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alexandre wollner e o pensamento concreto na construção do design visual no brasil cesar benatti ia unesp são paulo 2011 d e a rtis ta a d esig ner unesp universidade estadual paulista júlio de mesquita filho instituto de artes programa de pós-graduação em artes mestrado dissertação apresentada ao programa de pós-graduação, linha de pesquisa processos e procedimentos artísticos, área de concentração artes visuais, como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em artes. orientador prof. dr. omar khouri são paulo, 2011 de artista a designer alexandre wollner e o pensamento concreto na construção do design visual no brasil cesar benatti aos mestres irineu josé benatti josé luiz valero figueiredo ao meu orientador, prof. omar khouri, por toda confiança e incentivo e aos meus professores do ia unesp alexandre wollner sidney caser celia regina, pela ajuda e compreensão e aos meus pais, que por seu envolvimento com a tradição das artes e ofícios construiram minha base para a compreensão dessa cultura agradecimentos resumo 11 delimitações e premissas 13 1. de artista a designer introdução 21 de artista a designer 23 vanguardas artísticas 31 artes e ofícios 37 futurismo, dadaísmo, merz. a revolução tipográfica 41 construtivismo e de stijl. a função social da arte 65 2. o pensamento construtivo no brasil klaxon 103 ruptura com a tradição nas artes 107 projeto pedagógico para o design 113 bauhaus 123 iac masp.a transformação cultural brasileira 125 max bill. arte fundamentada na ciência 129 concretismo 133 função do artista na sociedade 137 3. arte concreta e design ruptura 141 os concretos paulistas pioneiros do design visual 145 pensamento matemático 167 noigandres. poesia concreta 171 metamorfose evolutiva 179 cultura visual e tecnologia 207 o ensino do design 214 a tensão concretos neoconcretos 224 fechando a gestalt 229 4. análise gráfica: cartazes culturais III bienal do mam 238 IV bienal do mam 240 brasilianischer künstler 242 nascida ontem 244 arte concreta paulista 246 5. considerações finais 251 referências bibliográficas 257 índice e referências de imagens 265 sumário Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP. Fabiana Colares CRB 8/7779 Benatti, Cesar. 1968 b456a De artista a designer. Alexandre Wollner e o pensamento concreto na construção do design visual no Brasil / Cesar Benatti. São Paulo: [s.n.] 2011 278 f.; il. Bibliografia Orientador: prof. dr. Omar Khouri Dissertação – Mestrado em Artes Universidade Estadual Paulista Instituto de Artes, 2011 1. design. 2. design visual. 3. arte concreta. 4. vanguardas artísticas. I. Wollner, Alexandre. II. Khouri, Omar. III. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título CDD – 741.092 resumo abstract O propósito dessa pesquisa é analisar, focalizando na trajetória do designer e artista concreto Alexandre Wollner, a relação com as artes na formação do design visual, processo que ele define como “meta- morfose evolutiva”. Da revisão histórica do design, destaca os com- ponentes dessa relação que contribuíram para o desenvolvimento da atividade na Europa nos séculos XIX e XX. Acompanha sua assimilação no Brasil, em meio à revolução cultural na década de 1950, analisando a atuação dos artistas concretos, responsáveis por integrar a arte aos processos industriais e aos meios de comunicação, dando início à nos- sa cultura de design. Percorre a experiência de Wollner, cuja intensa participação o coloca como principal referência na formação dessa cultura, e discorre, por meio de seus relatos sobre a contribuição do concretismo paulista para a formação do design visual brasileiro. palavras chave: design visual; arte concreta; vanguardas artísticas; The purpose of this research is to analyse, focusing on the trajectory of the designer and concrete artist Alexandre Wollner, the relationship between the arts and the creation of visual design, process that he defines as “evolutionary metamorphosis”. From the historical revision of design, he highlights the components of this relation that contri- butes for the development of the activity in the Europe in XIX and XX centuries. He follows its assimilation in Brazil, during the cultural revolution in 1950’s, analysing the concrete artists performances, responsible for integrating the art to the industrial processes and the medias, creating our own design culture. This researche covers the experiences of Wollner, whose intense participation places it as main reference in the training of this culture, and analyses, based on his reports, the contribution of the São Paulo’s concrete art moviment for the creation of brazialian’s visual design. keywords: visual design; concrete art; avant-garde art; 1312 O livro “Artista e Designer” de Bruno Munari, serviu de inspiração para a elaboração dessa dissertação. Nele, o autor discute a relação entre o que se considera arte pura e arte aplicada na sociedade pós-industrial, questões que orientam o desenvolvimento da pesquisa, focada na re- lação arte-design, cujo o campo de formação recente, e ainda envolto em incertezas e indefinições, justifica a indagação de Munari: “o que haverá de artístico no design?”. Situações vivenciadas no exercício da atividade de designer visual, onde a percepção em torno dessa questão foi se construindo gradualmente à medida em que as necessi- dades exigidas para a execução de cada projeto despertavam questio- namentos, em especial no que se refere à essa relação, confirmaram a intenção por abraçar esse tema. Contribuiu de maneira significativa, a experiência iniciada após a for- mulação dessa pesquisa, com o mudança da atividade de projetista para a dedicação exclusiva ao ensino do design em curso superior. O contato com a noção da atividade por parte dos estudantes, assim como os mo- tivos que os levaram a escolher a carreira e suas expectativas, reforça- ram a convicção e esclareceram quanto a importância de sua realização. Embora tratando-se de uma ciência direcionada a esfera produtiva, o interesse pela carreira de designer, para a maioria dos aspirantes, conti- nua sendo despertado por aspirações notadamente artísticas. Tendo como foco a trajetória do designer e artista concreto Alexandre Wollner, que, como lembra Décio Pignatari, se confunde com a própria evolução da atividade em nosso país, a pesquisa busca identificar nes- se percurso, os elementos de um processo que Wollner define como metamorfose evolutiva, responsável segundo ele por fazer com que o índivíduo consciente de sua capacidade criativa, busque direcionar seu talento para atividades de maior alcance, respondendo dessa forma a necessidades sociais e coletivas, nas suas palavras, transformando o artista em designer. Categórico ao afirmar que design não é arte, Wollner ensina que essa posição não deve ser compreendida pelo designer de maneira anatagônica. Pelo contrário, conduz a uma compreensão dos fatores preponderantes a cada atividade, permitindo identificar os critérios objetivos pertinentes a cada uma delas, e em particular, o valor dos aspectos inerentes às manifestações artísticas quando devidamente percebidos e aplicados em projetos de design visual delimitação premissas 1514 Na aproximação de Alexandre Wollner com o concretismo paulista, cujas manifestações nas artes visuais e na poesia incorporaram emnossa cultura as experimentações das vanguardas européias, carac- terizadas na produção dos grupos Ruptura e Noigandres, assim como o universo de efervescência cultural em que se inseriam, firmou-se a convergência entre a premissa inicial e o eixo estrutural da investiga- ção, reconhecendo nesse período – década de 1950 – o surgimento de uma cultura de design iniciada em São Paulo, orientada pelo pensa- mento construtivo presente nos ideais concretos. Convém ressaltar que, como orienta Gillo Dorfles (1992:13), a atividade de design está condicionada à presença de três aspectos: fabricação em série, produ- ção mecânica e elemento projetual. Dessa forma, quaisquer atividades relacionadas à manifestações visuais de comunicação anteriores a esse período, independente de seu valor estético e histórico, não podem ser consideradas projetos de design visual. Com a finalidade de circunstanciar os fatores de ordem estética e ideológica que aqui aportaram na segunda metade do século XX desencadeando essa revolução cultural, buscou-se por meio da revisão histórica do design, selecionar os movimentos onde o processo de me- tamorfose evolutiva comparecem de forma significativa, identificando movimentos de vanguanda em que os artistas se moveram da arte visual em direção a projetos de comunicação, elucidando os aconteci- mentos relevantes na aproximação entre as manifestações artísticas e produtivas dentro do percurso evolutivo do design, destacando assim suas contribuições e evidenciando como se processou sua assimilação. A pesquisa apoiou-se em autores dedicados a diversos setores da arte e do design. Entre os mais citados, temos no campo teórico, os italianos Bruno Munari e Gillo Dorfles, cujo tema das obras incide sobre o significado e a prática do design; Alexandre Wollner, res- ponsável por textos críticos e históricos, além dos relatos presen- tes em sua obra autobiográfica; Décio Pignatari, que assim como Wollner participou da formação dessa história; André Villas-Boas, estudioso dos aspectos culturais e didáticos do design; os pesqui- sadores, docentes e designers Suzana Valladares Fonseca e Norber- to Gaudêncio Júnior, que contribuem com o debate sobre a crítica aos paradigmas modernos; Max Bense, Otl Aicher e Vilém Flusser; os historiadores Phillip B. Meggs, Richard Hollis, Nikolaus Pevsner, Bernard Bürdek, Steven Heller, Herbert Read, Aracy Amaral, João Bandeira, Lorenzo Mammi e André Stolarsky. Estabelecendo uma compreensão dos acontecimentos por meio de seus entrelaçamentos, essa trajetória se distribui em quatro partes. A primeira – inspirada na obra de Munari – leva o nome “de artista a designer”. Aqui é verificado o papel do artista na antiguidade, e os fatores que determinaram o surgimento do design como ativida- de específica na sociedade. Do despertar da relação arte-indústria identificado no movimento arts & crafts na Inglaterra, analisa a mobilização da arte em direção ao design presente na obra de artis- tas ligados aos movimentos cuja contribuição para essa relação se apresenta de forma mais significativa: futurismo, dadísmo, cons- trutivismo russo e neoplasticismo holandês. Debate o despertar da necessidade de projeto à partir da revolução industrial e investiga a aproximação entre a arte e a indústria, assim como o surgimento e a participação das vanguardas artísticas européias. Compara as ma- nifestações artísticas e de comunicação dos artistas ligados a esses movimentos, evidenciando através de sua produção, como as experi- ências, em princípio desobrigadas de atender necessidades objetivas, revelam-se essenciais para o estabelecimento das novas linguagens de comunicação adequadas à emergente sociedade industrial. A segunda parte, “o pensamento construtivo no Brasil” aborda a chegada ao Brasil e os reflexos dessas evoluções para a transfor- mação cultural brasileira. Identifica os aspectos sociais e artísticos atuantes a partir do início do século XX, que, intensificados a partir da década de 1950, darão início a uma cultura de design em São Paulo. Pelos depoimentos de Wollner, percorre as bienais, a influên- cia de Max Bill, o iac masp , o ensino do design e o surgimento do movimento concreto, apontando os elementos que determinaram a convicção em direção a uma arte voltada a atender funções sociais. Reconhecendo no curso de desenho industrial organizado por Pietro Maria Bardi no iac masp o ponto de partida para o surgimento da cultura de design no Brasil, dedicando-se e investigar as origens de seu projeto pedagógico. Para isso, busca no processo de indus- trialização alemão e austríaco ocorrido no início do século XX, que, integrando os preceitos oriundos das vanguardas artísticas euro- péias discutidas na primeira parte, foi responsável por fornecer os parâmetros para a elaboração do primeiro projeto pedagógico para o ensino do desenho industrial na escola Bauhaus. Compara ainda a iniciativa da Bardi as aspirações de Rui Barbosa, que vislumbrava já no século anterior a importância do ensino do desenho industrial como elemento estratégico para o desenvolvimento da sociedade. 1716 A terceira parte, “arte concreta e design” debate a absorção desses ideais na relação de Wollner com os concretistas. Analisa a atuação do grupo Ruptura, onde a produção artística privilegia a construção a partir do raciocínio matemático, e a poesia concreta do grupo Noigandres, de orientação programática, em que a preocupação com a visualidade das palavras explora a ordenação tipográfica, incorporando elemen- tos e procedimentos correspondentes aos empregados em projetos de design visual. Aborda a relação entre os artista e poetas concretos com a comunicação e a produção gráfica, e destaca as contribuições do pensamento construtivo do movimento concreto nas fases evo- lutivas descritas por Wollner em sua metamorfose evolutiva. Destaca suas experiências junto aos concretos, em especial Geraldo de Barros e Décio Pignatari, sua experiência na HfG Ulm e sua dedicação ao reconhecimento e aprimoramento do design no Brasil. Resgata de seus depoimentos a percepção acerca dos diversos aspectos que envolvem o pensamento do design atual, seu envolvimento com o ensino do design em nosso país e a relação do designer com as transformações sociais, culturais e tecnológicas. Ensina a importância do pensamento concreto, desenvolvido com base em aspirações construtivas para a compreensão dos verdadeiros objetivo do design, e rebate as críticas contra a raciona- lidade direcionadas os concretos paulistas, que se desdobraria posterior- mente ao debate sobre a prática e ensino do design. Conclui, apreciando o retorno de Wollner à arte concreta, onde, amparado pelos conheci- mentos técnicos e estéticos, e assistido pela tecnologia atual, produz a série de plotergrafias constelações, onde realiza o fechamento do ciclo artista-designer, como determina Bruno Munari (1971:12) , ao lembrar que o artista deve ser “um trabalhador inserido em sua época, e não um repetidor de fórmulas passadas”. A quarta, consiste em análise gráfica de cartazes culturais projetados por Wollner, buscando identificar e discorrer acerca da presença dos aspectos revelados pela pesquisa, presentes nessa produção. Em função da importância da visualidade para o tema da pesquisa, dedicou-se atenção especial à dimensão e disposição das imagens, cuja função não se limita a ilustrar as situações descritas no tex- to. A seleção e disposição das figuras buscou sempre que possível, apresentar momentos distintos na produção dos artistas referidos, procurando comparar seus experimentos visuais e a consequente aplicação em projetos de comunicação.As imagens ocupam as pági- nas esquerdas, enquanto o texto flui nas páginas da direita (salvo os casos em que as imagens se distribuem em página dupla). Em lugar de legendas, foram inseridas citações que complementam as infor- mações do corpo do texto. As citações reproduzidas na integra são acompanhadas pela referência ao autor entre parenteses, e quando não referenciadas, tratam-se de conclusões do autor da pesquisa. As citações no corpo do texto são indicadas pelo recuo no parágrafo, em tipo itálico. As notas de margens correm à esquerda e abaixo do texto, na mesma posição que os subtítulos dos capítulos em verme- lho, que se distinguem também pelo tamanho do tipo. 1. imagens 2. comentários/legendas 3. corpo do texto 4. subtítulo 5. notas de margem 1918 de designer visual, apontando para uma reaproximação com os valores essenciais do seu campo teórico, abalizados pela Bauhaus e posterior- mente concretizados pela escola de Ulm e o design tipográfico suíço. A proposta tem sua origem na análise de Bruno Munari, onde a rela- ção entre o que se considera “arte pura” e “arte aplicada” na sociedade pós-industrial conduz a um entendimento do papel da arte na cons- trução do conjunto de conhecimentos que convergem na formação das bases teóricas do design gráfico. O que modificou o artista em seu modo de projetar para que ele se tivesse transformado em designer? E o que é que haverá de artístico no design? (munari, 1971:13). Segundo ele, o conceito de arte pura corresponde a mais alta ca- tegoria de produção artística, superando numa escala de valores a arte aplicada, consistindo em peças únicas executadas pelo pró- prio autor representando o mundo pessoal do artista. Em Artista e Designer, dedica-se a distinguir de maneira objetiva os princípios que norteiam essas definições, questionando, no que diz respeito a essa analogia (ibdem): Durante muito tempo, essa distinção não existiu. Giotto pintava e era arquiteto, Leonardo daVinci pintava e inventava máquinas. A pintura, a arquitetura, a invenção, a poesia eram atividades diversas, mas ligadas por um único método objetivo de projetar (…) mas a antiga arte tinha se desenvolvido a par- tir de um artesanato fundamentado em regras práticas. Qual é hoje o correspondente a essas regras? Cabe aqui em princípio, definir que, o significado de arte e design no contexto desse debate, como orienta Munari (ibdem:14), não caracte- riza a pretensão de estabelecer qualquer forma de juízo de valores entre ambos. Conforme explica, a arte desempenhou muitas funções no decurso da história1, estando sujeita a transformações de acordo com o momento histórico, ocupando-se das principais manifesta- ções de comunicação visual antes da revolução industrial, o que de- fine uma analogia entre o artista e o designer, como acorda Wollner (2003:87) ao relatar sua visita a Florença em 1954-55: de artista a designer 1. (…) a arte teve funções mágicas durante a pré-história, período em que nasce a linguagem visual (…) a imagem era utilizada para comunicar visual- mente a forma da “coisa” que se queria capturar. A “coisa” era útil à sobrevi- vência a comunidade, podia-se comê-la e sua pele servia para aquecer e cobrir os membros dessa comunidade (…) Nas sociedades antigas como a egípcia a arte tinha funções mágicas e representativas, e ainda hoje tem as mesmas funções em sociedades primitivas que sobrevivem em certas regiões do globo. Aquela que consideremos estética evidencia-se no período grego, enquanto em Roma a arte teve função prática e de celebração. Na idade Média teve funções didáticas e explicativas, no Renascimento estéticas e cognitivas. No período barroco teve funções estéticas, de culto e persuasivas. A função estética torna-se uma constante com variantes expressivas no Romantis- mo. Também a função cognitiva, que já aparece nas arte grega, se torna uma constante, e hoje a arte tem funções educativas, políticas, sociais e mercan- tis. Acentua-se a função experimental, favorecida pelos novos instrumentos, que tende a tornar-se paralelamente à ciência mas com meios diversos, um fator de conhecimento e de estimulação da criati- vidade individual (munari, 1971:14) albretch dürer Pintor, gravador, inventor, matemático, figura entre os mais eminentes artistas da Renascença, sendo considerado o equivalente alemão de Leonardo da Vinci (horcades, 2004:67). Imbuído de intro- duzir o pensamento humanista italiano na cultura gótica alemã, projetou livros compostos em letras góticas fraktur, com o objetivo de facilitar o seu entendimen- to por uma sociedade habituada à leitura nesses caracteres. Esses livros, ricamente ilustrados com xi- lografuras por ele produzidas, abordavam a aplicação da ciência nas belas-artes e arquitetura através de análise da geometria. Os estudos de Dürer sobre a construção das letras, utilizando a malha estrutural como referência, antecedem em meio século os fundamentos da tipografia digital. Acima, detalhes de De symmetria partium in rectis formis humanorum corporum e Underweysung der Messung demonstram a incursão de Dürer pela produção edito- rial. (heitingler, 2006:39). Ao lado, auto retrato em óleo sobre madeira de 1500. 1 4 5 3 2 de ar tis ta a de sig ne r “ o que modificou o artista em seu modo de projetar para que ele se tivesse transformado em designer? e o que é que haverá de artístico no design?” bruno munari 1971:13 2120 Esta investigação surge do debate entre o que se considera “arte pura” e “arte aplicada” na sociedade pós-industrial. Questões que, em decor- rência de falta de reflexão, ressoam de forma equivocada no discurso do design gráfico. Propõe-se, assim, a partir da discussão acerca da contribuição gerada pelos ideais das vanguardas artísticas para a formação das bases teóricas do design, apontar para a importância da resignificação da arte após a revolução industrial, que desobrigada de atender necessidades objetivas, passa a servir como importante meio para a geração de novas linguagens de comunicação, contribuindo dessa forma para a transformação cultural das sociedades. As manifestações originadas pelas vanguardas artísticas, com o obje- tivo de romper com a tradição acadêmica nas artes visuais – através do debate entre figuração e abstração – incorporaram, posterior- mente, exigências sociais responsáveis por profundas modificações de ordem técnica e estética. Ocorrendo paralelamente ao desenvol- vimento do design gráfico como ciência de comunicação, colabo- ram de forma decisiva com o estabelecimento de seus paradigmas, acabando por se incorporar à linguagem visual da indústria e dos meios de comunicação. Esse rompimento com as tradições acadêmicas repercute no Brasil na forma de manifestações culturais a partir do final da década de 1910, sendo o aspecto mais importante no contexto dessa pesquisa o surgimento do movimento concreto – com foco nas manifestações do grupo Ruptura na década de 1950 – que propõe o debate entre “um abstracionismo expressivo, de ordem ‘hedonista’ e o abstracionismo construtivo, que se define como “a compreensão de que não se trata de um estilo, mas do conteúdo objetivo da arte, de uma possível ciên- cia da arte” (belluzzo apud amaral, 1998:99) A identificação de Alexandre Wollner com os ideais do concretismo acontece num período de grande efervescência cultural, com a emer- gência de uma então nova realidade, gerada através da assimilação das experiências de meio século de vanguardas construtivas européias, que segundo ele, conduziu a participação dos artistas nos meios de comunicaçãovisual, responsável por definir as bases de nosso design de comunicação. Por meio dos relatos de Wollner – que em função de sua atuação como designer, teórico e educador, se credencia como auto- ridade eminente – esclarece a aproximação dos ideais propostos pelos concretistas aos conhecimento exigidos para o exercício da atividade introdução 2322 de designer visual, apontando para uma reaproximação com os valores essenciais do seu campo teórico, abalizados pela Bauhaus e posterior- mente concretizados pela escola de Ulm e o design tipográfico suíço. A proposta tem sua origem na análise de Bruno Munari (1971:13), onde a relação entre o que se considera arte pura e arte aplicada na sociedade pós-industrial conduz a um entendimento do papel da arte na construção do conjunto de conhecimentos que convergem na formação das bases teóricas do design gráfico, quando interroga: “O que modificou o artista em seu modo de projetar para que ele se tivesse transformado em designer? E o que é que haverá de artístico no design?” Segundo ele, o conceito de arte pura corresponde a mais alta ca- tegoria de produção artística, superando numa escala de valores a arte aplicada, consistindo em peças únicas executadas pelo pró- prio autor representando o mundo pessoal do artista. Em Artista e Designer, dedica-se a distinguir de maneira objetiva os princípios que norteiam essas definições, questionando, no que diz respeito a essa analogia (idem): Durante muito tempo, essa distinção não existiu. Giotto pintava e era arquiteto, Leonardo daVinci pintava e inventava máquinas. A pintura, a arquitetura, a invenção, a poesia eram atividades diversas, mas ligadas por um único método objetivo de projetar (…) mas a antiga arte tinha se desenvolvido a par- tir de um artesanato fundamentado em regras práticas. Qual é hoje o correspondente a essas regras? Cabe aqui em princípio, definir que, o significado de arte e design no contexto desse debate, como orienta Munari (ibdem:14), não caracte- riza a pretensão de estabelecer qualquer forma de juízo de valores entre ambos. Conforme explica, a arte desempenhou muitas funções no decurso da história1, estando sujeita a transformações de acordo com o momento histórico, ocupando-se das principais manifesta- ções de comunicação visual antes da revolução industrial, o que de- fine uma analogia entre o artista e o designer, como acorda Wollner (2003:87) ao relatar sua visita a Florença em 1954-55: de artista a designer 1. (…) a arte teve funções mágicas durante a pré-história, período em que nasce a linguagem visual (…) a imagem era utilizada para comunicar visualmente a forma da “coisa” que se queria capturar. A “coisa” era útil à sobrevivência a comu- nidade, podia-se comê-la e sua pele servia para aquecer e cobrir os membros dessa comunidade (…) Nas sociedades antigas como a egípcia a arte tinha funções mági- cas e representativas, e ainda hoje tem as mesmas funções em sociedades primitivas que sobrevivem em certas regiões do globo. Aquela que consideremos estética evidencia-se no período grego, enquanto em Roma a arte teve função prática e de celebração. Na idade Média teve funções didáticas e explicativas, no Renascimento estéticas e cognitivas. No período barroco teve funções estéticas, de culto e per- suasivas. A função estética torna-se uma constante com variantes expressivas no Romantismo. Também a função cognitiva, que já aparece nas arte grega, se torna uma constante, e hoje a arte tem funções educativas, políticas, sociais e mercantis. Acentua-se a função experimental, favore- cida pelos novos instrumentos, que tende a tornar-se paralelamente à ciência mas com meios diversos, um fator de conhe- cimento e de estimulação da criatividade individual (munari, 1971:14) albretch dürer Pintor, gravador, inventor, matemático, figura entre os mais importantes artistas do Renascimento, sendo considerado o equivalente alemão de Leonardo da Vinci (horcades, 2004:67). Imbuído de intro- duzir o pensamento humanista italiano na cultura gótica alemã, projetou livros compostos em letras góticas fraktur, com o objetivo de facilitar o seu enten- dimento por uma sociedade habituada à leitura nesses caracteres. Esses livros, ricamente ilustrados com xilografuras por ele produzidas, aborda- vam a aplicação da ciência nas belas- -artes e arquitetura através de análise da geometria. Os estudos de Dürer sobre a construção das letras, utilizando a malha estrutural como referência, ante- cedem em meio século os fundamentos da tipografia digital (heitingler, 2006:39). Acima, detalhes de De symmetria partium in rectis formis humanorum corporum e Underweysung der Messung demonstram a incursão de Dürer pela produção editorial. Ao lado, auto-retrato em óleo sobre madeira de 1500. 2524 Primeiro percebi a função do artista e o significado de sua participação no contexto dos templos, e o papel disso para a comunidade – desde o período gótico até o Renascimento. Como nessa época a maioria da população era analfabeta, a ênfase dos quadros recaia na narrativa visual do calvário de Jesus e outros episódios cristãos (…) Também observando as pinturas de Masaccio, Paolo Uccello e Piero della Francesca, entre outros florentinos, notei toda uma estrutura de construção geométrica que eu ainda não havia percebido, e logo a relacionei ao pensa- mento matemático da pintura concreta. O surgimento de um pensamento sinalizando a união da arte e do trabalho a serviço da sociedade, que evoluiria para a formação de uma base conceitual para o design, remonta a John Ruskin (meGGs, 2009:217). Ele verifica que um processo de separação entre a arte e sociedade havia se iniciado após o Renascimento, atribuindo o isolamento do artista à industria e a tecnologia, culminando no século XIX em “um declínio na criatividade e a valorização do design feito por engenhei- ros, sem preocupação estética”. A frase recorrente no discurso do design – design não é arte – define uma distinção entre duas atividades, sugerindo dessa forma, uma con- juntura antagônica. Ainda que isso se sustente por meio de argumen- tos plenamente justificados2, historicamente o design guarda estreitas relações com as artes no decorrer de sua trajetória evolutiva, confor- me ressalta André Villas-Boas (1997:65), ao afirmar que “o design surge da esfera da arte e da reflexão sobre si mesma”. Conforme Ruskin – que coincidentemente rejeitava a economia mercantil – somente a técnica, dissociada da estética não é suficiente para que se produza atendendo a todas as necessidade sociais. Vilém Flusser (2007:183 e 184) define com precisão essa analogia, quando determina a palavra design como uma ponte entre dois mundos, que surgiram a partir de uma separação brusca entre eles: o das artes e o da técnica: “design signi- fica aquele lugar em que arte e técnica caminham juntos, com pesos equivalentes, formando uma nova forma de cultura” . A trajetória do design visual ingressa no século XXI envolta num processo que acusa uma regressão a um quadro de valores da era pré-industrial, caracterizando uma inversão dos questionamentos de Ruskin, com o predomínio da preocupação estética estimulando uma prática que valoriza o individualismo e a expressão particular 2. O artista produz pinturas e escultura, en- quanto o designer produz objetos (…) para o artista existem categorias bem definidas que subdividem a produção artística numa escala de valores: primeiro vem a pintura e a escultura(…)sempre obras de arte pura. Depois as obras de arte aplicada. Para nossos amigos franceses, design é algo que se confina à seção de arte aplicada(…)o que significa que tal projeto surge como adaptação a funções práticas, de forma preexistente na mente e no estilo do artista.(…)tende a conferir a seu trabalho um significado filosófico, social, político, religioso, moral, etc., isto é, que a obra como tal não é nada mais que o suporte da mensagem.(…) O designer, pelo contrário não utiliza peças únicas e não cataloga sua produção em categorias artísticas. para ele, não existe arte pura e arte aplicada, qualquer problema, seja ele o projeto de um copo ou um edifício tem a mesma importância. Não tem uma visão pessoal do do mundo no sentido artístico, mas um método para abordar os vários problemas quando se trata de projetar (…) os objetos projetatos por designrs não tem qualquer significado além da das funções que devem desempenhar. São aquilo que são, e não o suporte de uma mensagem, ainda que exista uma na sociabilidade do trabalho do designer (munari, 1971:32,33,34,35,36) afrescos de michelangelo Realizado entre 1508 e 1512 no teto da Capela Sistina, consiste numa narrativa visual da criação do mundo, destinada a comunicá-la a uma população predomi- nantemente analfabeta, e incapaz de ler os textos bíblicos. Esse trabalho demonstra o equilíbrio entre a subjetividade na criação do artista e a objetividade decorrente de sua função utilitária, caracterizada nos conflitos entre Michelangelo Buonarotti e o papa, que lhe encomendou a obra (dondis 1991:11). 2726 em detrimento das noções projetuais e filosóficas que determinam o instrumental teórico, responsáveis por configurar o design como ciência de comunicação dedicada a atender as necessidades obje- tivas da sociedade pós–industrial, como explica Suzana Valladares Fonseca (2007:10). Para ela, as transformações ocorridas nas últimas décadas do século XX provocaram “uma radical contestação dos va- lores que se tornaram cânones do chamado design moderno e a uma progressiva diluição dos contornos que costumavam demarcar essa profissão”. Embora reconheça aspectos positivos ao propor novas formas de manifestação e atualização, alerta para um “afastamen- to de conteúdos históricos e ideológicos que participaram e deram consistência a essa formação” . Considerando como mais importante e significativo que debater essa questão acerca dos aspectos formais que as envolvem, bem como os fatores que freqüentemente são associados às discussões referentes a afirmação profissional do campo do design, o foco principal des- sa pesquisa aponta para processos de ordem objetiva, devidamente voltados para a fundamentação de um raciocínio estrutural nascido nos programas das vanguardas construtivas, condizente com a real noção de projeto que deve direcionar a prática do design visual, que se traduz na afirmação de Gaudêncio (2004:49): O modernismo persiste. Mesmo distanciado para um século que não é mais o nosso, ele ainda intriga, se não por suas conquis- tas devidamente absorvidas pela indústria cultural, ao menos como um incômodo lembrete a explicitar a falta de projeto que caracteriza o pós–modernismo de nossos dias Esse incômodo lembrete serve como eixo estruturador para o debate em torno do resgate dos valores surgidos em São Paulo na década de 1950, quando as teorias construtivas, propondo uma arte dotada de princípios claros e inteligentes e de grandes possibilidade de desen- volvimento prático como proclama o manifesto Ruptura, de 1952, se propagam através do movimento concreto, unindo pintores, poetas e músicos, e sua contribuição para o que Alexandre Wollner (2002:72) define como o “artista moderno, atuante nos meios de comunicação de massa”, como enaltece Décio Pignatari (1968:104) As manifestações artísticas mais significativas de nosso tempo foram as que, coletiva ou individualmente, configuram um elementos de euclides Os livros do editor inglês William Pickering são uma excessão à decadente produção editorial do final do século XIX, denunciada por John Ruskin e enfrentada pelos adeptos do arts and crafts. Pickering antevê a atividade do designer ao introduzir a relação entre o editor (que desempenhava também a função de projetista gráfico) e o impressor, atuando em parceria com Charles Wiittingham. Antecipando o rigor estrutural da arte geométrica do século XX, The Elements of Euclid de 1847, destinado ao estudo da geometria, é considerado um marco no design de livros, ao utilizar a cor como sistema de informação. (meggs, 2009:215) 2928 projeto geral, uma linguagem com virtú de se desenvolver em novas linguagens [grifo nosso] (e nisto contrária a idéia de estilo) buscando uma purpose além da mera expressão pessoal. É por meio da relação de Alexandre Wollner com o pensamento cons- trutivo que se estrutura essa investigação. Apesar de, hoje, sua trajetória englobar uma infinidade de conhecimentos que ultrapassam as experi- ências concretas da década de 1950, confundindo-se com a história do design gráfico brasileiro, segundo Décio Pignatari (apud wollner, 2003:11). Raríssimos foram os movimentos culturais que tiveram um mar- co inicial e um desenvolvimento tão claramente visíveis e tão inconturbados por manifestações contrárias quanto o design gráfico-visual brasileiro (…) e ninguém e nada como Wollner e sua obra formam o luminoso cursor móvel do nascimento e desenvolvimento do design visual em nosso pais A análise desses valores propõe demonstrar que seu aporte para a constituição do campo do design constitui-se em elemento funda- mental para o estabelecimento do que André Villas-Boas muito bem define como cultura projetual3, fazendo com que responda aos cri- térios objetivos que fomentaram sua evolução, motivando a reflexão quanto ao risco do afastamento desses valores em função da adoção de posições efêmeras, motivadas por modismos e tendências estilísti- cas, que mais atendem às exigências do comércio que as da sociedade, movidas por um propósito vazio de inovar por inovar. Ao negar as li- ções do modernismo, incentiva-se uma prática distorcida, que regride o designer à uma figura pejorativamente associada ao artista românti- co, como define Norberto Gaudêncio Junior (2004, 49). É comum associarmos o conceito do artista à imagem de um homem tomado pelo desespero existencial, retirando desse estado, inspiração para sua arte. A revolta modernista foi contra essa estética individualista e romântica, tão característica dos séculos XVIII e XIX. Uma arte voltada para o exercício do sub- jetivismo e alienação do indivíduo só podia ser a arte de uma sociedade estratificada, que não conseguia lidar com as comple- xidades de um mundo em rápida transformação, e que, calada em seu desespero existencial, colaborava com a imobilidade das leis e dos dogmas. Uma arte burguesa. 3. Série de princípios que devem ser apreendidos pelo estudante visando a uma futura atividade projetual criativa, crítica e inovadora e que, por seus procedimentos no processo de projetação, justifiquem a existência do design como campo próprio, atividade profissional específica e objeto de um curso de nível superior. A cultura projetual se desdobra na consciência de determinados princípios projetuais histori- camente determinados (e no posiciona- mento do designer perante eles, ao gerar suas alternativas de solução), na adoção de dados procedimentos metodológicos, na consolidação de um repertório visual recorrentemente consultado para nortear as soluções de projeto e na capacidade de identificar referências, influências e implicações das soluções do projeto em andamento. A cultura projetual – da qual faz parte a cultura visual, cuja formação ou consolidação se espera serconduzida ou oferecida ao estudante pelos cursos de graduação – distingue o profissional de design do diletante, do amador ou do micreiro, por exemplo. Qualquer pessoa pode organizar elementos visuais numa superfície bidimensional, e, possivelmente, parte significativa delas pode alcançar um resultado minimamente razoável – justa- mente porque lida a todo instante com os paradigmas que as regem (nos outdoors, nos jornais e nas revistas, na televisão, nos folhetos, na internet etc). No entanto, a maior parte dessas pessoas certamente não disporá de elementos que permitam a análise crítica da própria organização que criou e não terá a autonomia necessária para gerar com segurança e discerni- mento novas alternativas a partir daquela originalmente criada, visando à adequação à situação de projeto, ao aperfeiçoamento e/ou à inovação. A cultura projetual é uma das maiores características que distingue o profissional de design tanto dos ama- dores como de outros profissionais asse- melhados, com os quais freqüentemente mantêm uma relação de interdependência na consecução de projetos (como os publicitários, os artistas plásticos, os artefinalistas, os técnicos da computação gráfica etc). (villas-boas, 2009:2 e 3/91) ausência de projeto Discutida por Wollner, Suzana Valladares Fonseca e André Villas-Boas, a ausência de noções derivadas de uma prática projetual conduz o design visual – numa tentaviva de renovação baseada na ne- gação vazia das lições modernas – a uma regressão aos valores do passado. A curadora, jornalista e professora Daniela Name, e o designer e pesqui- sador Mauro Pinheiro discorrem com propriedada sobre o tema, ao analisa- rem o projeto de identidade visual das Sardinhas Coqueiro no textos transcritos abaixo. Os grifos são nossos. O caso das sardinhas Coqueiro Daniela Name: 27/11/2009 “ Este já faz tempo e preserva alguma coisa do projeto original, embora também seja um retrocesso (…): o projeto de Alexandre Woll- ner, artista egresso do concretismo paulista e um dos pioneiros do design no Brasil, para as Sardinhas Coqueiro. O projeto é de 1958 e Wollner aplicou princípios construtivos nas embalagens, popularizando a vanguarda no supermercado.(…) A marca apresenta as folhas do coqueiro feitas a partir de uma sequência de círculos seccionados. Na lata, o próprio peixe é feito a partir de um triângulo e de um quadrilátero – um losango alongado – que se encontram pelos vértices. Os três sabores dos molhos são comunicados da forma mais simples possível: duas cores primárias (…) e uma secundária, que são facilmente associadas ao ingrediente principal de cada mistura. O projeto resistiu até 2000, quando a Quaker do Brasil, atual proprietária da marca, adulte- rou a identidade visual sem sequer consultar o designer. O coqueiro em forma de ícone foi substituído por uma ilustração e depois desapareceu da lata (…). A sardinha virou algo disforme, de geometria indefinida, diminuindo assim a rapidez de memorização da marca. É um macete ótico muito usado pelos artistas construtivos: geometria e íco- ne são de fácil memorização, enquanto um desenho “completo” leva a tempo para ser processado por nossa inteligência visual. Wollner, um craque, sabia disso quando “limpou” peixe e coqueiro, transformando-os em formas básicas. A lata atual peca ainda na adição de sardinhas no fundo colorido (uma redundância completa) e na profusão de fios e outros elementos que perturbam a absorção de informação. Ficou muito mais difícil gravar a marca da Coqueiro, prova de que o projeto inicial de Wollner, além de muito mais belo do que o em vigor hoje, também era mais eficiente.” http://daniname.wordpress.com/2009/11/27/ o-caso-das-sardinhas-coqueiro/ Vale tudo Mauro Pinheiro: 06/12/2007 “O logotipo e o projeto de embalagem feitos por Alexandre Wollner duraram 50 anos. Após um redesenho chegou-se a um (terrível) resultado que foi modificado duas vezes em apenas 2 anos – e continuam mudando. As mudanças agoram são baseadas em merchandising, não em identidade visual. As embalagens atuais parecem um anúncio de revista, tamanha a quantidade de informação colocada. E o logotipo não chega aos pés do trabalho sintético e elegante feito por Wollner. (…) as antigas latas das Sardinhas Coqueiro feitas por Wollner, com a inteligente su- gestão geométrica da sardinha no contraste claro-escuro, resolvida somente com 2 co- res. (…) na linha de embalagens mais recente, não há padronização de formato e necessa- riamente usa-se policromia, aumentando os custos de produção.” http://www.feiramoderna.net/2007/12/06/ vale-tudo/ 3130 Como alerta Wollner (2003:11), apesar de passado praticamente um século de história da assimilação da arte pela indústria, ainda persiste a idéia de entender as pesquisas construtivas como mera expressão de estilo, recorrendo a argumentos pretensamente inovadores para impor o passado como novo. A profissão de designer visual no Brasil tem, no entanto, atribuições predominantemente ligadas a características e funções estéticas, e está vinculada a movimentos artesanais e de belas artes. Isso é o que está em voga em nossas instituições de ensino. O restante é desconhecido por uma juventude ávida por informações. Articular informações visuais configurando sistemas de informação não se constitui em um processo inerente à modernidade, estando presente em incontáveis momentos da evolução humana. Notada- mente, em alguns períodos verifica-se manifestações de especializa- ção nesse processo, caracterizadas pela necessidade dos sistemas de comunicação visual acompanharem essa evolução para se manterem adequados aos seus objetivos4. Em meados do século XIX, os principais centros culturais e econômicos europeus viviam as transformações radicais provocadas pela revolução industrial, com o conseqüente debate em torno de questões de ordem filosófica, moral e social, decorrentes da implantação de processos produtivos que permitiam a produção em massa de bens de consumo. Possibilitando o acesso às classes trabalhadoras de artigos materiais e culturais que antes, produzidos sob encomenda, ou em pequena quan- tidade por artistas e artesãos especializados, eram privilégio das elites que dispunham de recursos financeiros para adquiri-los5. Como observa Phillip Meggs (2009:174), a revolução industrial não foi só um período histórico, mas um processo radical de mudança social e econômica. Uma das conseqüências diretas desse fenômeno foi o aumento sig- nificativo de uma população alfabetizada, vivendo em áreas urbanas e consumindo informação por meio de jornais, revistas, cartazes, etc. Assim como no caso da produção industrial, a comunicação visual também passa a exigir uma reestruturação racional para ajustar-se aos padrões da sociedade industrializada. No sentido tecnológico-pro- dutivo, demandou uma adequação dos processos de montagem das 4. A transição da idade média para a renascença teve de lidar com os diversos impulsos do avanço tecnológico aliados a uma concepção do fazer artístico de caráter transcendente e religioso. A figura do artista/cientista/inventor – que Leon- ardo da Vinci encarna tão bem – traduz por completo essa contradição, pois na rena- scença, arte e tecnologia eram componen- tes inseparáveis no projeto de fundar uma nova filosofia e concepção criadora para a humanidade (gaudêncio junior, 2004, 87). 5. As artes manuais se encolhiam a me- dida que findava a unidade entre projeto e produção. Anteriormente, um artesão projetava e fabricava uma cadeira ou um par da sapatos, e um impressor se envol- via em todos os aspectos de suaarte, do projeto dos tipos e do leiaute da página à impressão concreta de livros e folhas. A natureza das informações visuais foi profundamente alterada. A variedade de tamanhos tipográficos e estilos de letras teve crescimento explosivo. A invenção da fotografia – e mais tarde os meios de impressão de imagens fotográficas– ex- pandiu o significado da documentação vanguardas artísticas visual e das informações ilustradas. O uso da litografia colorida passou a experiên- cia estética das imagens coloridas dos poucos privilegiados para o conjunto da sociedade (meggs, 2009:174). cartazes litográficos A impressão litográfica, aliada a melhoria na produção e distribuição de papel na se- gunda metade do século XIX impulsionam o desenvolvimento de cartazes coloridos e em grandes formatos (weill, 2010:13). Adotando motivos extravagantes, o artista tcheco radicado em Paris, Alphonse Mu- cha, acima, e o inglês Aubrey Beardsley, acima e a direita, influenciado pelas gra- vuras japonesas se destacam na produção de cartazes, que contribuiram para alterar a paisagem nas grandes cidades. 3332 peças de comunicação ao aumento das tiragens, enquanto no aspecto projetual-criativo daria inicio ao processo de transformação em que o conhecimento técnico de trabalhadores de ofícios gráficos e as experi- ências estéticas dos artistas visuais confluiriam no surgimento de um profissional dedicado à sistematização da informação visual. A função do artista, também intensamente alterada pela industriali- zação, passa a ser repensada na Europa pelas correntes vanguardistas no início do século XX. Décio Pignatari (2003:83) cita Walter Benjamin ao se referir as novas possibilidades de reprodução técnica, responsá- veis por fazer com que a obra de arte perdesse sua “aura” de produto “autêntico” e “único”, e que, enquanto objeto único, carece de maior significação, persistindo apenas como preconceito cultural de classes privilegiadas, favorecendo “o artesanato artístico, que lhes oferece os produtos únicos de que necessita para seus emblemas e distintivos” (ibdem:16 e 86), ao que acrescenta Norberto Gaudêncio Junior: Com a fotografia, todos os postulados de beleza e idealização da imagem gravada à mão torna-se impessoais, pois a má- quina capta a realidade com maior fidelidade. A fotografia é incorruptível, não comporta falha, impossibilitando o fazer artístico no que ele tem de mais tradicional. A fotografia liber- tou a pintura da representação, abrindo caminho para a arte abstrata (Gaudêncio junior, 2004: 69). Benjamin (1955:03) aponta a fotografia como a “primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária”, diretamente ligada ao fenômeno da crise da arte6. Ele atribui a esse fato, o surgimento de uma doutrina da arte pela arte, como forma de reação, resultando em uma “teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva”, ao que acrescenta Meggs (2009:11) O conceito de arte pela arte, de um belo objeto que existe exclu- sivamente por seu valor estético, não se desenvolveu senão no século XIX. Antes da revolução industrial, a beleza das formas e imagens produzidas pelas pessoas estava ligada à sua função na sociedade humana. Cientes da mudança da relação entre artista e sociedade, as vanguar- das artísticas aderem à estética industrial, adotando seus ideais como 6. Inventores do século XIX como Talbot, documentaristas como Brady e po- etas visuais como Cameron, exerceram importante impacto no design gráfico. Na chegada do século XX, a fotografia estava se tornando uma ferramenta de re- produção cada vez mais importante. Novas tecnologias alteraram radicalmente as existentes e tanto as técnicas de impressão como a ilustração foram drasticamente transformadas. Á medida que a reprodução fotomecânica substituía as lâminas feitas à mão, os ilustradores ganhavam nova liberdade de expressão. Pouco a pouco, a fotografia monopolizou a documentação factual e impeliu o ilustrador para a fanta- sia e a ficção (meggs, 2009:195). reprodução fotográfica De gitaarspeelster (A guitarrista), óleo sobre tela executado entre 1670/72 pelo pintor holandês Jan Vermeer, e calótipo (processo de reprodução que deu origem à fotografia) da srª Horatia Feilding de William Fox Talbot realiza- do por volta de 1842. A fotografia substitui o trabalho do pintor na registro de retratos e cenas, possibilitando e incentivando os artistas a desenvolverem novas linguagens de representação. Livre da função de re- produzir o visível, o artista passaria a se dedicar à materializar o invisível. 3534 princípios estruturadores da forma – pregando o rompimento com a tradição acadêmica nas artes visuais, através do debate entre figu- ração e abstração – e enfatizando sua função social. Antonio Risério (apud bandeira, 2008:169) observa que a postura de vanguarda difere do conceito do novo, estando mais vinculada a ordem militar que ao campo artístico, o que justifica o forte engajamento na defesa de suas posições. Segundo ele, no campo estético, as vanguardas se configu- ram em “grupos autoconscientes (…) programaticamente empenhados na revolução sistemática dos procedimentos artísticos”. O percurso histórico e evolutivo trilhado pelo design no séc. XX esta- belece uma estreita conexão com as artes de vanguarda, sobretudo no campo de design gráfico. A influência das vanguardas artísticas na Europa colaborou para a geração de uma série de paradigmas do design a partir da década de 19307 (cardoso, 2004:115), contribuindo para a afirmação de um profissional que viria a substituir no século XX os chamados “artistas comerciais” – visualizadores, tipógrafos, retocadores, letristas (Hollis, 2001:02). Segundo Rafael Cardoso (ibdem:116), a contribuição dessas vanguardas foi mais atuante no campo do design gráfico, sendo que no Brasil, “teve uma influência muito pequena (…) e só foi trabalhada sistemati- camente a partir de 1950, nas obras de artista ligados aos movimentos concreto e neoconcreto”. Representando a absorção dos ideais das vanguardas construtivas através do debate entre figuração e abstra- ção, e propondo a renovação dos valores essenciais das artes visuais, o movimento concreto no Brasil, promove a aproximação entre o trabalho artístico e a produção industrial. João Bandeira (2002:08,09) ressalta o contato direto com Max Bill para a incorporação desses ide- ais –proporcionado por sua exposição no masp em 1951 e na I Bienal Internacional de São Paulo – estabelecendo-se como referência no meio artístico brasileiro. A II Bienal, realizada em 1953 é considerada por Wollner (2003:71) como “a mais importante de todas as bienais e, […] de todas as manifestações culturais do mundo à época” trazendo ao Brasil representantes de todos os movimentos de arte mais importantes acontecidos desde o início do século8. Atribui grande relevância a esse evento para tornar sua “percepção cada vez mais clara, graças a todos esses fragmentos de conhecimento”, pois além de participar com três quadros de pintura concreta e ser premiado, esteve envol- 7. Partindo principalmente da confluência de idéias em torno do Construtivismo russo, do movimento De Stjil na Holanda e da Bauhaus na Alemanha, emergiu uma série de nomes fundadores do design gráfico moderno ( Alexander Rodchenko, El Lissitzky, Herbert Bayer, Jan Tschichold, Làzlò Moholy-Nagy, Theo Van Doesburg) cujo impacto se fez sentir na produção de cartazes e outros impressos que privilegiavam a construção da informação através de sistemas ortogonais(…) dando preferência ao uso de formas claras, simples e despojadas, figuras geométri- cas euclidianas, gama reduzida de cores, tipografia sem-serifa com o mínimo de variação entre caixa alta e baixa, planos de cor e configurações homogêneas e a quase abolição dos elementos de pontua- ção (cardoso, 2004:114 e115). 8. Os holandese Piet Mondrian e Theo van Doesburg; Henry van de Velde; os alemães Kurt Schwitters, Vordemberg-Gildewart e Walter Gropius; os russos Kasimir Mal- iévitch, El Lissitzky, Alieksandr Rodchenko, Naum Gabo-Pevsner e Wassily Kandinsky; os suíços Max Bill, Marcel Wyss, Fritz Glas- ner, Richard Paul Lohse, Hans Arp, Camille Graeser, Paul Klee e Verena Loewensen- berg; os franceses Auguste Herbin, Robert Delaunay, François Morellet, Pablo Picasso, Georges Vantogerloo, Marcel Duchamp e Vitor Vasarely; os italianos Gino Severini, Giacomo Balla e Lucio Fontana; os ingleses Bridget Riley, Ben Nicholson e Henry Moore. MAM SP A efervescência cultural da década de 1950 traz a São Paulo as realizações dos principais artistas das vanguardas modernas européias do século XX, cuja influência se faz presente no projeto gráfico dos cartazes. Acima, cartaz de Antonio Bandeira para a segunda bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo que aconteceu em 1953/54. Ao centros, cartazes para o Museu de Arte Moderna de São Paulo esxecuta- dos por Roberto Sambonet 3736 vido, ao lado de Geraldo de Barros, Aldemir Martins, Franz Krajcberg e Marcelo Grassmann, da montagem da exposição. Com relação a essa experiência, ele relata: passávamos um bom tempo diante dos quadros e esculturas, discutindo a importância desses artistas, procurando entender a época e os movimentos artísticos como de Stijl, Dada, Bauhaus, Merz, suprematismo, arte abstrata e arte concreta. Para perceber a importância dessas manifestações em relação ao objeto dessa pesquisa, é necessário selecionar aqueles cuja contribuição se manifestou no sentido de fomentar uma consciência voltada aos pro- pósitos de unir a arte às técnicas industriais através de um pensamento racional e do desenvolvimento de novas linguagens de comunicação. De acordo com esses critérios, emergem como significativas, as contri- buições dos movimentos arts and crafts (artes e ofícios), introduzindo o debate em torno da dimensão estética do produto industrial, assim como da função social do artista no mundo industrializado; o futuris- mo italiano e os movimentos dada e merz, que através da revolução tipográfica iniciaram a renovação das técnicas de comunicação visual; o construtivismo russo e o holandês de stijl, que, por meio da abstra- ção geométrica estabeleceram uma nova linguagem da forma. O desenho industrial, segundo Wollner (2002:71), deve sua idéia criati- va, seu nascimento e seu desenvolvimento artístico, social e cultural à Europa, sendo o marco inicial para o seu surgimento, Londres em 1851, data da Grande Exposição Internacional da Indústria. Como observa Gillo Dorfles (1991:127), “não se pode falar de design indus- trial reportando-se a épocas anteriores à revolução industrial, ainda que existam desde a antiguidade alguns objetos fabricados em série”, condicionando que, para essa condição ser legítima, deve partir de desenhos concebidos e estudados para esse tipo de produção. O movimento arts and crafts surge na Inglaterra, a partir da reação contra a indústria, vista como “uma ameaça ao bem-estar comum e aos valores mais elevados da sociedade” (cardoso, 2004:66), apesar de, através da produção em quantidade, permitir o acesso popular a bens que eram acessíveis a poucos privilegiados. A ausência de projeto fazia artes e ofícios catálogos ilustrados A revolução industrial provoca a deman- da por material de comunicação, como os publicados respectivamente em 1851, para a Grande Exposição Internacional da Indústria em Londres, e para a Exposição Universal de Paris em 1878. 3938 com que a forma visual desses objetos, segundo Wollner (2002:47), remetesse ao estilo artesanal do passado. Fundamentado nas teorias de Augustus Welby Northmore Pugin, que defendia o design como um ato moral que alcançava a condição de arte graças aos ideais e às atitudes do artista (meGGs, 2009:196), o arts and crafts emergia como alternativa para a crise estética da época. Em 1856, influenciado por Pugin, Owen Jones lança o livro Grammar of Ornament. Introduzindo uma noção de linguagem visual apropria- da a era da máquina, determina que “as melhores manifestações do ornamento em todas as épocas reproduzem princípios geométricos básicos” (cardoso, 2004:67). O crítico e educador John Ruskin foi responsável por outra grande contribuição desse movimento. Reconhecendo nas falhas, na organi- zação do sistema de trabalho o principal motivo para as deficiências projetuais e estilísticas, Ruskin alertava para a necessidade da espe- cialização do artesão (ibdem:67), e qualificava a imitação mecânica das formas do passado como destruição de todas as artes, cuja essência da verdade jazia no respeito aos seus fundamentos. (wollner,2002:47). Movido pelos ideais de Ruskin, William Morris acreditava que na união entre artes e ofícios estava a solução para “a insipidez dos bens pro- duzidos em massa e a falta de trabalho digno” (meGGs, 2009:219). Morris também revelava expressivas preocupações sociais, principalmente com a exploração dos trabalhadores, o que o conduziu ao socialis- mo, enquanto sua aversão às propaganda o levou a envolver-se na Sociedade para Verificação dos Abusos da Propaganda Pública (idem). Segundo Wollner (2002:48), a maior contribuição de Morris se deu no campo pedagógico, com a criação das escolas arts and crafts (liceus de artes e ofícios), que, ao incentivar o aperfeiçoamento do trabalho manual e promover a pesquisa da funcionalidade e da forma, respondiam aos anseios de Ruskin quanto a especialização profissional. No entanto, adverte que, tanto Morris quanto Ruskin falharam ao ignorar as vantagens que as novas tecnologias ofere- ciam à arte, bem como sua função de reforma social, enxergando na Idade Média e no pré-Renascimento o modelo para suas reali- zações, como ressalva Meggs (2009:226) O paradoxo de William Morris é que, enquanto procurava refúgio no trabalho manual feito no passado, desenvolveu atitudes em kelmscott press Recusando a distinção entre artista e artezão e priorizando a renovação dos ofícios artísticos, William Morris funda em 1891 uma editora dedicada a res- gatar os valores medievais na produção de livros, em acentuada decadência decorrente da introdução de processos industriais no setor editorial. Sua procupação abrangia tanto questões de projeto quanto do uso de materiais, envolvendo a digramação dos volumes, com manchas de texto deter- minadas de acordo com as proporções da página (assim como ainda acontece em diversas publicações, o texto era composto frequentemente visando o máximo aproveitamento do papel, muitas vezes em tamanhos e entrelinhas mal dimensionados, sem preocupação com o conforto visual do leitor), e in- cluia bordas e ilustrações xilográficas. Morris também preocupa-se com a pesquisa de papéis, tintas e tipos, tendo desenvolvido três famílias tipográficas – Golden, Troy e Chaucer – que ream empregadas na impressão dos livros da editora. Embora motivados por ideais socialistas, os livros da Kelmscott Press se constituiam em privilégio para poucos, devido ao custo elevado exigido para atingir os padrões de qualidade aspirados por Morris. Essa contradição no entanto, não desmerece seu valor, no sentido de aletar quanto a importância do projeto no processo de produçãoindustrial. 4140 relação ao design que delineavam o futuro. Seu clamor pelo ofício manual, fidelidade aos materiais, a conversão do útil em belo e a adequação do design à função são comportamentos adotados pelas gerações ulteriores, que procuravam unificar não a arte e o ofício, mas a arte à industria. Morris ensinou que o design poderia trazer a arte para a classe trabalhadora, mas os móveis refinados da Morris&Company e os magníficos livros da Kelmscott estavam ao alcançe apenas dos ricos. Surgido na Itália, na primeira década do século XX, o futurismo se caracterizou como “um movimento revolucionário em que todas as artes testariam suas idéias e formas contra as novas realidades da sociedade científica e industrial” (ibdem:318), como pregava Fillipo To- maso Marinetti (1876-1944) sua mais eminente figura. Glorificando a máquina e as conquistas tecnológicas, os futuristas desprezavam toda forma de tradição clássica, sendo responsáveis pela publicação de manifestos e experimentações tipográficas que levaram poetas e designers gráficos a “repensar a própria natureza da palavra tipográ- fica e seu significado” (ibdem:324), rejeitando a orientação simétrica da composição mecânica. Em meio a um período de agitações políticas e sociais em seu pais, é considerado o mais radical dos movimentos de vanguarda de sua época, apresentando uma visão extremamente politizada da arte, como aponta Humphreys (2000:19): Importantíssima era a convicção nietzschiana de que o signi- ficado do artista e sua obra iam além do ateliê, do salão ou do museu, e de que a visão do artista era o elemento decisivo que marcava o compasso do desenvolvimento da sociedade. Inspirado na poesia, o projeto futurista acreditava que a escrita e/ou tipografia podiam-se tornar uma forma visual concreta e expressiva rompendo com as tradições tipográficas vigentes, caracterizadas por uma rigorosa estrutura horizontal e vertical que persistia desde a invenção dos tipos móveis por Gutemberg (meGGs, 2009:321). Além da poesia padrão do poeta grego Símias de Rodes (c. século III AC), onde a visualidade do verso comparecia na forma de símbolos ou objetos religiosos, e do poeta alemão Arno Holz (1863-1929) no século XIX, cujas intervenções gráficas – omissão de caixas-altas e pontuação, variação no espaçamento de palavras e usos de múltiplos futurismo, dadaísmo, merz. a revolução tipográfica parole in libertá No início do século XX, a Itália, nas pri- meiras décadas como nação unificada, ainda buscava sua afirmação econômica e militar perante as demais potências européias (bertonha, 2008:151). Enquanto na Inglaterra, os adeptos do arts and crafts discutiram os impactos da revolução industrial no final do século anterior, para os italianos a industrialização tratava-se de questão primordial para alcançar esses objetivos. Como explica Brockmann (1982:90), o entu- siamo com a vida moderna, a velocidade, a guerra e a revolução, definiram os ideais do poeta Filippo Tommaso Marinetti, adepto do verso livre, ao publicar em 1909 o manifesto futurista, ao lado dos artistas Carlo Carrá. Umberto Boccioni, Gino Seve- rini, Giacomo Balla e Luigi Russuolo. Publicado como livro em 1914, Zang Tumb Tumb é um poema visual sobre a batalha de Trípoli, em que Marinetti explora a visualidade das palavras para expressar o ambiente bélico, expandindo as possibildades de utilização do material tipográfico, recurso que posteriormente se tornaria frequente no design visual. 4342 sinais de pontuação – antecipavam até alguns preceitos da nova ti- pografia, Meggs destaca o livro Calligrammes de 1918, de Guillaume Apollinaire (1880-1918), que explora a “fusão potencial de poesia e pintura, em que “as letras são organizadas para formar um desenho, figura ou pictograma”. A maior contribuição no entanto veio do poema Un coup de dês, do poeta simbolista Stéphane Mallarmé. Como analisa Hollis (2000:35), o poema de vinte páginas, não só rompeu com as convenções tipográfi- cas da época, mas sobretudo as justificou, revelando uma objetividade ao enaltecer a funcionalidade por traz das suas inovadoras interven- ções gráficas, conforme descreve (ibdem:45): Mallarmé via as duas páginas abertas de um livro como um espaço único. Ao longo das duas páginas abertas, ele deu ao seu vers libre (verso livre de rima e métrica) o aspecto de uma ‘partitura musical para aqueles que desejarem lê-lo em voz alta. As diferenças de tipo utilizadas para o motivo princi- pal, para os secundários e para os subsidiários determinam a sua importância na hora de serem declamados’. O espaço em branco era como o silêncio. Nele, o poeta colocou as palavras às vezes cada uma numa linha, como degraus numa escada. A vantagem dessa distância, por meio da qual palavras ou gru- pos de palavras são separados mentalmente, é que ora parece acelerar, ora parece desacelerar o movimento. Esses elementos seriam explorados de forma radical por Marinetti em seu livro Parole in libertà, de 1914. No poema Zang Tumb Tumb, ele emprega as palavras de maneira a “ampliar não só as possibilida- des semânticas da linguagem, como também sua dimensão visual” (HumpHreys, 2000:40), organizando a composição de uma maneira que se tornaria comum no design gráfico, como afirma Hollis (2000:36). Marinetti percebeu que as letras que compunham as palavras não eram apenas meros signos alfabéticos. Pesos e formatos diferentes, e não apenas sua posição na página, davam às pala- vras um caráter expressivo distinto. As palavras e letras podiam ser usadas quase como se fossem imagens visuais. Para obter o efeito desejado, Marinetti era obrigado a subverter também as limitações técnicas impostas pelo sistema de composição verso livre O uso da palavra como forma visual concreta é um legado da poesia trans- mitido primeiramente pelos futuristas ao design visual. Os poemas machado, asas de eros e ovo de Símias de Rodes (acima, à direita), calligramas de Guillaume Apollinaire (acima) e un coup de dés (um lance de dados) de Stéphane Mallarmé (à direita e abaixo), são responsáveis por inspirar a composição dinâmica de Marinetti, Ardengo Soffici e dos poetas futuristas, rompendo com as restrições lineares da composição com tipos móveis. 4544 tipográfica, que restringiam a disposição das palavras em ângulos oblíquos. A solução foi substituir os tipos metálicos por tipos de ma- deira, que podiam ser cortados e colados (ibdem:37). As experiências literárias de Marinetti significaram um desen- volvimento no projeto modernista de reconfigurar a criativi- dade, a consciência, a forma estética à luz da tecnologia e da ciência , as quais ele identificou como força motriz da experi- ência do século XX (HumpHreys, 2000:40). Embora Marinetti não possa ser considerado propriamente um de- signer, a aplicação de sua filosofia futurista à poesia, aproximando-a das artes visuais foi uma contribuição decisiva para a cultura do design gráfico, percebida na produção de Ardengo Soffici, Fortunato Depero, e Bruno Munari. Egresso da pintura, Soffici foi responsável por duas importantes publicações do futurismo, as revistas Lacerba e BIF & ZF + 18. A primeira, publicada em Florença de postura vanguardista radical era lida predominantemente por operários. Reunia artistas e escritores em torno do lema de Marinetti – palavras em liberdade – e seus ex- perimentos tipográficos “exploravam o campo onde nos trinta anos seguintes, seriam travadas as batalhas entre os vanguardistas e seus inimigos”. A segunda levava ao extremo a experiência de Mallar- mé: “mudanças súbitas de estilo e tamanho de tipo: algumas vezes letras grandes e geralmente sem serifa; outras, linhas de tamanho bemmenor – que eram quase um sussuro na página” (hollis, 2000:38), além de técnicas de composição e colagem que seriam assimiladas posteriormente pelos dadaístas Representantes de um futurismo tardio – que o historiador italiano Mario de Micheli (1991:211) delibera como resultado de um afasta- mento do dinamismo plástico em direção ao cubismo analítico e ao construtivismo, Depero e Munari ordenaram as subversões de Ma- rinetti e Soffici. Preocupado em “obter mais ordem sem no entanto perder a vitalidade”(bacelar, 1998:57). Depero definiu o design tipográfico italiano nas décadas seguintes, en- quanto sob a influência do funcionalismo alemão, através da absorção das doutrinas da nova tipografia, Munari introduziu o uso o espaço em branco para enfatizar o sentido das palavras no design futurista (Hollis, 2000:41). ardengo soffici Convictos em divulgar seus ideais, os futuristas se notabilizaram por produzir um grande número de publicações, exaltando a vida moderna por toda a Itália. Destinadas a um público formado por operários, Lacerba e BIF & ZF+18 exibem as experiências tipográficas de Soffici e as levavam a um público predominantemente operário, fazendo com que suas idéias não se limitassem apenas a poucos privilegiados. 4746 fortunato depero Capa e páginas internas do livro Depero futurista, que levava o culto a moder- nidade ao extremo ao ser impresso em folhas de flandres e encadernado com porcas e parafusos. O livro contém trabalhos de Depero que exploram o potencial das palavras como imagem, página oposta, acima. Ampliando a intenção de Marinetti em integrar a poesia com a linguagem cotidiana, Depero explorou a estéti- ca futurista na comunicação visual e projetos de embalagens e exposições da indústria ao realizar trabalhos para a empresa de bebidas Campari. 4948 tulio d’albissola bruno munari l’anguria lirica Lançado em 1933, e também impresso em folhas de flandres, o poema l’anguria lirica de Tulio d’Albissola com projeto gráfico de Bruno Munari, que assim como Depero, ordena a caótica experiencia futurista explorando fundamentos básicos de com- posição propostos pela nova tipografia. Participando ativamente do segundo futurismo, a partir de 1926, Munari aproxima-se de Marinetti e Enrico Pram- polini, que se empenhava em unir as a vanguarda italiana as demais vanguardas européias (tanchis, 1981:73). 5150 filippo marinetti bruno munari il poema del vestito di latte Para o projeto gráfico do poema de Marinetti de 1937, Munari faz uso as possibilidades técnicas proporcionadas pela sobreposição de cores no sistema de impressão, ao mesmo tempo que explora técnicas de comunicação baseadas em teorias da gestalt, como simetria, assi- metria, transparência, direção, conti- nuidade, etc. (dondis, 1991), criando planos dinâmicos, valorizados pelo integração entre texto e imagem. Ao contrário dos primeiros trabalhos do futurismo, as manchas de texto discre- vem formas predominantemente geo- métricas, sobrepostas sobre as imagens que funcionam como um cenário para o poema de Marinetti. 5352 campo grafico Publicada á partir de 1933, a revista do- cumenta o encontro do futurismo com o funcionalismo, caracteristico do design visual italiano do período. Permanecen- do como uma referência de progresso para os jovens designers, Marinetti e os futuristas são homenageados com uma edição especial em 1939 (hollis, 2001:41). 5554 A revista Lacerba foi responsável por Fortunato Depero (1892-1960) tro- car o realismo e simbolismo social pelo futurismo, em 1913, dedicando- -se então à projetos de cartazes, tipos e anúncios. Publicou em 1927 o livro Depero futurista, reunindo suas experiências tipográficas, anúncios, projetos de tapeçaria e outros trabalhos, sendo considerado o “percurs- sor do livros de artista, expressão criativa independente da instituição editorial” (meGGs, 2009:324). Segundo Hollis (2000:38), “seus designs eram facilmente reproduzidos em jornais por meio de clichês à traço, e em posters de cores uniformes por meio de litografia”. Ressalta ainda que, demonstrando o fascínio próprio dos futuristas por elementos da pro- dução industrial, Depero encadernou essa obra usando porcas e parafu- sos, além de imprimir três cópias do livro em folhas de flandres. Os projetos gráficos de Munari para o livro de L`Anguria Lírica de Túlio D`Albisola, e para o Il poema del vestito di latte de Marinetti figuram entre os mais representativos do emergente design gráfico italiano. Explorando eixos fundamentais da tipografia (passividade, ativividade, agressividade), Munari acrescentou uma dose de harmo- nia a estética explosiva do futurismo, ordenando sua vitalidade furor comunicacional (bacelar, 1998:56,57), como descreve Hollis (2000:41). Foi para um poema de Marinetti que Munari produziu um dos mais impressionantes trabalhos da fase inicial do design gráfico italiano. Esse poema foi Il poema del vestito di latte (o poema do terno de leite) escrito para promover o tecido sintético. Munari apresentou-o utilizando técnicas totalmente modernas: fotografias recortadas, impressas em preto, sobre- postas por texto impresso em cores, justificado para formar uma área quadrada. Esse trabalho pós-futurista retinha a con- fiança e energia introduzida por Marinetti mais de vinte anos antes, embora descartasse a sua anarquia tipográfica. O brilho e a disciplina das páginas de Munari refletem o novo tipo de design gráfico que surgia na Itália. Definindo-se como um movimento anti-arte, o dadaísmo se desenvol- ve inicialmente como movimento literário na Suíça, após a primeira guerra mundial. Resumiu o auge do ataque à arte representacional (bacelar, 1998:58), proclamando que a única arte possível era a não- -arte. Jan Tschichold (2007:193), principal articulador da nova tipo- grafia, definia o dadá como de “caráter destrutivo, conseqüência da falta de princípios de construção”, condição que atribuía à desilusão arte concreta na itália Em 1948, inspirados pelo concretismo que despontava na Suíça, Bruno Munari, Gillo Dorfles, Gianni Monnet e Atanasio Soldati, fundam em Milão o movi- mento de arte concreta. Defendiam o racionalismo e o rigor perceptivo, sendo responsáveis pela difusão da psicologia da gestalt na Itália. Pintura da série negativo-positivo de Munari, acima, e boletins publicados pelo movimento entre 1951 e 1953, à direita. 5756 do período pós- guerra, que segundo ele “permitiu a visão clara da confusão das formas”. Para os dadaístas, a poesia e a pintura tinham um papel a de- sempenhar nas mudanças sociais, e assim, consideravam a arte de salão como um brinquedo para os ricos e as elites. Essa arte era apelidada pejorativamente de burguesa e anti-humana. Pre- tendiam desestetizar a arte, deitando-a abaixo de seu pedestal de beleza, utilizando-a como bandeira de inquietação contra a cultura da comodidade (bacelar, 1998:58). Estruturado em torno dos poetas Hugo Ball, fundador do Cabaret Voltaire, ponto de encontro dos dadaístas em Zurique e Triztan Tzara, romeno que começou a editar o periódico dadá em 1917, dedicavam- -se a exploração da poesia sonora (meGGs, 2009:325). Davam conti- nuidade aos experimentos tipográficos dos futuristas, explorando o potencial comunicativo existente nas formas tipográficas, enxergando as letras como “formas visuais concretas, e não apenas como sím- bolos fonéticos”(bacelar, 1998:59). Contribuíram ainda para o design gráfico com o desenvolvimento das técnicas de fotomontagem (meGGs, 2009:329), notadamente na produção do poeta austríaco Raoul Haus- mann, da alemã Hannah Höch e do também alemão John Heartfield, ligados ao movimento dadá de Berlin. Heartfield