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1 CURSO – DIREITO DISCIPLINA: TEORIA GERAL DO DIREITO PENAL I 2ª Unidade. Princípios do Direito Penal Brasileiro. Prof. Eribelto Peres Castilho 2 Conteúdo Programático: Princípios do Direito Penal: 1. Princípio da Legalidade. 2. Princípio da Intervenção Mínima. 3. Princípio da Intervenção Mínima na América Latina. 4. Princípio da Lesividade. 5. Princípio da Humanidade. 6. Princípio da Culpabilidade. 7. Princípio da Insignificância (ou Bagatela). 1. Princípio da Legalidade: Assinala inicialmente Nilo Batista que: “O princípio da legalidade, também conhecido por ‘princípio da reserva legal’ e divulgado pela fórmula ‘nullum crimen nulla poena sine lege’, surge historicamente com a revolução burguesa e exprime, em nosso campo, o mais importante estágio do movimento então ocorrido na direção da positividade jurídica e da publicização da reação penal. Por um lado resposta pendular aos abusos do absolutismo e, por outro, afirmação da nova ordem, o princípio da legalidade a um só tempo garantia o indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder como o espaço exclusivo da coerção penal. Sua significação e alcance políticos transcendem o condicionamento histórico que o produziu, e o princípio 3 da legalidade constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”.1 Prossegue o jurista observando que: “A fórmula latina foi cunhada e introduzida na linguagem jurídica pelo professor alemão Paulo João Anselmo Feuerbach (1775-1833), especialmente em seu Tratado que veio a lume em 1801. Ao contrário do que se difunde freqüentemente, das obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla ‘nullum crimen nulla poena sine lege’; nelas se encontra, sim, uma articulação das fórmulas ‘nulla poena sine lege’, ‘nullum crimen sine poena legali’ e ‘nulla poena (legalis) sine crimine’. Um dos pilares sobre os quais se assentava a construção feuerbachiana estava em sua concepção preventivo-geral da pena, entendida como ‘coação psicológica’. Se a intimidação era a mais relevante função da pena, e sua inflição deveria reforçar esse intimidatório, só poderia ser inflingida a pena com a qual a própria lei ameaçara. Outro pilar estava em seu arraigado liberalismo, que através do código penal não só pretendia a defesa do estado diante do criminoso mas também do criminoso diante do estado. É inegável, por fim, o influxo da concepção contratualista e da questão – predominante no debate político da época – da divisão de poderes, tão presente no classicismo penal, como se pode constatar, por exemplo, em Beccaria [“Apenas as leis podem fixar as penas com relação aos delitos praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade agrupada por um contrato social. Nenhum magistrado (que também faz parte da sociedade pode, com justiça, inflingir penas contra outro membro da mesma sociedade” (Dos delitos e das penas. Trad. A. Carlos Campana, S. Paulo, 1978, p. 109)]”.2 Em nossa atual Constituição Federal, o princípio da legalidade figura entre os direitos e garantias fundamentais: Art. 5º, inc. XXXIX: ‘não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena se prévia cominação legal’. 1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 65. 2 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 66 e 67. 4 Observa Nilo Batista que todas as Constituições Federais brasileiras “proclamaram o princípio; C.F. 1824, art. 149, nº 11; C.F.1891, art. 72, § 15; C.F. 1934, art. 113, nº. 26; C.F. 1937, art. 122, nº 13; C. F. 1946, art. 141, § 27; C. F. 1967/E. 69, art. 153, § 16 (cuja redação, nas palavras de Pontes de Miranda, constituiu ‘documento histórico da insuspeitada mediocridade governante de 1964-1967” (Comentários à Constituição de 1967, s. Paulo, 1971, t. V, p. 242)”.3 No Código Penal, o princípio da legalidade consta em seu art. 1º com a seguinte redação: Art. 1º: ‘Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal’. Importante observar que a abrangência do princípio da legalidade disposto no artigo 1º do Código Penal inclui “a pena cominada pelo legislador, a pena aplicada pelo juiz e a pena executada pela administração, vedando-se que critérios de aplicação ou regimes de execução da pena, até mesmo a matéria disciplinar está agora comprometida com o princípio da legalidade, como se vê do artigo 45 da Lei de Execução Penal [Lei 7.210, de 11. jul. 84 – Lei de Execução Penal (LEP), art. 45: “Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar”.]”.4 Pode o princípio da legalidade, visto pelo prisma de garantia individual, ser decomposto em quatro funções, que examinaremos a seguir: 3 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 68 (nota 12). 4 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 68. 5 1ª Proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia): Observa Nilo Batista que: “Temos aqui a função ‘histórica’ do princípio da legalidade, que surgiu exatamente para reagir contra leis ex post facto. Tudo que se refira ao crime (por exemplo, supressão de um elemento integrante de uma justificativa, qual a vox ‘iminente’ na legítima defesa) e tudo que se refira à pena (por exemplo, retificação gravosa na disciplina da prescrição) não pode retroagir em detrimento do acusado. É hoje opinião doutrinária dominante que a irretroatividade deva aplicar-se também à medidas de segurança. Note-se que a lei penal retroagirá sempre que beneficiar o acusado, seja pela revogação da norma incriminadora (abolitio criminis), seja por qualquer outro modo (art. 2º CP), excetuando-se as chamadas leis excepcionais (promulgadas em face de situações especialmente calamitosas ou conflitivas) e leis temporárias (promulgadas com termo de vigência) – (art. 3º CP). O aprofundamento dessas questões, bem como a caracterização do que seja, na hipótese de concurso, a lei mais favorável, pertencem à teoria da lei penal. Sustentou-se que o chamado Tribunal de Nuremberg violou o princípio da legalidade, sob o aspecto da irretroatividade da lei penal. No Brasil, o caso mais escandaloso foi a imposição, por decreto, da pena de banimento a presos cuja liberdade era reclamada como resgate de diplomatas seqüestrados por organizações políticas clandestinas, durante a ditadura militar. Sem reserva legal e sem processo, os presos – que nada haviam feito – eram atingidos por autêntico bill of attainder impondo-se-lhes uma pena não contemplada previamente em lei”.5 2ª Proibir a criação de crimes e penas pelo costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta): 5 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 69. 6 “Só a lei escrita, isto é, promulgada de acordo com as previsões constitucionais, pode criar crimes e penas: não o costume. ‘Destacar a exclusão do costume como fonte de crimes e penas, frisa Mir Puig, é exigência doprincípio da legalidade. Isso significa, por certo, que os costumes não participem da experiência jurídico-penal: Assis Toledo assinala tratar-se de ‘equívocos a suposição de que o direito costumeiro esteja totalmente abolido do âmbito penal’. De fato, é indiscutível que os costumes desempenham uma função integrativa, que provém principalmente de sua influência no direito privado. Tal função integrativa se apresenta na elucidação de elementos de alguns tipos penais (por exemplo, ‘mulher honesta’ no tipo do rapto – art. 129 CP –, ou ‘ato, objeto ou recitação obscenos, nos tipos de ultraje público ao pudor – arts. 233 e 234 CP). Apresenta-se ela igualmente no conceito central (dever objetivo de cuidado) dos tipos culposos, sempre que a atividade dentro da qual ocorreu o fato não esteja positivamente regulamentada de modo exaustivo, como também sem justificativas (pense-se no exercício regular do direito – art. 23, inc. III, CP – enquanto aplicação de castigos físicos na correção educacional de menores)”.6 3ª Proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta): Assinala Nilo Batista que: “Chama-se analogia o procedimento lógico pelo qual o espírito passa de uma enunciação singular a outra enunciação singular (tendo, pois, caráter de uma indução imperfeita ou parcial), inferindo a segunda em virtude de sua semelhança com a primeira; no direito, teríamos analogia quando o jurista atribuísse a um caso que não dispõe de expressa regulamentação legal a(s) regra(s) prevista(s) para um caso semelhante”7 Observa ainda o jurista que “o direito penal nazista utilizava-se largamente da analogia. (...) Na União Soviética, desde o código de 1960, que 6 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 70 e 71. 7 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 74. 7 se seguiu à ‘bases’ de 1958, a analogia é uma ‘instituição abolida’. (...) No Brasil, muitas vezes admitiu-se e praticou-se a analogia vedada. Rememora Fragoso um decreto-lei do Estado Novo (nº 4.166, de 11 mar. 42) que ‘expressamente autorizava o recurso à analogia’. (...) Em seu importante trabalho, Rosa Cardoso demonstra como a admissão de pessoas jurídicas na posição de sujeito passivo do crime de difamação previsto no Código Penal (art. 139, entre os ‘crimes contra a pessoa’, e usando a vox ‘alguém’, caracterizadora de pessoa humana) representa emprego de analogia”.8 Por fim, observa ainda Batista que: “O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil recomenda que, na omissão da lei, o juiz decida ‘de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito’. Temos, no direito penal, limites a tal recomendação, derivados do princípio da reserva legal, limites esses que incidem sobre as normas que definem crimes e cominam ou agravam penas. Além desses limites, o desenvolvimento do direito penal, pela colmatagem de suas lacunas, só encontra a fronteira político-criminal da intervenção mínima, também expressa em seu caráter fragmentário – que será mais tarde examinado”.9 4ª Proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa): Nilo Batista nos chama a atenção para o fato de que a “função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligível por todos os cidadãos. Formular tipos penais ‘genéricos ou vazios’, valendo-se de ‘cláusulas gerais’ ou ‘conceitos indeterminados’ ou ‘ambíguos’, equivale teoricamente a nada formular, mas é prática e politicamente muito mais nefasto e perigoso. Não por acaso, em épocas e países diversos, legislações penais voltadas à 8 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 75 e 76. 9 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 77. 8 repressão e controle de dissidentes políticos escolheram precisamente esse caminho para a perseguição judicial de opositores do governo. Soler registrou que se recorre com freqüência a esse expediente em caso de delitos criados deliberadamente com intenção política. No Brasil, as famigeradas leis de segurança nacional compunham autêntico florilégio de tipos penais violadores, pela construção de crimes vagos, do princípio da legalidade, e coube especialmente a Fragoso, em inúmeros trabalhos, profligar-lhes tal vício. [Em diversos artigos, relatórios da OAB e defesas de presos políticos, Heleno Fragoso se deteve na denúncia da violação do princípio da legalidade pela criação de tipos penais vagos e indeterminados; cf. Lei de Segurança Nacional – uma experiência antidemocrática, P. Alegre, 1980]. A vigente lei de segurança nacional (lei nº 7.170, de 14.dez.83), considerada por muitas como palatável forma evolutiva das anteriores, incrimina, em seu artigo 15, ‘praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicação, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragens, depósito e outras instalações cogêneres’, estabelecendo seu § 2º a punição dos ‘atos preparatórios de sabotagem’. Se ‘praticar sabotagem’ configura, já por si, um núcleo bastante indeterminado para o tipo, seus atos preparatórios são infinitamente multiformes; por outro lado, quem, em estado de sanidade mental, será capaz de definir ‘instalações cogêneres’, a um só tempo, de uma estrada, uma fábrica, uma usina e um depósito?”.10 2. Princípio da Intervenção Mínima: Segundo Nilo Batista o Princípio da Intervenção Mínima também surgiu “por ocasião do grande movimento social de ascensão da burguesia, reagindo contra o sistema penal do absolutismo, que mantivera o espírito minunciosamente abrangente das legislações medievais. Montesquieu tomava um episódio da história do direito romano para assentar que ‘quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas’; Beccaria advertia que ‘proibir uma enorme 10 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 78 e 79. 9 quantidade de ações indiferentes não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos’; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescrevia que a lei não estabelecesse senão penas ‘estrita e evidentemente necessária’ (art. VIII). Tobias Barreto percebera que ‘a pena é um meio extremo, como tal é também a guerra’. E, de fato, por constituir ela, como diz Roxin, a ‘intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao estado’, entende-se que o estado não deva ‘recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não-penais’, como leciona Quintero Olivares. O conhecimento de que a pena é, nas palavras deste último autor, uma ‘solução imperfeita’ – conhecimento que, de Howard até a mais recente pesquisa empírica, a instituição penitenciária só logrou fortalecer – firmou a concepção da pena como ultima ratio: o ‘direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações maisleves da ordem jurídica são objetos de outros ramos do direito’”.11 Todavia, ainda que o Princípio da Intervenção Mínima deva ser o espírito rector da confecção do Direito Penal, nos chama a atenção Nilo Batista para o fato de que tal princípio “não está expressamente inscrito no texto constitucional (de onde permitiria o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem o código penal, integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei, como um daqueles princípios imanentes a que se referia Cunha Luna, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotado de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático”.12 11 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 85. 12 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 84 e 85. 10 Como se vê, o “princípio da intervenção mínima se converte, assim, num princípio político-criminal limitador do poder punitivo do estado”.13 3. Princípio da Intervenção Mínima na América Latina: Zaffaroni e Pierangeli asseveram, acertadamente, que “No nosso contexto latino-americano, apresenta-se todo um argumento de reforço em favor da mínima intervenção do sistema penal. Toda a América está sofrendo as conseqüências de uma agressão aos Direitos Humanos (que chamamos de injusto jushumanista), que afeta o nosso direito ao desenvolvimento, que se encontra consagrado no art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este injusto jushumanista tem sido reconhecido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), através da jurisprudência internacional da Comissão dos Direitos Humanos, que declara ter sido violado o direito ao desenvolvimento em El Salvador e no Haiti. A existência deste injusto jushumanista não é, pois, uma afirmação ética, mas uma afirmação jurídica, reconhecida pela jurisprudência internacional”.14 Desse modo, prosseguem ainda os autores: “Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que, perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista, o que resulta num suicídio. A clara conclusão disto é que o sistema penal deve corresponder ao princípio da intervenção mínima na América Latina, não somente pelas razões que se apresentam como válidas nos países centrais, mas também em face de nossa 13 MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al Derecho penal. Barcelona: Ed. Bosh, 1975, p. 71. Apud. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 85 (nota 9). 14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 7ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais (RT), 2008, p. 74. 11 característica de países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de violação do direito ao desenvolvimento”.15 4. Princípio da Lesividade: Assinala Rogério Greco que os “princípios da intervenção mínima e da lesividade são como que duas faces de uma mesma moeda. Se, de um lado, a intervenção mínima somente permite a interferência do Direito Penal quando estivermos distante de ataques a bens jurídicos importantes, o princípio da lesividade nos estabelecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, quais são as condutas que poderão ser incriminadas pela lei penal. Na verdade, nos orientará no sentido de saber quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal. (...) O princípio da lesividade, cuja origem se atribui ao período iluminista, que por intermédio do movimento se secularização procurou desfazer a confusão que havia entre o direito e a moral, possui, no escólio de Nilo Batista, quatro funções, a saber”16: 1º - Proibir a incriminação de uma atitude interna: “A primeira das vertentes do princípio da lesividade pode ser expressa pelo brocado latino cogitations poenam nemo patitur, ou seja, ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais. Não há como, por exemplo, punir a ira do agente ou mesmo a sua piedade. Se tais sentimentos não forem exteriorizados e não produzirem lesão a bens de terceiros, jamais o homem poderá ser punido por aquilo que traz no íntimo do seu ser. Seria a maior de todas as punições”.17 15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 7ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais (RT), 2008, p. 75. 16 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal _ Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP). V. I. 10ª ed. Niterói (RJ): Ed. Impetus, 2008, p. 53. 17 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal _ Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP). V. I. 10ª ed. Niterói (RJ): Ed. Impetus, 2008, pp. 53 e 54. 12 2º - Proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor: “O Direito Penal também não poderá punir aquelas condutas que não sejam lesivas a bens de terceiros, pois que não excedem ao âmbito do próprio autor, a exemplo do que ocorre com a autolesão ou mesmo com a tentativa de suicídio. No Brasil, discutia-se a validade do art. 16 da Lei nº 6.368/76, que proibia o uso de substância entorpecente. Nilo Batista posicionava-se no sentido de que o art. 16 da mencionada legislação ‘incrimina o uso de drogas, em franca oposição ao princípio da lesividade e à mais atuais recomendações político-criminais’. Mesmo após a edição da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, a discussão ainda persiste. Isso porque o atual art. 28 da referida lei ainda incrimina a conduta de consumir drogas. O que houve, na verdade, foi uma despenalização, melhor dizendo, uma medida tão-somente descarcerizadora, haja vista que o novo tipo penal não prevê qualquer pena que importe em privação de liberdade do usuário, sendo, inclusive, proibida sua prisão em flagrante, conforme se dessume da redação constante do § 2º do art. 48 da Lei Antidrogas”.18 3º - Proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais: “A terceira função do princípio da lesividade é a de impedir que o agente seja punido por quilo que ele é, e não pelo que fez. Busca-se, assim, impedir que seja erigido um autêntico direito penal do autor. Zaffaroni, categoricamente, afirma: ‘Seja qual for a perspectiva a partir de que se queira fundamentar o direito penal de autor (culpabilidade de autor ou periculosidade), o certo é que um direito que reconheça, mas que também respeite, a autonomia moral da pessoa jamais pode penalizar o ‘ser’ de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora da conduta humana”.19 4º - Proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico: “Finalmente, com a adoção do princípio da lesividade busca-se, também, afastar da incidência de aplicação da lei penal aquelas condutas que, embora desviadas, não afetam qualquer bem jurídico de 18 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal _ Parte Geral (arts. 1ºa 120 do CP). V. I. 10ª ed. Niterói (RJ): Ed. Impetus, 2008, p. 54. 19 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal _ Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP). V. I. 10ª ed. Niterói (RJ): Ed. Impetus, 2008, p. 54. 13 terceiros. Por condutas desviadas podemos entender aquelas que a sociedade trata com certo desprezo, ou mesmo repulsa, mas que, embora reprovadas sob o aspecto moral, não repercutem diretamente sobre qualquer bem de terceiros. Não se pode punir alguém pelo simples fato de não gostar de tomar banho regularmente, por tatuar o próprio corpo ou por se entregar, desde maior e capaz, a práticas sexuais anormais. Enfim, muitas condutas que agridem o senso comum da sociedade, desde que não lesivas a terceiros, não poderão ser proibidas ou impostas pelo Direito Penal”.20 5. Princípio da Humanidade: Observa Nilo Batista que: “Quem vê, em Mommsen [MOMMSEN, Theodor. Les droit penal romain. (Trad. J. Duquesne). Paris: Ed. A. Fontemoig, 1907] as execuções da pena de morte no direito romano, tão impregnada de ritos e conteúdos simbólicos e religiosos, tão cruelmente indiferentes ao sofrimento e ao desespero humano, e vê a descrição da execução de Damiens, em 1757, com a qual Foucault [FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. França: Ed. Gallimard, 1975] abre seu importante livro sobre o nascimento da prisão, talvez se espante com a semelhança de ‘estilo penal’ ao longo de tantos séculos. E se procurar certificar-se, no direito penal germânico ou em outras legislações medievais, terá a confirmação dessa similitude espantosa. Entre nós, um breve exame no livro V das Ordenações Filipinas, que regeram no Brasil até 1830, quando promulgado o código imperial, revelará a indiscriminada cominação da pena de morte, a objetificação do condenado e a discriminação jurídica da pena cabível segundo a classe social do autor da vítima. Para os trabalhadores escravos, esses princípios permaneceram com plena eficácia mesmo após 1830, através das penas de morte e açoites, largamente empregadas, ou nos cruéis castigos do ‘direito penal privado’ vigente nos engenhos, na cafeicultura ou nas charqueadas”.21 20 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal _ Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP). V. I. 10ª ed. Niterói (RJ): Ed. Impetus, 2008, pp. 54 e 55. 21 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 98. 14 Prossegue o jurista supracitado assinalando que o Princípio da Humanidade “que postula da pena uma racionalidade e uma proporcionalidade que anteriormente não se viam, está vinculado ao mesmo processo histórico de que se originaram os princípios da legalidade, da intervenção mínima e até mesmo – sob o prisma da ‘danosidade social’ – o princípio da lesividade. Montesquieu se referia à ‘justa proporção das penas com os crimes’, e Beccaria dizia que atribuir a pena de morte para quem mata um faisão ou falsifica um documento conduz a uma destruição de sentimentos morais. (...) Quando, em 1793, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi retomada e proclamada pela Convenção Nacional, o artigo XV mencionava que ‘as penas devem ser proporcionais ao delito e úteis à sociedade’. A Emenda VIII à Constituição Americana, ratificada, como todas as dez primeiras, em 1971, proibia a inflição de penas cruéis e incomuns. É este hoje um princípio largamente aceito, que consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A pena nem ‘visa fazer sofrer o condenado’, como observa Fragoso, nem pode desconhecer o réu enquanto pessoa humana, como assinala Zaffaroni, e esse é o fundamento do princípio da humanidade. Não por acaso, os documentos internacionais consideram desumanas as penas como aquela executada em Damiens. O princípio pertence à política criminal, porém é proclamado por vários ordenamentos jurídicos positivos. Entre nós, está o princípio da humanidade reconhecido explicitamente pela Constituição, nos incisos III (proibição de tortura e de tratamento cruel e degradante), XLVI (individualização – ou seja, ‘proporcionalização – da pena) e XLVII (proibição de penas de morte, cruéis ou perpétuas) do artigo 5º CF. Como lembra Munõz Conde, a idéia de ‘proporcionalidade integra a idéia de justiça, imanente ao direito’; a hipertrofia do direito penal caracteriza o ‘estado totalitário que procura afiançar-se através de brutais ameaças penais’. Disso tivemos no Brasil expressivos exemplos durante a ditadura militar”.22 22 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 98, 99 e 100. 15 Por fim, importante asseverar que o Princípio da Humanidade “intervém na cominação, na aplicação e na execução da pena, e neste último terreno tem hoje, face a posição dominante da pena privativa da liberdade, um campo de intervenção especialmente importante. A racionalidade da pena implica tenha ela um sentido compatível com o humano e suas cambiantes aspirações. A pena não pode, pois, exaurir-se num rito de expiação e opróbrio, não pode ser uma coerção puramente negativa. Isso não significa, de modo algum, questionar o caráter retributivo, timbre real e inegável da pena. Contudo, a pena que se detém na simples retributividade, e portanto converte seu modo em seu fim, em nada se distingue da vingança. A pena de morte, estritamente retributiva e negativa (além de ineficaz, do ponto de vista da prevenção geral), violenta essa racionalidade. São também inaceitáveis, porque desconsideram a auto-regulação como atributo da pessoa humana, penas que pretendam interferir fisicamente numa ‘metamorfose’ do réu: castração ou esterilização, lobotomia, etc. Um sistema igualitário na distribuição da pena (o que significa que, sob os mesmos pressupostos, duas pessoas deveriam receber penas semelhantes, correndo as diferenças tão-só à conta da individualização), negado pelo direito há duzentos anos, e negado – apesar do direito – pelo sistema penal ainda hoje, é outro imperativo da racionalidade. Seria perfeitamente possível derivar a proporcionalidade da racionalidade, mas convém destacá-la por sua importância no surgimento histórico do princípio da humanidade e por sua importância prática. Zaffaroni lembra que as penas desproprcionais produzem mais alarma social (afetando o que ele considera o aspecto subjetivo da segurança jurídica) do que o próprio crime e formula a hipótese do que se passaria nesse terreno se uma lei impusesse a pena de mutilação aos punguistas. Da proporcionalidade pode extrair-se, igualmente, a proibição de penas perpétuas. Como registrou com exatidão Cattaneo, a prisão perpétua, com ‘seu caráter de definitividade, ou seja, de eliminação da esperança, contraria o senso da humanidade’. Nossa Constituição, como já visto, proíbe a imposição de penas de caráter perpétuo (art. 5º, inc. XLVII, al. B CF.)”.23 23 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 100 e 101. 16 6. Princípio da Culpabilidade: Preleciona historicamente Nilo Batista que numa “antiga legislação da Babilônia, editada pelo rei Hammurabi (1728-1686 a.C.), encontramos que, se um pedreiro construísse uma casa sem fortificá-la e a mesma, desabando, matasse o morador, o pedreiro seria morto; mas se também morresse o filho do morador, também o filho do pedreiro seria morto.Imaginemos um julgamento ‘modernizado’ desse pedreiro: de nada lhe adiantaria ter observado as regras usuais nas construções de uma casa, ou pretender associar o desabamento a um fenômeno sísmico natural (uma acomodação do terreno, por exemplo) fortuito e imprevisível. A casa desabou e matou o morador: segue-se sua responsabilidade penal. Não deixemos de imaginar, igualmente, o julgamento do filho do pedreiro. A casa construída por seu pai desabou e matou o morador e seu filho: segue-se sua responsabilidade penal. A responsabilidade penal, pois, estava associada tão-só a um fato objetivo e não se concentrava sequer em quem houvesse determinado tal fato objetivo. Era, pois, uma responsabilidade objetiva e difusa”.24 Desse modo, prossegue o jurista; “Quando lemos hoje, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 5, 1, 3) ou em nossa Constituição (artigo 5º, inciso XLV), proibições de que a pena ultrapasse a pessoa do delinqüente, ou mesmo quando encontramos no Código Penal regras que não só, relacionando-se àquelas proibições, circunscrevem a imputação objetiva de resultados (como a art. 13 CP), mas também exigem a intervenção seja de uma vontade consciente, seja de uma relevante negligência (como os artigos 18 e 19 CP), devemos compreender que um longo processo, certamente inconcluso, transformou radicalmente as bases da responsabilidade penal. O ponto mais importante desse processo é a produção histórica do princípio da culpabilidade. 24 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 102. 17 O princípio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como repúdio a qualquer espécie de responsabilidade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como exigência de que a pena não seja inflingida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável. Voltando ao exemplo do pedreiro, isso representaria que o desabamento só funcionaria como um limite exterior preliminar e que seria indispensável verificar se o pedreiro reprovavelmente quis a morte do morador e seu filho, predispondo nesse sentido sua construção, ou quis o desabamento – também predispondo nesse sentido a sua construção – ainda que não quisesse diretamente a morte provável do morador e seu filho, ou construiu a casa com imperícia inescusável. Para além de simples laços subjetivos entre o autor e o resultado objetivo de sua conduta, assinala-se a reprovabilidade da conduta como núcleo da idéia de culpabilidade, que passa a funcionar como fundamento e limite da pena. As relações entre culpabilidade e pena constituem matéria polêmica, que integra a teoria do crime, onde a estrutura e as funções dogmáticas da culpabilidade, seja na economia do crime, seja na fundamentação da pena, são minunciosamente examinadas”.25 Importante observar, portanto, que o Princípio da Culpabilidade impõe duas importantes condições: 1º - A Subjetividade da Responsabilidade Penal: “Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. É indispensável a culpabilidade. No nível do processo penal, a exigência de provas quanto a esse aspecto conduz ao aforisma ‘a culpabilidade não se presume’, que, no terreno dos crimes culposos (negligentes), nos quais os riscos de uma consideração puramente causal entre a conduta e o resultado 25 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 102 e 103. 18 são maiores, figura como constante estribilho em decisões judiciais: ‘a culpa não se presume’. A responsabilidade penal é sempre subjetiva”.26 2º - A Personalidade da Responsabilidade Penal : Da Personalidade da Responsabilidade Penal derivam duas conseqüências, são elas: a) A Intranscendência da Pena: “impede que a pena ultrapasse a pessoa do autor do crime (ou, mais analiticamente, dos autores e partícipes do crime). A responsabilidade penal é sempre pessoal. Não há no direito penal, responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva. Nada pode, hoje, evocar a infâmia do réu que se transmita a seus sucessores. A intranscendência da pena coloca a questão da família do condenado pobre (art. 5º, inc. XLV CF), e fundamenta a existência, no sistema de seguridade social, de um ‘auxílio-reclusão’”.27 b) A Individualização da Pena: “Por individualização se entende aqui especialmente a individualização judicial, ou seja, a exigência de que a pena aplicada considere aquela pessoa concreta à qual se destina. Neste campo, o tema mais atual é a chamada co-culpabilidade. Trata-se de considerar, no juízo de reprovabilidade que é a essência da culpabilidade, a concreta experiência social dos réus, as oportunidades que se lhes depararam e a assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a u,ma responsabilidade geral do estado que vai impor- lhes a pena; em certa medida, a co-culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade que os produziu, como queria Ernst Bloch. Como diz Zaffaroni, ‘reprovar com a mesma intensidade as pessoas que ocupam situações de privilégio e a outras que se acham em situação de extrema penúria é uma clara violação ao princípio da igualdade corretamente entendido’. ‘O direito realmente igual’ – anota Cirino – ‘é o que considera desigualmente indivíduos concretamente desiguais’. O art. 5º, 26 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 104. 27 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, p. 104. 19 inciso 1 do código penal da República Democrática da Alemanha, de 1968, abre as portas a essa orientação: ‘uma ação é cometida de forma reprovável quando seu autor, não obstante as possibilidades de uma conduta socialmente adaptada que lhe tenham sido oferecidas, realiza, por atos irresponsáveis, os elementos legalmente constitutivos de um delito ou de um crime’”.28 7. Princípio da Insignificância (ou da Bagatela): Tendo como corolário os princípios acima discutidos (Legalidade, Intervenção Mínima, Lesividade, Humanidade e Culpabilidade) surge mais recentemente o denominado princípio da Insignificância (ou Bagatela). Segundo Gomes a “infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignifcante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja: insignificante). Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, admnistrativo, trabalhista etc.)”.29 Com efeito, Mirabete nos chama a atenção para o fato de que: “Sendo o crime uma ofensa a um interesse dirigido a um bem jurídico relevante, preocupa-se a doutrina em estabelecer um princípio para excluir do direito penal certas lesões insignificantes. Claus Roxin propôs o chamado princípio da insignificância, que permite na maioria dos tipos excluir, em princípio, os danos de pouca importância. Não há crime de dano ou furto quando a coisa alheia não tem qualquer significação parao proprietário da coisa; não existe contrabando na posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, que não cause uma lesão de certa expressão para o fisco; não há 28 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica Ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2001, pp. 104 e 105. 29 GOMES, Luiz Flávio & MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: Parte Geral. V. 2. GOMES, Luiz Flávio (coordenador). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 303. 20 peculato quando o servidor público se apropria de ninharias do Estado (folhas de papel, caneta esferográfica etc.); não há crime contra a honra quando não se afeta significativamente a dignidade, a reputação, a honra de outrem; não há lesão corporal em pequenos danos à integridade física; não há maus-tratos quando não se ocasiona prejuízo considerável ao bem-estar corporal; não há dano no estrago ao patrimônio público de pequena monta; não há estelionato quando o agente se utiliza de fraude para não pagar passagem de ônibus; não há furto quando a res subtraída é economicamente insignificante, não há corrupção passiva quando o funcionário aceita um ‘mimo’ de pequena expressão econômica etc. É preciso, porém, que estejam comprovados o desvalor do dano, o da ação e o da culpabilidade”.30 Assinala ainda o jurista que: “A excludente da tipicidade (do injusto) pelo princípio da insignificância (ou da bagatela), que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, não está inserta na lei brasileira, mas é aceita por analogia, ou interpretação interativa, desde que não contra legem. Não há como confundir, por exemplo, pequeno valor da coisa subtraída [hipótese do furto privilegiado do art. 155 § 2º do Código Penal] com valor insignificante ou ínfimo; no primeiro caso [furto privilegiado – art. 155 § 2º do Código Penal] há somente um abrandamento da pena, no segundo [valor ínfimo ou insignificante] exclusão da tipicidade. Somente uma quantidade de maconha totalmente inexpressiva, incapaz inclusive de permitir ‘o prazer de fumar’, poderá ter o condão de tornar atípica a ação de seu portador. No Estado do Rio Grande do Sul, já se absolveu réu acusado pelo crime de posse de entorpecente, por ser mínima (1 grama) a quantidade do tóxico, mas o Tribunal de Justiça acabou não aceitando tal orientação, mantendo aquela dos tribunais superiores. (...) Com as cautelas necessárias, reconhecendo caber induvidosamente na hipótese examinada o princípio da insignificância, não deve o delegado instaurar o inquérito policial, o promotor de justiça oferecer denúncia, o juiz recebê-la ou, após a instrução, condenar o acusado. Há no caso exclusão da tipicidade do fato e, portanto, não há crime a ser apurado”.31 30 MIRABETE, Júlio Fabbrini & FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal – Parte Geral. V. I. 25ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2009, pp. 103 e 104. 31 MIRABETE, Júlio Fabbrini & FABBRINI, Renato N. Op. cit., pp. 104 e 105. 21 9.1. Espécies de infração bagatelar: Há reconhecidamente duas espécies de infração bagatelar: 9.1.1. Infração bagatelar própria. 9.1.2. Infração bagatelar imprópria. Quanto ao termo infração bagatelar, observa Gomes que: “Se se trata de um fato penalmente irrelevante, a rigor, não poderíamos falar em ‘infração’ (porque não sendo típico o fato, infração não existe). De qualquer modo, para facilitar a compreensão do assunto, continuaremos a utilizar a locução acima referida”.32 9.1.1. Espécies de infração bagatelar própria: Infração bagatelar própria: “é a que já nasce sem nenhuma relevância penal, seja porque não há (um relevante) desvalor da ação (não há periculosidade na conduta, isto é, idoneidade ofensiva relevante), seja porque não há (um relevante) desvalor do resultado (não se trata de ataque grave ou significativo ao bem jurídico, que mereça a incidência do Direito Penal)”.33 Quanto a infração bagatelar própria, assinala Gomes: “Quem atira um pedaço de papel amassado contra um ônibus coletivo realiza uma conduta objetivamente não perigosa ou de periculosidade mínima, ìnfima (leia-se: de baixa idoneidade ofensiva). Logo, falta-lhe o desvalor da ação. Em outras palavras, não se trata da ação desvalorada que está prevista no tipo penal – CP, art. 264. Não há que se falar em desaprovação dessa conduta. Quem subtrai uma cebola pratica uma conduta desvalorada (furto; há desvalor da 32 GOMES, Luiz Flávio & MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., p. 303. 33 Ibid., p. 303. 22 ação), porém, o resultado jurídico é absolutamente ínfimo (falta portanto o desvalor do resultado, falta um ataque intolerável ao bem jurídico)”.34 Claro está, portanto, que “para todas as situações de infração bagatelar própria, o princípio a ser aplicado é o da insignificância ou de bagatela (que tem o efeito de excluir a tipicidade penal, mais precisamente a tipicidade material). Assim, se estamos diante de uma infração bagatelar própria não há que se perquirir o animus do agente, seus antecedentes, sua vida pregressa etc. O fato é atípico e não incide o Direito penal”.35 Importante asseverar ainda que para a configuração da infração bagatelar própria é imprescindível a consideração das circunstâncias de cada caso concreto, isto é, “para o reconhecimento da insignificância e, em consequência, da infração bagatelar própria, é muito importante a análise de cada caso concreto, da vítima concreta, das circunstâncias do fato, local etc.”. Assim: “O furto de uma garrafa d’água, em princípio, é absolutamente insignificante. Mas para quem está no deserto do Saara não o é. Como se vê, ser insignificante ou não o fato, depende de cada situação concreta. Uma bicicleta para um grande empresário é absolutamente insignificante. A mesma bicicletapara quem ganha R$ 50,00 por mês pode não ser. Cada caso é um caso. Não existem critérios apriorísticos que definem o que é insignificante: tudo depende do caso concreto, da vítima concreta, das circunstâncias, do local, do momento etc. Cuida-se, como se vê, de conceito normativo, que exige complemento valorativo do juiz”.36 No que concerne a atuação dos juízes neste caso, assinala Gomes que: “O princípio da insignificância tem tudo a ver com a moderna posição do juiz, que já não está bitolado pelos parâmetros abstratos da lei, senão pelos interesses em jogo em cada situação concreta. Nesse novo Direito penal, que é um direito do caso concreto, a proeminência do juiz é indiscutível. Mas também, a chance de se fazer justiça no caso concreto é muito maior que antes (quando o juiz estava atrelado ao velho silogismo formalista da premissa maior, premissa menor, conclusão). O fiat justitia et pereat mundus (faça-se 34 GOMES, Luiz Flávio & MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., pp. 303 e 304. 35 Ibid., p. 304. 36 Ibid., p. 304. 23 justiça, embora pereça o mundo) já não tem sentido nos dias atuais. O juiz não pode se contentar só com a aplicação formal da lei, ainda que o mundo pereça. A ele cabe fazer justiça em cada caso concreto, isto é, fazendo uso da razoabilidade, cabe sempre evitar que o mundo (do caso concreto) entre em ruínas. O que vale hoje e o fiat justitia, nem pereat mundus (faça-se a justiça, para que o mundo não pereça – Hegel)”.37 9.1.2. Espécies de infração bagatelar Imprópria: Infração bagatelar imprópria:“é a que nasce relevante para o Direito penal (porque há desvalor na conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjulgado com o princípio da irrelevância penal do fato)”.38 Nos chama a atenção Gomes para o fato de que: “A doutrina e a jurisprudência brasileiras já conhecem e aplicam o princípio da insignificância, que está coligado com a infração bagatelar própria. Mas até agora pouquíssima aplicação houve do princípio da irrelevância penal do fato, que se coliga com a infração bagaterlar imprópria. Impõe-se dominar todos esses conceitos que acabam de ser expostos para que a aplicação do Direito penal não seja equicocada”.39 Demonstrando a distinção entre a aplicação do princípio da insignificância e do princípio da irrelevância penal do fato, Gomes nos chama a atenção para o fato de que: “o princípio da insignificância está para a infração bagatelar própria assim como o da irrelevância penal do fato (e da desnecessidade da pena) está para a infração bagatelar imprópria. Cada princípio tem seu específico âmbito de incidência. O da irrelevância penal do fato está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena. Esse fenômeno é o que explica, por exemplo o perdão judicial. Logo, não há 37 GOMES, Luiz Flávio & MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., p. 304. 38 Ibid., p. 305. 39 Ibid., p. 305. 24 dúvida que o princípio da irrelevância penal do fato, quando aplicado, tem muita semelhança ao perdão judicial”.40 Em suma, no caso de infração bagatelar imprópria tem-se a aplicação do princípio da irrelevância penal do fato. Assim, “quando o juiz reconhece o princípio da irrelevância penal do fato não está concedendo um perdão judicial extra-legal. Não é o caso. Referido princípio não é extra-legal, ao contrário, tem amparo legal expresso (no art. 59 do CP). O juiz reconhece a dispensa da pena (ou seja: sua desnecessidade) no caso concreto e isso é feito com base no art. 59 do CP (que diz que o juiz só aplica a pena quando for necessária para a reprovação e prevenção do delito)”. Desse modo, prossegue Gomes: “Se em relação ao princípio da insignificância ainda há doutrinador (ou julgador) que hesita em admiti-lo por falta de base legal explícita (o que é incorreto, porque o ordenamento jurídico é integrado de regras e princípios), quanto ao princípio da irrelevância penal do fato essa carência de amparo legal não acontece. A sua base legal está no art. 59 do CP”.41 Quadro Princípio da Insignificância (ou da Bagatela): 40 GOMES, Luiz Flávio & MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., pp. 305 e 306. 41 Ibid., pp. 305 e 306. Infração Bagatelar Infração Bagatelar Própria Princípio da Insignificância ou Bagatela Infração Bagatelar Imprópria Princípio da Irrelevância Penal
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