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1 O MÍNIMO EXISTENCIAL COMO LIMITE À APLICAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS THE “MINIMUM FOR EXISTANCE” AS A LIMIT TO THE APPLICATION OF THE “RESERVE OF THE POSSIBILITIES” THEORY IN THE CONTEXT OF FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS. Juliana Tiemi Maruyama Matsuda Advogada da União Helida Maria Pereira Advogada da União Luciana Camila de Souza Advogada da União RESUMO: O presente trabalho analisa a relação entre eficácia dos direitos sociais, reserva do possível e mínimo existencial. Para isso, apresenta as teorias interna e externa, construídas acerca da legitimidade das restrições aos direitos fundamentais sociais, ressaltando a necessidade de os limites serem submetidos ao controle de constitucionalidade e proporcionalidade. Especial atenção é conferida a uma dessas restrições, qual seja, a reserva do possível, mostrando-se seus antecedentes históricos e a visão das teorias interna e externa a respeito. Em um segundo momento, passa a analisar a garantia do conteúdo essencial, inclusive as teorias acerca do seu objeto (teorias objetiva e subjetiva) e do seu valor (teorias absoluta e relativa). Em seguida, aborda o conceito do mínimo existencial no contexto dos direitos fundamentais sociais, e relaciona-o com a garantia do conteúdo essencial, concluindo que ambos exercem a importante função de servir como parâmetro para a aferição da proporcionalidade das restrições que o Estado, sob o argumento da reserva do possível, impõe à eficácia dos direitos fundamentais sociais. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais sociais. Eficácia. Restrições. Reserva do possível. Garantia do conteúdo essencial. Mínimo existencial. Proporcionalidade. ABSTRACT: This study presents an analysis of the relationship between effectiveness of social rights, the “under reserve of the possibilities” clause and the “minimum for existance”. For that reason, it presents the internal and external theories, about the legitimacy of restrictions on fundamental social rights, highlighting that the limits have to be submitted to the control of constitutionality and proportionality. Special attention is given to one of this restrictions, which is the “under reserve of the possibilities” clause, showing its historical background and what the view of the internal and external theories about it. In a second step, it analyzes the “security of essential content”, including theories about its object (objective and subjective theories) and its value (absolute and relative theories). Then, deals with the concept of the “minimum for existance” in the context of fundamental social rights, and relates it to the “security of essential content”, concluding that both have the important function of serving as a parameter for measuring the proportionality of the restrictions that the State, under the argument of the “reserve of the possibilities”, imposes to the effectiveness of fundamental social rights. KEYWORDS: Fundamental social rights. Effectiveness. Restrictions. Under reserve of the possibilities clause. Security of essential content. Minimum for existance. Proportionality. 2 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 Limites aos direitos fundamentais; 2Reserva do possível; 2.1 Antecedentes históricos; 2.2 Reserva do possível sob o ponto de vista das teorias interna e externa; 3 Garantia do núcleo essencial;3.1 Objeto de proteção do núcleo essencial; 3.1.1 Teoria objetiva; 3.1.2 Teoria subjetiva; 3.2 Valor de proteção do núcleo essencial; 3.2.1 Teoria absoluta; 3.2.2 Teoria relativa; 4 O mínimo existencial no contexto dos direitos fundamentais sociais; 5 Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 elencou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (v. artigo1º, inciso III, da CF), além de indicar, no artigo 3º, seus objetivos fundamentais, in verbis: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Outrossim, incluiu os direitos sociais (como o direito à saúde, à educação, à moradia e à assistência social) na categoria dos direitos fundamentais (Título II da CF), os quais são dotados de eficácia imediata, nos termos do artigo 5º, § 1º1, da CF. Todos esses fatores foram importantes ferramentas para a concretização dos aludidos fundamentos e objetivos da nossa República Federativa. A categoria dos direitos sociais, classificada pela doutrina como a 2ª geração dos direitos fundamentais (em oposição aos de 1ª geração, relacionados com a liberdade individual frente ao Estado), demanda atuações positivas por parte do Estado, o que, por sua vez, exige o dispêndio de recursos. Como estes são finitos, acabam se tornando um limite à concretização dos direitos sociais. Ao mesmo tempo, a conscientização da população acerca de seus direitos e o fortalecimento das instituições destinadas a assegurá-los (como, por exemplo, o Ministério Público) tornaram comum o ajuizamento de ações judiciais nas quais se demandam prestações materiais a serem oferecidas pelo Estado, com o objetivo de efetivar os direitos sociais previstos no texto constitucional. Nesse contexto, passou-se a fazer alusão, no Brasil, ao argumento da reserva do possível, o qual se originou na jurisprudência alemã, na década de 1970. Tal conceito introduziu, nas discussões acerca do dever do Estado de implementar os direitos sociais, a preocupação com a sua disponibilidade orçamentária. De um lado, a teoria da reserva do possível vem resolver um problema real, correspondente ao fato de que os recursos financeiros do Estado são finitos; de outro lado, se interpretada à risca, equivale ao esvaziamento da efetividade dos direitos sociais, contrariando o § 1º do artigo 5º do texto constitucional, que determina a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais. A fim de harmonizar esses dois aspectos, a doutrina criou a garantia do núcleo essencial, para relativizar a teoria da reserva do possível. Em linhas gerais, essa garantia representaria 1 Artigo 5º § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 3 um conteúdo mínimo dos direitos sociais que não poderia sofrer restrições por parte do Estado, nem sob o argumento da indisponibilidade financeira. Apesar de a legislação brasileira não definir o que seja o conteúdo essencial, em nossa opinião, o princípio da dignidade humana oferece parâmetros seguros para eleger quais direitos podem integrar tal conceito. Nesses termos, o conteúdo essencial seria a porção do direito fundamental que não poderia ser suprimida nem restringida, sob pena de impossibilitar ao seu titular o desfrute de uma vida com dignidade. Essa foi uma breve introdução ao tema versado no presente trabalho, que inicia tratando dos limites aos direitos fundamentais e das teorias a respeito, apresentando a reserva do possível como um desses limites. Em seguida, aborda-se o assunto da reserva do possível, seus antecedentes históricos e as teorias interna e externa. Depois, faz-se a relação entre reserva do possível e a garantia do núcleo essencial, explicando-se que esta última se constitui em importante parâmetro para assegurar a observância do princípio da proporcionalidade na restrição aos direitos fundamentais.O trabalho aborda, ainda, as teorias acerca do objeto e valor de proteção da garantia do núcleo essencial. Na sequência, apresentam-se noções preliminares acerca do mínimo existencial, situando-o no contexto dos direitos fundamentais sociais, e questiona-se acerca da possibilidade de identificá-lo com o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais. Por fim, faz-se referência à função que esse conceito desempenha como parâmetro para aferição da proporcionalidade das restrições que o Estado impõe aos direitos sociais, sob o argumento da reserva do possível. Como se vê, o tema do presente trabalho é a relação entre a eficácia dos direitos fundamentais, a reserva do possível e o mínimo existencial. Para o seu desenvolvimento, foram utilizadas pesquisas doutrinárias e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O seu objetivo é demonstrar que é possível, através da garantia do mínimo existencial, compatibilizar a efetividade dos direitos sociais com a teoria da reserva do possível. 1 - LIMITES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O tema a ser abordado no presente trabalho tem relação com as situações de restrição aos direitos fundamentais, razão pela qual se afigura importante apresentar as teorias construídas pela doutrina acerca da legitimidade de tais restrições. A teoria interna preconiza a inexistência de restrições legítimas a direitos fundamentais, considerando como “limites conceituais” ou “limites imanentes” as eventuais delimitações traçadas pela norma jurídica a esses direitos. Assim, se uma determinada ação ofende valores não protegidos pela norma, tal ação não poderá ser tachada de “restrição”, já que respeitou os limites imanentes do direito fundamental. Se ultrapassar esses limites, não será simplesmente uma restrição a direito fundamental, mas sim, violação. Um dos principais representantes dessa corrente doutrinária é o jurista alemão Friedrich Müller. Ana Carolina Lopes Olsen2 critica a aludida teoria, sob o argumento de que ela pode propiciar abusos dos poderes constituídos frente aos direitos fundamentais, já que aqueles, sob o pretexto de traçar os limites conceituais da norma jusfundamental, podem adequá-la aos seus interesses. Já a teoria externa admite a existência de restrições legítimas a direitos fundamentais, derivadas da necessidade de compatibilizar os direitos de todos os indivíduos. Essas restrições podem ser normas jurídicas ou atos jurídicos, e estão submetidas ao controle dos poderes estatais constituídos, aos quais incumbe verificar se aqueles limites encontram guarida no 2 Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 123. 4 texto constitucional, bem como se respeitam o princípio da proporcionalidade. Se atenderem a esses requisitos, a restrição será considerada legítima. A partir da análise das duas concepções acima apresentadas, verifica-se que elas divergem quanto ao fato de considerar os limites aos direitos fundamentais como inerentes à sua própria concepção (teoria interna) ou como acontecimentos externos e posteriores à sua consagração (teoria externa). Inobstante tal divergência, a conclusão mais importante que deflui de ambas as correntes é o fato de que existem limites incidentes sobre os direitos fundamentais, sejam esses limites impostos concomitantemente à previsão constitucional da norma jusfundamental, sejam limites surgidos posteriormente, como imposições da vida em sociedade. Ao nosso ver, a crítica apresentada por Ana Carolina Lopes, acima referida, não leva à conclusão de que a teoria externa melhor resguardaria os direitos fundamentais face aos abusos do poder público. Isso porque as interpretações feitas por este, acerca dos direitos fundamentais, não estão necessariamente imunes ao controle de constitucionalidade e proporcionalidade, ainda que tenham sido apresentadas como mera delimitação normativa desses direitos, e não como restrições aos mesmos (conforme preconiza a teoria interna). Por outro lado, a teoria externa pode ser suscetível aos abusos do poder público, na medida em que este pode impor restrições desproporcionais aos direitos fundamentais. Como se vê, o importante para a preservação dos direitos fundamentais é que os limites a eles impostos sejam submetidos ao controle de constitucionalidade e proporcionalidade, pouco importando se são considerados “limites imanentes”ou “restrições”. Acerca dessa conclusão, duas observações se fazem pertinentes: A primeira é o fato de que os limites às normas jusfundamentais não precisam, necessariamente, ter previsão expressa no texto constitucional. Pelo contrário, podem existir limites não previstos de forma literal na Constituição, os quais, ainda assim, deverão observar requisitos oriundos do sistema constitucional, como o princípio da proporcionalidade e a garantia do núcleo essencial, razão pela qual se diz que estarão sujeitos ao controle de constitucionalidade. A segunda observação é a de que se deve entender como “limite” ou “restrição” tanto a supressão de direitos fundamentais titularizados por determinado indivíduo, como a omissão do poder público em implementar as prestações que a norma jusfundamental previu em favor dos cidadãos. Um dos limites impostos às normas jusfundamentais consiste na reserva do possível, que será a seguir analisado. 2 - RESERVA DO POSSÍVEL A reserva do possível é um argumento ocasionalmente utilizado nas respostas do Estado às demandas judiciais cujo objeto é o adimplemento de prestações previstas em normas que conferem aos cidadãos algum direito fundamental social. Objetiva adequar essas pretensões às possibilidades financeiras do Estado. Não há consenso na doutrina e jurisprudência acerca da natureza da reserva do possível, ou seja, se constitui-se em um princípio, cláusula, postulado ou, ainda, condição de realidade. O conhecimento de seus antecedentes históricos pode auxiliar na compreensão de seu significado. 2.1 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS Tradicionalmente, a teoria da reserva do possível nos é apresentada como uma criação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha que, no ano de 1973, ao julgar uma ação em que se impugnava a limitação de vagas no ensino superior de medicina, decidiu não ser possível garantir o acesso universal ao ensino superior, pois não haveria recursos 5 orçamentários suficientes. Tal precedente foi denominado numerus clausus I (BVerfGE 33, 303, de 1973). Olsen3 apresenta o contexto sócio-político e econômico no qual a invocação dessa teoria se tornou frequente: o período pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja, a segunda metade do século XX, no contexto da globalização e do neoliberalismo, época em que passa a haver prevalência do aspecto econômico sobre as demais aspectos da vida em sociedade, exercendo influência, inclusive, sobre o sistema político e o jurídico. Luís Fernando Sgarbossa4, por sua vez, apresenta a reserva do possível como uma tradução moderna do princípio medieval do secundum vires ou nec ultra vires, registrado nos anais do II Concílio de Tours, ocorrido na cidade francesa de mesmo nome, no ano de 576 d.C, nos seguintes termos: “Ut unaquaeque civitas pauperes et egenos incolas alimentis congruentibus pascat secundum vires”5. A época em que foi julgado o citado precedente do numerus clausus I correspondia a um período em que o número de estudantes universitários na República Federativa Alemã praticamente dobrara. No entanto, as estruturas das universidades não acompanharam o crescimento dessa demanda, razão pela qual as leis passaram a instituir o sistema do numerus clausus comocritério para admissão nessas instituições, impondo uma limitação das vagas no ensino superior de medicina. No precedente alcunhado de numerus clausus I, a Corte Constitucional Alemã decidiu que aquelas leis que adotavam esse critério eram compatíveis com o texto constitucional, pois não seria possível garantir acesso universal ao ensino superior, diante da escassez dos recursos orçamentários. Recusou, dessa forma, a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas, para atender a todos os candidatos. Decidiu, outrossim, que o direito à liberdade de escolha da profissão, assegurado pelo texto constitucional alemão, não abrangia o direito irrestrito do cidadão de exigir vaga para o curso que escolhesse. Não seria razoável assegurar esse direito caso isso demandasse do Estado esforços tão intensos que implicassem em prejuízo para outros programas sociais ou políticas públicas. Transcreveremos, a seguir, interpretações feitas por alguns doutrinadores acerca desse julgamento: Tais noções foram acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito, mesmo em dispondo o Estado de recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável6. Em síntese essencial, levadas em consideração as circunstâncias do caso concreto, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu pela impossibilidade de declarar a inconstitucionalidade das leis de Hamburgo e da Baviera que estabeleciam o numerus clausus, bem como afirmou a inexistência de um direito subjetivo individual à vaga no curso e na universidade de livre escolha do candidato a partir da norma contida no artigo 12, 1, da Grundgesetz, fixando a decisão entendimento no sentido de que o cidadão somente exigir da sociedade (e do Estado) aquilo que dela possa racionalmente esperar, no marco do Estado 3 OLSEN; Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 175-183 4 Crítica à teoria dos custos dos direitos. v 1. Reserva do possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 128-133 5 Tradução: “toda comunidade deve nutrir convenientemente seus habitantes pobres ou necessitados, na proporção de seus recursos” 6 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos. v 1-Reserva do Possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 138. 6 Social, como visto, essência mesma do construto da reserva do possível.7 (grifou-se) Portanto, verificou-se que o Estado Alemão estava fazendo ou tinha feito tudo que estava ao seu alcance a fim de tornar o ensino superior acessível. Exigir mais, para o fim de satisfação individual de cada cidadão, obrigando o Estado a negligenciar outros programas sociais, ou mesmo comprometer suas políticas públicas, não se mostra razoável. A questão central, entretanto, não parece ter sido financeira, enquanto escassez absoluta de recursos, mas sim dizia respeito à razoabilidade com que a alocação destes recursos poderia ser demandada. Mesmo que o Estado dispusesse dos recursos, segundo a reserva do possível instituída pelo tribunal alemão, não se poderia impor a ele uma obrigação que fugisse aos limites do razoável, tendo em vista os fins eleitos como relevantes pela Lei Fundamental. Não se poderia exigir o comprometimento de programas vinculados à satisfação de outros interesses fundamentalmente protegidos, para o fim de tornar o acesso ao ensino superior possível a absolutamente todos os indivíduos que assim o quisessem. Fazê-lo, seria colocar a liberdade individual muito acima dos objetivos comunitários, comprometendo e deturpando a própria noção de Estado Social.8 (grifou-se) Posteriormente, dois outros julgamentos do Tribunal Constitucional Federal Alemão se tornaram célebres ao reafirmar o postulado da reserva do possível. São eles: a) a decisão alcunhada como “decisão das universidades” ou Hochschul-Urteil (BverfGE 35, 79), proferida no ano de 1973, na qual o Tribunal definiu que o direito à participação de diversos setores em órgãos colegiados das universidades deveria ser condicionado à reserva do possível, compreendida como aquilo que se revela razoável o indivíduo esperar da sociedade; b) o precedente conhecido como numerus clausus II (BverfGE 43, 291), do ano de 1977, no qual foram analisados alguns diplomas normativos que regulamentavam condições de acesso ao ensino superior. Decidiu-se que o direito subjetivo de escolher a profissão e o local de formação devem estar condicionados aos requisitos de admissão previstos para cada universidade e ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Verifica-se, portanto, que houve uma remissão à ideia transmitida pela cláusula da reserva do possível. Atualmente, no Brasil, o argumento da reserva do possível é frequentemente suscitado em julgados que versam sobre políticas públicas de implementação de direitos fundamentais sociais. Nesses casos,o Estado busca se eximir da responsabilidade pela efetivação desses direitos, ou limitá-los, argumentando que não dispõe de recursos financeiros suficientes para tanto. Compete ao Judiciário, então, decidir se essa escassez de recursos constitui-se em fator que justifica a implementação deficiente daqueles direitos sociais. Nos tópicos seguintes do presente trabalho, mostrar-se-á que essa decisão judicial deverá ser tomada com base no princípio da proporcionalidade e na noção de “mínimo existencial”. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os casos mais frequentes em que se apresenta essa questão versam sobre direito à saúde (artigo 196 da CF), à educação (artigo 205 da CF) e proteção dos direitos da criança (artigo 227 da CF). 2.2 – RESERVA DO POSSÍVEL SOB O PONTO DE VISTA DAS TEORIAS INTERNA E EXTERNA Pode-se analisar a reserva do possível como uma restrição aos direitos fundamentais, sob o ponto de vista da teoria interna ou da teoria externa. De acordo com a teoria interna, a reserva do possível seria um limite imanente à norma jusfundamental. Assim, para a delimitação normativa de cada direito fundamental social, seria 7 SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos. v 1, Reserva do Possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 139-140 8 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 219 7 sempre levada em consideração a escassez de recursos estatais, que é o fator determinante da invocação da reserva do possível. Nesse contexto, se existirem recursos financeiros suficientes para dar efetividade à pretensão demandada por um jurisdicionado, pode-se concluir que este é titular do direito pleiteado. Se, por outro lado, inexistirem esses recursos, não será viável a realização prática da pretensão demandada, razão por que se poderia concluir que esta não estaria dentro do âmbito normativo do direito social, não merecendo proteção jurídica, de acordo com o entendimento preconizado pela teoria interna. Exemplificando, se um indivíduo ingressar com demanda judicial pleiteando o fornecimento de um medicamento que cure determinadadoença, para a qual a Medicina ainda não descobriu a cura, o atendimento do pedido será impossível. De acordo com a teoria interna, a pretensão apresentada pelo demandante não estaria dentro do âmbito normativo do direito à saúde. Dando um outro exemplo, agora envolvendo a escassez de recursos financeiros estatais, imagine-se uma ação judicial por meio da qual se pleiteia a implementação de uma política pública de saúde. Caso o Estado não tenha recursos financeiros para atender ao pedido, concluir-se-ia que essa política pública não está abrangida no âmbito normativo do direito subjetivo invocado como causa de pedir. A situação narrada demonstra claramente a utilização da reserva do possível como limite imanente do direito subjetivo, ou seja, como fator que delimita os próprios contornos do direito. Ana Carolina Lopes Olsen9 se opõe a essa visão, usando os mesmos argumentos com os quais critica a teoria interna, apresentados no Capítulo 1. Para ela, de acordo com esse ponto de vista, as situações que se consideram incluídas na esfera de proteção do direito social seriam fruto de uma escolha, que estaria fora do controle de legitimidade e constitucionalidade. Por consequência, os poderes públicos encarregados de definir a destinação dos recursos orçamentários poderiam agir com grande discricionariedade, ao fazer a delimitação normativa do direito social, definindo o que está incluído dentro desses limites. Isso enfraqueceria o sistema de proteção dos direitos fundamentais. Conclui a autora que a limitação da reserva do possível não nasce com o direito fundamental, mas sim, é consequência das opções políticas realizadas pelos poderes públicos. Para ela, assim, a reserva do possível deve ser considerada um elemento externo à norma de direito fundamental, que é o que preconiza a teoria externa das restrições. Não seria possível definir, de forma abstrata, as prestações que estariam abrangidas por determinado direito. Isso só poderia ser definido no caso concreto, comparando a pretensão apresentada com os recursos materiais disponíveis. E essa ponderação seria passível de controle, mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, razão pela qual a teoria externa seria a que melhor preserva os direitos fundamentais. O seguinte trecho ilustra bem o pensamento da doutrinadora: (…) A escassez de recursos poderia impedir a exigibilidade de um direito fundamental social, mas, para tanto, o Judiciário, perante o qual esta exigibilidade foi reclamada, terá ao seu alcance o mecanismo da ponderação, a partir da proporcionalidade, a fim de averiguar que escassez de recursos é esta, se é contornável ou não, se as razões que determinaram a escolha alocativa de recursos em prejuízo deste direito são efetivamente adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. (…)10 Conforme já expusemos no Capítulo 1, em nossa opinião, a escolha pela adoção da teoria externa ou interna não é o fator determinante da garantia dos direitos fundamentais. Afinal, a interpretação que, segundo a teoria interna, o poder público realiza para delimitar tais direitos também deve ser submetida aos controles de constitucionalidade e proporcionalidade, assim como os elementos limitadores externos, na visão da teoria externa. 9 Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008; p. 190-192 10 op. cit, p. 195 8 Repetindo o que já dissemos, a condição determinante para a preservação dos direitos fundamentais é que os limites a eles impostos, como a aplicação da reserva do possível, sejam submetidos ao controle de constitucionalidade e proporcionalidade, pouco importando se são considerados “limites imanentes”ou “restrições”. Em outras palavras, os poderes públicos (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) deverão justificar por que consideraram um bem mais importante que outro, destinando os recursos financeiros disponíveis à sua satisfação. Essa ponderação, realizada quando se emprega o argumento da reserva do possível, encontra uma importante baliza na garantia do núcleo essencial, na medida em que esta objetiva assegurar a observância do princípio da proporcionalidade. Assim, apresentaremos, na sequência, a denominada garantia do núcleo essencial. 3 - GARANTIA DO NÚCLEO ESSENCIAL Entende-se como “núcleo essencial” a parcela do conteúdo da norma jusfundamental que não pode ser restringida pelo Estado. A garantia do núcleo essencial, ou do conteúdo essencial, refere-se, por decorrência, à proteção desse conteúdo mínimo. Martin-Retortillo1 refere-se ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais como “garantia dos direitos e liberdades frente à atividade legislativa de limitação dos mesmos”, ou seja, como o “limite dos limites”, ou ainda como “uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimitando um terreno que a Lei que pretende limitar/regulamentar um direito não pode invadir sem incorrer em inconstitucionalidade”. Tal garantia foi prevista expressamente na Constituição Alemã; na Constituição Portuguesa de 1976 e na Constituição Espanhola, nos seguintes artigos: Constituição Alemã: Art. 19.2. Em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência. Constituição Portuguesa de 1976: Art 18.3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. Constituição Espanhola: Art. 53.1. Os direitos e liberdades reconhecidos no Capítulo II do presente Título vinculam todos os poderes públicos. Somente por lei, que em todos os casos deve respeitar seu conteúdo essencial, poderão ser regulados esses direitos e liberdades. (grifou-se) . Com o objetivo de elucidar o conceito de núcleo ou garantia essencial, a doutrina concebeu teorias acerca do seu objeto e valor. 3.1 OBJETO DE PROTEÇÃO DO NÚCLEO ESSENCIAL 3.1.1 TEORIA OBJETIVA Versando sobre o objeto da proteção, a teoria objetiva preconiza que o objeto de proteção da garantia do núcleo essencial é a norma jurídica, e não o direito subjetivo, admitindo que este seja suprimido no caso concreto, desde que permaneça válido como regra objetiva, perante os demais indivíduos. Assim, o conteúdo essencial de um direito 1 MARTIN-RETORTILLO BAQUER, Lorenzo. OTTO y PARDO, Ignacio de. Derechos fundamentales y Constitución. Madrid: Civitas, 1988, p. 125-135.In: MELO, Sandro Nahmias. A Garantia do Núcleo Essencial dos Direitos Fundamentais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, v. 43, p. 82-97, abril/jun 2003 9 fundamental deve ser definido com base no significado que este possui para a vida de toda a sociedade. Virgílio Afonso Silva2 critica esse enfoque, sob o seguinte argumento: Embora esse enfoque faça sentido, é fácil perceber que ele não oferece praticamente proteção alguma além daquelas que já decorrem automaticamente da ideia de cláusulas pétreas. Para casos individuais ou mesmo para casos gerais em que a restrição não põe em risco o direito fundamental em seu sentido 'para o todo social', mas pode implicar total eliminação em situações concretas, o enfoque objetivo não oferece proteção alguma. Por isso, deve ser complementado por um enfoque subjetivo. 3.1.2 TEORIA SUBJETIVA Diversamente, para a teoria subjetiva, o bem tutelado pela mencionada garantia é o direito subjetivo do indivíduo. Dessa forma, a limitação a um determinado direito fundamental deve ser analisada em relação ao seu titular, enão em relação a toda a coletividade. É esclarecedora a observação feita por Virgílio Afonso da Silva3: Contra esse enfoque subjetivo seria possível argumentar que em vários casos concretos é possível que nada reste de um direito fundamental, sem que isso deva ser considerado como algo a ser rechaçado. Exemplos não faltam: pena de morte (no Brasil, em caso de guerra declarada) elimina por completo o direito à vida daquele que é condenado; qualquer pena de reclusão elimina por completo a liberdade de ir e vir do condenado (mesmo que com determinada limitação temporal); a desapropriação elimina por completo o direito à propriedade daqueles que têm seus imóveis desapropriados. Com base nisso, aqueles que defendem em enfoque meramente objetivo argumentam que o enfoque subjetivo não teria como lidar com tais situações, enquanto a resposta a partir de uma dimensão objetiva seria clara: em nenhum desses casos o conteúdo essencial desses direitos, em sua função para a vida social, foi atingido. Ana Maria D'Ávila Lopes relata que o enfoque subjetivo é o aceito pela maioria dos doutrinadores11. Ainda no tocante à preferência pela teoria objetiva ou subjetiva, compartilhamos do entendimento de Luís Fernando Sgarbossa, que defende a necessidade da conjugação entre as duas visões: Sustenta-se, aqui, portanto, a conjunção das teorias objetiva e subjetiva, tendo em vista que não faz sentido a manutenção de uma garantia institucional, meramente objetiva, intangível em seu núcleo, cuja dimensão subjetiva seja franqueada, ainda que motivadamente, mesmo em sua essência. Tal interpretação é, em nosso juízo, insubsistente em face da teleologia do instituto jurídico dos direitos fundamentais: objetivando à concreta proteção da pessoa, nada significa sua dimensão objetiva dissociada da dimensão subjetiva. A pretensão de tal dissociação é insubsistente do ponto de vista de uma teoria jusfundamental coerente e consistente12. 3.2 VALOR DE PROTEÇÃO DO NÚCLEO ESSENCIAL As teorias absoluta e relativa visam a analisar se o núcleo essencial é um valor relativo ou absoluto, ou seja, se sua delimitação depende ou não da confrontação com outros direitos. 2 Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 186 3 Op. cit. p. 186-187 11 A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, nº 164, out/dez 2004, p. 8 12 SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos. Volume 1 –Reserva do Possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 294-295 10 3.2.1 TEORIA ABSOLUTA De acordo com essa concepção, o núcleo essencial refere-se a um conteúdo delimitado de forma abstrata, o qual, se restringido, afetaria o próprio direito como um todo. Trata-se, portanto, de um valor absoluto, intangível. Nem mesmo a proteção de outro bem constitucional justificaria a restrição dessa porção mínima. Para Vieira de Andrade13, o núcleo essencial constitui-se em um valor mínimo inatacável, um limite absoluto representado pela “dignidade do homem como ser livre”. Para Jorge Miranda14, por sua vez, “o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito”. Ana Carolina Lopes Olsen15 apresenta críticas à teoria absoluta, alegando que ela gera insegurança jurídica, na medida em que não determina a quem incumbiria a tarefa de definir o conteúdo essencial de cada direito, nem os parâmetros para essa definição. A teoria, outrossim, fragilizaria os direitos fundamentais, pois, ao proteger somente o núcleo essencial, autoriza que a parte do direito fora desses limites possa sofrer a atividade restritiva dos poderes constituídos. Claudia Drews16 propõe a subdivisão da teoria absoluta em teoria absoluta dinâmica e teoria absoluta estática. a) teoria absoluta dinâmica De acordo com essa concepção, o conteúdo essencial pode ser modificado com a passagem do tempo, não sendo, portanto, imutável. A palavra “absoluta”, nesse contexto, significa apenas a não suscetibilidade a relativizações em face da necessidade de dar prevalência a outros direitos. b) teoria absoluta estática O conteúdo essencial, para os adeptos da teoria absoluta estática, é intangível e imutável, ou seja, não sujeito a mudanças impostas pelo decurso do tempo, oriundas da evolução da sociedade. Virgílio Afonso da Silva17 menciona a opinião de Claudia Drews, no sentido de que deve ser adotada a teoria absoluta dinâmica, pois o texto constitucional, incluindo os direitos fundamentais nele previstos, precisam se adaptar às novas necessidades que surgem com a evolução da vida real da sociedade. Afinal, a vida real não é algo estático, mas sim, dinâmico, que, com o tempo, sofre alterações no padrão e estilo de vida, nas necessidades, nos valores. Assim, seria necessário que o direito, incluindo os direitos fundamentais, acompanhasse tais alterações. Não obstante, o mesmo autor diverge da interpretação de Claudia Drews. Para ele, é inegável a necessidade de adaptação das normas aos novos valores surgidos com a evolução da sociedade, sendo isso um requisito indispensável para a manutenção da eficácia normativa. Todavia, não seria somente a característica da elasticidade ou dinamicidade o fator decisivo para comparar as teorias estática e dinâmica. Com efeito, o citado doutrinador afirma que o fator decisivo é a definição de qual o tamanho da parcela do direito fundamental que será definido como seu conteúdo essencial. Afinal, o que a teoria estática considera imutável é o núcleo essencial, e não o direito fundamental como um todo. E o núcleo essencial é apenas parcela da norma. Se o tamanho dessa parcela for grande, a capacidade da norma jusfundamental de adaptação à realidade 13 Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008; p. 154-155 14 „MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1993. In: TONIN, Marta Marília. op. cit. p. 97. 15 Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008; p. 154-155 16 Die Wesensgehaltgarantie des artigo 19 II GG, Baden-Baden: Nomos, 2005, pp. 65 e 66. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 188-196 17 Direitos Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 189-191 11 será menor. Ao contrário, se essa parcela for pequena, mesmo que considerada absolutamente imutável (como o faz a teoria absoluta estática), restará ainda grande parte da norma jusfundamental que poderá acompanhar com mais facilidade a evolução social. Podemos melhor explicitar esse raciocínio através do exemplo dos crimes de “posse sexual mediante fraude” (revogado pela Lei nº 12.015/2009) e de “rapto violento ou mediante fraude” (revogado pela Lei nº 11.106/2005), previstos na redação original do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940). Essa era a redação original do tipo de posse sexual mediante fraude, previsto no artigo 215 do Código Penal: Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de dois a seis anos. (grifo da autora) E a redação original do artigo 219, que previa o crime de “rapto violento ou mediante fraude”, era a seguinte:Art. 219 - Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso: Pena - reclusão, de dois a quatro ano. (grifo da autora) Ambos os tipos penais previam a figura da “mulher honesta”, conceito que fazia algum sentido na época em que eles foram escritos (ano de 1940), mas que se tornou inapropriado e destituído de sentido com o decurso do tempo e com as mudanças de valores por que passou a sociedade brasileira. A título de ilustração, citaremos os comentários feitos por Guilherme de Souza Nucci18 acerca do obsoletismo da expressão: Mulher honesta: não basta a condição de mulher para ser sujeito passivo, exigindo-se seja ela honesta. Com a devida vênia dos que pensam em sentido contrário, nada mais antiquado e passível de eliminação do sistema penal. Aliás, foi a proposta da Comissão Revisora presidida pelo Min. Cernichiaro. Honestidade – elemento normativo do tipo – é, em matéria de liberação dos costumes, termo quase impossível de ser definido. E, quando se consegue pode-se chegar ao absurdo de punir alguém pela simples relação sexual conseguida com uma mulher inexperiente em relação à própria sexualidade, o que, por si só, não deve ser considerado um desvalor passível de repressão penal. Diz Hungria ser honesta a mulher de conduta irrepreensível, sob o ponto de vista da moral sexual, ou seja, aquela que 'ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes. (…) Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou por mera depravação' (Comentários ao Código Penal, v. 8, p. 150). seria honesta, atualmente, a mulher que tomasse a iniciativa da conquista e investisse sobre os parceiros, exatamente como faz o homem com relação à mulher? Seria honesta a mulher que apreciasse o sexo, exatamente como sempre se incentivou o homem a fazer, trocando de parceiro várias vezes? Se a resposta for afirmativa, fruto natural da liberação sexual, não há, de fato, razão para a existência do tipo penal do artigo 215, que somente poderia ter em vista proteger exceções. De outra parte, se a resposta for negativa, está-se diante de um impasse, pois a interpretação valorativa do termo inserido no tipo penal demonstra seu descompasso com a realidade. Enfim, cremos não ser mais cabível falar em 'posse sexual da mulher honesta mediante fraude'. De outra parte, se a razão da existência do tipo penal do artigo 215 é proteger a vítima que, fraudulentamente, entrega-se a uma pessoa, crendo estar mantendo relação sexual com outra (ex: à noite, invadindo o quarto o quarto da vítima, que foi dormir após excessos cometidos durante uma festa, o sujeito faz-se passar por 18 Código Penal Comentado. 3. ed rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2003, p. 650-651 12 seu marido, usando suas roupas, seu perfume e deitando-se no leito de luz apagada, para conseguir manter com ela relação sexual), o correto seria proteger qualquer pessoa – e não somente a mulher honesta -, além de deixar bem claro tal intento no tipo, como fez o Código Penal português: 'Quem, aproveitando-se fraudulentamente de erro sobre a sua identidade pessoal, praticar com outra pessoa cópula, coito anal ou ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de até 2 anos (artigo 167)'. Por que um prostituta não poderia – apesar de não ser considerada 'mulher honesta' – ser vítima desse tipo de crime? Afinal, ela pode ser casada, ter conduta sexual regrada no recanto de seu lar e também ser enganada. (...)” Apesar desse descompasso entre a letra da lei e a realidade social, a expressão permaneceu expressa no Código Penal até 29/03/2005, quando foi publicada a Lei nº 11.106, que alterou a redação do artigo 215 e revogou o artigo 219, ambos do Código Penal. Com o advento dessa lei, o artigo 215 do Código Penal passou a ter o seguinte teor: Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude: (Redação dada pela Lei nº 11.106/2005) Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de dois a seis anos. Excluiu-se, assim, a obsoleta expressão “mulher honesta” da legislação penal brasileira. Ressalte-se que, posteriormente, o artigo 215 do Código Penal foi novamente alterado pela Lei nº 12.015, de 07/08/2009, que alterou o seu nomen iuris e lhe conferiu a seguinte redação: Violação sexual mediante fraude artigo 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. O objeto jurídico dos crimes previstos nos artigos 215 e 219, em suas redações originais, era a liberdade, no aspecto da liberdade sexual. O direito à liberdade está positivado no caput do artigo 5º do texto constitucional brasileiro19. É, sem dúvida, um direito fundamental, tanto que está previsto em dispositivo inserido no Capítulo II da Constituição, intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. A evolução da sociedade brasileira e a mudança de seus valores gerou a necessidade de alteração dos mencionados tipos penais. Isso porque o próprio conteúdo do bem jurídico por eles protegido (direito à liberdade, na vertente da liberdade sexual) havia sofrido alterações. Em 2005, quando a redação da lei foi alterada, a liberdade sexual não poderia mais ser tutelada pelo Estado da mesma forma como era tutelada no ano de 1940, quando os aludidos tipos penais entraram em vigor. Com efeito, “proteger a liberdade sexual da mulher honesta” poderia fazer algum sentido em 1940, mas não mais no ano de 2005, quando nem mais se sabia ao certo o conceito de mulher honesta. Nesse contexto, seria importante identificar o núcleo essencial do direito fundamental à liberdade sexual. 19 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)” (destacou-se) 13 Retomando as explanações feitas anteriormente, a teoria absoluta estática considera imutável esse conteúdo essencial, o qual não poderia, portanto, ser adaptado aos novos valores sociais. A teoria absoluta dinâmica, por sua vez, admite que o conteúdo essencial de cada direito seja modificado com o passar do tempo. À primeira vista, a primeira teoria (estática) seria inadequada, pois impossibilitaria a mudança dos tipos penais acima mencionados, os quais continuariam fazendo menção à indefinível figura da “mulher honesta”. No entanto, o que Virgílio Afonso da Silva20 objetiva demonstrar é que não é somente a característica estática ou dinâmica da definição do conteúdo essencial o fator decisivo para se avaliar a capacidade de adaptação das teorias às mudanças sociais. E, de fato, nos exemplos acima citado, dos crimes de rapto e de posse sexual mediante fraude, o mais importante é definir se o elemento “mulher honesta” integrava ou não o núcleo essencial do direito fundamental à liberdade sexual. Caso esse elemento não fizesse parte do núcleo, ele poderia ser suprimido, adaptado ou substituído, sem maiores complicações, independentemente da teoria que se adotasse. A opção entre a teoria estática e a dinâmica somente adquiriria relevância na hipótese de se considerar que o elemento “mulher honesta” compõe o conteúdo essencial – aí sim,a segunda teoria ofereceria maior capacidade de adaptação à realidade. Para melhor compreensão, comparemos duas situações. Na primeira, adota-se a perspectiva da teoria absoluta estática, e não se inclui o item “mulher honesta” no conteúdo essencial do direito à liberdade sexual. Na segunda, sob a perspectiva da teoria absoluta dinâmica, faz-se essa inclusão. Verifica-se que, seria mais fácil eliminar o elemento “mulher honesta” na primeira situação, apesar da característica estática do núcleo essencial, e não na segunda. Ou seja, nesse exemplo, a teoria estática apresentou maior capacidade de adaptação às mudanças da sociedade. Portanto, ao nosso ver, tem razão o citado doutrinador. Por isso, a capacidade de adaptação às mudanças evolutivas da sociedade não é um fator que possa ser utilizado para fazer prevalecer uma teoria sobre a outra. 3.2.2 - TEORIA RELATIVA A teoria relativa preconiza que o conteúdo essencial de cada direito fundamental é determinado por meio de uma ponderação entre os outros direitos e princípios que estejam em conflito, no caso concreto. Não é possível, portanto, delimitar, a priori, o conteúdo essencial de determinado direito fundamental. Outrossim, ainda que delimitado esse conteúdo essencial, ele não será um valor absoluto, imutável, podendo variar em cada caso concreto. De acordo com esse entendimento, as restrições aos direitos fundamentais podem existir sem afetar seu conteúdo essencial, desde que respeitem o princípio da proporcionalidade. E a observância desse princípio poderá ser aferida através do sopesamento entre os valores em conflito. Se um direito for restringido para fazer prevalecer um direito de maior relevância, no caso concreto, terá havido respeito à proporcionalidade e, por consequência, o núcleo essencial do direito restringido terá sido preservado. A doutrina pátria diverge acerca da preferência por uma ou outra teoria. Ana Maria D'Ávila Lopes 21, embora não se posicione expressamente em favor de uma ou outra visão, explica que a teoria relativa oferece pouca proteção ao direito fundamental individual quando este esteja em conflito com um interesse estatal, já que este prevaleceria sobre aquele. Segundo ela, a teoria absoluta, por outro lado, oferece proteção constante ao conteúdo essencial do direito fundamental. No entanto, essa conclusão da aludida doutrinadora somente seria verdadeira se considerássemos que, na ponderação entre interesse estatal e direito individual, o primeiro 20 Loc cit. 21 A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 164, out/dez 2004, p. 8 14 sempre seria julgado o mais importante. E, em nossa opinião, esse resultado não é, necessariamente, uma constante. O critério da proporcionalidade deverá ser utilizado, em cada caso concreto, para se eleger qual dos dois deverá prevalecer. Ademais, com relação à afirmação de que a teoria absoluta ofereceria proteção constante ao conteúdo essencial do direito fundamental, podemos questioná-la, expondo a opinião de Ana Carolina Lopes Olsen22, já apresentada anteriormente, que critica essa teoria, alegando que ela gera insegurança jurídica, na medida em que não determina a quem incumbiria a tarefa de definir o conteúdo essencial de cada direito, nem os parâmetros para essa definição. A teoria, outrossim, fragilizaria os direitos fundamentais, pois, ao proteger somente o núcleo essencial, autoriza que a parte do direito fora desses limites possa sofrer a atividade restritiva dos poderes constituídos. Olsen23 adota a teoria relativa, sob o argumento de que permite identificar, em cada direito fundamental, um núcleo de maior relevância, que só poderia ser restringido mediante fortes argumentos que demonstrassem a necessidade de dar prevalência aos outros bens jurídicos ou valores em conflito. E a admissibilidade dessa restrição só poderia ser definida no caso concreto, pois “definições a priori mostram-se arbitrárias e fatalmente incompletas”. Aduz a autora, acerca da visão relativa: “Apesar desta maleabilidade, ela não deixa o direito fundamental desprotegido, pois os critérios de proporcionalidade deverão sempre ser satisfeitos quando o Estado pretende restringir o âmbito normativo de um direito fundamental” É interessante citar a comparação que a referida doutrinadora faz entre o núcleo essencial e o sistema de controle de constitucionalidade vigente no ordenamento pátrio. Segundo ela, a teoria do núcleo essencial soma-se à ação direta de inconstitucionalidade (artigo 102, I, “a”, CF), à ação declaratória de constitucionalidade (artigo 102, I, “a”, CF), à ação de descumprimento de preceito fundamental (artigo 102, §1º, CF), à inclusão dos direitos fundamentais dentre as cláusulas pétreas (artigo 60, §4º, IV, CF) e ao princípio da supremacia da Constituição, a fim de gerar uma presunção de intangibilidade das normas jusfundamentais. Confira-se: Nestas condições, é possível afirmar que as normas de direitos fundamentais gozam de presunção de intangibilidade – a não ser que o próprio constituinte disponha em contrário – contra a a qual a intervenção do Estado só pode se insurgir se imbuída de grave justificação, apresentada sob a forma de argumentação racional, que demonstre o maior peso de outros princípios em conflito, bem como a proporcionalidade da restrição. (…) No caso dos direitos fundamentais sociais a prestações, em que esta atividade do legislador mostra-se mais constante, a garantia do núcleo essencial fornece um parâmetro a mais de controle da constitucionalidade, onerando os intérpretes das normas jusfundamentais com uma carga de argumentação supletiva sempre que sua intervenção buscar, de alguma forma, atingir o conteúdo mais essencial previsto na norma, aquele que o caracteriza, que justifica sua existência no ordenamento jurídico. (grifo da autora)24 Utilizando a mesma comparação entre os mecanismos de controle de constitucionalidade e a garantia do núcleo essencial, Ana Maria D'Ávila Lopes pergunta: Se, por meio do controle de constitucionalidade, é possível defender os direitos fundamentais dos excessos do Legislativo, questiona-se, então, qual é o sentido da garantia do conteúdo essencial?25 22 Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008; p. 154-155 23 Ibidem. p. 155-156 24 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, p. 157 25 A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 41, n. 15 A autora responde citando a conclusão de Otto y Pardo26, segundo a qual o sentido da garantia do núcleo essencial seria a relativização dos direitos fundamentais, seja pela perspectiva da teoria relativa, seja da absoluta. Segundo a teoria relativa, o núcleo essencial é formatado de acordo com os valores em conflito, deixando evidente, com isso, que se permite a relativização do direito fundamental. Já na teoria absoluta, a existência de um conteúdo mínimo, irredutível, em cada direito fundamental, também demonstraria, a contrario sensu, a sua relativização, já que toda a porção que não pertence a esse núcleo essencial poderia sofrer restrições. Conclui a doutrinadora: O pensamento de Otto y Pardo tem provocado interessantes discussões a respeito da relativização dos direitos fundamentais em virtude da incorporação da garantia do conteúdo essencial em um sistema no qual já existe o controle de constitucionalidade das leis. Adoutrina e a jurisprudência têm predominantemente aceito a relativização, só que não sob o ponto de vista negativo, mas, justamente, com a afirmação da historicidade e da exigência da constante atualização de um direito. Nesse sentido, a garantia do conteúdo essencial não apenas aceita a possibilidade da limitação, mas também a regulação de um direito fundamental, com a finalidade de permitir que possa ser efetivamente exercido, mas sempre que não seja desnaturalizado. Essa garantia, junto com os princípios da ponderação dos bens e da proporcionalidade, constitui um mecanismo indispensável na realização dos direitos fundamentais, os quais não são direitos absolutos mas também não são, nem muito menos, instrumentos da arbitrariedade do legislador. 4 - O MÍNIMO EXISTENCIAL NO CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS Não se encontra na legislação brasileira um conceito de mínimo existencial; tampouco existe unanimidade na doutrina acerca do tema. É interessante citar a observação feita por Antônio Augusto Cançado Trindade, com o objetivo de demonstrar que também no âmbito do Direito Internacional ainda não existe um consenso acerca do conteúdo concreto do mínimo existencial: É significativo que já se comece hoje a considerar o que constituiria um “núcleo fundamental” de direitos econômicos, sociais e culturais. Há os que, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, argumentam que tal núcleo seria constituído pelos direitos ao trabalho, à saúde e à educação. Em recentes reuniões internacionais de peritos também se tem referido, como possíveis componentes daquele núcleo, aos chamados “direitos de subsistência” (e.g., direito à alimentação, direito à moradia, direito aos cuidados médicos e direito à educação). Os debates apenas têm início, e certamente se prolongarão no decorrer dos próximos anos neste início do novo século.27 Inobstante a inexistência de consenso, pode-se identificar pontos em comum nas diversas definições de mínimo existencial, apresentadas pelos doutrinadores, como a relação com prestações materiais que assegurem condições mínimas de sobrevivência, com respeito à dignidade humana. Essas prestações materiais que asseguram condições mínimas de sobrevivência estão positivadas, no direito brasileiro, sob o título de “Direitos Sociais”, no Capítulo II (artigos 6º a 11) do Título II (“Dos direitos e garantias fundamentais”) da Constituição da República Brasileira de 1988, abrangendo o direito à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, dentre outros. 164, out/dez 2004, p. 13 26 OTTO Y PARDO, Ignácio de. La regulación del ejercicio de los derechos y libertades. Madri: Cuadernos Civitas, 1988. In: LOPES, Ana Maria D'Ávila. Idem, p.13. 27 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 493. In: SGARBOSSA, Luís Fernando. Crítica à teoria dos custos dos direitos. v 1 Reserva do Possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 307 16 Na classificação doutrinária que divide os direitos fundamentais em gerações ou dimensões, os direitos sociais correspondem aos direitos de 2ª geração, cujo objetivo é assegurar a igualdade social material, através de prestações positivas por parte do Estado. Podemos dizer que a definição de direitos sociais acima apresentada, qual seja, os direitos previstos nos capítulos 6º a 11 da Constituição da República, corresponde a um conceito formal. De outro lado, a partir da análise das características comuns dos direitos sociais, Vidal Serrano Nunes Junior apresenta uma definição que podemos designar como conceito material de direitos sociais: Fincados nestes pressupostos, podemos conceituar direitos sociais como o subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, quer por meio da atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade.28 (grifo da autora) Verifica-se que todos os direitos sociais previstos no Capítulo II do Título II da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 buscam assegurar a dignidade na vida dos jurisdicionados. Essa relação com o princípio da dignidade da pessoa humana justifica a caracterização dos direitos sociais como “fundamentais”. Como se disse acima, as diversas definições doutrinárias de mínimo existencial apresentam, em comum, a relação com as prestações materiais que assegurem condições mínimas de sobrevivência, as quais estão previstas, no texto constitucional brasileiro, como “direitos sociais”. Daí a razão por que o mínimo existencial é estudado, na doutrina, e assim também será, no presente trabalho, dentro do contexto dos direitos fundamentais sociais. Dentre as diversas conceituações de “mínimo existencial” apresentadas pela doutrina, interessante é a explanação feita por Vicenzo Demetrio Florenzano29, por representar uma tentativa de relacionar esse conceito com uma norma positivada no direito brasileiro, qual seja, o artigo 7º, IV, da CF, que dispõe: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (grifo da autora) Ingo Wolfgang Sarlet sugere a utilização do princípio da dignidade humana como parâmetro para a identificação do mínimo existencial: Neste contexto, cumpre registrar que o reconhecimento de direitos subjetivos a prestações não se deverá restringir às hipóteses nas quais a própria vida humana estiver correndo o risco de ser sacrificada, inobstante seja este o exemplo a ser referido. O princípio da dignidade da pessoa humana assume, no que diz com este aspecto, importante função demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar qual o padrão mínimo em direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos individuais) a ser reconhecido. Negar-se o acesso ao ensino fundamental obrigatório e gratuito (ainda mais em face da norma contida no artigo 208, § 1º, da CF, de acordo com o qual se cuida de direito público subjetivo) importa igualmente em grave violação ao princípio da dignidade da 28 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 70. 29 Justiça Social, mínimo social e salário mínimo: uma abordagem transdisciplinar. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 42, n. 165, p. 47, jan/mar 2005. In: OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 316 17 pessoa humana, na medida em que este implica para a pessoa humana a capacidade de compreensão do mundo e a liberdade (real) de autodeterminar- se e formatar a existência, o que certamente não será possível em se mantendo a pessoa sob o véu da ignorância. 30(grifo da autora) LuísFernando Sgarbossa menciona a importante distinção entre “mínimo vital ou fisiológico” - as condições imprescindíveis para a manutenção da vida em termos biológicos – e “mínimo sociocultural” - as condições que propiciam a inserção do indivíduo na vida social. Segundo o autor, um conceito de mínimo existencial não pode se resumir ao mínimo vital, mas sim, abranger os dois aspectos, já que a simples existência da vida biológica não assegura ao indivíduo uma existência digna.31 No mesmo sentido, Sarlet32 ressalta que o mínimo existencial não diz respeito apenas às condições de sobrevivência física do indivíduo, mas também às condições que preservem a dignidade humana: Tomando-se o exemplo do direito à educação, poder-se-á sempre afirmar que negar, em face de argumentos como o da ausência de recursos, até mesmo o acesso ao ensino fundamental não chega a comprometer a existência do indivíduo. A resposta a esta indagação, contudo, passa pelo princípio da dignidade humana, que indubitavelmente pressupõe um certo grau de autonomia do indivíduo, no sentido de ser capaz de conduzir a sua própria existência, de tal sorte que a liberdade pessoal (…) constitui exigência indeclinável da própria dignidade. Neste sentido, não restam dúvidas de que manter o indivíduo sob o véu da ignorância absoluta significa tolher a sua própria capacidade de compreensão do mundo e sua liberdade (real) de autodeterminação e de formatar sua existência. O princípio da dignidade da pessoa humana pode vir a assumir, portanto, importante função demarcatória, estabelecendo a fronteira para o que se convenciona denominar de padrão mínimo na esfera dos direitos sociais.(grifo da autora) Já Ricardo Lobo Torres, expressando a indefinição do conceito, observa que: Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não-fundamental (direito à saúde, à alimentação, etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que torna difícil extremá-lo, em sua região periférica, do máximo de utilidade (maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado à ideia de justiça e de redistribuição de riqueza social. Certamente esse mínimo existencial, “se o quisermos determinar precisamente, é uma incógnita muito variável”.33 Na opinião desse autor, o mínimo existencial não é um valor, nem um princípio jurídico, mas sim, uma regra jurídica, e coincide com o conteúdo essencial dos direitos fundamentais: O mínimo existencial não é um valor nem um princípio jurídico, mas o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Nada obstante está impregnado pelos valores e princípios jurídicos os mais relevantes. O mínimo existencial não é um valor, por não possuir a generalidade e a abstração de ideias como as de liberdade, justiça e igualdade. Além disso, o 30 Justiça Social, mínimo social e salário mínimo: uma abordagem transdisciplinar. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 42, n. 165, p. 47, jan/mar 2005. In: OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 316 31 Crítica à Teoria dos Custos dos Direitos. v 1, Reserva do Possível. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010, p. 308. 32 Op. cit, p. 353. In: OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 332 33 TORRES, Ricardo Lobo, O Mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In: C. P. De Souza Neto e D. Sarmento (org). Direitos Sociais. Fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 313-339 18 mínimo existencial pode se traduzir, para a sua garantia, em regra jurídica, o que jamais acontece com os valores. Mas o mínimo existencial se deixa tocar e imantar permanentemente pelos valores da liberdade, da justiça, da igualdade e da solidariedade. O mínimo existencial também não é princípio jurídico, por não exibir as principais características dos princípios, que são as de ser objeto de ponderação e de valer prima facie. De feito, o mínimo existencial não pode ser ponderado e vale definitivamente porque constitui o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, que é irredutível por definição e insuscetível de sopesamento. O mínimo existencial é regra, porque se aplica por subsunção, constitui direitos definitivos e não se sujeita à ponderação.34 (grifo da autora) Diante dessas ideias preliminares acerca do conceito de mínimo existencial, cabe questionar acerca da possibilidade de identificá-lo com o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais. Usualmente a doutrina identifica o mínimo existencial com o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais. Como exemplo, citamos Ricardo Lobo Torres, acima mencionado. Olsen35, no entanto, entende que essa correspondência não é uma constante, ou seja, nem todo direito fundamental social terá em seu núcleo um conteúdo equivalente ao mínimo existencial. Ela cita o direito à participação nos lucros do empregador, previsto como direito fundamental social no artigo 7º, XI, da Constituição Federal, cujo conteúdo essencial não poderia ser identificado com o mínimo existencial. Por outro lado, essa identificação é bastante clara no caso do direito à saúde. Portanto, para a autora, núcleo essencial de direito fundamental social e mínimo existencial são categorias distintas, mas que podem ter características e aplicações semelhantes. Essa divergência, todavia, não possui maior relevância. Mais importante é saber que tanto a noção de mínimo existencial como a garantia do conteúdo essencial assumem importância nas situações em que o Estado utiliza o argumento da reserva do possível para impor restrições à efetivação dos direitos fundamentais sociais. Isso porque o mínimo existencial e o conteúdo essencial demarcarão a porção mínima que não poderá sofrer restrições, sob pena de inviabilizar a sobrevivência digna do titular do direito. Ao nosso ver, o mínimo existencial e o conteúdo essencial devem ser delimitados em cada caso concreto, utilizando-se do princípio da proporcionalidade. Assim, imaginemos uma situação em que o poder público, suscitando limitações relacionadas à reserva do possível, deixa de implementar integralmente determinado direito social em favor de um indivíduo. Ao tomar essa decisão, o Estado age com certo grau de discricionariedade, a qual, no entanto, é limitada pelo princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade exigirá que a justificativa apresentada pelo Estado para restringir o direito social seja legítima e materialmente constitucional. Ou seja, o bem jurídico a que o Estado visou proteger quando recorreu à reserva do possível deverá ser mais relevante que a parcela do direito que sofreu a restrição. A proporcionalidade exigirá, também, que tenha sido protegido, ao menos, o mínimo existencial, sendo esse requisito denominado de “proibição da insuficiência”. Na seguinte passagem, Ana Carolina Lopes36 afirma a necessidade de submeter o argumento da escassez de recursos ao exame da proporcionalidade, no sentido da proibição da insuficiência: Portanto, o argumento da escassez de recursos deverá ser investigado a fundo quando confrontado com a realização de um direito fundamental social prestacional. A proporcionalidade em sentido de proibição de insuficiência 34 Ibidem, p. 316 35 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível.Curitiba: Juruá, 2008, p. 319 36 Ibidem, p. 310 19 representa um valioso instrumento à disposição do Judiciário para que a atuação do Estado seja devidamente avaliada e ponderada, de modo a se proibir a negligência para com prestações determinadas pela Constituição. Portanto, há que se ponderar cuidadosamente o argumento da escassez (bem como o próprio argumento democrático e da macrojustiça) com a realização do direito fundamental social reclamado concretamente, de modo que somente por uma razão extremamente grave a efetividade do direito jusfundamental poderá ser temporariamente afastada. (grifo da autora) Em outro trecho de sua obra, a autora37 relaciona o exame da propocionalidade à garantia do mínimo existencial: Na seção anterior, foi demonstrado que a incidência da reserva do possível em relação aos direitos fundamentais sociais está sujeita à ponderação, especialmente mediante o exame da proporcionalidade no sentido da proibição da insuficiência. Assim, pode-se dizer que a norma de direito fundamental social pode ser restringida até o limite de suficiência da prestação material demandada, a fim de garantir a realização mínima pretendida. É justamente para garantir esta “realização mínima”que a noção de mínimo existencial assume especial importância na ponderação entre direitos fundamentais sociais e reserva do possível. (grifo da autora) O Supremo Tribunal Federal tem utilizado a ideia do “mínimo existencial” para avaliar a proporcionalidade das condutas ou omissões do Estado consistentes em, sob o argumento da reserva do possível, restringir direitos sociais. Citamos, como exemplo: a) Decisão monocrática proferida pelo Min. Dias Toffoli, no julgamento do RE 491121, em 27/08/2010, publicado no DJe 174, data de divulgação 7/09/2010, data de publicação 20/09/2010, e; b) acórdão proferido no julgamento do RE 482611, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 23/03/2010, publicado em Dje-060, data de divulgação 06/04/2010, data de publicação 07/04/2010. CONCLUSÃO O objetivo do presente trabalho consistiu, essencialmente, em demonstrar a relação que existe entre eficácia dos direitos fundamentais sociais, reserva do possível e mínimo existencial. Chegou-se à conclusão de que a noção de mínimo existencial adquire especial relevância nas situações em que é utilizado o argumento da reserva do possível para restringir a aplicação dos direitos fundamentais sociais. Vidal Serrano Nunes Junior ensina que a teoria da reserva do possível, considerada uma limitação à efetividade dos direitos sociais, só é aplicável aos direitos que estão fora do que ele denomina “mínimo vital”, equivalente ao mínimo existencial: Em conclusão, concatenando-se análise do direito positivo brasileiro aos pressupostos de realidade aos quais é aplicado, temos que a teoria da reserva do possível – em regra, evocada como argumento fazendário para objetar a realização de direitos essenciais à dignidade – é de aplicação excepcional, circunscrita a discussões atinentes à realização de direitos sociais que extrapolem o conceito de mínimo vital e que não estejam incorporadas por normas constitucionais atributivas de direitos públicos a seus destinatários 38 Dirley da Cunha Junior, por sua vez, não admite que a efetividade dos direitos sociais fique condicionada à reserva do possível, haja vista o fato de essa construção teórica ter se 37 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 326 38 A Cidadania Social na Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 29. 20 originado na Alemanha, onde as condições sociais em nada se assemelham às vigentes na sociedade brasileira, que sofre de inúmeras carências. Afirma o autor que recursos públicos sempre haverá, e o papel do Poder Judiciário é de promover a justa distribuição deles, destinando-os principalmente ao atendimento das necessidades vitais do homem, proporcionando-lhe condições de existência dignas39. Analisando as ponderações feitas por esse doutrinador, discordamos de sua afirmação no sentido de que os direitos sociais não podem ficar condicionados à reserva do possível. Em nossa opinião, conforme demonstrado ao longo do presente trabalho, é possível, através da garantia do mínimo existencial, compatibilizar a efetividade dos direitos sociais com a teoria da reserva do possível. Assim, aquela porção de cada direito fundamental social imprescindível à dignidade da pessoa humana não pode sofrer condicionamentos. Porém, existem as parcelas de cada um desses direitos sociais que, embora contribuam para a melhoria da qualidade de vida do indivíduo, não são imprescindíveis à sua dignidade, não compondo, portanto, o que a doutrina denominou de mínimo existencial. A estes pode ser aplicada a teoria da reserva do possível, condicionando a sua exigibilidade à existência dos recursos financeiros públicos necessários à sua efetivação. Em outras palavras, o mínimo existencial constitui-se em limite à aplicação da reserva do possível, ao delimitar a porção do direito fundamental que não pode ser restringida, nem mesmo sob o fundamento da inexistência de recursos financeiros suficientes, por ser imprescindível à preservação da dignidade do titular do direito. É importante ressaltar que a própria delimitação do mínimo existencial deve ser feita em consonância com o princípio da proporcionalidade, de forma que esse conceito abranja somente os bens imprescindíveis à preservação da dignidade da pessoa humana, cuja proteção não possa ser mitigada em nenhuma hipótese. Em outras palavras, o conceito de mínimo existencial deve contemplar apenas os direitos que, quando em confronto com quaisquer outros, sejam considerados mais relevantes. Concluindo, pode-se dizer que o mínimo existencial impõe um limite à aplicação da reserva do possível como restrição aos direitos fundamentais sociais. Em outras palavras, exerce a função de parâmetro para avaliar se determinada restrição a direito social, imposta pelo Poder Público, sob o argumento da reserva do possível, observou ou não o princípio da proporcionalidade. Julgamos oportuno finalizar a presente exposição com as palavras de Luís Fernando Sgarbossa40,que sintetizam a conclusão acima apresentada: Reputa-se aqui que o mínimo existencial desempenha um papel análogo ao legitimamente desempenhado pela reserva do possível, no âmbito do Estado Social constitucionalizado, mas em sentido oposto. Explica-se: se, por uma lado, a reserva do possível representa, em sua configuração original (i.e., conforme o teor originário do precedente BverfGE 33, 303) um limite máximo ou teto para o Estado Social, excluindo pretensões exageradas e irrazoáveis, conforme já visto, por outro lado, o mínimo existencial desempenha o papel de um patamar mínimo ou piso para o Estado Social, excluindo a omissão estatal que comprometa a existência digna da pessoa. REFERÊNCIAS ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa. Coimbra: Almedina, 1987. In: TONIN, Marta Marília. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista Jurídica – Faculdade de Direito de Curitiba. Curitiba, ano 14, n. 12, 1998 39 CUNHA JUNIOR, Dirley da. A efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a Reserva do Possível. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 3. ed., Salvador: Juspodivm, p. 349-395, 2008. Material da 4ª aula da disciplina Teoria
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