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Robert Jackson • Georg Sorensen Introdução às relações internacionais Teorias e abordagens 2- edição revista e ampliada Tradução: B árbara D uarte Revisão técnica: A r t h u r It u a s s u Prof. da PUC-Rio, mestre e doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio ZAHAR Note Texto digitado realismo: 102-112nullliberalismo: 151-155 Liberalism o Introdução: premissas liberais básicas 148 Liberalismo sociológico 151 Liberalismo da interdependência 155 Liberalismo institucional 161 Liberalismo republicano 165 Críticas neorrealistas contra o liberalismo 170 O recuo para o liberalismo menos convicto 173 O contra-ataque do liberalismo mais convicto 175 Liberalismo e ordem mundial 180 Liberalismo: a atual agenda de pesquisa 184 Pontos-chave 185 Questões 186 Orientação para leitura complementar 187 Links 188 Resumo Este capítulo apresenta a tradição liberal de relações internacionais. As premis sas liberais básicas são: (1 ) uma visão positiva da natureza humana; (2) uma convicção de que as relações internacionais podem ser cooperativas em vez de conflituosas; e (3) uma crença no progresso. Ao refletir sobre a cooperação internacional, os teóricos liberais enfatizam diferentes características da política mundial. Os liberais sociológicos acentuam as ligações não governamentais transnacionais entre as sociedades, como a comunicação entre indivíduos e grupos. Os liberais da interdependência dão atenção particular às ligações econômicas de intercâmbio e dependência mútua entre povos e governos. Os liberais institucionais ressaltam a importância da cooperação organizada entre os Estados; e, finalmente, os liberais republicanos argumentam que as consti tuições liberais democráticas e as formas de governo são de importância vital para induzir relações pacíficas e cooperativas entre os Estados. O capítulo discute essas quatro tendências do pensamento liberal e o debate com o neorrealismo. A conclusão avalia as perspectivas para a tradição liberal como um programa de pesquisa em RI. 148 Introdução às relações internacionais Introdução: premissas liberais básicas Por que um capítulo sobre a tradição liberal de RI? Conhecer a tradição liberal é necessário para se formar uma opinião sobre uma das questões mais debatidas das RI: a visão pessimista do realismo contra a visão otimista do liberalismo. O capítulo anterior apresentou a tradição realista, com seu enfoque no poder e no conflito. Este capítulo mostra a perspectiva liberal, que é nitidamente oposta. Como os liberais podem ser otimistas? Por que acreditam em um mundo mais pacífico no futuro? Quais são seus argumentos e crenças? A tradição liberal das RI está bastante associada ao surgimento do Estado liberal moderno. Filósofos liberais, começando com John Locke no século XVII, acreditavam em um grande potencial para o progresso humano na sociedade civil moderna e na economia capitalista, que poderiam prosperar em Estados que garantissem a liberdade individual. A modernidade projeta uma vida nova e me lhor, livre do governo autoritário e com um nível mais alto de bem-estar material. O processo de modernização desencadeado pela revolução científica per mitiu o aprimoramento da tecnologia e, consequentemente, a formação de meios mais eficientes para a produção de bens e o controle da natureza. Esse fenômeno ainda foi reforçado pela revolução intelectual liberal, caracterizada pela fé na racionalidade e na razão humana. Essa é a base para a crença liberal no progresso: o Estado liberal moderno exige um sistema econômico e políti co que trará, segundo a famosa frase de Jeremy Bentham, “mais felicidade ao maior número de pessoas” (ver link 4.03). Q uadro 4.1 M odernização Entre 178 0 e 1 8 5 0 , em menos de três gerações, uma revolução de longo alcance, sem precedentes na história da humanidade, mudou a Inglaterra. Desse momento em diante, o mundo não era mais o mesmo. A Revolução Industrial transformou o homem de um agricultor-pastor em um manipulador de máquinas que funcio navam sem energia animal ... [Isso] tornou acessível um mundo completamente diferente de novas e inexploradas fontes de energia com o o carvão, o petróleo, a eletricidade e os átomos. Do ponto de vista restrito da tecnologia, a Revolução In dustrial pode ser definida como o processo pelo qual a sociedade ganhou controle de vastos recursos de energia inanimada; mas tal definição não faz justiça a este fenômeno ... quanto a suas implicações econômicas, culturais, sociais e políticas. Cipolla (1977: 7-8) Liberalism o 149 Em geral, os liberais apresentam uma visão positiva acerca da natureza hu mana. Acreditam na razão humana e estão convencidos de que os princípios racionais podem ser aplicados às questões internacionais. Embora reconhe çam que os indivíduos são egoístas e competitivos até certo ponto, acreditam também que há muitos interesses comuns entre eles e, portanto, podem se engajar em ações sociais cooperativas e colaborativas, tanto nacional como internacionalmente, resultando em mais benefícios para todos em casa e no exterior. Isso significa que o conflito e a guerra podem ser evitados, basta que as pessoas utilizem a razão para alcançar uma cooperação benéfica mútua não só dentro dos Estados, mas também através das fronteiras internacionais. Sendo assim, para os teóricos liberais, a razão humana pode triunfar sobre o medo e a cobiça pelo poder. Entre os liberais, no entanto, há uma discordância quanto à magnitude dos obstáculos a caminho do progresso humano (Smith 1992: 204). Para alguns liberais, esse é um processo de longo prazo com muitos contratem pos; para outros, o sucesso é iminente. Mas uma coisa é certa para todos: com o tempo, a cooperação com base em interesses mútuos prevalecerá, porque a modernização aumenta continuamente o campo de ação e a necessidade de cooperação (Zacher e Matthew 1995: 119) (ver Quadro 4.2). Quadro 4.2 Liberalismo clássico ENFOQUE Liberdade, cooperação, paz, progresso PRIMEIROS PENSADORES Locke (1632-1704) Bentham (1748-1832) Kant (1 724-1 804) O estado de direito Estados liberais “Repúblicas “Rechtsstaat” respeitam o direito estabelecerão a paz internacional perpétua” A crença no progresso é uma premissa central do liberalismo, apesar de ser também um ponto polêmico entre os teóricos (ver Pollard 1971: 9-13). Quanto progresso? Certamente o progresso tecnológico e científico, mas também social e político? Quais os limites do progresso? Há limites? Progresso para quem? Para um número pequeno de países liberais ou para o mundo todo? Ao longo do tempo, o campo de ação e o grau de otimismo liberal com relação ao pro gresso variaram bastante. Muitos dos primeiros liberais tendiam a ser bastante 1 50 Introdução às relações internacionais otimistas; também percebemos uma onda de liberalismo utópico por volta da Primeira Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra, contudo, o otimismo libe ral se enfraqueceu. Robert Keohane, por exemplo, observa com cuidado que os liberais, no mínimo, acreditam “na possibilidade de progresso cumulativo” (Keohane 1989a: 174). Ainda assim, após o fim da Guerra Fria, surge outra onda de otimismo liberal motivada pela ideia do “fim da história”, com base na derrota do comunismo e na esperada vitória universal da democracia liberal (Fukuyama 1989; 1992). Os ataques terroristas em Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001, seguidos por ataques em Madri, Londres, entre outras cidades, no entanto, são um revés para o otimismo liberal. O progresso para os liberais é sempre para os indivíduos, ou seja, a preocu pação central do liberalismo é a felicidade e a satisfação dos seres humanos. John Locke (ver link 4.05) argumenta que os Estados existem para garantir a liberdadede seus cidadãos e, desta forma, permitir que vivam suas vidas e busquem a felicidade sem a interferência indevida de outros. Ao contrário dos realistas, que consideram o Estado antes de tudo um centro e um instrumento de poder, um Machtstaat, os liberais o veem como uma entidade constitucional, um Recbtsstaat, que estabelece e impõe o estado de direito, que respeita os direi tos dos cidadãos à vida, à liberdade e à propriedade. De acordo com a mesma lógica, os países constitucionais também respeitariam e lidariam uns com os outros segundo as normas da tolerância mútua. Esse argumento foi reforçado por Jeremy Bentham, filósofo inglês do século XVIII, que cunhou a expres são “direito internacional”. Bentham acreditava que fazia parte do interesse racional dos Estados constitucionais aderir ao direito internacional em suas políticas externas (Rosenblum 1978: 101). O argumento ainda foi mais detalha do por Immanuel Kant, filósofo alemão do século XVIII. Kant argumentou que um mundo formado por Estados constitucionais que se respeitem mutuamen te — os quais chamou de “repúblicas” — poderia com o tempo alcançar a “paz perpétua” (Gallie 1978: 8-36). O Quadro 4.2 resume o enfoque dos principais pensadores liberais clássicos. Em suma, o pensamento liberal está bastante associado ao surgimento do Estado constitucional moderno. Os liberais argumentam que a modernização é um processo que requer progresso na maioria das áreas da vida e amplia o campo de ação através das fronteiras internacionais. O progresso significa uma vida melhor para, no mínimo, a maioria dos indivíduos. A medida que eles utilizam mais a razão nas questões internacionais, as chances de cooperação aumentam (ver Quadro 4.3). Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Liberalismo 1 Quadro 4.3 Prem issas liberais básicas Progresso humano 4----------------► Razão humana 4----------------► Cooperação 1 1 I O processo de modernização: desenvolvimento do Estado moderno No Capítulo 2, apresentamos o liberalismo idealista ou utópico caracte rístico dos anos 1920. Já este capítulo enfoca a teoria liberal após a Segunda Guerra Mundial. Vale dividir o liberalismo do pós-guerra em quatro principais tendências de pensamento: liberalismo sociológico', liberalismo da interdependência; liberalismo institucional; e liberalismo republicano (Nye 1988: 246; Keohane 1989a: 11; Zacher e Matthew 1995: 121). As seguintes seções deste capítulo se concen trarão em cada uma das linhas de pensamento. Não será possível abordar todos os trabalhos acadêmicos relevantes ou detalhar como o pensamento liberal contemporâneo foi construído a partir do pensamento liberal clássico, por isso focaremos importantes contribuições, que representam cada uma dessas tendências. Escolhemos dividir as quatro principais tendências para enfatizar os aspectos mais relevantes das ideias liberais contemporâneas sobre as relações internacionais. Liberalismo sociológico Para os realistas, RI é o estudo das relações entre governos de Estados sobera nos. O liberalismo sociológico rejeita essa visão por ter um enfoque restrito e unilateral, e argumentam que não se trata somente de relações estatais, mas também de relações transnacionais, isto é, relações entre pessoas, grupos e or ganizações pertencentes a diversos países. Devemos observar que essa ênfase na sociedade, assim como no Estado, em muitos tipos diferentes de atores e não apenas nos governos nacionais, fez o pensamento liberal ser identificado pelo termo “pluralismo”. As relações transnacionais são consideradas pelos liberais sociológicos um importante aspecto das relações internacionais (ver links 4.09 e 4.10). James Rosenau define o transnacionalismo como: “o processo de substituição das Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce 152 In tro d u çã o às relações in te rnac iona is relações internacionais conduzidas pelos governos por interações entre socie dades, grupos e indivíduos particulares, com importantes consequências para o curso dos eventos” (Rosenau 1980: 1). Ao enfocar as relações transnacionais, os liberais sociológicos retomam um antigo tema do pensamento liberal — a ideia de que as relações entre as pessoas são mais cooperativas e favoráveis à paz do que o relacionamento entre governos nacionais. Richard Cobden, um pensador liberal do século XIX, explica a ideia: “Quanto menos intercâmbio entre os governos, maior é a ligação entre as nações do mundo” (Cobden 1903: 216; Taylor 1957: 49). Por “nações”, Cobden se referiu às sociedades e à par ticipação social. Karl Deutsch teve grande importância no estudo das relações transnacio nais durante os anos 1950. Junto com seus assistentes, tentou medir o grau da comunicação e transações entre sociedades, para concluir que um alto grau de ligações transnacionais estimula relações pacíficas, as quais correspondem a algo mais do que a simples ausência de guerra (Deutsch et al, 1957). Tal raciocínio resulta em uma comunidade de segurança, ou seja, “um grupo de pessoas que se tornaram ‘integradas’.” Nesse caso, a integração significa que uma “noção de comunidade” foi alcançada; as pessoas passam a concordar que seus conflitos e problemas podem ser solucionados “sem precisar recor rer à força física em grande escala” (Deutsch et al. 1957: 5). De acordo com Deutsch, essa comunidade de segurança surgiu entre os países ocidentais na área do Atlântico Norte. Para o teórico, há uma série de condições que condu zem à formação de tais grupos: mais comunicação social; mais mobilidade de pessoas; laços econômicos mais fortes; e um alcance mais amplo de transações humanas mútuas. Muitos liberais sociológicos defendem a ideia de que as relações transa cionais entre pessoas de diferentes países ajudam a criar novas formas de sociedade humana, que podem existir em união ou em competição com o Estado-nação. No livro World Soáety [Sociedade mundial], John Burton (1972) propõe um “modelo de teia de aranha” de relações transnacionais, com o propósito de demonstrar como qualquer Estado-nação é composto de vários grupos diferentes de pessoas com diversos tipos de ligações externas e variados interesses: grupos religiosos, empresariais, trabalhistas, entre outros. Em um contraste acentuado, o modelo realista do mundo descreve, muitas vezes, o sis tema de Estados como um conjunto de bolas de bilhar: uma série de unidades independentes e autossuficientes (ver Quadro 4.4). De acordo com os liberais sociológicos, como Burton, se traçarmos os padrões de comunicação e de tran sações entre os vários grupos conseguiremos uma representação mais precisa do mundo, já que será possível simbolizar padrões reais do comportamento humano em vez de fronteiras artificiais de Estados (ver link 4.14). Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce L ibe ra lism o 153 Quadro 4.4 O modelo da bola de bilhar e o modelo da teia de aranha Bolas de bilhar se chocam Teia de grupos: conflitos leves Burton sugere que o modelo de ceia de aranha indica um mundo motivado mais pela cooperação benéfica mútua do que pelo conflito antagônico. Nes se sentido, o modelo é construído a partir de antigas ideias liberais sobre os efeitos benéficos da afiliação a grupos. Como os indivíduos são membros de muitos grupos diferentes,o conflito será reduzido, se não eliminado; participa ções sobrepostas minimizam o risco de conflito sério entre qualquer dos dois grupos (Nicholls 1974: 22; Little 1996: 72). Posteriormente, James Rosenau desenvolveu mais a abordagem liberal so ciológica das relações transnacionais (Rosenau 1990; 1992), atentando para as relações transnacionais no nível macro das populações além daquelas de nível micro dos indivíduos (ver Quadro 4.5). Rosenau argumenta que as transações individuais geram efeitos e consequências importantes para as questões glo bais. Em primeiro lugar, os indivíduos incrementaram bastante suas atividades devido a um melhor acesso à educação e aos meios eletrônicos de comunicação, bem como às viagens ao exterior. Em segundo lugar, a capacidade dos Esta dos de controlar e regulamentar tem diminuído em um planeta cada vez mais complexo, levando a um mundo de indivíduos mais bem-informados e menos ligados aos “seus” Estados. Para Rosenau, isso significa o desenvolvimento de uma profunda transformação do sistema internacional. Não se trata do desapa recimento do ambiente estadocêntrico e anárquico, mas da emergência de um “novo mundo com múltiplos centros e composto de várias coletividades ‘livres de soberania’, independentes e em competição com aquele focado no Estado e formado por atores ‘vinculados à soberania’” (Rosenau 1992: 282). Nesse Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce 1 54 Introdução às relações internacionais sentido, Rosenau apoia a ideia liberal de que um ambiente mais pluralista, ca racterizado por redes transnacionais de indivíduos e grupos, será mais pacífico. Certamente, em alguns aspectos, esse será um mundo mais instável, porque a antiga ordem com base no poder estatal se dissolveu; mas dificilmente os conflitos culminarão no uso da força, uma vez que inúmeros novos indivíduos cosmopolitas, membros de muitos grupos comuns, não se tornarão inimigos, divididos em campos opostos. Quadro 4.5 A im portância dos indivíduos na política global Os cidadãos se tornaram variáveis importantes ... da política global ... [devido a] pelo menos cinco razões: 1. A erosão e a dispersão do Estado e do poder governamental. 2. O surgimento da televisão global, a ampliação do uso de computadores em ambientes de trabalho, o crescimento de viagens ao exterior, a multiplicação da migração de pessoas e a difusão de instituições educacionais ... [que] realçam as qualificações analíticas dos indivíduos. 3. O tumulto na agenda global provocado pelas novas questões da interdepen dência (como a poluição ambiental, as crises monetárias, o tráfico de drogas, a Aids e o terrorismo) enfatizou os processos pelos quais a dinâmica global afeta o bem-estar e os níveis de renda dos indivíduos. 4. A revolução das tecnologias de informação permitiu que cidadãos e políticos literalmente “enxergassem” a transformação de microações em macrorresultados. Atualmente, as pessoas podem ver manifestações de massa como comícios de rua, bem como os pronunciamentos das autoridades, as respostas dos adversários, os comentários dos manifestantes ... e uma variedade de outros eventos que são retratados e interpretados nas telas de televisão por todo o mundo. 5. A recém-descoberta capacidade dos cidadãos de “ver” seu papel na dinâmica de transformação alterou de forma profunda ... possivelmente até diminuiu, o grau de influência da organização e da liderança na mobilização do público ... Os líderes cada vez mais se tornam seguidores, porque os indivíduos estão cada vez mais conscientes de que suas ações podem produzir consequências. Rosenau (1992: 274-6) Liberalismo 155 Podemos resumir o liberalismo sociológico da seguinte forma: RI não se trata somente do estudo das relações entre os governos nacionais; os acadêmi cos de RI também estudam as relações entre sociedades, grupos e indivíduos particulares. Relações sobrepostas e interdependentes entre as pessoas são mais propícias a serem mais cooperativas do que as relações entre os Estados, porque estes são restritivos e, de acordo com o liberalismo sociológico, seus interesses não combinam. Portanto, mais pacífico será um mundo quanto maior for o seu número de redes transnacionais. Liberalismo da interdependência A interdependência significa uma dependência mútua: as pessoas e os gover nos sofrem o impacto do que acontece em todos os lugares, das ações de seus semelhantes em outros países. Dessa forma, um grau mais elevado de relações transnacionais entre os Estados proporciona uma interdependência maior. Isso também expressa o processo de modernização, que intensifica a interdepen dência entre países. O século XX, em especial a partir de 1950, acompanhou a ascensão de um grande número de nações altamente industrializadas. Com base nisso, Richard Rosecrance (1986, 1995, 1999) analisou os efeitos desse desenvolvimento sobre as políticas estatais. Durante toda a história, os países buscaram o poder por meio da força militar e da expansão territorial. Para paí ses altamente industrializados, no entanto, o desenvolvimento econômico e o comércio exterior são meios mais adequados e menos custosos de se conseguir proeminência e prosperidade, uma vez que aumentaram os gastos com o uso da força e diminuíram os benefícios. Por que a força é menos vantajosa para os Estados e o comércio é cada vez mais importante? A principal razão, segundo Rosecrance, é a transformação do caráter e da base da produção econômica, associada à modernização. Em um período anterior, a posse de território e am plos recursos naturais eram fundamentais para a grandiosidade. Atualmente, não é mais o caso e os ingredientes essenciais para o sucesso são uma força de trabalho altamente qualificada, o acesso à informação e o capital financeiro (ver link 4.18). Os países com as economias mais bem-sucedidas no período pós-guerra são os “Estados comerciantes”, como o Japão e a Alemanha, que se abstiveram da opção político-militar tradicional de alto gasto militar e autossuficiência econômica e optaram pela divisão de trabalho internacional intensificada e Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce Note Realce 156 Introdução às relações internacionais pela interdependência elevada. Vale lembrar que muitos países pequenos tam bém são “Estados comerciantes”. Durante um longo tempo, os próprios países grandes, como a União Soviética e os Estados Unidos, seguiram a tradicional opção político-militar, sobrecarregando-se assim com altos gastos militares, mas isso mudou nas últimas décadas. Segundo Rosecrance, o final da Guerra Fria tornou essa opção tradicional menos urgente e atrativa. Consequentemen te, a opção do Estado comerciante é cada vez mais adotada, inclusive pelos países maiores (ver links 4.15 e 4.16). Basicamente, os liberais da interdependência argumentam que a alta di visão de trabalho na economia internacional intensifica a interdependência, desestimulando e reduzindo os conflitos violentos entre os Estados. Apesar de permanecer o risco de os Estados modernos retomarem a opção militar e iniciarem mais uma vez corridas armamentistas e confrontos violentos, a probabilidade de isso ocorrer é baixa. Hoje, a guerra ocorre nos países menos desenvolvidos, onde, de acordo com Rosecrance, os níveis mais baixos de desen volvimento econômico mantêm a terra como um fator dominante na produção e a modernização e a interdependência são bem mais fracas. Durante a Segunda Guerra Mundial, David Mitrany (1966) apresentou uma teoria funcionalista da integração, argumentandoque uma interdependên cia mais elevada na forma de ligações transnacionais entre os países poderia proporcionar a paz. Mitrany acreditava, talvez de certo modo ingenuamente, que a cooperação deveria ser organizada por especialistas técnicos e não por políticos. Os especialistas idealizariam soluções para problemas comuns em várias áreas funcionais, como transporte, comunicação, financiamento etc. A colaboração técnica e econômica aumentaria quando os participantes desco brissem os benefícios mútuos que poderiam ser então obtidos. Quando os cidadãos se dessem conta das melhorias do bem-estar resultantes da colabo ração eficiente nas organizações internacionais, transfeririam sua lealdade do Estado para essas organizações. Assim, a interdependência econômica levaria à integração política e à paz (ver link 4.20). Ernst Haas desenvolveu a chamada teoria neofuncionalista da integração internacional inspirada pela cooperação intensificada entre os países da Europa ocidental a partir dos anos 1950. Haas se baseou em Mitrany, porém rejeitou a ideia de separar questões “técnicas” da política. A integração busca intensificar a cooperação entre elites políticas egoístas, ou seja: é um processo pelo qual “atores políticos são persuadidos a mudar suas lealdades ... em direção a um novo centro, cujas instituições possuem ou exigem jurisdição sobre Estados nacionais preexistentes” (Haas 1958: 16). Esse procedimento “funcional” de integração depende da noção de “transbordamento”, isto é: uma cooperação mais intensa em uma área específica estimula o aumento da mesma em outras Liberalismo 157 áreas. O transbordamento incentivaria as elites políticas a promover a integra ção. Haas testemunhou esse fenômeno, no período inicial da cooperação na Europa ocidental, na década de 1950 e no início dos anos 1960. A partir da metade dos anos 1960, contudo, a cooperação na Europa ociden tal encrou em uma longa fase de estagnação e até mesmo de retrocesso. Isso se deveu, principalmente, à oposição do presidente francês De Gaulle às limitações à soberania francesa resultantes da interdependência. As teorias funcional e neofuncional não permitiam a possibilidade de retrocessos na cooperação, logo os estudiosos da integração precisaram repensar suas teorias. Haas concluiu que a integração regional deve ser analisada em um contexto maior: “a teoria da integração regional deveria ser subordinada à teoria geral da interdependência” (Haas 1976: 179) (ver Quadro 4.6). Na fase seguinte do pensamento liberal, investiu-se novamente nessa teoria geral da interdependência, mas vale ressaltar que teorias de integração foram revitalizadas nos anos 1980 e 90 em função de um novo impulso de cooperação na Europa ocidental (Moravcsik 1991; Tranholm-Mikkelsen 1991; Keohane e Hoffmann 1991). Nesses estudos mais recentes, uma questão central é: a in tegração é mais bem explicada por meio de uma abordagem neofuncionalista liberal ou de uma realista com ênfase no interesse nacional? Vamos retornar ao debate entre liberais e realistas a seguir. Uma tentativa ambiciosa de apresentar uma teoria geral acerca do que cha mam de “interdependência complexa” foi feita no final dos anos 1970 no livro, Power and Interdependence [Poder e interdependência] (1977; 2001), de Robert Keohane e Joseph Nye. De acordo com os autores, a “interdependência com plexa” do pós-guerra é qualitativamente diferente dos tipos anteriores e mais simples de interdependência. Antes disso, as relações internacionais eram co ordenadas pelos líderes de Estado, que lidavam com outros líderes, e o uso da força militar sempre foi uma opção no caso do conflito entre eles. A “política superior” da segurança e da sobrevivência tinha prioridade sobre a “política inferior” da economia e das questões sociais (Keohane e Nye 1977: 23). Sob condições de interdependência complexa, contudo, a situação não é mais a mesma por duas razões: primeiro, as relações atuais entre os Estados não são somente ou basicamente interações entre líderes de Estados; há relações em ní veis muito variados por meio de múltiplos atores e de diversos departamentos de governo; segundo, há um grande número de relações transnacionais entre indivíduos e grupos externos ao Estado; e, além disso, a força militar é um ins trumento de política menos útil sob condições de interdependência complexa (ver links 4.24 e 4.25). Consequentemente, as relações internacionais assim se tornam mais pare cidas com a política nacional: “Questões diferentes geram coalizões diferentes, 1 58 In tro d u çã o às relações in te rnac iona is Q uadro 4 .6 Principais instituições da UE ambas dentro de governos e entre governos, e envolvem diversos graus de con flito. A política transcende fronteiras” (Keohane e Nye 1977: 25). Na maioria desses conflitos, a força militar é irrelevante. Portanto, recursos de poder além das armas, como habilidade de negociação, passam a ter suma importância. Por fim, sob uma interdependência complexa, os Estados se preocupam mais com a “política inferior” do bem-estar e menos com a “política superior” da segurança nacional (Nye 1993: 169; Keohane e Nye 1977: 24-6). Representamos o antigo e retrógrado mundo realista e o novo e avançado mundo da interdependência complexa no Quadro 4.7. Não há dúvida de que a interdependência complexa gera uma relação mais amigável e cooperativa entre Estados. De acordo com Keohane e Nye (1977: L ibe ra lism o 159 29-38), isso traz várias consequências. Em primeiro lugar, os Esrados busca rão diferentes objetivos e atores transnacionais, como ONGs e corporações transnacionais, investirão, ao mesmo tempo, em suas próprias metas, distin tas e livres do controle estatal. Outro efeito é a especialização dos recursos de poder em relação às áreas temáticas. Por exemplo: apesar de pequenas em ta manho, Dinamarca e Noruega dominarão a navegação internacional por causa de suas grandes frotas mercantis e de seus navios-tanques, mas esse poder de influência não transita com facilidade para outras questões. O terceiro ponto é a valorização das organizações internacionais, que funcionam como arenas para as ações políticas dos Estados fracos, estimulam a formação de coalizões e supervisionam o estabelecimento de agendas internacionais. Q uadro 4 .7 Tipos de relações internacionais REALISM O • Estados como atores dominantes e unidades coesas Força utilizável e efetiva • Segurança militar domina agenda Com base em Keohane e Nye (1977) IN TERD EPEN D EN C IA CO M PLEXA • Atores transnacionais cada vez mais importantes. Estados não são uni dades coesas • Força militar menos útil. Instrumen tos econômicos e institucionais mais úteis • Segurança militar menos importan te. Questões de bem-estar cada vez mais relevantes Onde fica a interdependência complexa no tempo e no espaço? Na dimen são do tempo, parece estar associada à modernização social ou ao que Keohane e Nye (1977: 227) chamam de “desenvolvimento de longo prazo do Estado de bem-estar”, que avançou mais rapidamente após 1950. No espaço, a inter dependência complexa é mais evidente na Europa ocidental, na América do Norte, no Japão, na Austrália e na Nova Zelândia: países industrializados plu ralistas (1977: 27). A relevância da interdependência complexa cresce à medida que a modernização se desenvolve e é aplicada, em especial, nas relações entre os países ocidentais avançados. Keohane e Nye se esforçam para enfatizar que o realismo não é irrelevante nem obsoleto: 160 Introdução às relações internacionais Não é impossível imaginar um conflito dramático, ou uma mudança revolucio nária, em que o uso da ameaça da força militar sobre uma questão econômica ou entre países industriais avançados se torne real. As premissas realistas ga nhariam uma orientação confiável para oseventos. (Keohane e Nye 1977: 28) Ou seja, até mesmo entre os países mais industrializados do Ocidente, um assunto pode se tornar “uma questão de vida e morte” (p.29), porque mesmo este mundo ainda é, em alguns aspectos básicos, um mundo de Estados. Nesse caso, o realismo seria a abordagem mais apropriada aos eventos. Os realistas afirmam que qualquer assunto pode se tom ar uma questão de vida e morte em um mundo anárquico, já os liberais da interdependência res ponderão que este raciocínio é simplificado e que muitas questões da agenda internacional são elementos práticos importantes e em linha com as suposi ções da interdependência complexa. Portanto, os liberais da interdependência sugerem um compromisso: A resposta apropriada às mudanças ocorridas na política mundial contem porânea não é desacreditar o conhecimento tradicional do realismo e suas preocupações com relação à balança de poder militar, mas compreender suas limitações e complementá-las com perspectivas da abordagem liberal. (Nye 1990: 177) Fica claro, então, que os liberais da interdependência apresentam uma abor dagem mais moderada do que outros liberais, que acreditam que tudo mudou para melhor e que o antigo mundo de conflito violento, do poder estatal de senfreado e da ditadura do interesse nacional acabaram definitivamente. No entanto, ao adotar essa posição intermediária, os liberais da interdependência enfrentam o problema de decidir exatamente quanto mudou, quanto permanece o mesmo e quais as consequências precisas para as RI. Voltaremos a esse debate no final do capítulo. Enquanto isso, o liberalismo da interdependência pode ser resumido da seguinte forma: a modernização aumenta o nível e o campo de ação da in terdependência entre os Estados. Sob a interdependência complexa, atores transnacionais são cada vez mais relevantes, a força militar é um instrumento menos útil e o bem-estar — não a segurança — se torna o objetivo e a principal preocupação dos Estados. Assim, o mundo se torna o cenário de relações in ternacionais mais cooperativas. Liberalismo Liberalismo institucional Esta tendência do liberalismo retoma o antigo pensamento liberal sobre os efeitos benéficos das instituições internacionais. No Capítulo 2, mostramos a proposta de Woodrow Wilson de transformar as relações internacionais de uma “selva” caótica de política de poder em um “zoológico” de intercâmbio pacífico e regulamentado. Essa mudança seria alcançada por meio da cons trução das organizações internacionais, principalmente a Liga das Nações (ver link 4.27). Os liberais institucionais contemporâneos são menos otimistas do que seus antecessores idealistas — eles concordam que as instituições interna cionais podem tornar a cooperação mais fácil e provável, mas não acreditam que tais organizações podem sozinhas garantir uma transformação das rela ções internacionais, da “selva” para o “zoológico”. Apesar de estarem cientes de que os Estados poderosos não serão completamente coagidos, os liberais institucionais não concordam com o argumento realista de que as institui ções internacionais são apenas “pedaços de papel” à mercê total dos Estados poderosos. As instituições internacionais são mais do que simples subalternas dos Estados fortes; elas possuem uma importância autônoma e são capazes de promover a cooperação entre os países (Keohane 1989a; Young 1989; R itt berger 1993; Levy et al. 1995). O que é uma instituição internacional? De acordo com os liberais institu cionais, é uma organização internacional, como a Otan ou a União Europeia (ver Quadro 4.8), ou um conjunto de regras que governam a ação estatal em áreas particulares, como a aviação ou a navegação. Esses conjuntos de regras são também chamados de “regimes”. Muitas vezes ambos ocorrem em paralelo: o regime de comércio, por exemplo, é configurado principalmente pela Orga nização Mundial do Comércio (OMC). Os regimes também podem existir sem organizações formais: como as conferências da Lei dos Mares, realizadas com o aval das Nações Unidas e que não possuem uma organização internacional formal. Finalmente, devemos observar que há um outro tipo de instituição internacional ainda mais fundamental, como a soberania estatal ou a balan ça de poder. Os liberais institucionais não se concentram nessas instituições fundamentais, mas elas são os principais objetos de estudo dos teóricos da sociedade internacional, como veremos no Capítulo 5. 1 62 In tro d u çã o às relações in te rnac iona is Q uadro 4 .8 Um a tipologia das organizações transnacionais e interna cionais META DA ORGANIZAÇÃO Intergovemamental 3 Supranacional Utu 2 Transnacional Intergovemamental □ Supranacional Transnacional ESPECIFICA Otan Nafta Ceca (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) GERAL UA (União Africana) União Europeia Rede europeia contra Movimento Europeu a pobreza O M S (Organização Mundial da Saúde) IAEA (Agência de Energia Atômica Internacional) Anistia Internacional ONU Associação Federa- lísta internacional Adaptado de Heurlin (1996) Os liberais institucionais argumentam que as instituições internacionais ajudam a promover a cooperação entre os Estados e, para avaliar essa afirma ção, eles adotam uma abordagem bebaviorista e científica. A fim de analisar o nível de colaboração, os teóricos criam uma medida empírica da extensão da institucionalização entre os Estados. A institucionalização pode ser quantifi cada em duas dimensões, no campo de ação e na profundidade. O “campo de ação” se refere ao número de áreas temáticas que apresentam instituições. Será que as instituições estão somente em algumas áreas econômicas cruciais, como no comércio e no investimento, ou também em outros ramos da economia? Ou mesmo em questões de natureza militar e sociopolítica? Para analisar a “profundidade” da institucionalização, três caminhos foram sugeridos: L ibe ra lism o 163 • O da semelhança: o grau em que as expectativas sobre o comportamento apropriado e acerca do entendimento sobre como interpretar a ação é co mum aos participantes no sistema. • O da especificidade: o grau em que essas expectativas são claramente es pecificadas na forma de regras. • O da autonom ia: a extensão em que a instituição pode modificar suas próprias regras em vez de depender de agentes externos (Estados) para fazer isso. (Keohane 1989a: 4) As pesquisas contemporâneas sobre instituições internacionais possuem duas finalidades principais. Em primeiro lugar, há um esforço para reunir mais dados sobre regimes em várias áreas temáticas das relações internacionais. Além disso, o outro objetivo diz respeito a uma série de questões teóricas que exigem um estudo mais amplo, como demonstrado em uma pesquisa recente (Levyetal. 1995:268): • Sob que condições e por meio de quais mecanismos os regimes internacio nais passam a existir? • Os regimes permanecem mesmo após a mudança das circunstâncias que os originou? • Quais consequências dos regimes para o comportamento estatal e para a resolução de problemas são passíveis de observação? • Quais os efeitos de longo prazo que os regimes provocam nos sistemas po líticos nacionais e na estrutura da política mundial? Fica claro que uma análise completa do campo de ação e da profundidade da institucionalização presente entre um grupo de Estados é uma tarefa de pesquisa importante. Uma completa ausência de institucionalização é bastante improvável, uma vez que algumas regras de coordenação sempre existirão. A dificuldade é determinar o nível exato de institucionalização e, nesse sentido, vários estudos abordaram a questão que diz respeito ao quanto as instituições ajudaram na promoção da cooperação (Krasner 1983; Keohane 1984; 1989a; Rittberger 1993; Underdal 1992; Young 1989; Oye 1986; Haftendornet al. 1999; Lake 2001; Botcheva e Martin 2001). Uma forma de fazer isso é observar um grupo de Estados no qual acreditamos, de imediato, que o campo de ação e a profundidade da institucionalização são altos, para então avaliar os meios pelos quais as instituições se tornam importantes. Um desses grupos de países é a Europa, em especial a União Europeia (UE) (ver link 4.30). A cooperação entre os países da UE é tão intensa a ponto de algumas funções de governo serem comuns, como as políticas industriais e 1 64 In tro d u çã o às relações in te rnac iona is de agricultura; foi estabelecida também uma estrutura reguladora para um único mercado no setor econômico e a interação em outras áreas também au mentou. Portanto, a UE é um bom caso para se analisar a importância das instituições. De acordo com os liberais institucionais, as organizações fizeram uma diferença significativa na Europa ocidental após o fim da Guerra Fria (Keohane et al. 1993). As instituições agem como “amortecedores” que ajudam a absorver os “impactos” na Europa ocidental com o fim da Guerra Fria e o processo de reunificação da Alemanha (ver link 4.29). Uma forma de avaliar a visão liberal institucional é contrapô-la à análise realista. Os neorrealistas argumentam que o fim da Guerra Fria tende mais a promover a instabilidade na Europa ocidental, provocando uma situação ca paz de levar a uma grande guerra, semelhante à da primeira metade do século XX. A paz na Europa durante a Guerra Fria se fundamentou em dois pilares que constituíam a balança de poder entre os Estados Unidos e a União Sovié tica. Os pilares eram, primeiro, a bipolaridade com sua estável distribuição de poder militar e, segundo, os enormes arsenais de armas nucleares quase que inteiramente monopolizados pelas superpotências. Com a revitalização da multipolaridade, contudo, a instabilidade e a insegurança aumentaram gravemente. No âmago de tudo isso está a estrutura anárquica do sistema in ternacional. De acordo com o neorrealista John Mearsheimer, “a anarquia tem duas consequências principais: primeiro, há pouco espaço para a confiança entre os Estados ... e, segundo, cada Estado deve garantir sua própria sobrevi vência, já que nenhum outro ator a proporcionará” (Mearsheimer 1993: 148). Para os liberais institucionais (Keohane 1989a: 2; Nye 1993: 38; Keohane et al. 1993), um alto nível de institucionalização reduz de forma significativa os efeitos desestabilizadores da anarquia multipolar identificada por Mear sheimer. As instituições compensam a falta de confiança entre os Estados, permitindo um fluxo de informação entre os membros, que, consequente mente, gera mais transparência às ações dos países e aos seus motivos. Dessa forma, as instituições ajudam a reduzir o medo mútuo entre os Estados- membros. Além disso, são um foro para a negociação entre os Estados - por exemplo, a União Europeia tem uma série de foros com ampla experiência em negociação e compromisso, incluindo o Conselho dos Ministros, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu. As instituições promovem a cooperação entre Estados visando a vantagens mútuas. Os Estados europeus, por exem plo, podem usar a estrutura da UE para garantir que outras partes respeitem os compromissos assumidos. As instituições ajudam a “criar um ambiente para o desenvolvimento de uma paz estável” (Nye 1993: 39). O papel cons trutivo das instituições defendido pelos liberais institucionais está resumido no Quadro 4.9. L ibe ra lism o 165 O liberalismo institucional pode ser resumido da seguinte forma: institui ções internacionais contribuem para a promoção da cooperação entre os Esta dos e, assim, para aliviar a falta de confiança entre eles e o sentimento de medo mútuo presente no ambiente, todos considerados problemas tradicionais da anarquia internacional. O papel positivo das instituições internacionais para o aumento da cooperação entre os países, no entanto, continua a ser questionado pelos realistas. Retomaremos esse debate a seguir. Q uadro 4 .9 O liberalismo institucional: o papel das instituições Possibilitam um fluxo de informação e oportunidades para a negociação. Realçam a capacidade dos governos de monitorar a aquiescência dos outros e de implementar os seus próprios compromissos — por conseguinte: a habilidade de firmar acordos confiáveis em primeiro lugar. Fortalecem expectativas anteriores sobre a solidez dos acordos internacionais. Com base em Keohane (1989a: 2) Liberalismo republicano O liberalismo republicano se baseia na afirmação de que as democracias libe rais são mais pacíficas e cumpridoras da lei do que outros sistemas políticos. O argumento não sugere a ausência de guerra; democracias já entraram em guerra tanto quanto as não democracias, mas a diferença é que não lutam umas contra as outras. Essa observação foi articulada, primeiro, por Immanuel Kant (1992), no final do século XVIII, em referência aos Estados republicanos no lugar das democracias. Kant foi retomado por Dean Babst, em 1964, e tem sido apresentado em inúmeros estudos desde então. Um acadêmico liberal reivindica até mesmo que a afirmação de que as democracias não lutam umas contra as outras é “uma das declarações não triviais ou não tautológicas mais fortes que se pode fazer sobre as relações internacionais” (Russett 1989: 245). Essa descoberta, portanto, é a origem do atual otimismo entre muitos estudio sos e formuladores de políticas liberais sobre a probabilidade da paz mundial Note Realce Note Realce 1 66 In tro d u çã o às relações in te rnac iona is de longo prazo (ver link 4.35). O raciocínio é o seguinte: como, nos últimos anos, o número de democracias no sistema global aumentou rapidamente (ver Quadro 4.10), podemos esperar um mundo mais pacífico formado por relações internacionais caracterizadas pela cooperação em detrimento do conflito (par tes desta seção são aproveitadas de Sorensen 1993a). Por que as democracias mantêm a paz entre si? Michael Doyle (1983; 1986) aborda de forma sistemática a resposta (ver links 4.36 e 4.37), com base no tratamento liberal clássico do assunto feito por Kant. Há três elementos essen ciais inseridos na afirmação de que as democracias, com outras democracias, conduzem à paz. A primeira é a existência de culturas políticas nacionais fun damentadas na resolução pacífica de conflitos. A democracia encoraja relações internacionais pacíficas porque governos democráticos são controlados pelos seus próprios cidadãos, que não vão defender ou apoiar guerras contra outras democracias. O segundo elemento é que as democracias possuem valores morais comuns que levam à formação do que Kant chamou de “união pacífica”. A união não é um tratado de paz formal, mas uma zona de paz com base em fundações mo rais comuns de todas as democracias. Formas pacíficas de resolver o conflito nacional são vistas como superiores ao comportamento violento e essa atitude é transferida para as relações internacionais entre a.s democracias. A liberdade de expressão e a livre comunicação promovem um entendimento mútuo inter nacionalmente e ajudam a garantir a ação de representantes políticos de acordo com os pontos de vista dos cidadãos. Finalmente, a paz entre as democracias é fortalecida por meio da interdepen dência e da cooperação econômica. Na união pacífica, é possível encorajar o que Kant chamou de “o espírito do comércio”: ganho mútuo e recíproco para os en volvidos no intercâmbio e na cooperação econômica internacional. Entre as diferentes tendências de liberalismo apresentadas neste capítulo, o liberalismo republicano tem o elemento normativo mais forte. Para a maio ria dos republicanos liberais não há só confiança, mas também esperança de que a política mundial se desenvolva e avance além da rivalidade, d.o confli to e da guerra entre Estados independentes.Com o perfil bastante otimista, acreditam que a paz e a cooperação predominarão, com o tempo, nas relações internacionais, com base no progresso voltado para um mundo mais democrá tico. Não é só isso (e aqui os elementos normativos se mostram claramente): eles veem como sua responsabilidade a promoção da democracia no mundo, e, cumprindo essa tarefa, conseguem alcançar a paz, um dos valores políticos mais fundamentais. Liberalismo Q uadro 4.1 0 O progresso da dem ocracia Indice de classificação de países independentes da organização Freedom House (com mais de um milhão de habitantes), 2 0 0 8 (2 0 0 7 ) . (1 = CLASSIFICAÇÃO MAIS ALTA) Classificação média: 1 Alemanha Andorra Austrália Áustria Bahamas Barbados Bélgica Canadá Cabo Verde Chile Costa Rica Chipre Dinamarca Dominica Eslováquia Eslovênia Classificação média: 1 .5 Belize Bulgária Coreia do Sul Gana Classificação média: 2 África do Sul Antígua e Barbuda Argentina Benin Brasil Croácia Classificação média: 2.5 El Salvador Guiana India Indonésia Espanha Estados Unidos Estônia Finlândia França Hungria Holanda Islândia Irlanda Itália Kiribati Lituânia Luxemburgo Malta Ilhas Marshall Micronésia Granada Grécia Israel Japão Botsuana Mauritânia Mongólia Namíbia República Dominicana Romênia Jamaica Lesoto Mali México Nauru Nova Zelândia Noruega Palau Polônia Portugal Principado de Liechtenstein São Cristóvão e Nevis San Marino Suécia Suíça Reino Unido República Tcheca Tuvalu Uruguai Letônia Mônaco Parana São Vicente e Granadinas Taiwan Samoa São Tomé e Príncipe Suriname Trinidad e Tobago Vanuatu Peru Senegal Sérvia Ucrânia Com base em dados da www.freedomhouse.org. O índice emprega uma dimensão para os direitos políticos e outra para as liberdades civis. Uma escala de sete pontos é usada para cada d im en são. Assim, os países com classificação mais alta (com o grau mais a lto de democracia) são um-um (1 -1) e a classificação mais baixa é sete-sete (7-7). Países com uma classificação média entre 1 e 2.5 são considerados livres. 168 Introdução às relações internacionais O término da Guerra Fria ajudou a incentivar uma nova onda de demo cratização, que motivou um otimismo liberal crescente em relação ao futuro da democracia. Mesmo assim, a maioria dos liberais está bem ciente da fra gilidade do progresso democrático. Quando os liberais republicanos avaliam as condições para a paz democrática sob a ótica das recentes transformações democráticas no Leste europeu, na América Latina e na África, as evidências não são muito positivas. Com relação à primeira condição (ver Quadro 4.11), é certo que uma cultura democrática com normas pacíficas de resolução de con flitos ainda não se enraizou nas novas democracias. As leis democráticas devem estar arraigadas antes de a base nacional para a paz democrática ser assegurada, mas tal desenvolvimento da cultura política, em geral, leva tempo. Pode haver retrocessos e alguns países retornarão às formas de governo não democráticas. Por exemplo, a Rússia deu um passo atrás em 2004 e agora é classificada pela Freedom House como um país “Não Livre” (ver links 4.43 e 4.46). Q uadro 4 .11 Liberalismo republicano: três condições p ara a paz entre dem ocracias liberais 1. Normas democráticas para resolução pacífica de conflito. 2. Relações pacíficas entre Estados democráticos com base em uma fundação moral comum. 3. Cooperação econômica entre democracias: laços de interdependência. A respeito da segunda condição, as relações pacíficas têm de fato se desen volvido entre as democracias consolidadas do Ocidente. E, caso os processos de democratização no Leste europeu não retrocedam, há chances de esses Estados serem incluídos no grupo. Já as democracias do Sul são mais problemáticas nes se aspecto, uma vez que os fundamentos entre o Norte e o Sul não são fortes. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos eram hostis e até mesmo agressivos com relação às democracias do Sul, como com a República Dominicana no início dos anos 1960 ou com o Chile no começo da década de 1970. Isso refle tia a determinação norte-americana de defender seus interesses de segurança e econômicos na competição com a União Soviética (para uma análise mais detalhada, ver Sorensen 1993a: 101-12). Ainda não é possível saber se o final da Guerra Fria também acabará com tais divisões e desconfianças entre antigas e novas democracias. Liberalismo 169 Voltando à condição final, a interdependência e a cooperação econômica são bastante desenvolvidas entre as democracias consolidadas do Ocidente. Pelo menos algumas das novas democracias do Leste europeu estão integradas às redes econômicas por meio da participação na União Europeia, como a Po lônia, a Hungria e a República Tcheca. Mesmo assim, complexas negociações sobre a ampliação da UE demonstram as consideráveis dificuldades inerentes a uma cooperação econômica entre países com níveis de desenvolvimento tão diferentes. Para as democracias do Sul, a constante dependência econômica do Norte em vez da interdependência é a questão prioritária, mesmo depois do fim da Guerra Fria. Essa relação básica de desigualdade não propicia o desen volvimento de intercâmbios pacíficos, apesar de ambas as partes apresentarem governos democráticos. Sendo assim, o estabelecimento da união pacífica global constituída por todas as novas e antigas democracias não é garantido. Na verdade, a maioria das novas democracias não consegue corresponder a pelo menos duas das três condições para a paz democrática identificadas anteriormente e, em vez de demonstrarem mais progresso, estas podem retroceder para um governo auto ritário. A maioria dos liberais republicanos é, portanto, menos otimista do que Francis Fukuyama, ao prever o “fim da história: o ponto final da evolução ideo lógica dos seres humanos e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma derradeira de governo humano” (1989: 4) (ver link 4.47). Grande parte dos liberais concorda que existe uma “zona de paz” democrática entre as democracias liberais consolidadas, incluindo a Europa ocidental, a América do Norte e o Japão. A expansão dessa área, no entanto, está longe de estar assegu rada (Russett 1993: 138). Em sua maioria os liberais republicanos enfatizam que a paz democrática é um processo dinâmico e não uma condição fixa, e que a união pacífica só pode crescer entre países que alcancem um nível mínimo de democracia. Somente depois de um longo período, a paz é construída sobre os três fundamentos mencionados anteriormente (ver Quadro 4.11), mas é possível ocorrer um contratempo e até mesmo retrocessos a formas de governo não democráticas. Esse argumento libe ral republicano ainda apresenta uma fraqueza. Os teóricos precisam especificar os meios exatos pelos quais a democracia proporciona a paz e classificá-los em termos mais precisos sobre quando e por que há uma paz democrática entre um grupo de democracias. Nesse contexto, é necessária uma avaliação mais completa dos atuais processos de democratização, e já existe uma série de contribuições sobre essas questões (Thompson 1996; Sorensen 1992; Adler e Barnett 1996; Schweller 1992; Russett 1993; Lipson 2003; Rosato 2003; Souva e Prins 2006). O argumento do liberalismo republicano resumido é que as democracias não fazem guerras umas contra as outras devido às culturas nacionais de resolução 1 70 In trodução às relações internacionais pacífica de conflitos, aos valores morais comuns e às ligações mutuamente be néficas de interdependência e de cooperação econômica. Essas são as bases sobre as quais as relações internacionais pacíficas estão construídas. Por essas razões, todo um mundo de democracias liberais consolidadas poderia ser pacífico. Jáapresentamos uma série de pontos específicos do liberalismo criticados pelos realistas, que também são céticos quanto a esta versão do liberalismo. Por trás dessa descrença há um debate mais amplo entre o liberalismo e o realismo em RI. A principal questão é: um mundo liberal pode escapar dos perigos da anarquia? Um mundo mais liberal, formado por mais democracias, por um nível mais alto de interdependência e por mais instituições internacionais mini miza a anarquia? Um mundo mais liberal consegue acabar definitivamente com a guerra? As duas próximas seções se dedicam aos debates mais importantes entre liberais e neorrealistas. Críticas neorrealistas contra o liberalismo O liberalismo é o principal antagonista do realismo. Vimos no Capítulo 2 que o primeiro grande debate das RI, entre o liberalismo idealista e o realismo pes simista, permanece até hoje. Podemos perceber que esse debate criou divisões no campo liberal: há um grupo “menos convicto” entre eles que se aproximou do campo realista e um grupo “mais convicto” que continua a apoiar uma visão liberal mais distintiva da política mundial. O principal ponto de disputa em debates anteriores entre liberais e realistas por volta da Segunda Guerra Mundial envolvia a “natureza humana”. Já vimos que os liberais, em geral, apresentam um discurso mais otimista, enquanto que os realistas tendem a manter a visão pessimista, vendo os seres humanos como capazes de fazer o mal. Essa questão era central na crítica realista de Morgenthau aos liberais. Podemos definir o conteúdo real dessa crítica com a afirmação: “Vocês compreenderam mal a política, porque avaliaram mal a natureza humana” (Waltz 1959: 40). Essas visões divergentes da natureza humana continuam a separar os rea listas dos liberais. A “natureza humana”, no entanto, deixou de ser um ponto importante do debate por duas razões. Primeiro, tanto os neorrealistas quanto os liberais perceberam que a “natureza humana” é extremamente complexa, ou seja, vai além do “bem” e do “mal”, da paz e da guerra, da filantropia e do roubo, das escolas religiosas e dos bordéis. O novo foco deve ser, portanto, Liberalismo o contexto social e político, que é capaz de nos ajudar a explicar quando os indivíduos (com o potencial de serem bons e maus) se comportarão de um jei to ou de outro (Waltz 1959: 16-41). O outro motivo é a presença da influência do movimento behaviorista na ciência política, que distanciou os acadêmicos do estudo das ações humanas, de suas qualidades morais “internas” e das capa cidades com relação à análise de fatos observáveis e dados avaliáveis no mundo “externo”, evidência visível dos padrões do comportamento humano. Como os acadêmicos devem conceber o mundo externo? Como devemos ver a história? Demonstramos anteriormente que os realistas clássicos têm uma visão não progressiva da história. Os Estados permanecem Estados, apesar da mudança histórica, e continuam residindo em um sistema anárquico inalterável, que in centiva o egoísmo: os Estados precisam cuidar de si mesmos, uma vez que nin guém fará isso por eles. Dessa forma, para estarem seguros, armam-se contra inimigos potenciais; a segurança de um significa a insegurança de outro. Um possível resultado é uma corrida armamentista que, no final, desencadeia uma guerra. Essa era a situação há 2 mil anos e, de acordo com os neorrealistas, que ainda prevalece hoje, porque a estrutura básica do sistema de Estados continua a mesma. Na história, “as mesmas pragas se repetem várias vezes” (Layne 1994: 10). Para os liberais, contudo, a história tem, no mínimo, um potencial progres sivo. Identificamos e resumimos as principais condições desse progresso em quatro importantes tendências do pensamento liberal, mas os neorrealistas não se deixam impressionar. Para eles, tais condições “liberais” existem há muito tempo sem serem capazes de impedir o conflito violento entre os Estados — a interdependência econômica, por exemplo, não é um aspecto novo. Como uma porcentagem do Produto Nacional Bruto (PNB) mundial, as exportações totais do globo em 1970 estavam abaixo do nível do período entre 1880 e 1910 (ver Quadro 4.12). Posto de forma diferente, o rápido aumento do comércio mundial entre 1950 e 1975, considerado pelos liberais como a grande era da in terdependência, não foi mais que uma recuperação dos níveis baixos anormais causados por duas guerras mundiais e pela Grande Depressão, na primeira metade do século XX. Fluxos financeiros revelam uma história semelhante. Medidos como uma porcentagem do PNB, o total de investimentos estrangeiros dos países desen volvidos ocidentais foi bem mais alto durante todo o período de 1814 a 1938 do que ao longo dos anos 1960 e 70. As atividades bancárias internacionais são relevantes há mais de dois séculos (Thompson e Krasner 1989). Ou seja, a interdependência econômica não é nova e, no passado, contribuiu pouco para evitar guerras entre os Estados, como a Segunda Guerra Mundial. Os neorrealistas também criticam o papel atribuído pelos liberais às insti tuições internacionais, uma vez que acreditam que os Estados cooperam por 172 In trodução às relações internacionais meio das organizações, mas em função de suas decisões e do próprio interesse. Sendo assim, os fortes prevalecem nas relações internacionais e, por isso, as instituições não são mais do que simples palcos, onde a disputa pelo poder se desdobra entre os principais atores: os Estados. Tais instituições não al cançaram importância sozinhas (Mearsheimer 1995b: 340). Finalmente, como demonstramos, os neorrealistas criticam o liberalismo republicano (Gowa 1999), enfatizando que sempre há a possibilidade de um Estado liberal ou democrático retornar ao autoritarismo ou a outra forma de governo não de mocrática. Ademais, o aliado de hoje pode tranquilamente se tornar o inimigo de amanhã, seja democrático ou não. Q u ad ro 4 .1 2 O com ércio com o p o rcen tag em do PNB m undial, an o s variados AN O EXPORTAÇOES M UNI 1 8 3 0 4 ,6 18 4 0 5 ,7 1 8 5 0 6 ,8 1 8 6 0 9 ,3 18 7 0 9 ,8 1 8 8 0 1 1 ,4 1 8 9 0 11,1 1 9 0 0 1 0 ,4 1 9 1 0 1 0 ,4 1 9 1 3 1 1 ,4 1 9 5 0 8,1 1 9 6 0 9 ,2 1 9 7 0 1 0 ,0 1 9 8 0 1 6 ,9 Com base em tabelas de Thompson & Krasner (1989: 199, 201 ) Há, portanto, uma linha de discussão comum entre a crítica realista em relação às várias tendências do liberalismo: a persistência e a permanência da anarquia e sua consequente insegurança. Segundo os neorrealistas, é impossível colocar a anarquia em segundo plano, porque até mesmo os Estados liberais devem contemplar a possibilidade de que seus aliados podem se voltar contra eles. “Lamentavelmente, nem mesmo as democracias liberais são capazes de transcender a anarquia” (Mearsheimer 1993: 123). Nenhuma das tendências do Liberalismo 173 liberalismo pode realizar esse artifício. E, enquanto a anarquia prevalecer, não há como escapar do egoísmo e do dilema de segurança, consequentemente, o otimismo liberal não é justificado. O recuo para o liberalismo menos convicto Os liberais reagiram às objeções neorrealistas de duas formas diferentes. Um grupo, um tanto defensivo, chamado de “liberais menos convictos”, aceitou várias reivindicações realistas, incluindo o argumento sobre a persistência da anarquia. Já o grupo dos “liberais mais convictos” mantém sua opinião mais firme e argumenta que o mundo muda de formas significativas em sincronia com as expectativas liberais. Vale observar que as classificações “mais convicto” e “menos convicto” não se referem à consistência dos argumentos. São classifi cações simplesmente descritivas, com o objetivo de indicar os diferentes graus de desacordo com o realismo. A trajetória de Robert Keohane, um dos principais participantes do debate entre liberais e neorrealistas, ilustra aadaptação liberal às críticas realistas. Como já foi mencionado, seu trabalho mais antigo com Joseph Nye (Keohane e Nye 1971) é característico do liberalismo sociológico. Nessa obra, os autores definem uma importante distinção entre um paradigma “estadocêntrico” e outro da “política mundial”, em que o primeiro enfatiza as “interações entre Estados”, enquanto o segundo se concentra nas “relações transnacionais”, com destaque para o papel significativo dos atores não governamentais (1971: XII, 380). A im plicação desse raciocínio é a de que a política mundial está se transformando, de forma dramática, de um sistema de Estados para um político-transnacional. Esse argumento é um exemplo do liberalismo forte. Essa visão sociológica liberal era popular no início dos anos 1960, quando os realistas estavam na defensiva, mas tal tendência parecia presa à história e às circunstâncias da época. O alvoroço causado pelas relações transnacionais, ob jeto do argumento liberal sociológico, só se desenvolveu facilmente dentro da estrutura criada pelo poder norte-americano dominante (Little 1996: 78), em especial no período após a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, o poder norte-americano pareceu se enfraquecer e os Estados Unidos estavam presos ao difícil e impopular conflito no Vietnã. Além disso, no plano económico tam bém havia problemas. Em 1971, o presidente Nixon deu fim à convertibilidade do dólar ao ouro. As dificuldades políticas e econômicas dos Estados Unidos atingiram todo o sistema internacional, e o realismo pôde voltar à ofensiva: se o liberalismo sociológico só funcionava dentro de uma estrutura realista de poder, o progresso não tinha ido muito longe. 174 In trodução às relações internacionais Keohane acabou se afastando das relações transnacionais e mudou seu foco novamente para os Estados. O resultado foi a teoria da interdependência com plexa, descrita anteriormente. Essa análise foi produto de um movimento em direção ao realismo e a importância fundamental dos Estados foi reconhecida. Não estava claro, no entanto, como o realismo deveria ser complementado pe las perspectivas liberais. Keohane passou a enfocar ainda mais as instituições internacionais em sua análise realista, o que o aproximou do neorrealismo. Dessa forma, o ponto de partida analítico se tornou claramente realista, tendo os Estados como os principais atores, o sistema internacional como anárquico e o poder estatal como altamente significativo. O mais forte pode prevalecer sobre o mais fraco. Apesar disso, o núcleo liberal se manteve, ou seja, a ideia de que as instituições internacionais podem facilitar a cooperação permaneceu. Embora esse tipo de liberalismo esteja bastante próximo da posição neorrea- lista, a maioria dos realistas permaneceu insatisfeita com a tese liberal revisada e enfraquecida. De acordo com os críticos, Keohane, assim como vários outros liberais institucionalistas, ignoraram um ponto crucial: os ganhos relativos. “Ganhos” são benefícios acumulados pelos participantes que cooperam (ver Quadro 4.13). Os liberais institucionalistas argumentam que as instituições fa cilitam a cooperação e dificultam que um Estado trapaceie prejudicando outros. Isso porque as instituições internacionais são transparentes. Proveem informa ções a todos os Estados-membros e propiciam um ambiente mais fácil para os Estados estabelecerem compromissos seguros. Os neorrealistas, no entanto, afirmam que a trapaça não é o principal problema na negociação entre os países, mas os ganhos relativos. Os Estados devem se preocupar com a possibilidade de outros Estados lucrarem mais com a cooperação. Segundo os neorrealistas, os liberais institucionais não levam em consideração esse problema; “ignoram a questão dos ganhos relativos ... e, ao fazer isso, não conseguem identificar uma importante fonte das restrições aos Estados no que diz respeito à cooperação internacional” (Grieco 1993: 118) (ver link 4.48). Essa crítica neorrealista motivou Keohane a enfatizar uma qualificação, que amenizou ainda mais sua posição liberal. O teórico passou a defender que, dentre as condições necessárias para a cooperação entre Estados, a mais importante é a existência de interesses comuns entre os envolvidos (Keohane 1989a: 3; 1993: 277). Se os Estados têm interesses em comum, logo não se preocuparão com os ganhos relativos e, assim, as instituições podem ajudar a promover a cooperação. Porém, na ausência de interesses comuns, os Estados serão competitivos, apreensivos e até mesmo temerosos. Nessas circunstâncias, as organizações não são capazes de colaborar muito. Essa forma de reagir à crítica neorrealista torna a posição liberal menos vulnerável aos ataques realistas e nos ajuda a entender como é possível haver Liberalismo 1 cooperação sob a anarquia. Por outro lado, o liberalismo está cada vez mais próximo do neorrealismo: cada vez menos permanece de uma distinta e ge nuína teoria liberal. Dessa forma, o institucionalismo liberal fica propenso às críticas de que é apenas um neorrealismo “com outro nome” (Mearsheimer 1995a: 85). Se considerarmos os liberais menos convictos aqueles que assumem as suposições básicas neorrealistas como ponto de partida para a análise, in cluiremos outros membros a este grupo, como Axelrod (1984), Lipson (1984) e Stein (1990). No entanto, o fim da Guerra Fria deu um forte impulso a uma postura liberal mais bem-articulada. Quadro 4.13 Ganhos relativos e absolutos Ganhos absolutos Enquanto o nosso resultado for bom, não importa que o do outro seja melhor. Exemplo: a economia dos Estados Unidos cresce 25% na próxima década; a da China, 75%. Ganhos relativos Faremos o melhor, mas a prioridade número um é que os outros não passem a nossa frente. Exemplo: a economia dos Estados Unidos cresce 10% na próxima década; a da China, 10,3%. O norte-americano que escolhe a segunda situação em vez da primeira se preocupa com os ganhos relativos. O contra-ataque do liberalismo mais convicto O ataque neorrealista contra a teoria liberal parece forte. A teoria simples e parcimoniosa neorrealista se baseia em duas premissas básicas: na história, “as mesmas pragas se repetem várias vezes”; e a anarquia leva à insegurança e ao risco de guerra. Um ponto de partida corajoso e conciso contribui para declarações contundentes, mas a parcimônia também pode ser uma fraqueza, já que não leva muitos aspectos em consideração. Podemos realmente acreditar que nada mu dou nas relações internacionais durante os últimos cem anos? O neorrealismo, como um experiente observador comentou, “deixa a maior parte do conteúdo do campo [de RI] do lado de fora da camisa de força” (Hoffmann 1990). Para defender uma tese tão simplória, é preciso fechar os olhos para muita coisa. É nesse momento que começa o contra-ataque dos “liberais mais convic tos” contra o neorrealismo, ao defender que a mudança qualitativa de fato 1 76 In trodução às relações internacionais ocorreu. Atualmente, a interdependência econômica une mais fortemente os países; as economias estão globalizadas (ver Quadro 4.14); a produção e o consumo são mundiais. Em termos de bem-estar, seria extremamente custo so para os países não pertencer a esse sistema (Holm e Sorensen 1995; Cerny 1993). Além disso, há um grupo de democracias liberais consolidadas que ja mais voltariam ao autoritarismo, porque todos os grupos importantes nessas sociedades apoiam a democracia. Esses países conduzem suas relações interna cionais mútuas de maneira nova e mais cooperativa. Para eles, não há volta; a mudança histórica é irreversível. Entre os “liberais mais convictos” estão Rose- nau (1990), Doyle (1983), Deutsch (1957), Burton (1972), Rosecrance (1986), Zürn (1995), Russett (1993), Deudneye Ikenberry (1999) e Slaughter (2004). Os neorrealistas não argumentam que nenhuma mudançaocorreu, mas afirmam que qualquer mudança que tenha ocorrido não acabou com a anar quia. Nesse sentido, o sistema de Estados focado no egoísmo permanece e, nesse aspecto fundamental, a análise realista continua a ser aplicada. Desse ponto, os neorrealistas concluem que há uma grande diferença entre a política internacional e a nacional. Nas questões nacionais, a “autoridade, o governo e o direito” estão presentes, enquanto a política internacional é o “terreno do poder, da luta e dos acordos conciliadores” (Waltz 1979: 113). Os liberais mais convictos, contudo, contestam a premissa crucial de que a anarquia, segundo o conceito realista, continua a existir. Não argumentam que a anarquia foi substituída pela hierarquia, que um governo mundial foi criado ou está em formação. Em vez disso, afirmam que a anarquia é uma característica interna cional bem mais complexa do que a reconhecida pelos neorrealistas e, por isso, questionam as conclusões que estes tiram da estrutura do sistema de Estados. O que significa a anarquia no sistema internacional? A estrutura indica que não há um governo único e universal, mas não sugere a ausência de um governo. A questão é que a distinção entre a política nacional e a internacional não é tão clara como os neorrealistas afirmam. De fato, há alguns Estados que não têm um sistema de governo legítimo e efetivo, entre eles Camarões, Chade, Zimbábue, Somália. Há outros grupos de países que estão adquirindo um siste ma governamental, como a UE. A política transcende as fronteiras. A anarquia não significa necessariamente a ausência total de uma autoridade legítima e efetiva na política internacional. Com base nisso, os liberais mais convictos alegam que a política internacional não precisa ser uma “anarquia incontrolável”, em que o medo e a insegurança estão por toda parte. E possível haver elementos significativos de autorida de internacional efetiva e legítima. Liberais mais convictos veem exemplos, nas relações internacionais, de democracias liberais firmes e consolidadas, e assim associam elementos centrais do liberalismo sociológico, da interdepen- Liberalismo 177 Em primeiro lugar, a informação está atualmente disponível de modo universal em tempo real e simultaneamente, em todos os centros financeiros do mundo. Em segundo lugar, a tecnologia juntou todos os principais países e centros fi nanceiros e bancários em uma única rede integrada. Poucos países ou regiões do mundo podem ficar isolados dos impactos e das mudanças financeiras, onde quer que ocorram. Em terceiro lugar, a tecnologia possibilitou o estabelecimento de um novo sistema e um mercado mundial altamente eficiente para credores e devedores, capazes de reunir recursos e de compartilhar riscos em uma escala internacional que não se importa com as fronteiras. Blumenthal (1988) Quadro 4.14 A globalização na prática dência, do liberalismo institucional e republicano. Uma forma de caracterizar esse entroncamento é por meio do termo “comunidades de segurança”, de Karl Deutsch. As democracias liberais consolidadas da Europa ocidental, da América do Norte e do Japão, por exemplo, constituem uma comunidade de segurança (Singer e Wildavsky 1993). É extremamente improvável — de fato, impensável — que haja, no futuro, qualquer conflito violento entre esses países. Com isso, os liberais mais convictos enfatizam a necessidade de uma visão acerca da paz e da guerra com mais nuances. A paz não é somente a ausência da guerra, como a maioria dos realistas acredita, mas apresenta tipos e graus diferenciados. A “paz cordial” entre os países da comunidade de segurança de democracias liberais é bem mais segura do que a “paz fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética durante o auge da Guerra Fria (Boulding 1979; Adler e Barnett 1996). Também é necessária uma percepção mais variada da guerra em função das mudanças sofridas ao longo da história — incitada pelo desenvolvimento tecnológico e industrial, a guerra tornou-se cada vez mais des trutiva, culminando nas duas guerras mundiais do século XX. Ademais, há hoje o risco de destruição ilimitada por meio da guerra nuclear. Os liberais mais convictos argumentam que esses desenvolvimentos incentivam ainda mais a cooperação entre os Estados (Mueller 1990; 1995). Os neorrealistas não negam que as armas nucleares contribuam para a redução do risco da guerra (Waltz 1993), mas os liberais mais convictos vão além e argumentam que a guerra de grande escala cairá “em descrédito ao ser percebida como repulsiva e fútil” (Mueller 1990: 5) (ver Quadro 4.15). Os liberais mais convictos, portanto, argumentam que, em importantes par tes do mundo, a anarquia não produz a insegurança apontada pelos realistas 178 Introdução às relações internacionais e que a paz é assegurada de forma justa em vários locais. Hoje, há dois tipos de paz no mundo. O primeiro está entre os Estados fortemente armados, em espe cial as potências nucleares, em que a guerra total ameaça levar à autodestruição. Nesse contexto, a paz é menos segura e se fundamenta (mas não somente) no equilíbrio criado pelo poder militar. O segundo tipo está entre as democracias consolidadas da OCDE — esta é uma paz “liberal” mais segura, com base em valores democráticos liberais, em um alto nível de interdependência econômica e em uma rede densa de instituições que facilitam a cooperação (Cooper 1996; Russett 1993; Maoz e Russett 1993; Sorensen 1992; 1997; Lipson 2003). Q uadro 4.1 5 A obsolescência d a grande gu erra Os duelos e a escravidão não existem mais como instituições efetivas e desapa receram da vivência humana, com a exceção dos livros ... Há sinais de que, pelo menos, no mundo desenvolvido ... [a guerra] ... começou a sucumbir à obsoles cência. Assim como os duelos e a escravidão, não parece ser uma necessidade vital — não é um fato desagradável da existência, desejado de certo modo pela natureza humana ou por algo maior. Pode-se viver sem a guerra, muito bem de fato. A guerra pode ser uma aflição social, mas em aspectos importantes também é uma aflição social à qual se pode ficar indiferente. John Mueller (1990: 13) Por essas razões, os liberais mais convictos permanecem otimistas quanto ao futuro. Eles argumentam que um progresso verdadeiro é possível e que este já é realidade em áreas importantes do mundo. Com certeza, não há um go verno mundial, mas muitas regiões ultrapassaram a condição neorrealista da anarquia incontrolável com todas as suas consequências negativas para as rela ções internacionais. Os liberais parecem assim ter argumentos melhores do que a maioria dos realistas quando se trata do estudo da mudança como progresso. Enquanto muitos realistas consideram tudo sempre igual nas relações inter nacionais, em especial a anarquia e a política de poder, a maioria dos liberais possui uma ideia de modernização e progresso fundamentada teoricamente, tornando-os mais receptivos ao estudo da mudança social, econômica, insti tucional e política (ver Quadro 4.16). O término da Guerra Fria impulsionou a posição liberal; o mundo parece seguir essa direção. Por outro lado, os liberais estão bem menos preparados para a falta de progresso ou retrocesso — por exemplo, percebemos como as teorias liberais de integração não conceberam L ibe ra lism o 179 contratempos no processo de cooperação na Europa. No Terceiro Mundo, uma série de países muito pobres não se desenvolveu e, em alguns casos, o Estado colapsou. A teoria liberal tem dificuldade de lidar com tais casos por se basear, fundamentalmente, em uma concepção de modernização irreversível (Zacher e Matthew 1995: 138). As consequências benéficas desse processo são o tema central do pensamento liberal. No entanto, quando esse processo não ocorre por alguma razão, ou quando falha, a análise liberal fracassa. Os liberais também não
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