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Margarida Maria Lacombe Camargo Pesquisadora da Casa Rui Barbosa. Professora da Universidade Gama Filho (Pós'graduação) HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO 3 edição revista e atualizada Posfácio de Antonio Cavalcanti Maia R€NOVflR Rio de Janeiro • Sõo Poulo 2003 Prefácio de Vicente de Paulo Barretto Margarida Maria Lacombe Camargo Pesquisadora da Casa Rui Barbosa. Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação) HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Prefácio de Vicente de Pauio Barretto 3® edição revista e atualizada Posfácio de Antonio Cavalcanti Mala R€!SíOVflR Rio d© Joneiro Soo Pouío 2003 Margarida Maria Lacombe Camargo PcsfíuiscidoTci d.ci Ç^dsci B.vA Bdvbos^. PtofessoTCL du 'Universidade Gania Filho (Pós-graduaçãoJ HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Prefácio de Vicente de Pauio Barretto 3^ edição revista e atualizada Posfácio de Antonio Cavalcanti Mala R6NOVRR flio de Joneiro » São PquIo 2003 CAPÍTULO 3 — VIRADA PARA O PÓS-POSITIVISMO: A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL 135 3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USO DA TÓPICA NO DIREITO 139 3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES; A LÓGICA DO RAZOÁVEL 161 3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: O DIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO MÉTODO. 175 CAPÍTULO 4 — A NOVA RETÓRICA DE CHAÍM PERELMAN 185 4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 192 4.2. A NOVA RETÓRICA 199 4.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 211 4.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA 223 4.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOÁVEL 228 4.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO 235 CAPÍTULO 5 — PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADE JURÍDICA CONTEMPORÂNEA 249 BIBLIOGRAFIA 261 POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271 Introdução A versão original deste trabalho foi apresentada à Uni versidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese de doutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito" remete-nos ao trata mento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sob o ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciências \ do espírito",' intermediada pela interpretação, cuja base técnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito que assumimos corresponde especificamente ao que está na ■ç lei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a cha mada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.^ Re- 1. Essa denominação é trazida primeiramente por WiUielm Dilthey, para designar as características próprias das ciências culturais a serem consideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre a experiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani festações que expressam o espírito dos seus autores. "We understand them by grasping this spirit. Such understanding involves our lived experience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy, p.201. 2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi- 1 1-f n I l s '••A conhecemos o direito como área humana e social, mas também consideramos os limites que nos são impostos pela dogmática, pois todo exercício de "compreensão", que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referi do a um campo conceituai próprio ditado pela razão, e que delimita a dogmática. Duas questões se apresentam como molas propulsoras deste estudo e que, de certa forma, podem constar como premissas. A primeira consiste na insuficiência da herme nêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cur sos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre o direito, em geral visto como produto do arbítrio dos juizes. Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidade para o direito, muito porque a discussão não enfrenta dire tamente a complexa questão da interdisciplinaridade, mas ao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimida de e controle, O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicio nal consiste nas chamadas "técnicas de interpretação das leis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costuma ser apresentada como ciência, mais especificamente como a parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicas de interpretação. E esta, por exemplo, a inteligência de Carlos Maximíiiano, autor brasileiro, cuja obra intitulada Hermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, con tinua a ser reeditada como uma das mais significativas so bre o tema. Ensina o autor: da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto, p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base [.^.] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base." A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. [...] Para [aplicar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des cobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar...^ Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempo estabelecer critérios de interpretação que conferissem ob jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta refa jurisdicional, Na realidade, o que ocorre é que a utili- ^ zaçâo dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiro j porque não existe entre elas nenhuma hierarquia e, assim, V o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien- ' tação ignora a dimensão criadora Hõ intérprete, que volta sua atenção antes para a resolução de determinado proble- ' ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual, /e com conteúdo próprio, previamente determinado. . \ Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di- fu reito"^ invariavelmente apontam para as técnicas gramati- 3. Carlos Maximíiiano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. Grifo nosso. 4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, Ronaldo Poleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr., além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran ça, Carlos Maxímiliano e Alípio Silveira, Este último traduz bem essa tendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos? Quais as suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêutica no direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta como orientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o > I cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica ou ^ teleológica, com' variações de nomenclatura, para indicar os procedimentos apropriados à atividade jurisdicional, que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide. ; Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceção ,1 da teleológica, nem por ele eram vistas como forma de se j chegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi- j ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi derados ntima interpretação. São, na realidade, elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e concreta do caso. A idéia de método afigura-se comoprèocupação da ciência moderna em proporcionar resultados logicamente determinados de acordo com cada área de invésti^ção. Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentou objeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta- tus de dentificidade. De outro lado, a necessidade de or dem e segurança faz com que, mais do que a justiça, pro priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.' problema da hermenêutica é õ da exata significação dos textos legais; interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli cação com exatidão, exprirriindo o sentido da norma em função, não só dos objetivos do seu autor, mas também em função das condições sociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf. Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV. 5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professor italiano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto de Diritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" — capítulos III, IV e V. São dele as seguintes palavras; "O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento Com relação à interpretação, em linhas gerais, o que prevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a "vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quem lhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugar à vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento de sua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos. I Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia de i prestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força, ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento, transferir a vontade do legislador, vista como a única legí- vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for mulado na sentença, O juiz é a viva vox iuris. O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na aplicação do direito. Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de oficio. Na reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso. Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurança jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo. Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de p povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." Françesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174. Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de Gusmão: "defi nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício da Justiça", Cf. Introdução ao estudo do direito, 21® ed., 1997, p. 215. tima, para uma outra época. Não obstante a propriedade deste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é a distância ou o desligamento entre a vontade da lei e o caso concreto no trabalho do intérprete.® Pelo menos é ò que afirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossa época, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu tica jurídica, com á seguinte frase; "A interpretação visa a ' descobrir o sentido objetivo do texto jurídico",^ inde pendentemente, portanto, do caso sub judice. Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to das as suas possibilidades gramaticais, bem como o que constaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código e da doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei, extraindo-se a sentença por meio de uma (^waçao ló^ci^ , da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena de ] detenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano será i condenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lida diretamente com o elemento humano, que não é homogê neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa rentemente simples, como a que acabamos de apontar, em que o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato 6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, Kónrad Hesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti- zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidade social (vide bibliografia). 7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17® ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233. comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais, cir cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo juiz de forma a atribuir para o réu uma pena "justa".® Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional não é automática e, portanto, nunca poderá ser substituída pela máquina. O juiz, como elemento humano dotado de i; razão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, sem ; que com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona- riedade atribtiída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentação de suas decisões, como também prevalece a regra do duplo grau de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes e eventuais acidentes provocados por juizes de boa-fé po dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazem parte do direito a ponderação e a dialética na interpretação das leis, constando, portanto, como insuficiente para uma decisão pretensamente correta a simples aplicação de téc nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz de garantir, por si só, que o juiz julgará bem.^ 8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça cor retiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos, baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meio- termo" entre perda e ganho. 9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi ma do que poderia ser acreditado como justo. Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundo ele, "o bem para o homem vem a ser o exercido ativo das faculdades da alma em conformidade com a excelência" {Ética a Nicômacos, 1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jiilgar acertadamente, "pois bem e acertadamente são a mesma coisa" {Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 121). A excelência toma, então, a coisa acertada. Citando ainda Aristóteles, temos que; "Chamamos de julgamento (isto é, a faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva- mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalho que a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali zada e apresentada concretamente, mediante o recurso : técnico da argumentação, enquanto a argvimentação, como instância dialógica, permite o exercício da liberdade, do confronto e do amadurecimento de idéias, em direção a uma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá- <y vel}° Em lugar de procurarmos técnicas capazesde garan tir a certeza e a objetividade científica para o direito, como forma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidade que preside o direito, e ver até onde é possível prever solu ções com alto grau de certeza. Mmto embora nossas conclusões pretendam contribuir para que o direito seja visto como um campo específico do conhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me todológica, temos plena consciência de que este debate ainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam a ciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis- mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstrado empiricamente, é crível; e o que não pode fica simples mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí- o fato de dizermos que uma pessoa eqúitativa é, mais que todas as outras, um juiz compreensivo acerca dè certos fatos. E julgamento compreensivo 6 o julgamento no qual está presente a percepção do que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é julgar segundo a verdade."(JÉtíca a Nicômacos, 1143 a, p. 123.) 10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisão simplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teorias apresentadas ao longo do trabalho. trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que a sociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil. Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora- mento da pesquisa jurídica de matriz jtuisprudencial, cuja ênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis- mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor do normativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual atravessa o direito." Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenas em seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, é que procuramos, neste primeiro momento, rever os pa- . drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperar itemática de extrema importância para o enfrentamento da crise do modelo positivista. 11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador', a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' — os modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi to", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXTV, 1998, fala do jurisprudencia- lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife rente. Designamo-la por perspectiva do homem {do homem-pessoá), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com iraia sua normatividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre ta...". Cf. p. 18. : i Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentação ii da hermenêutica jurídica, ou vice-versa, pois que, em ge- V ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nos no que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retóri- ca", relativa às ciências que se ocupam do discurso e da dialética, mais especificamente, das chamadas "ciências do espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico; a I hermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi- 'j ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir- í cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen- I te, tratarmos da interpretação como processo de interme- '>1 diação entre a compreensão e a concretização da norma, i tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisões I judiciais. No primeiro capítulo do livro, procuramos estabelecer algumas noções sobre o que entendemos como hermenêu tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo das i técnicas de interpretação, mas nos remete à compreensão I do próprio ser no mundo, que se encontra envolvido com S questões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica, j O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin- tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive, i de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou- ; tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadas I, entre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada mente. No direito, a pré-compreensâo é muito acentuada, uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor mam encontram-se relacionados a um campo conceituai próprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Por outro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil mente caracterizada no contraditório judicial produzido pela interpretação apresentada pelas partes. Ip embate j- dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, é suficiente para que fique caracterizado o esforço argumen- tativo de se firmar um entendimento para cada questão, ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizar uma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito. No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas ou modelos jurídicos de tradição romano-germânica, que se desenvolveram ao longo da história e que serviram de ori gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações o exemplo da common law e as correntes realistas que lhe são afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei, costume, fato social, etc., que serviram de orientação às diversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaram o direito do.séciolo XIX, orientam também a sua metodo logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entender i como direito, é pensar qual o seu campo de incidência; í enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe- : gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res- ~ i tritivamente, inclusive por problemas de ordem política— é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo está em voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con cepções abstratas e, distantes da reahdade histórica e so cial.'^ A partir daí fica patente que a concepção hermenêu tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostra sua Ugação com o racionalismo, o romantismo, o positivis mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas das principais escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for- 12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica do Direito, escrito por Alexandre Correia e publicado na Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 33, p. 28 e segs. 10 11 m a a a na li sa rm os os a va nç os e re cu os q ue a c o m pa nh ar am a he rm en êu ti ca ju ríd ica tr ad ic io na l. E m se gu id a, en fa ti za mo s o e st ud o d a t óp ic a, qu e m u it o co nt ri bu iu p ar a a m u da nç a do e nf oq ue m et od ol óg ic o d e ba se po si ti vi st a. Pa ra ta nt o, tr ou xe mos ao n os so c a m po de co ns id er aç õe s o tr ab al ho d e T he od or Vi eh we g, qu e se rv e c o m o p ar ad ig ma ne ss a di sc us sã o, e de ou tr os do is jur ist as, Re ca sé ns Si ch es e C as ta nh ei ra N ev es , q ue c om pa rt il ha m co no sc o da vi sã o c on cr et iz ad or a d o di re it o e c uja s o ri ge ns la ti no -e ur op éi as fa ci li ta ra m a s ua e nt ra da e m n os so pa ís , in fl ue nc ia nd o u m a ge ra çã o d e n ov os jur ist as. No úl ti mo ca pí tu lo , c on ce nt ra mo -n os na id éi a d a " lóg i ca do ra zo áv el ", de Ch ai m P er el ma n, qu e m el ho r r es po nd e à q ue st ão da le gi ti mi da de na in te rp re ta çã o d o di re it o, um a v e z q ue a a r gu me nt aç ão , n a b us ca d o a c o r do e d o c o n s e n so , é ca pa z de c on fe ri r à le i o s ig ni fi ca do m ai s a de qu ad o pa ra c ad a si tu aç ão . T om am os , po is , c o m o p ar âm et ro , a N o v a R et ór ic a, qu e co ns is te n u m a d as m a io re s co nt ri bu i çõ es ju sfi los ófi cas de n os so s éc ul o e é re sp on sá ve l p el a e n o r m e r ev ir av ol ta q ue a fi lo so fi a d o di re it o v e m s of re nd o. Fi na lm en te , g os ta rí am os de de ix ar cl ar o q ue , n ad a o bs ta nt e re co rr er mo s à t óp ic a c o m o m o de lo d e c o m pr ee ns ão do fe nô me no ju ríd ico , n ão a ba nd on am os a vi sã o s is tê mi ca e d og má ti ca i ne re nt e a o p ró pr io di re it o. D aí t om ar mo s c o m o r ef er ên ci a o tr ab al ho d e Té rc io S am pa io Fe rr az Jr . — au to r qu e ta lv ez m ai s te nh a tr ab al ha do c o m a t óp ic a jur ídi ca n o B ra si l e q ue c on se gu e ap ro xi ma r o di re it o d a tó pi ca , s o b u m a pe rs pe ct iv a d og má ti ca . 1 2 Ca pí tu lo 1 D I R E I T O, H E R M E N ÊU TI CA E I N T E R P R E T A ÇÃ O o t em a da h er me nê ut ic a e d a in te rp re ta çã o j urí dic as I r e m e te m- no s a o pr oc es so de ap li ca çã o d a l ei re al iz ad o p el o n P od er Ju di ci ár io . S ob es sa ót ic a, só fa z s en ti do in te rp re ta r- ! m o s a le i t en do e m v is ta u m p ro bl em a q ue r eq ue ir a s ol u- ' çã o l eg al . M as a a pl ic aç ão d a l ei de ve rá at en de r, an te s de tu do , o in di ví du o e a s oc ie da de a qu em el a s er ve . Po r is so , pe ns am os a le i e m f un çã o de si tu aç õe s e sp ec íf ic as , o u d e ca so s c o n c r e to s qu e e n v o lv em pe ss oa s. A n o r m a ju ríd ica en co nt ra -s e s e m pr e re fe re nc ia da a va lo re s n a m e di da e m q ue d ef en de c o m po rt am en to s o u se rv e de m e io pa ra at in gi rm os fi n s m ai s e le va do s. As si m, o pr ob le ma ju ríd ico , q ue en vo lv e s it ua çã o d e na tu re za v al o- ra ti va , d ev e se r co mp re en di do . Co mp re en de r é bu sc ar o si gn if ic ad o d e al gu ma c oi sa e m f un çã o da s ra zõ es q ue a or ie nt am . B us ca r os v al or es su bja cen tes à l ei , e q ue fo ge m da m e r a r el aç ão ca us a- ef ei to . P ar a ap li cá -l os , n ão ba st a d e te ct ar mo s o f at o e e nc ai xá -l o a u m a le i g er al e a bs tr at a 1 3 I ! dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissa menor à premissa maior conferisse uma solução necessá ria, mediante operação puramente formal. Não. O direito é comprometido com valores, e a norma que buscamos no texto através da interpretação encontra-se relacionada a uma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intér prete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim, podemos afirmar que o processo de interpretação e de aplicação das leis corresponde a uma situação hermenêuti ca, da qual nos fala Gadamer.'^ Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agi lidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da banda- gem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme Junito Brandão''* nos relata, Hermes logo furtou um rebanho de Apoio, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arras tado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado por Zeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutân cia concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdade ou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tor nou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que de tém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamen te as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das von tades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornando- se importante, mais tarde, para o desenvolvimento da ciência. Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquela que privilegia a busca do conhecimento de algo que não se apresenta de forma clara. A complexidade das ciências so- 13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y método. Sígueme: Salaman- ca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio Vargas: Rio de Janeiro, 1998. 14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. 11, p. 191. ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí vel. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe cimento que não se submete à certeza da investigação científica. E o direito não foge à regra. A hermenêutica jurídica refere-se, assim, a todo um processo de interpre tação e aplicação da lei que implica a compreensão total do fenômeno que requer solução. 1.1 O direito no âmbito da compreensão O conhecimento que requer compreensão difere de qualquer outro cuja repetição dos fenômenos seja possível e, portanto, previsível. É o caso das ciências empíricas, comoa física, a quúnica e a biologia, que possuem regras capazes de permitir-nos controlar, com algum rigor, a ocorrência de seus fenômenos. As ciências do espírito, por sua vez, dizem respeito às relações humanas que, por si só, implicam uma relação histórica e de liberdade.'® São rela ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re is. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta mento ético do homem, tomando por base Aristóteles, da seguinte forma: "As ciências do espírito fazem mais parte do saber moral. São ciências morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Agora bem, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. O que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386. Já a dimensão humana, própria das ciências do espírito, e que o positivismo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne ce sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é com preender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25. 14 15 í !■ í i| l i I lí pe tiç ão e da im ut ab ilid ad e, e nq ua nto a dm ite m , e m lug ar de sta s, a v ar ied ad e e a pr ob ab ilid ad e.' ® Lo go , a s c iên cia s d o es pí rit o, p or c or re sp on de re m a a sp ec to s in er en te s à ex is tê nc ia hti ma na , f or am m uit as ve ze s r ele ga da s a ò e stu do da m or al e d a r eli giã o, po rq ue in ca pa ze s d e p ro du zir um a v er da de ci en tifi ca m en te co mp ro va da . C om a vir ad a d a f ilo so fia , e m me ad os do sé cu lo pa ss ad o,' ^ p ara a on tol og ia e p ara o ex ist en cia lis m o, e m q ue g an ha m p ro em in ên cia o s er n o 16. A re sp eit o da a tiv ida de in ov ad or a do e sp írit o, ca pa z d e ins tau ra r for ma s n ov as de se r e de vi ve r, a o c on trá rio da na tur ez a, qu e s e r ep ete , en sin a o m es tre M ig ue l R ea le: "S e a na tur ez a, co m o na tur ez a, ob ed ec e a l eis d e um a pr ev isã o pe lo me no s es tat íst ica , e se o s f ato s na tur ais ma rca m um n ex o de ca us a e e fe ito o u de fu nc ion ali da de , s eg un do o pr in cí pi o de q ue n ad a ac on te ce q ue n ão se ja at ra vé s d e um a tra ns fo r ma çã o do já e xis ten te, q ue n ad a cri a de n ov o, po rq ue tu do , d e ce rta , m an eir a, se re pe te , j á o e sp íri to re pr es en ta a i ns er çã o de a lgo d e co n- I t ing en te na na tur eM , e ao m es mo te mp o d e v inc ula nte do pa rtic ula r i e m um a co mp ree ns ão de to tal ida de . [ ... ] O ra , g raç as à ve rifi ca çã o de tai s f ato s, po de mo s a firm ar qu e o es pír ito hu ma no se pr oje ta so bre a na tu re za , d an do -lh e um a dim en sã o no va . E sta d im en sã o no va sã o va lor es , c om o a fo nte de qu e p rom an am . O va lor , p ort an to, nã o é pr oje çã o d a c on sc iên cia in div idu al, em pír ica e iso lad a, ma s d o e sp írit o m es mo , e m su a u niv ers ali da de , e nq ua nto se re ali za e se pr oje ta pa ra for a, co mo co ns ciê nc ia his tór ica , n a q ua l s e t ra du z a in ter aç ão da s c on sc iên cia s i nd ivi du ais , e m um to do de su pe raç õe s s uc es siv as . [. ..] O el em en to de fo rça , d e d om íni o o u d e p rep on de rân cia do s e lem en tos ax iol óg i- co s ou d os v alo re s re su lta ria , p or ta nt o, d es sa to m ad a de c on sc iên cia do e sp írit o pe ran te si me sm o, atr av és de su as ob ras : o s v alo res , e m últ im a an áli se , o bri ga m, p orq ue re pre se nta m o h om em m es mo , c om o au toc on sc iên cia e sp irit ua l; e c on sti tue m- se na h ist ór ia e p ela hi stó ria po rq ue es ta é, no fu nd o, o r ee nc on tro do e sp írit o c on sig o m es mo , d o es pí rit o q ue se re ali za na e xp er iên cia da s g era çõ es , n as vi cis sit ud es do qu e ch am am os 'c icl os n atu rai s', o u c ivi liz aç õe s." In tro du çã o à fil os o fia , p . 1 54 e 1 55 . 17 . J os é La me go a po nt a pa ra u m a "v ira da h er m en êu tic a" n o fin al da dé ca da de 19 60 , p rec ed ida de um am plo de ba te so bre a "tó pic a" . C f. He rm en êu tic a e j ur isp ru dê nc ia , p . 9 6. 16 se u ac on te ce r, a ciê nc ia ta m bé m a pr ov ei ta p ar a re ve r s eu s pa râ m et ro s f or m al ist as , o rie nt an do -s e pa ra u m a no va d ire çã o, m ar ca da , a go ra , p el o pl ur al ism o, p ela in te rs ub je tiv i- da de e p ela e xp er iê nc ia h ist ór ica . P or o ut ro la do , a s m ais re ce nt es in ve sti ga çõ es s ob re a ra zã o m or al tê m a po nt ad o pa ra u m a ba se a rg um en ta tiv a qu e su ge re o re sg at e da re tó ric a e da tó pi ca a nt iga s. A es fe ra d a v id a re fe re nt e ao a gir e nc on tra -s e an te s s u je ita à co m pr ee ns ão d o se nt id o qu e en se jou a aç ão , d o qu e à sim ple s ex pli ca çã o de re laç õe s qu e lh e te nh am s er vid o de c au sa . A id éia é a de q ue as a çõ es h um an as , o rie nt ad as pa ra fi na lid ad es ,e nc on tra m- se in se rid as e m um p or qu ê hi st ór ico , d a m es m a fo rm a qu e o in té rp re te é u m se r t am bé m h ist or ica m en te o rie nt ad o e q ue fa z p ar te d e um a tra diç ão . A n or m a ju ríd ica c on st itu i-s e, a ss im , e m u m fa ze r hu m an o, c ar re ga do d e se nt ido . E o d ire ito , p ro pr iam en te di to , n ão é no rm a ge ra l, po ré m , n or m a in di vid ua l, po is so m en te as d ec isõ es d os ju ize s é q ue e fe tiv am en te o br iga m . Co m a se nte nç a é qu e s ab em os , e fe tiv am en te , q ua l o no ss o di re ito o u a no ss a ob rig aç ão . A nt es d iss o, a n or m a at ua ap en as c om o pa râ m et ro e o rie nt aç ão p ar a a co nd ut a, s em im pu ta r qu al qu er d ev er , co m o di ria K els en . Pa ra n ós , o di re ito a pr es en ta -s e j un gi do à pr óp ria h er m en êu tic a, u m a ve z qu e a su a ex ist ên cia , e nq ua nt o sig ni fic aç ão , d ep en de da co nc ret iza çã o o u d a a ph ca çã o d a l ei em ca da ca so ju lga - ; d o. As sim , a po iam o- no s n a f ilo so fia d e H an s- Ge or g Ga da - s m er ,'® q ue se ba se ia na re laç ão fá tic a en tre co mp re en sã o e 18. A pe sa r d e Ga da me r n ão e sta be lec er u ma n ítid a dis tin çã o en tre . c om pr ee ns ão e in te rp re ta çã o, c on fo rm e pr et en de m os , p or qu e os e n te nd e co m o sim ila re s, a su a co nc ep çã o ôn tic a e hi st or ici st a so br e a ■ h en ne nê ut ica se rve ao s n os so s p ro pó sit os . Jo sé L am eg o ta m bé m tr ab al ha a fi lo so fia d e G ad am er e m te rm os de h er me nê uti ca c om o fil os ofi a pr áti ca , a pr ox im an do a s n oç õe s de ve rd ad e e de co mp re en sã o co m o co nt ra po nt o da vi sã o hi st or ici st a he - 17 ií ! interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe lecido anteriormente por Heidegger,'® e Dilthey,^" que já havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida.^' geliana, que propõe para o direito o método cientifico-espiritual. A respeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham a vir agem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica, como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto do — e a questáo das garantias da objetividade —, para desembocar 5. diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon- \ dência, mas, em termos hermenêuticos, como de^ocult^ão [cdetheia). E, deste modo, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor denar a situação partictdar à pauta geral, mas, nessa coordenação con seguida (i.e., a realização de uma applicatió), potenciar a realização das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja: por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura- lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade de todo o direito," Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91. 19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que í se abre ao ser presente, Na compreensão, a presença projeta seu ser V para possibilidades. E um poder-ser que repercute sobre a presença ^ das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação, a compreensão se toma ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim, a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice- ; versa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p, ! 204. i 20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey, i pelo viés historidsta que este inaugura no âmbito da hermenêutica, i apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de perto seguirá Düthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73. 21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên- 18 1.2 Direito e interpretação Entendemos que a existência do direito, enquanto nor ma individti.al e concreta, corresponde à sua compreensão, para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas. De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons trução interpretativa que se formula a partir da e em dire ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a ação mediadora que procura compreender aquilo que foi dito ou escrito por outrem.^^ Como ação responsável e não aleatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi ficado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de argumentação. Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à cio Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional — direitos fundamentais. Vide bibliografia. 22. De acordo com Edmond Ortigues {Enciclopédia Einaudi, Impren sa Nacional — Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre tação, "diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re- exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar algo: ela vai do abstrato ao concreto, da fórmula â respectiva aplicação, à stui ilustração ou à sua inserção na vida." José Lamego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti ca de Heidegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente uma distinção entre compreensão e interpretação, como fazemos, es creve: "Para uma hermenêutica assente em pressuposições existen- ciais-ontológicas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que ver não com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica do este, na expressão de Heidegger, com o ser de tal poder-ser." Her menêutica e jurisprudência, p. 91. 19 intenção do autor numa situação específica, inserem-se no campo histórico da compreensão. O direito, como obra humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei ra resposta.O direito, como as demais ciências do espírito, corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente.^^ Internamente seria a própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma perspectiva reducionista, uma vez que admite valores universais válidos também para outras épocas e outros lu gares. Q3n^ireender.éJ.tidagar so^^ as possibilidades.do sig- nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E, nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando compreendido. Um código, por exemplo, contém regras gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro váveis, mas que só ganham um significado concreto quan do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado, como o legislador que prevê a realização de uma prática, seja a de quem produz a transferência da regra de um cam po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi cado real — o juiz quando decide.^"* 23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador, quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei). 24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona 20 Nossa hipótese é a de que o processo de compreensão se concretiza por meio da argumentação, que, tecnicamen- , te viabiliza a interpretação. De outro lado, verifica-se que ! a compreensão, como movimento oposto ao da explicação , racional-demonstrativa, insere-se no campo das possibili dades. É possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo que aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-la.^^ A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o momentò em que o pensamento dialético se instaura.^^ A argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por que uma lei foi votada e, num sistema modemo, toda sentença deve ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada," Cf. Ética e direito, p. 376. 25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de verossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida", Cf. Intro- dução à retórica, p. 95. 26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da seguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto das técnicas discursivas que permitem provpcar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um sistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p. 369. 21 5 n M l l\ l i l í partes discursivas; acordo este fundamentado em provas concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen tação temos condições de "visualizar" a compreensão, na medida em que esta se traduz em algo de concreto.^^ O direito admite, pois, uma superposição entre duas I esferas: a da compreensão da norma e a da compreensão ; do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente, ^ que se utiliza, para tanto, do procedimento argumentativo. Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de formular a compreensão através de uma interpretação que sirva de fundamento à solução mais razoável. O método do direito é, portanto, o método tópico- i hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em I função do problema que apresenta e da tradição histórica na qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo. Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea lização de uma prática que envolve o método hermenêutico da compreensão e a técnica argumentativa. Para nós, o método diz respeito à orientação para o co nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti mamente relacionadas: existe o que se compreende em função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi to é a mesma realidade de sua compreensão.^® 27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen são e não vice-versa, ele considera os pré-jufeos como ponto de partida para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque ma como topoi. Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré via, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. Cf. Sere tempo, p, 206-7. 28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do com preender histórico." Verdade e método, p. 370. 22 1.3 Hermenêutica e interpretação A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo Vattimo,^® Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi ca,^^ entendida esta última como "a descrição universal mente válida de estruturas permanentes e essenciais à compreensão do mundo". A descrição objetiva dos fatos segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável, originária da interpretação, isto é, uma interpretação que pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a destitua.^^ O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.^^ E olhando dessa forma, anota que a hermenêutica revela os seus dois aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste 29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her menêutica para a filosofia, 30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her menêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a modernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência pe remptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo...". Para além da interpretação, p. 27. 31. Vattimo, ob. cit., p. 23. 32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua mátriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no texto de Vattimo: "Os arçimentos que a hermenêutica oferece para sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por serem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar fora de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilhá- do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo mais aceitável." Ob, cit,, p. 24. 33. Cf. p. 14. 23 Jí í 1 nosso trabalho, e o da lingüisticidade.^'' Gadamer critica o cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi- , car a busca da verdade além dos limites do método cientí- ' fico positivo, a começar pela verdade da experiência,como ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do tema, buscando um pouco das suas origens. Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem i como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia i antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme- neuein, usualmente traduzido como "interpretar", e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa intehgência consiga compreender.^^ O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti- i ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im portante do que simplesmente expressar, na medida em que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ;i ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, ;Í quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com- í preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível. 34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lènio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica. 24 1 Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que se tornaram muitas vezes obrigatórias,^^ A hermenêutica alcançou notável proeminência no campo religioso. O problema de interpretar corretamente a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade Média, a análise sistemática sobre a evidência da revelação divina deu origem à Teologia, e a hermenêutica assumiu o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo filológico. 36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.C. Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado: a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano; finalmente, nãò havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz adotar a tese que lhe pareça melhor. 37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "co mentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente da explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma ra cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutiva mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 2® edição brasileira de Discurso do método, de Descartès: Editora Martins Fon tes, 1996. 25 ; i í- Para o direito, no entanto, foi extremamente significa tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em 1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador Jtistiniano no século VI d.C., mais tarde rhaTnaHas de Cor- pm luris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker, "a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e atemporal da sua própria vida".^® O desenvolvimento das cidades italianas justificou a formação de uma corporação própria — a Universidade —, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários e advogados.®® Como o texto jurídico romano era muito ^ difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do resultado da interpretação feita pelos professores apare cem as glosas, palavra por palavra, linba por linha,"" para logo alcançar todo o sistema, visto como um todo har mônico, a reunir as partes, conforme princípios de or dem geral. A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, se gundo Wieacker, à tradição do ensino trivial."' Segundo o mesmo informa, mantinham-se "ainda as figuras de expli cação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica. 38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42. 39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41. I 40. As glosas ganharam robustez nos seus signiiicados, tornando-se ^ fecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito, í Destaque para a Gbssa Ordinária de Accurius (1250), considerado o ' maior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto. 41. Durante o século o trivium correspondia ao ensino dos ele mentos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; o quadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física. 26 pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicial- 1 mente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textos filológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ou interpretação do texto, e a distinção. [...] Como ratio ^ scripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mes- I mo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todos i os textos, uma verdade.""® No entanto, "a convicção do 1 domínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradição i conduziu a investigação hermenêutica à procura do senti- ; do global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeias silogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autori- dade absoluta, um texto não pode contradizer outro igual mente verdadeiro"."® O método de análise escolástico, por sua vez, foi fator responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, tal como ocorrera com a religião. De acordo com J. Harold Berman, o método escolástico pressupunha a absoluta au toridade de certos livros, que continham um completo e integrado corpo doutrinário, como era o caso do Corpus luris Civilis e da Bíblia, corporifícando a razão. Verifica- se, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência da teologia formam-se na mesma época."" 42. Wieacker, ob. dt., p. 47 e 50. 43. Idem. Ibidem, p. 53. Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção da relação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonará mais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é Hans- Georg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não se entende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todos os momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreen são do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só pode empreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentido de unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para toda a hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227. 44. Cf. Bermaa. Law and Revolution, p. 131 e 132. 27 o romantismo e o renascimento também se ocupam da recuperação das obras clássicas, procurando, na correta utilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da épo ca antiga. Em um e outrocaso, trata-se, na realidade, do redescobrimento de algo cujo sentido era estranho e ina cessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pre tendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido originai dos textos através de um procedimento quase artesanal, que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posterior mente, sob a influência do historicismo, a hermenêutica abandona o seu aspecto puramente exegético, na medida em que é reconhecida a necessidade de se interpretarem tanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criação de um texto quanto as circunstâncias que determinam a sua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilus tração e o pensamento científico moderno que interpreta ção e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência, preocupando-se com as técnicas próprias do fazer inter- pretativo. E, ao investir na questão do método, a herme- O método dialético era bastante utilizado como forma de resolver problemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialé tica escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado do monge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado, > sugestivamente, A Concordance ofDiscordant Canons. Segundo Ber- man, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de for ma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou as várias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpon do o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino e de direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletida na revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o di reito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser en contrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência hu manas. Cf, Law and Revolution, p. 145. nêutica ganha particular importância para a filosofia e para a teoria do conhecimento. No entanto, a ênfase dada à linguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica no campo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologia desenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a ser vista como compreensão^ revelando-se na consciência do próprio ser. Para Heidegger, a compreensão consiste no movimen to básico da existência, no sentido de que compreender não significa um comportamento do pensamento humano en tre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Consti tui, antes, o movimento básico da existência humana.^^ Compreender, para Heidegger, "é a forma originária de realização do estar aí, do ser-no-mundo"."^^ Gadamer dirá que compreender é experiência. 45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e "teoria do conhe cimento" aquela que procura a verdade objetiva, com base na distin ção existente entre sujeito e objeto. Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela desco berta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente um método específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afir ma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário, elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciência histórica, p. 20. A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria do conhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, em Hermenêutica, p. 87 e segs. 46. Cf. Gadamer, "Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica" [1977], in Verdade e Método II, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134. 47. Verdade e método, p. 325. A idéia de mundo" corresponde ao conjunto de condições geográ ficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa. 28 29 i h = íi 1 li i í I No século XX, seguindo a esteira do historicismo de Dilthey/® que considerava a reflexividade como base da experiência, e da ontologia heidegeriana/^ à luz da retoma da da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamer traz a hermenêutica para o campo da praxi? ou da filosofia prática.^^ Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade 48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço no sentido de dar objetividade metodológica às "ciências do espírito", assumindo o problema da relatividade. A partir da importância da consciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou conver ter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer, Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, manten do a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstan te, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, de justificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando o mundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e méto do, páginas 277 a 304, e "Extensão e limites da obra de Wilhelm Dilthey", em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs. 49. De acordo com Gadamer, "sob o termo chave de uma hermenêuti ca dafaticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigência paradoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não é suscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deve erigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogito como constituição essencial de uma generalidade típica." Verdade e método, p- 319. 50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplica ção, reporta-sç a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar direta mente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, na Ética trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as cha madas "ciências do espírito" possuem como base a vida e o homem, nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, o saber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico. O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não é evidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecer não decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aquele que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão 30 à proposta de Heidegger, ao reconhecer que o conceito da compreensão não é mais um conceito metódico, mas o ca ráter ôntico original da vida humana mesma.^^ Segundo Gadamer, o estar aí é, na realização do seu próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhe cedor nem o conhecido "se dão" "onticamente", mas "his toricamente", isto é, participam do modo de ser da histo- ricidade. Pertencer é condição para o sentido originário do interesse histórico. O problema da faticidade, que aparece em Heidegger, era também o problema central do histori cismo, e isto significa que p determina-se no horizonte do tempo. "A tese de Heidegger é de que o ser mesmo é tempo*\^^ O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respei to ao problema da verdade e da compreensão no âmbito das ciências do espírito, é a análise da "consciência da história efetiva", traduzida para o inglês como historically effected consciousness.^'^ A consciência da história efetiva é a consciência da situação hermenêutica, portanto, do mo mento de realização da compreensão.^^ Gadamer defende que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade e método, p. 383 a 386. Sobre a visão aristotélica de raciocínio prático, e a noção dQpróai- resis, vale também conhecer o trabalho de Alasdair Macíntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade? 51. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 325. 52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.) 53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra: Verdade e método, 54. Ver Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall, TheContinuum Publishing Company, New York, 1994. 55. Gadamer. Verdade e método, p. 372. 31 1 li a idéia de que não é tarefa da liermenêutica descobrir mé todos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão.^® O indivíduo compreende-se a si mesmo através da consciência que tem de sua situação histórica. À I iáéiâ de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradi- ? ção e de Iwrizonte. Todo ser histórico encontra-se inserido na tradição e ocupa determinada posição que lhe delimita orizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica, é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, é : O âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Não obstante, ter hori zonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais de perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizon- ; te é apenas a dimensão do que o homem compreende e que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem horizonte consegue valorar o significado das coisas que se encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de per to/longe, pande/pequeno, etc. A mobilidade histórica im pede a existência de horizontes únicos, ao passo que o ho- rizonte se move conforme quem se move; não é a cons ciência histórica que põe em movimento o horizonte, mas consciência histórica este movimento se faz consciente de si mesmo. Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, o horizonte do presente encontra-se em constante fonna- 56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproxima do objeto deito para alcançar o seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pres- suporto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade e método, p. 380. 32 ção, na medida em que colocamos constantemente em prova os pré-juízos formados sob as bases da tradição. O horizonte do presente não se forma à margem do passado; ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita a compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novo horizonte que se supera, à medida que acompanha um pro- cesso de crescimento até atingirem uma validez nova e sig nificativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gada mer: O projeto de um horizonte histórico é, portanto, uma i fase ou momento na realização da compreensão, e não se consolida na auto-alienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do pre sente. Na realização da compreensão tem lugar uma verda deira fusão horizôntica que com o projeto .do horizonte his tórico leva a cabo simultaneamente sua superação. À realiza ção controlada da fusão damos o nome de "tarefa da cons-, ciência histórico-efetiva".^^ A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pi lares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia de tradição, uma vez que o tempo passa a ser visto não como um precipício que deve ser transposto para a recuperação do passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes. Dessa forma, A "distância temporal" não é uma distância no sentido de uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esse era o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditava poder alcançar o terreno da objetividade hitórica através de um esforço para se colocar na perspectiva da época estudada e pensar com os conceitos e representações que lhes eram 57. Idem, p. 377. 33 l ! ti™ I"' verdade, de considerar a "distânciatemporal como fundamento de uma possibilidade positiva e produtiva de compreensão. Não é uma distância a percor rer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumu lam formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que traímos conosco de nosso passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição. o que Gadamer procura não é manter o passado me- I diante uma postura conservadora, mas, antes, desmistifi- esse passado. Diante do que chama de ingenuidade do 1 objetmsmo lustórico, busca distinguir os preconceitos que cegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os precon ceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo que !• nos une com o passado, apresentando o presente, atua ^ também como instância objetiva a propiciar a integração e n a comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto àpro- pnaçao espontânea e produtiva de conteúdos transmiti dos, a tradição "é o elo concreto entre todos nós"; "o espe lho em que cada um de nós se reconhece",^9 e que promo ve a consciência histórica da situação hermenêutica, pois compreender e operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contí nua de perpectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a nós Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento gadameriano: toda experiência só pode ser compreendida porque referenciada ao passado, numa relação de confron to. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo e nunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incór- 58. O problema ãa consciência histórica, p. 67-8. 59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente. 60. Idem, p. 71. 34 porado à consciência, como experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível, reconquistará sua consistência. A experiência precisa trixinfar sobre a tradição sob pena de fracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se não tivesse que se afirmar contra alguma coisa.^V Gadamer foi duramente criticado, principalmente por Emílio Betti,^^ por ignorar em toda a sua obra os métodos hermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetivi dade do método histórico.®^ Por isso Gadamer se defende no prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verda de e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, mui to menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. An tes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira de compreender, porque acredita que a tarefa da hermenêu tica não é desenvolver um procedimento da compreensão, mas iluminar as condições sob as quais se compreende. Neste sentido, Gadamer sustenta que "a compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a um 'objeto* dado, senão que pertence à história efetiva, isto é, ao ser do que se compreende*';®"^ e assim afasta-se de toda 61. É o que autor apresenta em O problema da consciência histórica, p. 14, 62. Dentre as obras mais significativas de Emílio Betti a respeito da interpretação no direito destacam-se: Teoria Generale delia Interpre- tazione. Milano: D.A. Giufffé, 1955; e Interpretazione delia Legge e degli Atti GiuridicL Milano: D. A. Giuffrè, 1971. 63. Richiard Pálmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "do ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destruti vos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a integridade do pró prio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defen dê-la com firmeza." Hermenêutica, p. 56, 64. Verdade e método, p. 13-4, "A compreensão é menos um método através do qual a consciên- 35 i li 11 lí í j 1 1 - j corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar en tre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qual quer consideração referente ao grau de subjetividade do interprete frente ao máximo de objetividade que se requer para o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserir tanto um quanto outro em um processo histórico do qual ambos razem parte. Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problema da consciência histórica." Acompanha Reinhardt Kosel- leck, no âmbito do historicismo, quando este aponta para a mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento
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