Buscar

Hermenêutica e Argumentação Margarida Camargo

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 95 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Margarida Maria Lacombe Camargo
Pesquisadora da Casa Rui Barbosa.
Professora da Universidade Gama Filho (Pós'graduação)
HERMENÊUTICA E
ARGUMENTAÇÃO
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
3 edição
revista e atualizada
Posfácio de
Antonio Cavalcanti Maia
R€NOVflR
Rio de Janeiro • Sõo Poulo
2003
Prefácio de
Vicente de Paulo Barretto
Margarida Maria Lacombe Camargo
Pesquisadora da Casa Rui Barbosa.
Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação)
HERMENÊUTICA E
ARGUMENTAÇÃO
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Prefácio de
Vicente de Pauio Barretto
3® edição
revista e atualizada
Posfácio de
Antonio Cavalcanti Mala
R€!SíOVflR
Rio d© Joneiro Soo Pouío
2003
Margarida Maria Lacombe Camargo
PcsfíuiscidoTci d.ci Ç^dsci B.vA Bdvbos^.
PtofessoTCL du 'Universidade Gania Filho (Pós-graduaçãoJ
HERMENÊUTICA E
ARGUMENTAÇÃO
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Prefácio de
Vicente de Pauio Barretto
3^ edição
revista e atualizada
Posfácio de
Antonio Cavalcanti Mala
R6NOVRR
flio de Joneiro » São PquIo
2003
CAPÍTULO 3 — VIRADA PARA O PÓS-POSITIVISMO:
A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL 135
3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USO
DA TÓPICA NO DIREITO 139
3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES; A LÓGICA
DO RAZOÁVEL 161
3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: O
DIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO
MÉTODO. 175
CAPÍTULO 4 — A NOVA RETÓRICA DE
CHAÍM PERELMAN 185
4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 192
4.2. A NOVA RETÓRICA 199
4.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 211
4.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA 223
4.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOÁVEL 228
4.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO 235
CAPÍTULO 5 — PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADE
JURÍDICA CONTEMPORÂNEA 249
BIBLIOGRAFIA 261
POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271
Introdução
A versão original deste trabalho foi apresentada à Uni
versidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese de
doutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: uma
contribuição ao estudo do direito" remete-nos ao trata
mento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sob
o ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciências
\ do espírito",' intermediada pela interpretação, cuja base
técnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito que
assumimos corresponde especificamente ao que está na
■ç lei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a cha
mada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.^ Re-
1. Essa denominação é trazida primeiramente por WiUielm Dilthey,
para designar as características próprias das ciências culturais a serem
consideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre a
experiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera
mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani
festações que expressam o espírito dos seus autores. "We understand
them by grasping this spirit. Such understanding involves our lived
experience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy,
p.201.
2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi-
1
1-f n
I l
s
'••A
conhecemos o direito como área humana e social, mas
também consideramos os limites que nos são impostos
pela dogmática, pois todo exercício de "compreensão",
que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referi
do a um campo conceituai próprio ditado pela razão, e que
delimita a dogmática.
Duas questões se apresentam como molas propulsoras
deste estudo e que, de certa forma, podem constar como
premissas. A primeira consiste na insuficiência da herme
nêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cur
sos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre o
direito, em geral visto como produto do arbítrio dos juizes.
Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidade
para o direito, muito porque a discussão não enfrenta dire
tamente a complexa questão da interdisciplinaridade, mas
ao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimida
de e controle,
O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicio
nal consiste nas chamadas "técnicas de interpretação das
leis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costuma
ser apresentada como ciência, mais especificamente como
a parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicas
de interpretação. E esta, por exemplo, a inteligência de
Carlos Maximíiiano, autor brasileiro, cuja obra intitulada
Hermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, con
tinua a ser reeditada como uma das mais significativas so
bre o tema. Ensina o autor:
da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto,
p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi
to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria
base [.^.] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos
to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base."
A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a
sistematização dos processos aplicáveis para determinar o
sentido e o alcance das expressões do direito. [...] Para
[aplicar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des
cobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo
depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o
executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém:
é o que se chama interpretar...^
Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempo
estabelecer critérios de interpretação que conferissem ob
jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta
refa jurisdicional, Na realidade, o que ocorre é que a utili-
^ zaçâo dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiro
j porque não existe entre elas nenhuma hierarquia e, assim,
V o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien-
' tação ignora a dimensão criadora Hõ intérprete, que volta
sua atenção antes para a resolução de determinado proble-
' ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual,
/e com conteúdo próprio, previamente determinado.
. \ Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di-
fu reito"^ invariavelmente apontam para as técnicas gramati-
3. Carlos Maximíiiano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.
Grifo nosso.
4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta
ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, Ronaldo
Poleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr.,
além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran
ça, Carlos Maxímiliano e Alípio Silveira, Este último traduz bem essa
tendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her
menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en
contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos?
Quais as suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên
cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêutica
no direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta como
orientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o
> I cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica ou
^ teleológica, com' variações de nomenclatura, para indicar
os procedimentos apropriados à atividade jurisdicional,
que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de
mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide.
; Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceção
,1 da teleológica, nem por ele eram vistas como forma de se
j chegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi-
j ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele
mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi
derados ntima interpretação. São, na realidade, elementos
que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se
ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e
concreta do caso.
A idéia de método afigura-se comoprèocupação da
ciência moderna em proporcionar resultados logicamente
determinados de acordo com cada área de invésti^ção.
Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentou
objeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi
palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta-
tus de dentificidade. De outro lado, a necessidade de or
dem e segurança faz com que, mais do que a justiça, pro
priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.'
problema da hermenêutica é õ da exata significação dos textos legais;
interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli
cação com exatidão, exprirriindo o sentido da norma em função, não
só dos objetivos do seu autor, mas também em função das condições
sociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf.
Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV.
5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professor
italiano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto de
Diritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" —
capítulos III, IV e V. São dele as seguintes palavras;
"O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento
Com relação à interpretação, em linhas gerais, o que
prevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a
"vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quem
lhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugar
à vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento de
sua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos.
I Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia de
i prestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força,
ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento,
transferir a vontade do legislador, vista como a única legí-
vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador
na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz
o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for
mulado na sentença, O juiz é a viva vox iuris.
O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é
o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na
aplicação do direito.
Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades
práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em
momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen
to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém,
o seu dever de oficio. Na reforma das leis, na produção do direito novo
pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.
Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurança
jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe
rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam ao
sabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo.
Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar
o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual
nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de p
povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." Françesco
Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174.
Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de Gusmão: "defi
nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício
da Justiça", Cf. Introdução ao estudo do direito, 21® ed., 1997, p. 215.
tima, para uma outra época. Não obstante a propriedade
deste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é a
distância ou o desligamento entre a vontade da lei e o caso
concreto no trabalho do intérprete.® Pelo menos é ò que
afirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem
plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossa
época, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu
tica jurídica, com á seguinte frase; "A interpretação visa a
' descobrir o sentido objetivo do texto jurídico",^ inde
pendentemente, portanto, do caso sub judice.
Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote
gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to
das as suas possibilidades gramaticais, bem como o que
constaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an
tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu
tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código e
da doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me
canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei,
extraindo-se a sentença por meio de uma (^waçao ló^ci^
, da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena de
] detenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano será
i condenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lida
diretamente com o elemento humano, que não é homogê
neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia
das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa
rentemente simples, como a que acabamos de apontar, em
que o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato
6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, Kónrad
Hesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti-
zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidade
social (vide bibliografia).
7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17®
ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233.
comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais, cir
cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo juiz de
forma a atribuir para o réu uma pena "justa".®
Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional não
é automática e, portanto, nunca poderá ser substituída
pela máquina. O juiz, como elemento humano dotado de
i; razão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, sem
; que com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona-
riedade atribtiída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú
vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentação
de suas decisões, como também prevalece a regra do duplo
grau de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé
cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes e
eventuais acidentes provocados por juizes de boa-fé po
dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazem
parte do direito a ponderação e a dialética na interpretação
das leis, constando, portanto, como insuficiente para uma
decisão pretensamente correta a simples aplicação de téc
nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz de
garantir, por si só, que o juiz julgará bem.^
8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça cor
retiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos,
baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meio-
termo" entre perda e ganho.
9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi
ma do que poderia ser acreditado como justo.
Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundo
ele, "o bem para o homem vem a ser o exercido ativo das faculdades
da alma em conformidade com a excelência" {Ética a Nicômacos,
1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jiilgar acertadamente,
"pois bem e acertadamente são a mesma coisa" {Ética a Nicômacos,
1143 b, p. 121). A excelência toma, então, a coisa acertada. Citando
ainda Aristóteles, temos que; "Chamamos de julgamento (isto é, a
faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva-
mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é
Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalho
que a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali
zada e apresentada concretamente, mediante o recurso
: técnico da argumentação, enquanto a argvimentação, como
instância dialógica, permite o exercício da liberdade, do
confronto e do amadurecimento de idéias, em direção a
uma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá-
<y vel}° Em lugar de procurarmos técnicas capazesde garan
tir a certeza e a objetividade científica para o direito, como
forma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma
les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto
dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidade
que preside o direito, e ver até onde é possível prever solu
ções com alto grau de certeza.
Mmto embora nossas conclusões pretendam contribuir
para que o direito seja visto como um campo específico do
conhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me
todológica, temos plena consciência de que este debate
ainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró
pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in
cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam a
ciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis-
mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstrado
empiricamente, é crível; e o que não pode fica simples
mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí-
o fato de dizermos que uma pessoa eqúitativa é, mais que todas as
outras, um juiz compreensivo acerca dè certos fatos. E julgamento
compreensivo 6 o julgamento no qual está presente a percepção do
que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é
julgar segundo a verdade."(JÉtíca a Nicômacos, 1143 a, p. 123.)
10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisão
simplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teorias
apresentadas ao longo do trabalho.
trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale
ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que a
sociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves
tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen
te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil.
Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora-
mento da pesquisa jurídica de matriz jtuisprudencial, cuja
ênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di
reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes
soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis-
mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor do
normativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante
riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual
atravessa o direito."
Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun
dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenas
em seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, é
que procuramos, neste primeiro momento, rever os pa-
. drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperar
itemática de extrema importância para o enfrentamento da
crise do modelo positivista.
11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador',
a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' — os
modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi
to", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, vol. LXXTV, 1998, fala do jurisprudencia-
lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o que
dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife
rente. Designamo-la por perspectiva do homem {do homem-pessoá), i.
é, aquela perspectiva em que o direito, com iraia sua normatividade
axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi
ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre
ta...". Cf. p. 18.
: i Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentação
ii da hermenêutica jurídica, ou vice-versa, pois que, em ge-
V ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nos
no que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retóri-
ca", relativa às ciências que se ocupam do discurso e da
dialética, mais especificamente, das chamadas "ciências
do espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico; a
I hermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi-
'j ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir-
í cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo
ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen-
I te, tratarmos da interpretação como processo de interme-
'>1 diação entre a compreensão e a concretização da norma,
i tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisões
I judiciais.
No primeiro capítulo do livro, procuramos estabelecer
algumas noções sobre o que entendemos como hermenêu
tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo das
i técnicas de interpretação, mas nos remete à compreensão
I do próprio ser no mundo, que se encontra envolvido com
S questões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica,
j O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin-
tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive,
i de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou-
; tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta
ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadas
I, entre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada
mente. No direito, a pré-compreensâo é muito acentuada,
uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor
mam encontram-se relacionados a um campo conceituai
próprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Por
outro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil
mente caracterizada no contraditório judicial produzido
pela interpretação apresentada pelas partes. Ip embate
j-
dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, é
suficiente para que fique caracterizado o esforço argumen-
tativo de se firmar um entendimento para cada questão,
ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizar
uma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito.
No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas ou
modelos jurídicos de tradição romano-germânica, que se
desenvolveram ao longo da história e que serviram de ori
gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri
ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações o
exemplo da common law e as correntes realistas que lhe
são afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei,
costume, fato social, etc., que serviram de orientação às
diversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaram
o direito do.séciolo XIX, orientam também a sua metodo
logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entender
i como direito, é pensar qual o seu campo de incidência;
í enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe-
: gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res-
~ i tritivamente, inclusive por problemas de ordem política—
é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo está
em voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci
siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con
cepções abstratas e, distantes da reahdade histórica e so
cial.'^ A partir daí fica patente que a concepção hermenêu
tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostra
sua Ugação com o racionalismo, o romantismo, o positivis
mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas das
principais escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa
mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for-
12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica do
Direito, escrito por Alexandre Correia e publicado na Enciclopédia
Saraiva do Direito, vol. 33, p. 28 e segs.
10 11
m
a
 a
 a
na
li
sa
rm
os
 os
 a
va
nç
os
 e 
re
cu
os
 q
ue
 a
c
o
m
pa
nh
ar
am
 a
he
rm
en
êu
ti
ca
 ju
ríd
ica
 tr
ad
ic
io
na
l.
E
m
 se
gu
id
a,
 en
fa
ti
za
mo
s o
 e
st
ud
o d
a t
óp
ic
a,
 qu
e 
m
u
it
o
co
nt
ri
bu
iu
 p
ar
a 
a 
m
u
da
nç
a 
do
 e
nf
oq
ue
 m
et
od
ol
óg
ic
o d
e
ba
se
 po
si
ti
vi
st
a.
 Pa
ra
 ta
nt
o,
 tr
ou
xe
mos 
ao
 n
os
so
 c
a
m
po
 de
co
ns
id
er
aç
õe
s o
 tr
ab
al
ho
 d
e T
he
od
or
 Vi
eh
we
g,
 qu
e 
se
rv
e
c
o
m
o
 p
ar
ad
ig
ma
 ne
ss
a 
di
sc
us
sã
o,
 e 
de
 ou
tr
os
 do
is
 jur
ist
as,
Re
ca
sé
ns
 Si
ch
es
 e
 C
as
ta
nh
ei
ra
 N
ev
es
, q
ue
 c
om
pa
rt
il
ha
m
co
no
sc
o 
da
 vi
sã
o c
on
cr
et
iz
ad
or
a d
o 
di
re
it
o e
 c
uja
s o
ri
ge
ns
la
ti
no
-e
ur
op
éi
as
 fa
ci
li
ta
ra
m a
 s
ua
 e
nt
ra
da
 e
m
 n
os
so
 pa
ís
,
in
fl
ue
nc
ia
nd
o u
m
a
 ge
ra
çã
o d
e n
ov
os
 jur
ist
as.
No
 úl
ti
mo
 ca
pí
tu
lo
, c
on
ce
nt
ra
mo
-n
os
 na
 id
éi
a d
a "
lóg
i
ca
 do
 ra
zo
áv
el
",
 de
 Ch
ai
m P
er
el
ma
n,
 qu
e m
el
ho
r r
es
po
nd
e
à q
ue
st
ão
 da
 le
gi
ti
mi
da
de
 na
 in
te
rp
re
ta
çã
o d
o 
di
re
it
o,
 um
a
v
e
z
 q
ue
 a
 a
r
gu
me
nt
aç
ão
, 
n
a
 b
us
ca
 d
o 
a
c
o
r
do
 e
 d
o 
c
o
n
s
e
n
so
, 
é 
ca
pa
z 
de
 c
on
fe
ri
r à
 le
i o
 s
ig
ni
fi
ca
do
 m
ai
s 
a
de
qu
ad
o
pa
ra
 c
ad
a 
si
tu
aç
ão
. T
om
am
os
, 
po
is
, c
o
m
o
 p
ar
âm
et
ro
, a
N
o
v
a
 R
et
ór
ic
a,
 qu
e 
co
ns
is
te
 n
u
m
a
 d
as
 m
a
io
re
s 
co
nt
ri
bu
i
çõ
es
 ju
sfi
los
ófi
cas
 de
 n
os
so
 s
éc
ul
o e
 é
 re
sp
on
sá
ve
l p
el
a
e
n
o
r
m
e
 r
ev
ir
av
ol
ta
 q
ue
 a
 fi
lo
so
fi
a d
o 
di
re
it
o v
e
m
 s
of
re
nd
o.
Fi
na
lm
en
te
, g
os
ta
rí
am
os
 de
 de
ix
ar
 cl
ar
o q
ue
, n
ad
a o
bs
ta
nt
e 
re
co
rr
er
mo
s 
à t
óp
ic
a c
o
m
o
 m
o
de
lo
 d
e 
c
o
m
pr
ee
ns
ão
do
 fe
nô
me
no
 ju
ríd
ico
, n
ão
 a
ba
nd
on
am
os
 a 
vi
sã
o s
is
tê
mi
ca
e
 d
og
má
ti
ca
 i
ne
re
nt
e 
a
o
 p
ró
pr
io
 di
re
it
o.
 D
aí
 t
om
ar
mo
s
c
o
m
o
 r
ef
er
ên
ci
a o
 tr
ab
al
ho
 d
e 
Té
rc
io
 S
am
pa
io
 Fe
rr
az
 Jr
.
—
 
au
to
r 
qu
e 
ta
lv
ez
 m
ai
s 
te
nh
a 
tr
ab
al
ha
do
 c
o
m
 a
 t
óp
ic
a
jur
ídi
ca 
n
o
 B
ra
si
l e
 q
ue
 c
on
se
gu
e 
ap
ro
xi
ma
r 
o
 di
re
it
o d
a
tó
pi
ca
, s
o
b 
u
m
a
 pe
rs
pe
ct
iv
a d
og
má
ti
ca
.
1
2
Ca
pí
tu
lo
 1
D
I
R
E
I
T
O,
 H
E
R
M
E
N
ÊU
TI
CA
E
 I
N
T
E
R
P
R
E
T
A
ÇÃ
O
o
 t
em
a 
da
 h
er
me
nê
ut
ic
a 
e
 d
a 
in
te
rp
re
ta
çã
o j
urí
dic
as
I r
e
m
e
te
m-
no
s a
o 
pr
oc
es
so
 de
 ap
li
ca
çã
o d
a l
ei
 re
al
iz
ad
o p
el
o
n P
od
er
 Ju
di
ci
ár
io
. S
ob
 es
sa
 ót
ic
a,
 só
 fa
z s
en
ti
do
 in
te
rp
re
ta
r-
! m
o
s
 a
 le
i t
en
do
 e
m
 v
is
ta
 u
m
 p
ro
bl
em
a q
ue
 r
eq
ue
ir
a s
ol
u-
'
 çã
o l
eg
al
. M
as
 a
 a
pl
ic
aç
ão
 d
a l
ei 
de
ve
rá
 at
en
de
r,
 an
te
s 
de
tu
do
, o
 in
di
ví
du
o e
 a
 s
oc
ie
da
de
 a 
qu
em
 el
a s
er
ve
. 
Po
r 
is
so
,
pe
ns
am
os
 a
 le
i e
m
 f
un
çã
o 
de
 si
tu
aç
õe
s e
sp
ec
íf
ic
as
, o
u
 d
e
ca
so
s 
c
o
n
c
r
e
to
s 
qu
e 
e
n
v
o
lv
em
 pe
ss
oa
s.
A
 n
o
r
m
a
 ju
ríd
ica
 en
co
nt
ra
-s
e 
s
e
m
pr
e 
re
fe
re
nc
ia
da
 a
va
lo
re
s 
n
a
 m
e
di
da
 e
m
 q
ue
 d
ef
en
de
 c
o
m
po
rt
am
en
to
s 
o
u
se
rv
e 
de
 m
e
io
 pa
ra
 at
in
gi
rm
os
 fi
n
s 
m
ai
s e
le
va
do
s.
 As
si
m,
 o
pr
ob
le
ma
 ju
ríd
ico
, q
ue
 en
vo
lv
e s
it
ua
çã
o d
e 
na
tu
re
za
 v
al
o-
ra
ti
va
, d
ev
e 
se
r 
co
mp
re
en
di
do
. 
Co
mp
re
en
de
r 
é 
bu
sc
ar
 o
si
gn
if
ic
ad
o d
e 
al
gu
ma
 c
oi
sa
 e
m
 f
un
çã
o 
da
s 
ra
zõ
es
 q
ue
 a
or
ie
nt
am
. B
us
ca
r 
os
 v
al
or
es
 su
bja
cen
tes
 à l
ei
, e
 q
ue
 fo
ge
m
da
 m
e
r
a
 r
el
aç
ão
 ca
us
a-
ef
ei
to
. P
ar
a 
ap
li
cá
-l
os
, n
ão
 ba
st
a d
e
te
ct
ar
mo
s 
o
 f
at
o 
e
 e
nc
ai
xá
-l
o a
 u
m
a
 le
i g
er
al
 e
 a
bs
tr
at
a
1
3
I !
dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissa
menor à premissa maior conferisse uma solução necessá
ria, mediante operação puramente formal. Não. O direito
é comprometido com valores, e a norma que buscamos no
texto através da interpretação encontra-se relacionada a
uma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intér
prete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim,
podemos afirmar que o processo de interpretação e de
aplicação das leis corresponde a uma situação hermenêuti
ca, da qual nos fala Gadamer.'^
Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agi
lidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da banda-
gem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme Junito
Brandão''* nos relata, Hermes logo furtou um rebanho de
Apoio, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arras
tado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado por
Zeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutân
cia concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdade
ou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tor
nou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que de
tém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamen
te as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das von
tades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornando-
se importante, mais tarde, para o desenvolvimento da
ciência.
Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquela
que privilegia a busca do conhecimento de algo que não se
apresenta de forma clara. A complexidade das ciências so-
13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y método. Sígueme: Salaman-
ca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio
Vargas: Rio de Janeiro, 1998.
14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. 11, p. 191.
ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se
apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí
vel. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe
cimento que não se submete à certeza da investigação
científica. E o direito não foge à regra. A hermenêutica
jurídica refere-se, assim, a todo um processo de interpre
tação e aplicação da lei que implica a compreensão total do
fenômeno que requer solução.
1.1 O direito no âmbito da compreensão
O conhecimento que requer compreensão difere de
qualquer outro cuja repetição dos fenômenos seja possível
e, portanto, previsível. É o caso das ciências empíricas,
comoa física, a quúnica e a biologia, que possuem regras
capazes de permitir-nos controlar, com algum rigor, a
ocorrência de seus fenômenos. As ciências do espírito, por
sua vez, dizem respeito às relações humanas que, por si só,
implicam uma relação histórica e de liberdade.'® São rela
ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re
is. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta
mento ético do homem, tomando por base Aristóteles, da seguinte
forma: "As ciências do espírito fazem mais parte do saber moral. São
ciências morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo.
Agora bem, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que
tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. O que atua trata
antes com coisas que nem sempre são como são, senão que podem ser
também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua
atuação; seu saber deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386.
Já a dimensão humana, própria das ciências do espírito, e que o
positivismo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O
homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne
ce sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é com
preender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25.
14 15
í
 
!■
í 
i|
l
i
I 
lí
pe
tiç
ão
 e 
da
 im
ut
ab
ilid
ad
e,
 e
nq
ua
nto
 a
dm
ite
m
, e
m 
lug
ar
de
sta
s, 
a v
ar
ied
ad
e e
 a 
pr
ob
ab
ilid
ad
e.'
® 
Lo
go
, a
s c
iên
cia
s d
o
es
pí
rit
o,
 p
or
 c
or
re
sp
on
de
re
m
 a
 a
sp
ec
to
s 
in
er
en
te
s 
à 
ex
is
tê
nc
ia 
hti
ma
na
, f
or
am
 m
uit
as
 ve
ze
s r
ele
ga
da
s a
ò e
stu
do
 da
m
or
al 
e d
a r
eli
giã
o, 
po
rq
ue
 in
ca
pa
ze
s d
e p
ro
du
zir
 um
a v
er
da
de
 ci
en
tifi
ca
m
en
te
 co
mp
ro
va
da
. C
om
 a 
vir
ad
a d
a f
ilo
so
fia
, e
m 
me
ad
os
 do
 sé
cu
lo 
pa
ss
ad
o,'
^ p
ara
 a 
on
tol
og
ia 
e p
ara
o 
ex
ist
en
cia
lis
m
o,
 e
m
 q
ue
 g
an
ha
m
 p
ro
em
in
ên
cia
 o
 s
er
 n
o
16.
 A
 re
sp
eit
o 
da
 a
tiv
ida
de
 in
ov
ad
or
a 
do
 e
sp
írit
o, 
ca
pa
z d
e 
ins
tau
ra
r
for
ma
s n
ov
as
 de
 se
r e
 de
 vi
ve
r, a
o c
on
trá
rio
 da
 na
tur
ez
a, 
qu
e s
e r
ep
ete
,
en
sin
a o
 m
es
tre
 M
ig
ue
l R
ea
le:
 "S
e a
 na
tur
ez
a, 
co
m
o 
na
tur
ez
a, 
ob
ed
ec
e
a l
eis
 d
e 
um
a 
pr
ev
isã
o 
pe
lo 
me
no
s 
es
tat
íst
ica
, e
 se
 o
s f
ato
s 
na
tur
ais
ma
rca
m 
um
 n
ex
o 
de
 ca
us
a 
e e
fe
ito
 o
u 
de
 fu
nc
ion
ali
da
de
, s
eg
un
do
 o
pr
in
cí
pi
o 
de
 q
ue
 n
ad
a 
ac
on
te
ce
 q
ue
 n
ão
 se
ja 
at
ra
vé
s d
e 
um
a 
tra
ns
fo
r
ma
çã
o 
do
 já
 e
xis
ten
te,
 q
ue
 n
ad
a 
cri
a 
de
 n
ov
o, 
po
rq
ue
 tu
do
, d
e 
ce
rta
, m
an
eir
a, 
se
 re
pe
te
, j
á 
o e
sp
íri
to
 re
pr
es
en
ta 
a i
ns
er
çã
o 
de
 a
lgo
 d
e 
co
n-
I t
ing
en
te 
na
 na
tur
eM
, e
 ao
 m
es
mo
 te
mp
o d
e v
inc
ula
nte
 do
 pa
rtic
ula
r
i e
m 
um
a 
co
mp
ree
ns
ão
 de
 to
tal
ida
de
. [
...
] O
ra
, g
raç
as
 à 
ve
rifi
ca
çã
o 
de
tai
s f
ato
s, 
po
de
mo
s a
firm
ar 
qu
e o
 es
pír
ito
 hu
ma
no
 se
 pr
oje
ta 
so
bre
 a
na
tu
re
za
, d
an
do
-lh
e 
um
a 
dim
en
sã
o 
no
va
. E
sta
 d
im
en
sã
o 
no
va
 sã
o 
va
lor
es
, c
om
o a
 fo
nte
 de
 qu
e p
rom
an
am
. O
 va
lor
, p
ort
an
to,
 nã
o é
 pr
oje
çã
o d
a c
on
sc
iên
cia
 in
div
idu
al,
 em
pír
ica
 e 
iso
lad
a, 
ma
s d
o e
sp
írit
o m
es
mo
, e
m 
su
a u
niv
ers
ali
da
de
, e
nq
ua
nto
 se
 re
ali
za
 e 
se 
pr
oje
ta 
pa
ra 
for
a,
co
mo
 co
ns
ciê
nc
ia 
his
tór
ica
, n
a q
ua
l s
e t
ra
du
z a
 in
ter
aç
ão
 da
s c
on
sc
iên
cia
s i
nd
ivi
du
ais
, e
m 
um
 to
do
 de
 su
pe
raç
õe
s s
uc
es
siv
as
. [.
..]
 O
 el
em
en
to 
de
 fo
rça
, d
e d
om
íni
o o
u d
e p
rep
on
de
rân
cia
 do
s e
lem
en
tos
 ax
iol
óg
i-
co
s 
ou
 d
os
 v
alo
re
s 
re
su
lta
ria
, p
or
ta
nt
o,
 d
es
sa
 to
m
ad
a 
de
 c
on
sc
iên
cia
do
 e
sp
írit
o 
pe
ran
te 
si 
me
sm
o, 
atr
av
és
 de
 su
as 
ob
ras
: o
s v
alo
res
, e
m
últ
im
a 
an
áli
se
, o
bri
ga
m,
 p
orq
ue
 re
pre
se
nta
m 
o h
om
em
 m
es
mo
, c
om
o
au
toc
on
sc
iên
cia
 e
sp
irit
ua
l; 
e c
on
sti
tue
m-
se
 na
 h
ist
ór
ia 
e p
ela
 hi
stó
ria
po
rq
ue
 es
ta 
é, 
no
 fu
nd
o, 
o r
ee
nc
on
tro
 do
 e
sp
írit
o c
on
sig
o m
es
mo
, d
o
es
pí
rit
o q
ue
 se
 re
ali
za
 na
 e
xp
er
iên
cia
 da
s g
era
çõ
es
, n
as
 vi
cis
sit
ud
es
 do
qu
e 
ch
am
am
os
 'c
icl
os
 n
atu
rai
s',
 o
u c
ivi
liz
aç
õe
s."
 In
tro
du
çã
o à
 fil
os
o
fia
, p
. 1
54
 e
 1
55
.
17
. J
os
é 
La
me
go
 a
po
nt
a 
pa
ra
 u
m
a 
"v
ira
da
 h
er
m
en
êu
tic
a"
 n
o 
fin
al 
da
dé
ca
da
 de
 19
60
, p
rec
ed
ida
 de
 um
 am
plo
 de
ba
te 
so
bre
 a 
"tó
pic
a"
. C
f.
He
rm
en
êu
tic
a 
e j
ur
isp
ru
dê
nc
ia
, p
. 9
6.
16
se
u 
ac
on
te
ce
r, 
a 
ciê
nc
ia
 ta
m
bé
m
 a
pr
ov
ei
ta
 p
ar
a 
re
ve
r s
eu
s
pa
râ
m
et
ro
s f
or
m
al
ist
as
, o
rie
nt
an
do
-s
e 
pa
ra
 u
m
a 
no
va
 d
ire
çã
o, 
m
ar
ca
da
, a
go
ra
, p
el
o 
pl
ur
al
ism
o,
 p
ela
 in
te
rs
ub
je
tiv
i-
da
de
 e
 p
ela
 e
xp
er
iê
nc
ia
 h
ist
ór
ica
. P
or
 o
ut
ro
 la
do
, a
s m
ais
re
ce
nt
es
 in
ve
sti
ga
çõ
es
 s
ob
re
 a
 ra
zã
o 
m
or
al
 tê
m
 a
po
nt
ad
o
pa
ra
 u
m
a 
ba
se
 a
rg
um
en
ta
tiv
a 
qu
e 
su
ge
re
 o
 re
sg
at
e 
da
 re
tó
ric
a 
e 
da
 tó
pi
ca
 a
nt
iga
s.
A 
es
fe
ra
 d
a v
id
a 
re
fe
re
nt
e 
ao
 a
gir
 e
nc
on
tra
-s
e 
an
te
s s
u
je
ita
 à 
co
m
pr
ee
ns
ão
 d
o 
se
nt
id
o 
qu
e 
en
se
jou
 a 
aç
ão
, d
o 
qu
e
à 
sim
ple
s 
ex
pli
ca
çã
o 
de
 re
laç
õe
s 
qu
e 
lh
e 
te
nh
am
 s
er
vid
o
de
 c
au
sa
. A
 id
éia
 é
 a 
de
 q
ue
 as
 a
çõ
es
 h
um
an
as
, o
rie
nt
ad
as
pa
ra
 fi
na
lid
ad
es
,e
nc
on
tra
m-
se
 in
se
rid
as
 e
m 
um
 p
or
qu
ê
hi
st
ór
ico
, d
a m
es
m
a 
fo
rm
a 
qu
e 
o 
in
té
rp
re
te
 é
 u
m
 se
r t
am
bé
m
 h
ist
or
ica
m
en
te
 o
rie
nt
ad
o 
e q
ue
 fa
z p
ar
te
 d
e 
um
a 
tra
diç
ão
. A
 n
or
m
a 
ju
ríd
ica
 c
on
st
itu
i-s
e,
 a
ss
im
, e
m
 u
m
 fa
ze
r
hu
m
an
o,
 c
ar
re
ga
do
 d
e 
se
nt
ido
. E
 o
 d
ire
ito
, p
ro
pr
iam
en
te
di
to
, n
ão
 é 
no
rm
a 
ge
ra
l, 
po
ré
m
, n
or
m
a 
in
di
vid
ua
l, 
po
is 
so
m
en
te
 as
 d
ec
isõ
es
 d
os
 ju
ize
s 
é q
ue
 e
fe
tiv
am
en
te
 o
br
iga
m
.
Co
m
 a 
se
nte
nç
a é
 qu
e s
ab
em
os
, e
fe
tiv
am
en
te
, q
ua
l o
 no
ss
o
di
re
ito
 o
u 
a 
no
ss
a 
ob
rig
aç
ão
. A
nt
es
 d
iss
o,
 a
 n
or
m
a 
at
ua
ap
en
as
 c
om
o 
pa
râ
m
et
ro
 e
 o
rie
nt
aç
ão
 p
ar
a 
a 
co
nd
ut
a,
 s
em
im
pu
ta
r 
qu
al
qu
er
 d
ev
er
, 
co
m
o 
di
ria
 K
els
en
. 
Pa
ra
 n
ós
, o
di
re
ito
 a
pr
es
en
ta
-s
e j
un
gi
do
 à 
pr
óp
ria
 h
er
m
en
êu
tic
a,
 u
m
a
ve
z 
qu
e 
a 
su
a 
ex
ist
ên
cia
, e
nq
ua
nt
o 
sig
ni
fic
aç
ão
, d
ep
en
de
da
 co
nc
ret
iza
çã
o o
u d
a a
ph
ca
çã
o d
a l
ei 
em
 ca
da
 ca
so
 ju
lga
-
; d
o. 
As
sim
, a
po
iam
o-
no
s n
a f
ilo
so
fia
 d
e H
an
s-
Ge
or
g 
Ga
da
-
s m
er
,'®
 q
ue
 se
 ba
se
ia 
na
 re
laç
ão
 fá
tic
a 
en
tre
 co
mp
re
en
sã
o 
e
18.
 A
pe
sa
r d
e 
Ga
da
me
r n
ão
 e
sta
be
lec
er
 u
ma
 n
ítid
a 
dis
tin
çã
o 
en
tre
. c
om
pr
ee
ns
ão
 e
 in
te
rp
re
ta
çã
o,
 c
on
fo
rm
e 
pr
et
en
de
m
os
, p
or
qu
e 
os
 e
n
te
nd
e 
co
m
o 
sim
ila
re
s, 
a 
su
a 
co
nc
ep
çã
o 
ôn
tic
a 
e 
hi
st
or
ici
st
a 
so
br
e 
a
■ h
en
ne
nê
ut
ica
 se
rve
 ao
s n
os
so
s p
ro
pó
sit
os
.
Jo
sé
 L
am
eg
o 
ta
m
bé
m
 tr
ab
al
ha
 a
 fi
lo
so
fia
 d
e 
G
ad
am
er
 e
m
 te
rm
os
de
 h
er
me
nê
uti
ca
 c
om
o 
fil
os
ofi
a 
pr
áti
ca
, a
pr
ox
im
an
do
 a
s n
oç
õe
s 
de
ve
rd
ad
e 
e 
de
 co
mp
re
en
sã
o 
co
m
o 
co
nt
ra
po
nt
o 
da
 vi
sã
o 
hi
st
or
ici
st
a 
he
-
17
ií !
interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe
lecido anteriormente por Heidegger,'® e Dilthey,^" que já
havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida.^'
geliana, que propõe para o direito o método cientifico-espiritual. A
respeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham a
vir agem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica,
como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto
do — e a questáo das garantias da objetividade —, para desembocar
5. diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon-
\ dência, mas, em termos hermenêuticos, como de^ocult^ão [cdetheia). E,
deste modo, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da
phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor
denar a situação partictdar à pauta geral, mas, nessa coordenação con
seguida (i.e., a realização de uma applicatió), potenciar a realização
das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con
texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja:
por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura-
lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade
de todo o direito," Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91.
19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que
í se abre ao ser presente, Na compreensão, a presença projeta seu ser
V para possibilidades. E um poder-ser que repercute sobre a presença
^ das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com
preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e
Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação,
a compreensão se toma ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim,
a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-
; versa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p,
! 204.
i 20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey,
i pelo viés historidsta que este inaugura no âmbito da hermenêutica,
i apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de
perto seguirá Düthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de
estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma
ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz
José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e
Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73.
21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên-
18
1.2 Direito e interpretação
Entendemos que a existência do direito, enquanto nor
ma individti.al e concreta, corresponde à sua compreensão,
para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas.
De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons
trução interpretativa que se formula a partir da e em dire
ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a
ação mediadora que procura compreender aquilo que foi
dito ou escrito por outrem.^^ Como ação responsável e não
aleatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi
ficado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte
ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de
argumentação.
Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres
ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à
cio Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen
tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional — direitos
fundamentais. Vide bibliografia.
22. De acordo com Edmond Ortigues {Enciclopédia Einaudi, Impren
sa Nacional — Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre
tação, "diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re-
exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar
algo: ela vai do abstrato ao concreto, da fórmula â respectiva aplicação,
à stui ilustração ou à sua inserção na vida."
José Lamego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti
ca de Heidegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente
uma distinção entre compreensão e interpretação, como fazemos, es
creve: "Para uma hermenêutica assente em pressuposições existen-
ciais-ontológicas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que
ver não com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de
algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore
e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica
do este, na expressão de Heidegger, com o ser de tal poder-ser." Her
menêutica e jurisprudência, p. 91.
19
intenção do autor numa situação específica, inserem-se no
campo histórico da compreensão. O direito, como obra
humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re
lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro
blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei
ra resposta.O direito, como as demais ciências do espírito,
corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se
gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna
quanto externamente.^^ Internamente seria a própria ratio
legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se
é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis
tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu
ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma
perspectiva reducionista, uma vez que admite valores
universais válidos também para outras épocas e outros lu
gares.
Q3n^ireender.éJ.tidagar so^^ as possibilidades.do sig-
nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E,
nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando
compreendido. Um código, por exemplo, contém regras
gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro
váveis, mas que só ganham um significado concreto quan
do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu
zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado,
como o legislador que prevê a realização de uma prática,
seja a de quem produz a transferência da regra de um cam
po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi
cado real — o juiz quando decide.^"*
23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador,
quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato
do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso
concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei).
24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona
20
Nossa hipótese é a de que o processo de compreensão
se concretiza por meio da argumentação, que, tecnicamen-
, te viabiliza a interpretação. De outro lado, verifica-se que
! a compreensão, como movimento oposto ao da explicação
, racional-demonstrativa, insere-se no campo das possibili
dades. É possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo
que aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-la.^^
A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da
probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos
sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme
tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o
momentò em que o pensamento dialético se instaura.^^ A
argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo
sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às
efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador
deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi
zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação
submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci
sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por
que uma lei foi votada e, num sistema modemo, toda sentença deve
ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de
decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada," Cf. Ética e direito,
p. 376.
25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de
verossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida", Cf. Intro-
dução à retórica, p. 95.
26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da
seguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto das
técnicas discursivas que permitem provpcar ou aumentar a adesão das
mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter
mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi
bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de
outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com
a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um
sistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p.
369.
21
5 n
M
l l\ l i
l í
partes discursivas; acordo este fundamentado em provas
concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen
tação temos condições de "visualizar" a compreensão, na
medida em que esta se traduz em algo de concreto.^^
O direito admite, pois, uma superposição entre duas
I esferas: a da compreensão da norma e a da compreensão
; do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente,
^ que se utiliza, para tanto, do procedimento argumentativo.
Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de
formular a compreensão através de uma interpretação que
sirva de fundamento à solução mais razoável.
O método do direito é, portanto, o método tópico-
i hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em
I função do problema que apresenta e da tradição histórica
na qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo.
Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea
lização de uma prática que envolve o método hermenêutico
da compreensão e a técnica argumentativa.
Para nós, o método diz respeito à orientação para o co
nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida
de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti
mamente relacionadas: existe o que se compreende em
função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi
to é a mesma realidade de sua compreensão.^®
27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen
são e não vice-versa, ele considera os pré-jufeos como ponto de partida
para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque
ma como topoi.
Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré
via, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo uma
possibilidade determinada de interpretação. Cf. Sere tempo, p, 206-7.
28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do com
preender histórico." Verdade e método, p. 370.
22
1.3 Hermenêutica e interpretação
A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo
Vattimo,^® Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi
ca,^^ entendida esta última como "a descrição universal
mente válida de estruturas permanentes e essenciais à
compreensão do mundo". A descrição objetiva dos fatos
segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável,
originária da interpretação, isto é, uma interpretação que
pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a
destitua.^^
O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen
volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.^^ E olhando
dessa forma, anota que a hermenêutica revela os seus dois
aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste
29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her
menêutica para a filosofia,
30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her
menêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a
modernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência pe
remptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram
em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo...".
Para além da interpretação, p. 27.
31. Vattimo, ob. cit., p. 23.
32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua
mátriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no
texto de Vattimo: "Os arçimentos que a hermenêutica oferece para
sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por
serem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar fora
de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen
te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida
de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor
está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilhá-
do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo
mais aceitável." Ob, cit,, p. 24.
33. Cf. p. 14.
23
Jí
í 1
nosso trabalho, e o da lingüisticidade.^'' Gadamer critica o
cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi-
, car a busca da verdade além dos limites do método cientí-
' fico positivo, a começar pela verdade da experiência,como
ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do
tema, buscando um pouco das suas origens.
Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem
i como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia
i antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi
cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua
gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme-
neuein, usualmente traduzido como "interpretar", e o
substantivo hermeneia, como interpretação, significam
transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana
em algo que essa intehgência consiga compreender.^^ O
autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti-
i ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.
Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se,
antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias
fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra
entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver
tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica
passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im
portante do que simplesmente expressar, na medida em
que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando
;i ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E,
;Í quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com-
í preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível.
34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lènio Luiz Streck.
Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito.
35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica.
24
1
Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com
a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos
diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer
pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida
ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que
se tornaram muitas vezes obrigatórias,^^
A hermenêutica alcançou notável proeminência no
campo religioso. O problema de interpretar corretamente
a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao
Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e
aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade
Média, a análise sistemática sobre a evidência da revelação
divina deu origem à Teologia, e a hermenêutica assumiu
o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa
grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo
filológico.
36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista
a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.C.
Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado:
a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten
der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz
deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e
Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da
maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano;
finalmente, nãò havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz
adotar a tese que lhe pareça melhor.
37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen
te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra
va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual
transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "co
mentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente da
explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma ra
cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutiva
mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 2® edição
brasileira de Discurso do método, de Descartès: Editora Martins Fon
tes, 1996.
25
; i í-
Para o direito, no entanto, foi extremamente significa
tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo
nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em
1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador
Jtistiniano no século VI d.C., mais tarde rhaTnaHas de Cor-
pm luris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu
entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na
prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker,
"a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma
modelar e atemporal da sua própria vida".^®
O desenvolvimento das cidades italianas justificou a
formação de uma corporação própria — a Universidade
—, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun
cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários
e advogados.®® Como o texto jurídico romano era muito
^ difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do
resultado da interpretação feita pelos professores apare
cem as glosas, palavra por palavra, linba por linha,"" para
logo alcançar todo o sistema, visto como um todo har
mônico, a reunir as partes, conforme princípios de or
dem geral.
A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, se
gundo Wieacker, à tradição do ensino trivial."' Segundo o
mesmo informa, mantinham-se "ainda as figuras de expli
cação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica.
38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42.
39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41.
I 40. As glosas ganharam robustez nos seus signiiicados, tornando-se
^ fecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito,
í Destaque para a Gbssa Ordinária de Accurius (1250), considerado o
' maior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto.
41. Durante o século o trivium correspondia ao ensino dos ele
mentos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; o
quadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física.
26
pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicial-
1 mente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textos
filológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ou
interpretação do texto, e a distinção. [...] Como ratio
^ scripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mes-
I mo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todos
i os textos, uma verdade.""® No entanto, "a convicção do
1 domínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradição
i conduziu a investigação hermenêutica à procura do senti-
; do global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeias
silogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autori-
dade absoluta, um texto não pode contradizer outro igual
mente verdadeiro"."®
O método de análise escolástico, por sua vez, foi fator
responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, tal
como ocorrera com a religião. De acordo com J. Harold
Berman, o método escolástico pressupunha a absoluta au
toridade de certos livros, que continham um completo e
integrado corpo doutrinário, como era o caso do Corpus
luris Civilis e da Bíblia, corporifícando a razão. Verifica-
se, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência da
teologia formam-se na mesma época.""
42. Wieacker, ob. dt., p. 47 e 50.
43. Idem. Ibidem, p. 53.
Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção da
relação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonará
mais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é Hans-
Georg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não se
entende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todos
os momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreen
são do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só pode
empreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentido
de unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para toda
a hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227.
44. Cf. Bermaa. Law and Revolution, p. 131 e 132.
27
o romantismo e o renascimento também se ocupam da
recuperação das obras clássicas, procurando, na correta
utilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da épo
ca antiga. Em um e outrocaso, trata-se, na realidade, do
redescobrimento de algo cujo sentido era estranho e ina
cessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pre
tendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido originai
dos textos através de um procedimento quase artesanal,
que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posterior
mente, sob a influência do historicismo, a hermenêutica
abandona o seu aspecto puramente exegético, na medida
em que é reconhecida a necessidade de se interpretarem
tanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criação
de um texto quanto as circunstâncias que determinam a
sua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilus
tração e o pensamento científico moderno que interpreta
ção e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A
hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência,
preocupando-se com as técnicas próprias do fazer inter-
pretativo. E, ao investir na questão do método, a herme-
O método dialético era bastante utilizado como forma de resolver
problemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialé
tica escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado do
monge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado,
> sugestivamente, A Concordance ofDiscordant Canons. Segundo Ber-
man, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de for
ma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou as
várias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpon
do o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino e
de direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletida
na revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o di
reito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser en
contrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência hu
manas. Cf, Law and Revolution, p. 145.
nêutica ganha particular importância para a filosofia e para
a teoria do conhecimento. No entanto, a ênfase dada à
linguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica no
campo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologia
desenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a ser
vista como compreensão^ revelando-se na consciência do
próprio ser.
Para Heidegger, a compreensão consiste no movimen
to básico da existência, no sentido de que compreender não
significa um comportamento do pensamento humano en
tre outros que se possa disciplinar metodologicamente e,
portanto, conformar-se como método científico. Consti
tui, antes, o movimento básico da existência humana.^^
Compreender, para Heidegger, "é a forma originária de
realização do estar aí, do ser-no-mundo"."^^ Gadamer dirá
que compreender é experiência.
45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e "teoria do conhe
cimento" aquela que procura a verdade objetiva, com base na distin
ção existente entre sujeito e objeto.
Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela desco
berta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente um
método específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramente
diferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afir
ma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário,
elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciência
histórica, p. 20.
A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria do
conhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, em
Hermenêutica, p. 87 e segs.
46. Cf. Gadamer, "Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica"
[1977], in Verdade e Método II, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134.
47. Verdade e método, p. 325.
A idéia de mundo" corresponde ao conjunto de condições geográ
ficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa.
28 29
i h =
íi 1
li i
í I
No século XX, seguindo a esteira do historicismo de
Dilthey/® que considerava a reflexividade como base da
experiência, e da ontologia heidegeriana/^ à luz da retoma
da da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamer
traz a hermenêutica para o campo da praxi? ou da filosofia
prática.^^ Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade
48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço no
sentido de dar objetividade metodológica às "ciências do espírito",
assumindo o problema da relatividade. A partir da importância da
consciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou conver
ter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer,
Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, manten
do a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstan
te, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, de
justificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando o
mundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e méto
do, páginas 277 a 304, e "Extensão e limites da obra de Wilhelm
Dilthey", em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs.
49. De acordo com Gadamer, "sob o termo chave de uma hermenêuti
ca dafaticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl,
e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigência
paradoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não é
suscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deve
erigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogito
como constituição essencial de uma generalidade típica." Verdade e
método, p- 319.
50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplica
ção, reporta-sç a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar direta
mente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, na
Ética trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as cha
madas "ciências do espírito" possuem como base a vida e o homem,
nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, o
saber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico.
O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não é
evidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecer
não decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aquele
que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão
30
à proposta de Heidegger, ao reconhecer que o conceito da
compreensão não é mais um conceito metódico, mas o ca
ráter ôntico original da vida humana mesma.^^
Segundo Gadamer, o estar aí é, na realização do seu
próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhe
cedor nem o conhecido "se dão" "onticamente", mas "his
toricamente", isto é, participam do modo de ser da histo-
ricidade. Pertencer é condição para o sentido originário do
interesse histórico. O problema da faticidade, que aparece
em Heidegger, era também o problema central do histori
cismo, e isto significa que p determina-se no horizonte
do tempo. "A tese de Heidegger é de que o ser mesmo é
tempo*\^^
O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respei
to ao problema da verdade e da compreensão no âmbito
das ciências do espírito, é a análise da "consciência da
história efetiva", traduzida para o inglês como historically
effected consciousness.^'^ A consciência da história efetiva é
a consciência da situação hermenêutica, portanto, do mo
mento de realização da compreensão.^^ Gadamer defende
que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode
intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade e
método, p. 383 a 386.
Sobre a visão aristotélica de raciocínio prático, e a noção dQpróai-
resis, vale também conhecer o trabalho de Alasdair Macíntyre, Justiça
de quem? Qual racionalidade?
51. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 325.
52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.)
53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra:
Verdade e método,
54. Ver Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de Joel
Weinsheimer e Donald G. Marshall, TheContinuum Publishing
Company, New York, 1994.
55. Gadamer. Verdade e método, p. 372.
31
1
li
a idéia de que não é tarefa da liermenêutica descobrir mé
todos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o
acontecer da própria interpretação, que no âmbito das
ciências do espírito corresponde mais especificamente à
compreensão.^® O indivíduo compreende-se a si mesmo
através da consciência que tem de sua situação histórica. À
I iáéiâ de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradi-
? ção e de Iwrizonte. Todo ser histórico encontra-se inserido
na tradição e ocupa determinada posição que lhe delimita
orizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica,
é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, é
: O âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visível
a partir de um determinado ponto. Não obstante, ter hori
zonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais
de perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizon-
; te é apenas a dimensão do que o homem compreende e
que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem
horizonte consegue valorar o significado das coisas que se
encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de per
to/longe, pande/pequeno, etc. A mobilidade histórica im
pede a existência de horizontes únicos, ao passo que o ho-
rizonte se move conforme quem se move; não é a cons
ciência histórica que põe em movimento o horizonte, mas
consciência histórica este movimento se faz consciente
de si mesmo.
Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, o
horizonte do presente encontra-se em constante fonna-
56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através do
qual a consciência histórica se aproxima do objeto deito para alcançar
o seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pres-
suporto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade e
método, p. 380.
32
ção, na medida em que colocamos constantemente em
prova os pré-juízos formados sob as bases da tradição. O
horizonte do presente não se forma à margem do passado;
ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita a
compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novo
horizonte que se supera, à medida que acompanha um pro-
cesso de crescimento até atingirem uma validez nova e sig
nificativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gada
mer:
O projeto de um horizonte histórico é, portanto, uma
i fase ou momento na realização da compreensão, e não se
consolida na auto-alienação de uma consciência passada,
mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do pre
sente. Na realização da compreensão tem lugar uma verda
deira fusão horizôntica que com o projeto .do horizonte his
tórico leva a cabo simultaneamente sua superação. À realiza
ção controlada da fusão damos o nome de "tarefa da cons-,
ciência histórico-efetiva".^^
A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pi
lares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia de
tradição, uma vez que o tempo passa a ser visto não como
um precipício que deve ser transposto para a recuperação
do passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devir
e onde o presente cria raízes. Dessa forma,
A "distância temporal" não é uma distância no sentido
de uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esse
era o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditava
poder alcançar o terreno da objetividade hitórica através de
um esforço para se colocar na perspectiva da época estudada
e pensar com os conceitos e representações que lhes eram
57. Idem, p. 377.
33
l !
ti™ I"' verdade, de considerar a "distânciatemporal como fundamento de uma possibilidade positiva
e produtiva de compreensão. Não é uma distância a percor
rer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumu
lam formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o
que traímos conosco de nosso passado, tudo o que nos é
transmitido faz a sua aparição.
o que Gadamer procura não é manter o passado me-
I diante uma postura conservadora, mas, antes, desmistifi-
esse passado. Diante do que chama de ingenuidade do
1 objetmsmo lustórico, busca distinguir os preconceitos que
cegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os precon
ceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo que
!• nos une com o passado, apresentando o presente, atua
^ também como instância objetiva a propiciar a integração e
n a comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto àpro-
pnaçao espontânea e produtiva de conteúdos transmiti
dos, a tradição "é o elo concreto entre todos nós"; "o espe
lho em que cada um de nós se reconhece",^9 e que promo
ve a consciência histórica da situação hermenêutica, pois
compreender e operar uma mediação entre o presente e
o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contí
nua de perpectivas na qual o passado se apresenta e se
dirige a nós
Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento
gadameriano: toda experiência só pode ser compreendida
porque referenciada ao passado, numa relação de confron
to. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo e
nunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incór-
58. O problema ãa consciência histórica, p. 67-8.
59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente.
60. Idem, p. 71.
34
porado à consciência, como experiência, ou se o antigo,
costumeiro e previsível, reconquistará sua consistência. A
experiência precisa trixinfar sobre a tradição sob pena de
fracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se não
tivesse que se afirmar contra alguma coisa.^V
Gadamer foi duramente criticado, principalmente por
Emílio Betti,^^ por ignorar em toda a sua obra os métodos
hermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetivi
dade do método histórico.®^ Por isso Gadamer se defende
no prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verda
de e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, mui
to menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. An
tes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira de
compreender, porque acredita que a tarefa da hermenêu
tica não é desenvolver um procedimento da compreensão,
mas iluminar as condições sob as quais se compreende.
Neste sentido, Gadamer sustenta que "a compreensão não
é nunca um comportamento subjetivo com respeito a um
'objeto* dado, senão que pertence à história efetiva, isto é,
ao ser do que se compreende*';®"^ e assim afasta-se de toda
61. É o que autor apresenta em O problema da consciência histórica,
p. 14,
62. Dentre as obras mais significativas de Emílio Betti a respeito da
interpretação no direito destacam-se: Teoria Generale delia Interpre-
tazione. Milano: D.A. Giufffé, 1955; e Interpretazione delia Legge e
degli Atti GiuridicL Milano: D. A. Giuffrè, 1971.
63. Richiard Pálmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "do
ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destruti
vos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica num
pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a integridade do pró
prio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defen
dê-la com firmeza." Hermenêutica, p. 56,
64. Verdade e método, p. 13-4,
"A compreensão é menos um método através do qual a consciên-
35
i li
11
lí
í j
1 1
- j corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar en
tre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qual
quer consideração referente ao grau de subjetividade do
interprete frente ao máximo de objetividade que se requer
para o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserir
tanto um quanto outro em um processo histórico do qual
ambos razem parte.
Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problema
da consciência histórica." Acompanha Reinhardt Kosel-
leck, no âmbito do historicismo, quando este aponta para
a mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento

Continue navegando