncia uma “palavra que realmente significa e é respon‐ sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196). 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histórico‐cultural “Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐ cam o problema da psicologia geral como um problema de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não partem dos filósofos (...) nem dos psicólogos teóricos, mas dos psicólogos práticos, que estudam aspectos concretos da psicologia aplicada (...)” — Vigotski (1927/1996, p. 203) O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski, tanto quanto na tradição russo‐soviética como um todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐ logia geral” com o qual comumente lidamos nas faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma série de conteúdos introdutórios superficiais, não necessariamente conectados numa lógica teórica mais abrangente que lhes confira coerência. As‐ sim, na psicologia acadêmica que conhecemos, “psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐ mico por sobre um território desconhecido, do que como área científica relevante para o nosso trabalho do profissional. Na psicologia soviética o significado da palavra é distinto. Psicologia geral é o campo da ciência psicológica que trata de seus fundamentos, de seus princípios articuladores mais profundos, das categorias meta‐teóricas que visam organizar a discussão, como: o “objeto de estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de análise” necessária para e investigação; e o “modo de proceder” a própria análise, ligado às interven‐ ções sobre a realidade que ele comporta. Com inspiração nessa orientação, como eu já disse em outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐ ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐ tório” ou “abreviado” sobre cada aspecto da vi‐ vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas o que implica uma visão articulada e profunda do conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐ tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐ gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐ fundamento desses princípios se desenvolverá com o nosso estudo posterior, tendo em vista a prática social do psicólogo e os princípios éticos que a orientam. Organizei a exposição aqui se‐ gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐ de psicofísica; (2.2) Princípio da determinação da consciência pela existência social; (2.3) Princípio da consciência como psiquismo propriamente humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐ ciência mediante unidades; (2.5) Princípio da compreensão do psiquismo humano mediante sua gênese. 2.1 Princípio da unidade psicofísica Segundo Serguei Rubinstein “O princípio da uni‐ dade psicofísica é o princípio mais importante da psicologia soviética” (1972, p. 40). Estamos habi‐ tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐ tos fisiológicos do funcionamento mental humano ou animal. Contudo, aqui o significado do termo posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐ fico e de orientação genérica. Lembremos que “psikhe” para os antigos gregos era o “sopro vi‐ tal”, nosso “impulso de vida”, “aquilo que nos move”, e depois para alguns também “alma” ou “mente”, e que “physis” denotava a natureza, todo o mundo natural. Intuiremos então que uma unidade entre o psíquico e o físico é a uma inte‐ gração entre o que chamamos de funções mentais e a natureza como um todo. Dito de outro modo, nada na psique humana é considerado, nessa a‐ bordagem, como “sobrenatural”, “sobre‐huma‐ no”, substancialmente distinto do que compõe o âmbito tangível e inteligível do real. No que a perspectiva histórico‐cultural vai numa direção diferente de grande parte das psicologias surgidas no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do século XX, as quais trazem fortes traços do dua‐ lismo mente e corpo, psíquico e físico, herança platonista e cartesiana. O mesmo monismo, des‐ tacado por Rubinstein, aparece também em Vi‐ gotski, para quem “a psique não aparece isolada do mundo ou dos processos do organismo nem por um milésimo de segundo” (1926/1991, p. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 13 de 40 150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐ posição, pois já entrou para o senso comum aca‐ dêmico o conceito de que “o homem não é um ser biológico, mas sim social, cultural, histórico”. Tal oposição, embora esteja correta no seu sentido mais geral, não pode ser tomada ao pé da letra. Posto quesem a materialidade corporal, sem nos‐ sos órgãos vitais, sem nossa existência material, também não há ser humano algum. O que a frase acima significaria, se apresentada de um modo mais criterioso, é que “a constituição biológica do homem é de tal ordem que ela não basta a si mesma e exige dele que disponha de recursos para além de seus traços orgânicos hereditários”. O animal Homo sapiens precisa recorrer a outros de sua espécie para realizar a sua existência, para fazê‐lo utiliza‐se de mediações próprias a uma dada cultura, criadas, transmitidas e desenvolvi‐ das historicamente. O bebê humano não desen‐ volve funções psíquicas superiores sem a media‐ ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐ tos. Mas também, por mais meios culturais que déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐ co para isso. O princípio da unidade psicofísica marca filosofi‐ camente que somos uma totalidade psíquica e física, mental e corporal, biológica e cultural. E esses pares não jogam seus papéis complementa‐ res como “substâncias” opostas de modo antagô‐ nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só existem um em relação ao outro, contradizendo‐ se e compondo‐se mutuamente, na medida em que juntos formam uma só realidade. Trata‐se, assim, de aspectos, momentos, modos de ser, de uma mesma substância, uma mesma unidade dinâmica, extremamente complexa e contraditória que é a realidade material – a totalidade da exis‐ tência em suas múltipas determinações e diversos planos de organização. É interessante, nesse sen‐ tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao valorizar o papel do corpo: “até hoje ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem que seria impossível deduzir apenas das leis da Natureza, uma vez considerada exclusivamente como corpórea, as causas das edificações arquite‐ tônicas, da pintura e coisas afins que só a arte humana produz, e que o corpo humano não con‐ seguiria construir nenhum templo se não estivesse determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐ trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o corpo e o que concluir do simples exame de sua natureza” (apud VIGOTSKI 1925/1999, p. IX). É difícil para nós, habituados ao dualismo platônico e cartesiano presente na formação do psicólogo, concebermos isto: como pode um corpo produzir obras de arte? Como pode um ser humano produ‐ zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐ ma” que o guie? Mas entendamos apenas o se‐ guinte: não se trata de que autor nos veja criando realidades culturais como se fôssemos “autôma‐ tos”, sem imaginar, conceber, projetar, sem o ato de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo monismo de Espinosa entender que “o corpo age, pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐ pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐ bém o sentir, das emoções mais básicas às mais sutis, tais quais as de cunho estético. Não preci‐ samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐ tural, insondável, inexplicável, incompreensível, para que nos reconhecermos capazes de realiza‐ ções culturais diversas, no interior das leis dialéti‐ cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐ lavra, da qual não estamos isolados “nem por um milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o posterior quanto às relações entre consciência e existência, sobretudo entendida como existência social. 2.2 Princípio da determinação da consciência pela existência social No tópico anterior destacamos que não estamos alienados da natureza, não somos seres sobrena‐ turais, supra‐ordenados, reinando sobre toda a criação. Precisamos pertencer à natureza para nela poder viver e virmos a entender que estamos vivos, que morreremos. Fenômenos físicos são necessários para existir vida na Terra, fenômenos biológicos são constitutivos da vida humana, se não por inúmeras condições orgânicas, que seja tão somente pelo falto dela ser ainda “vida” – “bios” (βίος ). Mas a isto cabe acrescentar que o nosso modo de realizar um momento da realidade material da qual fazemos parte tem sua especifi‐ cidade, sua singularidade, seu modo particular de ser e devir. Considerando a formação social da consciência como tema fundamental para a psico‐ logia histórico‐cultural, podemos articular que não apenas somos parte viva da natureza, como tam‐ bém nosso modo específico, distintivo de realizar nosso lugar dentro dela, ao mesmo tempo, nos Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 14 de 40 diferencia das demais formas de seres naturais. Um traço marcante para tal distinção está no fato de que o homem é, como diz Aristóteles, “zoon politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐ ção biológica nos dá bases para que isso ocorra: por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que para se desenvolver e garantir sua própria exis‐ tência demanda mais alguém com quem interagir por tempo prolongado; por outro, pela grande complexidade de nosso aparato neurofuncional, que nos permite a utilização complexa de instru‐ mentos e signos e nos demanda que eles sejam utilizados para que nosso próprio cérebro se de‐ senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐ ção sistêmica. Sem entrarmos no mérito da dis‐ cussão evolutiva sobre como essas características vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐ nos, o fato é que somos animais para os quais a existência sobre o planeta não é possível sem as relações sociais. As quais por sua vez são media‐ das pela linguagem, produto da própria prática humana e que se materializa na cultura e se transmite e se transforma de geração para gera‐ ção. Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐ rio dentro do império”, como critica Espinosa (1979), mas um momento singular de realização dela, o pensamento marxista indica assim uma relação de determinação da consciência pela vida, entendida como vida social. No seu texto “A cons‐ ciência como problema da psicologia do compor‐ tamento” Vigotski diz que “a existência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37)9. Ele está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia alemã”: “Moral, religião, metafísica e todo o res‐ tante da ideologia e suas formas correspondentes de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐ to de sua independência. Elas não têm história nem evolução; mas os homens, desenvolvendo sua produção material e seu intercâmbio material, alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐ 9 Cito aqui versão russa apenas porque nessa passagem, a edição brasileira (VIGOTSKI, 1925/1996) contém um erro também presente na edição espanhola (VIGOTSKI, 1925/ 1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a experiência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/1996, p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI, 1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐ ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie) determina a consciência”. samento e os produtos deste. A vida não é deter‐ minada pela consciência, mas esta pela vida. No primeiro método de abordagem, o ponto de par‐ tida é a consciência tomada como o indivíduo vivo; no segundo, são os própriosindivíduos vivos reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐ cia é considerada unicamente como consciência deles" (MARX & ENGELS, 1983, p. 172 – grifo meu). Os aspectos ideológicos, culturais, não teri‐ am história autônoma, posto que, são produções da existência humana, não existem independen‐ temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐ cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐ te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que poderíamos acrescentar “o sentimento é o ho‐ mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”, são movimentos nossos, são processos e não en‐ tidades com vida própria. Quem toma consciência, sente e age é o homem. Mas quem é homem? Nessa abordagem, o homem, como já foi dito é um “ser social”. Digamos que só nesses termos podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o que ele é”. Dizer que o homem é um ser social requer ainda algumas especificações, pois há muitos sentidos e muitos modos de existir do social. Essa discussão, como as demais já levantadas, não se esgota aqui, mas para uma organização introdutória eu gosta‐ ria de destacar apenas cinco planos articulados e interdependentes da existência social com os quais podemos trabalhar em psicologia histórico‐ cultural, embora outros possam ser acrescentados e alguns deles tenham sido mais abordados que os demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐ so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐ ais institucionais; (c) relações sociais grupais; (d) relações sociais intersubjetivas; (e) relações soci‐ ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura de sua personalidade. Nas obras de Vigotski que tive oportunidade de ler, desses cinco pontos os três que mais se destacam e se explicitam são as relações sociais de classe, as intersubjetivas e aquelas no plano do indivíduo em sua personali‐ dade social. Pensar na articulação com esses pla‐ nos o papel dos grupos e das instituições é um desafio importante e atual, de todo modo isso não poderá se dar, nessa abordagem, sem integração com os demais processos, aos quais nos detere‐ mos aqui. Em primeiro lugar a abordagem de Vi‐ gotski a relação entre a formação e/ou desenvol‐ vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior GETHC ‐ Grupo de Estudos em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 15 de 40 uma dada classe social não é mecanicista. Se a pertença de cada um de nós a uma classe nos deixa as marcas das práticas e da ideologia pró‐ prias a ela, o que cada ser humano particular in‐ ternaliza não são só os traços da formação coleti‐ va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐ ções pertinentes à luta entre classes no seio da sociedade como um todo. Vigotski, no seu texto “A transformação socialista do homem”, de 1930, entende que “do mesmo modo pelo qual a vida de uma sociedade não re‐ presenta um todo singular e uniforme, e a socie‐ dade é subdividida em diferentes classes, assim também, durante um dado período histórico, não se pode dizer que a composição das personalida‐ des humanas represente algo homogêneo e uni‐ forme, e a psicologia deve levar em consideração o fato básico de que a tese geral que foi formula‐ da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão direta: confirmar o caráter de classe, a natureza de classe e as distinções de classe que são respon‐ sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas que são encontradas em diferentes sistemas sociais, têm sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐ ra da psicologia humana naquele período históri‐ co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐ ções sociais heterogêneas a formação da persona‐ lidade também não será homogênea, assim para compreender os conflitos próprios à nossa consti‐ tuição psíquica, cabe contextualizá‐los no âmbito dos conflitos sociais mais amplos que organizam as condições de nossa existência, e dos quais par‐ ticipamos inevitavelmente, como dirigentes ou subalternos, como opressores ou oprimidos, como expropriadores ou expropriados, na vivência clara de cada papel desses ou na mescla de posições concomitantes ou alternadas entre um e outro, de modo consciente ou não consciente. A sociedade é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐ cesso pelo qual se dão as transições recíprocas entre relações sociais de classe e relações sociais de um homem singular consigo mesmo. A relação entre indivíduo e sociedade não é de simples có‐ pia ou repetição mecânica. Há transformações de um plano a outro. Isso coloca questões para a psicologia. Pois não basta saber que determinada pessoa é de classe trabalhadora ou burguesa para disso deduzir sua personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar, os significados e sentidos que atribui para o mun‐ do, para os outros e para si. Senão vejamos o que diz também Vigotski em outro texto: “Queremos comparar o operário com o burguês. O fato não consiste como pensava W. Sombart, em que para o burguês o principal seja a avareza, em que tenha havido uma seleção biológica de pessoas avaras para as quais o fundamental é a mesquinhez e a acumulação. Admito que existem muitos operá‐ rios mais avaros que os burgueses. A essência da questão não consiste em que o papel social se deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐ se uma série de conexões caracterológicas. Os traços sociais e de classe formam‐se no homem a partir de sistemas interiorizados, que nada mais são do que os sistemas e relações sociais entre pessoas trasladados para a personalidade” (VI‐ GOTSKI, 1930/1996, p. 133). Não há um tipo de personalidade hereditariamente dado que tenda a ser pertencente a uma classe ou outra por suas aptidões inatas, isso é o mais óbvio, embora não menos verdadeiro. Mas também, e tão importan‐ te quanto, cabe destacar que não há relação iso‐ mórfica entre a pertença de classe e a formação do caráter e personalidade de cada um. Isso é mediado por relações complexas no seio de cada interação intersubjetiva que vamos estabelecendo em meio aos grupos de que fazemos parte, na família, na escola, nas práticas religiosas, nos cír‐ culos de amizade, nas relações de trabalho, e as‐ sim por diante – nos quais podemos conviver com classes distintas e apreender junto a elas também distintos modos de agir, sentir e significar, não sempre de todo condizentes com os interesses históricos de nossa própria classe social. Portanto, ao critério de relações sociais de classe, cabe a‐ crescentar na perspectiva da teoria histórico‐ cultural ainda o critério das relações intersubjeti‐ vas, mediante as quais, modos de conversão das práticas sociais públicas em práticas simbólicas privadas são constituídos e postos em movimento. Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐ ções importantes da psicologia de Vigotski podem ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar o conceito de relações sociais para além do de “relações sociais de classe”, mesmo este sendo fundamental. Trata‐se de: (a) sua formulação so‐ bre a “lei genética geral do desenvolvimento”; e (b) sua formulação sobre a “psicologia do drama de papéis sociais”. A lei genética geral do desen‐ Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior
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