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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
RAFAEL MÁSCIA FERREIRA DA COSTA
O ESTADO DE EXCEÇÃO PELA LITERATURA CARCERÁRIA DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX 
FLORIANÓPOLIS – SC
2017
RAFAEL MÁSCIA FERREIRA DA COSTA
O ESTADO DE EXCEÇÃO PELA LITERATURA CARCERÁRIA DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX 
Monografia submetida ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Alexandre Morais da Rosa
FLORIANÓPOLIS – SC
2017
AGRADECIMENTOS
	Aos meus pais, Adriana e Bernardo, por incutirem em mim, desde a mais tenra idade, o hábito da leitura e o gosto pela literatura e por me apresentarem os diversos mundos que nela se encerram.
	Ao professor Alexandre Morais da Rosa, por acreditar no potencial desta monografia quando ela ainda era apenas uma ideia nebulosa sem rumo definido e pelo valoroso auxílio prestado ao longo do percurso para dar forma à este trabalho.
	Aos meus amigos jornalistas Elva Gladis e Luiz Fernando Menezes, pelas correções, sugestões e apoio nos últimos meses e por toda a amizade que já se estende desde setembro de 2012.
	Aos amigos do Direito UFSC, pela companhia diária nos últimos quatro anos e meio e pelos frequentes confrontos de ideias dentro e fora de sala de aula. 
	Aos amigos do 4º Ofício Criminal do MPF e da 25ª Procuradoria de Justiça do MPSC, pela oportunidade de aprendizado na prática e pelo companheirismo e paciência que comigo tiveram durante o período de estágio.
	Àqueles que me fizeram sair da zona de conforto e estagnação mental para buscar respostas para questões que sempre tomei como dadas.
	À todos que cruzaram seus caminhos com os meus, ao longo desta graduação.
	
DEDICATÓRIA
	Dedicado àqueles que vivenciaram o Estado de Exceção, à ele resistindo para registrar o que viram, em seu mais profundo núcleo. 
Dedicado também às almas dos que, pela barbárie e crueldade dos regimes de Exceção, pereceram antes de serem capazes de testemunhar o retorno à estágios mais dignos e civilizados de organização social. 
RESUMO
	Esta monografia tem por finalidade demonstrar que a relação entre Direito e Literatura não é algo superficial, utilizando o atípico fenômeno jurídico do Estado de Exceção como campo de estudo e, mais especificamente, os efeitos deste evento dentro das prisões. Através da Literatura, será observada a rotina, o funcionamento interno de uma prisão e de que forma o tratamento despendido aos encarcerados é reflexo da (ou é refletido na) parcela livre da sociedade. O trabalho apresentará uma forma alternativa de atestar a existência de um Estado de Exceção, destacando elementos típicos encontrados na Literatura carcerária produzida na primeira metade do século XX.
Palavras-chave: Estado de Exceção; Literatura; Direito; Prisão. 
RESÚMEN
Esta monografía intentará probar que la relacción entre Derecho y Literactura no es algo superficial, lanzando mano del atípico fenomeno jurídico del Estado de Excepción como campo de estudio y, más especificamente, los efectos deste evento adentro del cárcere. A través de la Literactura, será mirada la rutina, el funcionamento interno de una prisión e de que manera el tractamento dedicado a los encarcerados es reflejo de la (o es refletido en la) sección libre de la sociedad. El trabajo presentará una forma alternativa de atestar la existencia de un Estado de Excepción, destacando elementos comunes encontrados en la Literactura carcerária producida en la primera mitad del siglo XX.
Palabras-clave: Estado de Excepción; Literactura; Derecho; Prisión.
SUMÁRIO	
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
 A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E LITERATURA...................................................10
 1.1 Breve Histórico da Literatura e do Direito.............................................................14
 1.2 Distopia e Estado de Exceção................................................................................18
1.3 Prisão e Literatura...................................................................................................23
A TEORIA DO ESTADO DE EXCEÇÃO.....................................................................25
Decisão e Estado de Exceção..................................................................................28 
Crise do Estado de Exceção....................................................................................32
 Soberano e Estado de Exceção...............................................................................38
 A REALIDADE DO ESTADO DE EXCEÇÃO............................................................40
WAR IS PEACE - Crise contínua...........................................................................42
 IGNORANCE IS STRENGTH - alienação da população e achatamento intelectual
.......................................................................................................................................46
3.3 FREEDOM IS SLAVERY - prisão é necessária.....................................................49
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................53
5.0 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS	………………………………………………....55
Historia vitae magistra est- 
Cícero
Introdução 
A singularidade do Estado de Exceção desperta profundo interesse porque a ideia de ser regido por uma falha no ordenamento comum gera, no jurista investigativo, uma fagulha de dúvida. 
O ponto fora da curva, o caso não previsto, a situação anômala, todas são expressões variáveis passíveis de designar o Estado de Exceção, que se manifestou com clareza recentemente e na primeira metade do século XX.
O fascínio pela exceção advém da sua imprecisão. Quando começa, onde termina, quais são seus limites de atuação e quem é capaz de enquadrá-lo numa definição clara, são perguntas que admitem inúmeras respostas, dependendo da pessoa para qual a pergunta é dirigida. 
	Assim como o Estado de Exceção, a Literatura tem um caráter plural porque gera possibilidades e incertezas. Apesar de claramente descrito, com tempo e espaço delimitados pelo autor, a Literatura deixa a última palavra ao gosto do leitor, às vivências que ele carrega e ao seu estado emocional no momento em que lê, da mesma forma que a interpretação da lei, em última instância, não é dada pelo legislador, mas por aqueles que a aplicam. Há uma carga de subjetividade pessoal muito grande, nos dois campos.
Como ilustração para a afirmação, menciono Dom Casmurro e a eterna dúvida: Capitu teria traído ou não Bentinho? Dependendo da resposta, a caracterização dos personagens da trama muda radicalmente. [0: LIMA, Carla Sales Serra de; CHAVES, Glenda Rose Gonçalves. Dom Casmurro de Machado de Assis: Uma interface entre Direito e Literatura. Revista Ética e Filosofia Política, Belo Horizonte, v. 2,n.14,p.151163,out.2011.Disponível,em:<http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/files/2011/10/14_2_lima_chaves_10.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 as 15:00 horas.]
Se traiu, Bento Santiago é um homem perspicaz, que soube enxergar na esposa e no filho os sinais da infidelidade, além de fazer de Escobar o pior dos amigos. 
Se Capitu foi fiel, Bentinho não é nada mais que um perturbado e inseguro, que cria fantasmas para não encarar a mulher forte com quem casou, além de sentir complexo de inferioridade perante seu amigo falecido.
Assim como Machado de Assis em Dom Casmurro, o Estado de Exceção tira muita vantagem de sua ambivalência. A intriga faz com que o interesse na questão nunca morra, pois não há resposta definitiva. O autor de uma obradesse porte pode ser comparado ao próprio tirano, por saber jogar com com as inúmeras interpretações disponíveis para suas atitudes e suas ideias expostas. 
A área cinzenta na qual o Estado de Exceção está inserido permite que a sua efetiva declaração seja postergada ou adiantada, conforme a necessidade e a conveniência do ato, por aqueles que detém o poder na palavra e no instante em questão. 
Por uma questão de estratégia de manutenção de poder, o soberano pode adiar a declaração do estado de sítio, de forma que a legitimação das suas decisões se apoie na mera legalidade por mais tempo, ou, pode declarar a suspensão do ordenamento ordinário prematuramente, arvorando-se em posição privilegiada, acima da legalidade ao anunciar o início do Estado de Exceção.  
Para o presente trabalho, ficou claro que o tema de estudo deveria ser bem delimitado, uma vez que o Estado de Exceção possui diversas facetas e um único texto não daria conta de abarcá-las. 
Dito isso, a ferramenta delimitadora será a Literatura, cuja relação com o Direito e a necessidade de ser reconhecida como imprescindível no estudo jurídico será apresentada no capítulo 1.
O capítulo 2 será norteado pela explanação do Estado de Exceção proposto por Carl Schmitt, com comentários de Donoso Cortés, Francisco Campos, Hannah Arendt e Giorgio Agamben. Nessa fração, serão discutidas as noções gerais da teoria, a crise que precede a instauração do regime de exceção e a conseguinte ascensão da figura do soberano. 
No terceiro e último capítulo serão expostos os recortes históricos e geográficos que serão analisados, a saber, a Rússia soviética da era stalinista, de 1927 a 1953, o Terceiro Reich alemão, de 1933 a 1945, e as vésperas do Estado Novo Getulista, pré-Constituição de 1937. 
Os autores selecionados são Varlam Chalámov, vítima do regime comunista, preso por 17 anos em diversos gulags na região de Kolimá, leste da Rússia, onde escreveu a obra “Contos de Kolimá”. Como representante do Estado de Exceção nazista, será utilizado o conhecido livro “É isto um homem? ” de Primo Levi, relatando a experiência em Auschwitz. Em terras nacionais, a obra estudada será “Memórias do Cárcere”, do alagoano Graciliano Ramos, preso sem processo ou julgamento de março de 1936 a março de 1937, em diversas prisões no país, sob a acusação genérica de “atividades comunistas”.
O que ocorre dentro da prisão reflete bem o que pode passar fora dela, se características específicas forem transplantadas para a sociedade livre. Nesta esteira, o trabalho tentará identificar, através da Literatura, quais seriam esses padrões e sua ligação com o Estado de Exceção.    
Mais do que a natureza dos prisioneiros, o trabalho visa identificar a motivação do soberano em um Estado de Exceção em encarcerar e a profunda ligação deste ato com a construção de uma ditadura. Visa também investigar o que foi relatado da experiência dentro do cárcere, de acordo com os autores selecionados e os pontos de encontro nas condições carcerárias em três países tão distintos e distantes um dos outros.
A primeira metade do século XX foi bastante pródiga em criar “sociedades extremas”, tão surreais que talvez os relatos que dela nasceram se pareçam mais com uma ficção distópica do que com memórias, ou, com outro estilo literário. Essas sociedades, felizmente, também criaram os escritores dispostos a relatar o que viram, independentemente de onde estivessem e de suas condições. 
Em todos os casos, em maior ou menor grau, a descrição do ambiente penitenciário diz muito sobre o que está além dos muros da prisão. Aqueles que foram excluídos do convívio social, condenados ao ostracismo e relataram a experiência, são os que viram mais de perto as entranhas de um Estado de Exceção. 
Tudo isso em vista, esta pequena obra não possui a intenção de exaurir o assunto e dar uma sentença irrecorrível sobre o tema. Trata-se apenas de mais um trabalho, que procura oferecer (mais) uma visão alternativa do Estado de Exceção, unindo o Direito racional e de letra fria, com a Literatura que é emoção, palavra viva e em movimento.
1.0 AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E LITERATURA 
You don't have to burn books to destroy a culture. Just get people to stop reading them.
- Ray Bradbury
Direito e Literatura podem convergir em numerosos pontos, ao contrário do que possa parecer à primeira vista. Dois campos a priori desconectados, unidos apenas por possuírem na escrita, a concretização de suas capacidades possíveis. Ainda assim, como se verá, a relação entre os dois universos não é tão superficial quanto inicialmente pode-se crer.
As interações que mais facilmente podem ocorrer ao jurista comum são: a proteção da obra do autor, os direitos de propriedade intelectual, os direitos de tradução e outros que singram as veredas do direito empresarial. A estas relações dar-se-á o nome de Direito da Literatura. A liberdade de expressão, direito constitucional básico, também se encaixa aqui. [1: MOREIRA, Elana Gomes Santos; NOGUEIRA, Bernardo Gomes Barbosa. Direito e Literatura: A importância da Literatura no Direito. 2014. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/letrasjuridicas/?p=281>. Acesso em: 20 out. 2017 as 15:00 horas.]
A relação entre os dois campos abrange uma miríade de outros entrepostos, menos conhecidos, ou talvez, apenas não muito usuais, dos quais seriam citadas “direito como literatura” e o “direito na literatura”.
Pelo primeiro, entende-se o uso da literatura dentro do direito, dentro das peças processuais, em manifestações, petições e sentenças, seja com citações, analogias ou referências às obras que possuam alguma característica em comum com o caso analisado pelo juízo, ou apresentado pelas partes. [2: Ibdem. Acesso em: 20 out. 2017 as 15:00 horas.]
É a integração da literatura como um argumento, uma ferramenta para ilustrar o raciocínio lógico utilizado dentro de uma tese. Esta intersecção, não obstante, está restrita aos tribunais e aos operadores do Direito, não abrangendo a população, além dos envolvidos no litígio. 
Pelo segundo ponto de convergência e aquele que será mais conveniente para este trabalho, compreende-se a relação entre as duas esferas de maneira que o Direito atue como um pano de fundo para o desenrolar do fio narrativo, ou participando da história, ativamente, como um personagem caricato de um juiz, um governante corrupto ou o próprio Estado e sua relação com os cidadãos, como em 1984 de George Orwell.. Trata-se da novelização do universo jurídico.
Ao contrário do ponto anterior, este é compreensível para qualquer alfabetizado, porquanto a noção de direito está presente no imaginário coletivo, e a forma textual desta intersecção apresenta-se na forma de livros, e não de peças processuais, que dificilmente interessarão outros que não os envolvidos na questão, partes ou magistrados.[3: MOREIRA, Elana Gomes Santos; NOGUEIRA, Bernardo Gomes Barbosa. Direito e Literatura: A importância da Literatura no Direito. 2014. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/letrasjuridicas/?p=281>. Acesso em: 20 out. 2017 as 10:00 horas.]
O descaso com a relação, no entanto, tem explicações. O ensino do Direito, atualmente, parece olvidar-se por completo na impossibilidade de comprimir todas as situações fático-jurídicas dentro de um código. O estudo por casos-problemas, sugerido por José Calvo González vem bastante a calhar com a insipiência das aulas modernas, desvinculadas da realidade por não fazerem contato com outros campos do saber, mais próximos do mundo concreto.[4: GONZÁLEZ, José Calvo. Derecho y Literatura, ad Usum Scholaris Juventutis (con relato implícito). Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, [s.l.], v. 34, n. 66, p.15-45, 22 jul. 2013. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2013v34n66p15.]
Em grande parte, isso se deve ao positivismo jurídico, que na sua hercúlea tarefa de separar Direito e Ciência do Direito, afastou-o da sua essência humana, tornando-o um estudo árido e comprimido entre leis frias de um lado,fetiches e crenças de outro, disciplinando anonimamente a produção social da subjetividade dos operadores da lei e, portanto, viciado nas mesmas possibilidades interpretativas. [5: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Apresentação. Anais III CIDIL: Crime, Processo e (in) Justiça, PassoFundo,v.3,n.1,p.1-4,jul.2015.Disponívelem: <http://seer.rdl.org.br/index.php/anacidil/article/view/198/269>. Acesso em: 10 nov. 2017 as 20:00 horas.]
Tal medida, ainda que tomada de boa-fé, racionalizou algo que não pode ser desvinculado de sua matriz. O Direito positivo perdeu então seu viés sensível e humano, características estas não compatíveis com a fórmula na qual Kelsen tentou encaixar as normas e a sua aplicação. Como consequência disso, o interesse acadêmico pela interação Direito/Literatura acaba esquecido.
A área de alcance da Literatura é muito superior à do Direito, no que toca à reflexão. Por conta disso adquiriu o Direito a aridez que hoje lhe é típica, encerrando-se em gabinetes e negando-se a fazer-se acessível e compreensível para a grande maioria da população. Neste sentido, muito pertinente a fala de Paulo Tadeu Gomes da Silva:[6: SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Direito e Literatura: Os elementos que constituem a relação entre os dois. 2015. Disponível em: <https://jota.info/artigos/direito-e-literatura-15062015>. Acesso em: 15 out. 2017 AS 13:00 horas.]
E é nesse quadro de maior liberdade que pode surgir a simpatia de que falava Mann; já compreender o direito demanda uma certa dose de estudo sistemático de normas, o que, em geral, causa mais sofrimento que prazer, o que, trocando em miúdos, significa dizer que é difícil ser um esteta no direito.[7: Ibdem, 2015]
O Direito, como ensinado hoje, é um sistema hermético, afastado da realidade, ao contrário da Literatura, que tem na própria realidade o seu material de trabalho. 
Estudar Direito, atualmente, envolve esquecer por breves momentos que aquilo será aplicado às pessoas reais, com vidas complexas e que serão duramente afetadas de acordo com o deslinde do litígio.
A vantagem da Literatura é resumida nas palavras de Alexandre Morais da Rosa, ao afirmar que “a literatura pode ampliar percursos mentais – pode agregar mais teorias, mais suspeitas, mais perguntas a respeito da realidade –, todas elas nos vão tornando mais passíveis de alteridade.” Como forma artística, a escrita literária está profundamente ancorada em emoções.[8: ROSA, Alexandre Morais da; BECKER, Fernanda. Impressões sobre Direito e Literatura. 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/impressoes-sobre-direito-e-literatura>. Acesso em: 17 out. 2017.]
Antonio Candido é categórico ao afirmar que a negação da literatura é a mutilação de nossa humanidade. Portanto, o Direito, como atividade intrinsecamente unida ao gênero humano, não pode se dar ao luxo de dar as costas a este campo. [9: CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. 1995. Disponível em: <http://www.revistaprosaversoearte.com/antonio-candido-o-direito-literatura/>. Acesso em: 13 out. 2017.]
O trabalho pretende recuperar a importância da relação Direito na Literatura, na intenção de reverter o quadro explicitado. Ao celebrar esta relação, seria possível no futuro conduzir explorações mais aprofundadas no assunto, com a intenção de revitalizar este campo de intersecção. A oxigenação que necessita o poder judiciário passa pela humanidade que a Literatura exala, ao tratar os dramas e dilemas da existência de maneira mais próxima e real. A Literatura não apenas descreve a vida de personagens. Ela constrói, ao redor e para eles, problemas e soluções muito similares aos que o Direito enfrenta, diuturnamente.
A Literatura faz conexões que o Direito não alcança. Ela desenvolve empatia no leitor enquanto torna-o compreensivo e aberto para a natureza, a sociedade e aos seus semelhantes, servindo como uma luva como ferramenta aperfeiçoadora aos operadores do Direito. [10: Ibdem. Acessado em: 13 out. 2017 as 17:00 horas.]
1.1 Breve Histórico da Literatura e do Direito 
	O marco que separa a pré-história da história propriamente dita é a invenção da escrita. O poder de registrar eventos deu um novo significado à existência humana, antes limitada às tradições orais e meros desenhos pictográficos. A escrita amplificou de maneira estrondosa a influência de um único ser humano nos anos seguintes, perpetuando seus pensamentos e criações para além da sua morte. [11: SHOTWELL, James Thomson. An Introduction to the History of History: Records of civilization, sources and studies. New York: Columbia University Press, 1922. Disponível em <https://archive.org/details/anintroductiont00shotgoog>. Acesso em: 27 out. 2017 as 12:00 horas.]
Antes da escrita, o conhecimento que não havia sido passado adiante de alguma forma perdia-se com o falecimento daquele que o detinha. Isso prevenia grandes saltos no desenvolvimento das atividades mais básicas do homem, incluindo métodos para sua própria subsistência. 
	Com a escrita, os erros cometidos podiam ser registrados, de modo que, mesmo que o indivíduo em questão não alcançasse a forma ideal de arar a terra, por exemplo, suas tentativas possuíam registro, dando uma direção mínima aos interessados em seguir com a pesquisa primitiva. Os sucessores puderam então aproveitar-se do trabalho de seus predecessores, até atingirem grandes feitos. Isaac Newton rendeu honras aos pesquisadores anteriores a si quando registrou que se havia enxergado mais longe era porque havia apoiado-se sobre os ombros de gigantes.[12: NEWTON, Isaac. Carta a Robert Hooke, 15 fev. 1676. Disponível em: < http://hti.osu.edu/sites/hti.osu.edu/files/newton_quotations.pdf>. Acesso em: 04 nov 2017.]
Inegável, portanto, a dívida que há hoje aos criadores desta forma de registro.
	H.G. Wells, ao se referir à escrita, afirma que ela
[…] put agreements, laws, commandments on record. It made the growth of states larger than the old city-states possible. It made a continuous historical consciousness possible. The command of the priest or king and his seal could go far beyond his sight and voice and could survive his death.[13: WELLS, H. G. A Short History of the World. P. 80. New York: The Macmillan Company, 1922. Disponível em: <https://archive.org/stream/shorthistoryofwo00welluoft#page/n7/mode/2up>. Acesso em: 27 out. 2017 as 16:00 horas.]
[Registrou acordos, leis e mandamentos. Fez o crescimento dos Estados maior do que aquele que permitiam as antigas cidades-estado. Fez com que fosse possível a existência de uma consciência histórica contínua. O mandamento de um padre ou rei e sua marca poderia ir muito além da sua visão e de sua voz e poderia sobreviver à sua morte][14: Tradução do autor]
A continuidade de ideias para além do túmulo passou a ser possível com a invenção da escrita. Daí em diante, o desenvolvimento social e industrial caminhou a passos largos.
Com a escrita, as leis básicas das comunidades primitivas foram registradas, a fim de organizar a sociedade e garantir que seriam, de alguma forma, minimamente observadas e aplicadas. [15: FABER,MarcosEmílioEkman. Aescritaeasleis. Disponívelem:<http://www.historialivre.com/antiga/escrita_leis.htm>. Acesso em: 27 out. 2017 as 21:00 horas.]
O registro de histórias nasce também com a invenção da escrita. Contar histórias faz parte da natureza humana, como ferramenta de união com seus semelhantes. Antes de natureza oral, passaram para o papel com facilidade, pois era do interesse comum que a cultura de um povo fosse preservada.[16: FLACH, Alessandra Bittencourt. Vozes da memória: o contador de histórias em narrativas orais urbanas. 2013. 162 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/88415>. Acesso em: 27 out. 2017 as 20:00 horas.]
Tem-se, portanto, que tanto o Direito quanto a Literatura são filhos do mesmo fenômeno, a criação da escrita. Seu uso no mundo, no entanto, divergedesde a sua gênese.
O Direito serve para regular a sociedade, prevendo os limites de atuação dos diferentes entes que fazem parte da organização de um Estado soberano. Serve para intermediar as relações entre as pessoas, nos âmbitos comerciais, civis, familiares. Serve para corrigir, punir e emendar os que agem contra as regras de conduta, numa tentativa de reintegra-los ao convívio social. Serve para ordenar, reger, dar harmonia a um povo. Serve, portanto, para praticamente tudo. Sem ele, não alcançaríamos graus mais elevados de civilização.[17: ORTES, Wanessa Mota Freitas. Sociedade, direito e controle social. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8675>. Acesso em: 18 out. 2017.]
A literatura, sendo arte, não serve para muita coisa. All art is useless.. [Toda arte é inútil]. Não é útil, no entendimento comum da palavra, porque não se produz nada com ela. [18: WILDE, Oscar. The Picture of Dorian Gray. p. 04. Oxford: Oxford University Press, 2008.][19: Tradução do autor.]
	Como poderia ser então, que, um elemento tão magnificente, completo, presente no dia a dia de todo cidadão republicano, de todo súdito sob um monarca, como o Direito, necessitar, dever alguma coisa a algo tão insignificante, tão pequeno, como a Literatura?
A Literatura é a representação da realidade em forma de papel. Graças a sensibilidade dos autores, foi possível a criação de um extenso arcabouço de situações e sentimentos que todos os mortais, cedo ou tarde, experimentaremos em alguma medida. [20: ROLIM, Anderson Teixeira; SANFELICI, Aline de Mello. A LITERATURA NA PERSPECTIVA DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 26, n. 3, p.246-264, 22 dez. 2015. Departamento de Educação FCT/Unesp. Disponível em: <http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/3681>. Acesso em: 25 out. 2017 as 17:00 horas.]
Ao mesmo tempo, dado este caráter finito que tem a vida humana, ninguém será capaz de experimentar todos os sentimentos descritos em todas as obras escritas. Entretanto, ter este sentimento já registrado, compreendido e observado por um escritor cria um elo entre o leitor e o autor.
Seguindo com a contraposição, mais uma vez as palavras de Paulo Gomes: 
Nesse exercício de comparação, Coutinho de Abreu argumenta que a literatura se distingue do direito ao tratar pelo menos de três instituições: a pessoas, a sociedade e o mundo físico, sendo que a literatura tem uma capacidade muito maior que o direito para descrever esses entes. A distinção se assenta sobre a própria ficcionalidade que perpassa pela literatura, e não pelo direito. O que pode, na literatura, ser considerado obra de um gênio, no direito pode ser uma mentira, que, no limite, pode ser crime, v.g., perjúrio.[21: ABREU, Coutinho de, apud SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Direito e Literatura: Os elementos que constituem a relação entre os dois. 2015. Disponível em: <https://jota.info/artigos/direito-e-literatura-15062015>. Acesso em: 15 out. 2017 as 22:00 horas.]
O campo passível de ser atingido pela Literatura é, claramente, muito mais extenso do que o abrangido pelo Direito. Como bem salientou o autor, a Literatura não está constrangida pela realidade, não está presa ao mundo concreto e é, aliás, aplaudida quando abandona as limitações do mundo físico e extrapola para mundos paralelos, criados na mente do autor. 
O Direito, por outro lado, não possui essa liberdade. Adstrito aos autos e à técnica, corre verdadeiro risco se toma a iniciativa de inventar fatos e preencher os vazios processuais com saltos de interpretação fora da realidade concreta.
Essa diferença faz sugerir que é mais provável encontrar Direito em textos literários do que Literatura em peças jurídicas. A Literatura contém o Direito como uma de suas áreas de atuação. 
Seguindo o pensamento de André Karam Trindade, não se deve esquecer o carácter disruptor da obra literária que, ao contrário das obras jurídicas, é arte e caracteriza-se pelo enigma, pela suspensão de evidências, dissolver certezas e romper convenções.[22: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Apresentação. Anais III CIDIL: Crime, Processo e (in) Justiça, PassoFundo,v.3,n.1,p.14,jul.2015.Disponívelem:<http://seer.rdl.org.br/index.php/anacidil/article/view/198/269>. Acesso em: 10 nov. 2017.]
Em linhas similares, Luis Cancellier de Olivo, em um de seus artigos ao citar Arnaldo Godoy, leciona:
[...] Godoy sustenta que a Literatura pode fornecer tanto informações quanto subsídios para que o meio social, onde o Direito se desenvolve, seja compreendido pois “ao exprimir uma visão de mundo, a Literatura traduz o que a sociedade e seu tempo pensam sobre o Direito”[23: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes, apud OLIVO, Luis Carlos Cancellier de. O estudo do direito através daliteratura. Tubarão:EditorialStudium,2005.Disponívelem:<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/99642/livro_o_estudo_do_direito.pdf?sequence=1>. Acesso em: 17 set. 2017 as 15:00 horas.]
	A Literatura, então, além de todos os aspectos humanos que contém em si, é também a apresentação do que um determinado recorte histórico pensa sobre suas normas e seus governantes. 
Deduz-se, portanto, que a Literatura está também presente no dia a dia dos homens. Presente não como um regulamento, como o Direito, mas como um grande registro de emoções, dilemas morais, ocasiões, encontros e situações praticamente infinitas, todas já previstas. 
É a Literatura, desse modo, tão completa quanto (ou mais completa que) o Direito positivo, que pretende cobrir todas os possíveis crimes, todos os possíveis litígios, falhas de processo e formas de interpretação da realidade. Coincidentemente, nesse ponto a função dos dois elementos se encontra. Ambos buscam conter em si todos os possíveis fatos passíveis de acontecer durante uma vida ordinária. 
Dito isso, não é de se espantar que o divórcio entre as duas áreas em muito prejudicou o Direito. Sem um elemento que conectasse os aspirantes a bacharéis de Direito com a realidade, estes viram-se órfãos, incapazes de sensibilizar-se com as consequências das teses levantadas pela acusação e pela defesa, bem como das decisões derradeiras tomadas pelos juízes. 
Vera Karam, em entrevista, argumenta que “o aplicador do direito é constantemente demandado a dar respostas a conflitos concretos e diversos, e a literatura justamente abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico, porque é mais sensível às especificidades do humano.” Sem o auxílio da Literatura, a aplicação do Direito torna-se metódica e hermética, quase automatizada.[24: BARAN, Katna. Onde o direito e a literatura se encontram. Gazeta do Povo. Curitiba. 21 mar. 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/onde-o-direito-e-a-literatura-se-encontram-b2yn714yocf2hz62cladr6p1q>. Acesso em: 16 set. 2017 as 18:00 horas.]
	Buscar o reencontro entre os dois campos passa então a ser fundamental. Enquanto houver esta recusa do Direito a reconhecer a sua origem comum com a Literatura e com ela dialogar, não haverá saída para a crise na qual o Direito se encontra. Nas palavras de Luana da Silva Seeger e Edenise Andrade, 
A Literatura, assim como o Direito, é sobre a vida. Ao ler uma obra, o leitor dialoga com o texto; identifica-se no texto, sente o que a personagem sente, se depara com as possibilidades. Porque assim como “a vida renasce das artes” (WARAT, 1985) a Jurisdição pode renascer.[25: WARAT, Luis Alberto apud SEEGER, Luana da Silva; ANDRADE, Edenise. A Relação entre Direito e Literatura e suas contribuições para a superação da crise do ensino jurídico e refundação da jurisdição. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 13. 2016, Santa Cruz do Sul: 2016. p. 1 - 14. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15841>. Acesso em: 30 out. 2017 as 15:00 horas.]
Em poucas palavras, a Literaturaé uma ferramenta crucial dentro do ensino do Direito, por apresentar de forma lúdica casos e soluções que atravessaram anos de história, dentro da sua aplicação, seja apresentando soluções inusitadas ou criando problemas morais e éticos com os quais todo ser humano já se deparou, e na sua própria definição, por sua intrínseca ligação com o drama humano, ao lado do Direito.
1.2 Distopia e Estado de Exceção
	
	O Direito, de sua parte, está preso aos fatos. Qualquer tese, defensiva ou acusatória, deve ater-se à verdade presente, possuindo pouco espaço para invenções demasiadamente criativas, que extrapolem o sensato e o racional.
	A ficção, ao contrário, pode ter como cenário de sua história um espaço e tempo distintos da realidade. Como já dito antes, o que é transmitido ao papel não precisa necessariamente corresponder à verdade, nem ao menos uma versão de fatos.
	Muito conveniente aqui o raciocínio de Trindade:
[...] a obra de arte – no caso, a narrativa literária – testemunha que o real não é senão uma modalidade do possível, ou seja, se, antes, dizia-se que a obra de arte dá forma ao possível; agora, percebe-se que esse possível constitui justamente a condição de possibilidade do real que surgiu em seu acontecimento singular.[26: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Apresentação. Anais III CIDIL: Crime, Processo e (in) Justiça, Passo Fundo, v. 3, n. 1, p.1-4, jul. 2015. Disponível em: <http://seer.rdl.org.br/index.php/anacidil/article/view/198/269>. Acesso em: 10 nov. 2017 as 19:00 horas.]
Graças a essa liberdade de refletir uma dentre muitas modalidades do possível, a Literatura pode atravessar eras no passado ou projetar-se num futuro distante. Por não estar presa às amarras da realidade, ela se permite divagar e criar possibilidades infinitas.
Every dystopia is a history of the future. [Toda distopia é uma história do futuro]. No entanto, elas representam, ao contrário das utopias, um futuro pessimista, no qual algum elemento do presente como tecnologia, informação ou concentração de poder tomou proporções anormais e afetou de sobremaneira toda a organização social.[27: LEPORE, Jill. A Golden Age for Dystopian Fiction: What to make of our new literature of radical pessimism. The New Yorker. New York, jun. 2017. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction>. Acesso em: 13 out. 2017 as 14:00 horas.][28: Tradução do autor]
Nota-se aqui outro ponto convergente entre os dois campos. O Estado, criação típica do Direito, transforma-se num assunto de primeiro plano dentro de uma obra literária. 
Títulos incontornáveis de distopias incluiriam “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, “Nós”, de Yevgeny Zamiátin e “1984”, clássico de George Orwell que servirá de base para o capítulo 3. São nomes conhecidos, que representam com maior vigor o estilo de um futuro pessimista, no qual o Estado assumiu proporções tão vultuosas que passou ele próprio a ser personagem dentro da obra, algo tangível e interessante o suficiente para ser digno de descrição. 
Sobre a origem do termo, tem-se que
The word “dystopia,” meaning “an unhappy country,” was coined in the seventeen-forties, as the historian Gregory Claeys points out in a shrewd new study, “Dystopia: A Natural History” (Oxford). In its modern definition, a dystopia can be apocalyptic, or post-apocalyptic, or neither, but it has to be anti-utopian, a utopia turned upside down, a world in which people tried to build a republic of perfection only to find that they had created a republic of misery.[29: LEPORE, Jill. A Golden Age for Dystopian Fiction: What to make of our new literature of radical pessimism. The New Yorker. New York, jun. 2017. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction>. Acesso em: 13 out. 2017 as 15:00 horas.]
[A palavra “dystopia” com o significado de “um país infeliz” foi forjada nos anos de 1740, como aponta o historiador Gregory Claeys no perspicaz novo estudo, “Distopia: Uma História Natural” (Oxford). Na sua definição moderna, uma distopia pode ser apocalíptica ou pós-apocalíptica ou nenhuma das duas, mas deve necessariamente ser anti-utópica, uma utopia virada ao avesso, um mundo no qual as pessoas tentaram construir uma república de perfeição apenas para descobrir que criaram uma república de miséria][30: Tradução do autor]
O objetivo de uma distopia é observar a moral e a política. Ela pode não fazer referência a um futuro, o qual não vê claramente, mas produz impressões agudas, e talvez desesperadoras, sobre o presente. A Literatura distópica analisa o presente com a intenção de prever o futuro, para evitar que a “república de miséria” se torne uma realidade.[31: DALRYMPLE, Theodore. The Dystopian Imagination. City Journal. New York, p. 18-26. Maio 2001. Disponível em: <https://www.city-journal.org/html/dystopian-imagination-12204.html>. Acesso em: 28 out. 2017 as 23:00 horas.]
A intenção do escritor distópico é apontar, no presente, ocasiões e aspectos que, apesar de aparentemente positivos e benéficos para a sociedade como um todo e potencialmente úteis na construção da utopia, são na verdade danosos e, ironicamente, serão a razão de ruína do corpo social em questão. Theodore Dalrymple simplifica com poucas palavras: 
The dystopians look to the future not with the optimism of those who believe that man's increasing mastery of nature will bring greater happiness but with the pessimism of those who believe that the more man controls nature, the less he controls himself. The benefits of technological advance will be as nothing, they say, by comparison with the evil ends to which man will put it. [32: Ibdem. Acessado em 28 out. 2017 as 21:00 horas.]
[Os distópicos olham o futuro não com o otimismo daqueles que acreditam que o controle humano da natureza trará maior felicidade, mas com o pessimismo daqueles que acreditam que quanto mais o homem controlar a natureza, menos ele controla a si próprio. Os benefícios dos avanços tecnológicos não serão nada, dizem eles, se compararmos com as finalidades perversas às quais os homens aplicarão tais avanços.][33: Tradução do autor]
Ciente de que este tópico será mais bem explorado no próximo capítulo, é crucial introduzir aqui a noção de que um Estado de Exceção parte de um momento de instabilidade política e social, durante o qual uma figura, com poderes de soberania, assume o poder e se propõe a retirar a nação do momento delicado, incutindo na população a ideia de um futuro utópico, porém tangível.
Ao assumir o governo, o soberano do Estado de Exceção tem em suas mãos a responsabilidade de retirar o país de uma situação de crise e fazê-lo retornar a normalidade. No entanto, ao pretender utilizar do instante de instabilidade para buscar a utopia terrestre, o Estado de Exceção começa a dar sinais de fracasso.
Os regimes nazistas e soviéticos buscavam criar a “república de perfeição” citada por Lepore, e por isso fracassaram. São fatos conhecidos as intenções de Hitler ao exaltar o arianismo e tentar “purificar” a raça alemã através do banimento e exclusão dos que não se encaixassem nos padrões estabelecidos. Stálin, com motivações semelhantes, procurava abrir caminho ao “novo homem”, criado dentro dos modelos soviéticos, no fito de estabelecer dentro dos limites nacionais o paraíso terrestre.
Ambos governantes se aproveitaram de um momento de fragilidade nacional. A Alemanha destruída e humilhada após a Primeira Guerra Mundial e a União Soviética ainda sofrendo convulsões sociais pós-revolução de 1917 foram terrenos férteis para que os soberanos idealizassem uma nação. Para atingi-la, era fundamental que o sonho utópico fosse disseminado na população. No entanto, uma vez que utopias são incorporadas em ideologias, elas tornam-se perigosas e possivelmente mortais.[34: Once utopias are embodied in ideologies, they become dangerous and even deadly. [Tradução do autor]][35: HAMMER, Espen. A Utopia fora Dystopian Age. The New York Times. New York. 26 jun. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/06/26/opinion/a-utopia-for-a-dystopian-age.html>. Acesso em: 28 out. 2017 as 21:00 horas.]
A união entre ideologia e utopia estabelece uma meta de sociedade que, para ser alcançada, deve seguir um curso que não pode ser interrompido sob nenhuma hipótese. Com o fim utópico estipulado, todos os meios para alcançá-lo são válidos.
E quem se negaria a contribuir para a reconstrução do olimpo terrestre? Sob a batuta do soberano, uma nação suporta o Estado de Exceção na expectativa de que, quando este terminar, graças aos seus próprios esforços e à competência do governante, o país viverá a prosperidade.
 Não obstante, a utopia is a planned society; planned societies are often disastrous; that’s why utopias contain their own dystopias.[Uma utopia é uma sociedade planejada; sociedades planejadas são geralmente desastrosas; é por isso que utopias contém suas próprias distopias.] O planejamento da sociedade ideal, quando fracassa, cai em distopia.[36: LEPORE, Jill. A Golden Age for Dystopian Fiction: What to make of our new literature of radical pessimism. The New Yorker. New York, jun. 2017. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction>. Acesso em: 13 out. 2017 as 22:00 horas.][37: Tradução do autor]
A busca pela utopia, por meio do Estado de Exceção, resultou desastrosa, pelo que mostra a história e que será mais bem fundamentado no capítulo 3. Os Estados que estabeleceram como meta a renovação da nação caíram em desgraça, aproximando-se, no seu auge, muito mais de distopias do que do seu objetivo inicial.
As semelhanças entre o Estado de Exceção e as distopias não são, portanto, meras coincidências. A literatura de George Orwell e Aldous Huxley reflete bem o momento histórico em que viviam, sendo 1984 publicado em 1949 e Admirável Mundo novo em 1932. A produção distópica da primeira metade do século XX sofreu forte influência dos regimes totalitários de proliferaram naquele período.
Como bem salienta Lepore, after the war, after the death camps, after the bomb, dystopian fiction thrived, like a weed that favors shade. [Depois da guerra, depois dos campos de extermínio, depois da bomba, a ficção distópica prosperou, como uma erva que prefere a sombra.] A literatura teve aqui outra utilidade: a de alertar aos perigos de idealizar uma sociedade, com base nas experiências fracassadas dos regimes nazista e soviético.[38: LEPORE, Jill. A Golden Age for Dystopian Fiction: What to make of our new literature of radical pessimism. The New Yorker. New York, jun. 2017. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction>. Acesso em: 13 out. 2017 as 21:00 horas.][39: Tradução do autor]
	A literatura utópica cedeu lugar à distópica, pois o Estado de Exceção provou ser um tópico muito mais atraente para fins de produção literária. Afinal, soaria bastante anacrônico a elaboração de ficções otimistas enquanto notícias das barbaridades cometidas pelos regimes autoritários aos poucos vinham à público. Hammer é enfático em atribuir ao totalitarismo o fim das utopias:
The utopias of justice seem largely to have been eviscerated by 20th-century totalitarianism. After the Gulag Archipelago, the Khmer Rouge’s killing fields and the Cultural Revolution, these utopias seem both philosophically and politically dead.[40: HAMMER, Espen. A Utopia for a Dystopian Age. The New York Times. New York. 26 jun. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/06/26/opinion/a-utopia-for-a-dystopian-age.html>. Acesso em: 28 out. 2017 as 18:00 horas.]
[As utopias de justiça parecem ter sido largamente evisceradas pelo totalitarismo do século XX. Depois de Arquipélago Gulag, os campos de extermínio do Khmer Vermelho e da Revolução Cultural, essas utopias parecem igualmente filosoficamente e politicamente mortas.][41: Tradução do autor]
Margaret Atwood observa que nos dias atuais, acredita-se muito mais facilmente em distopias do que em utopias, não sem razão, pois utopias existem apenas no plano imaginário, ao passo que o mundo já vivenciou distopias, de fato. [42: ĆUK, Maja. The Robber Bride: a Dystopian Female World in Margaret Atwood’s Mythology. [sic] - A Journal of Literature, Culture and Literary Translation, Zadar, Croácia, n. 2, jun. 2015. Disponível em: <https://www.sic-journal.org/ArticleView.aspx?aid=344>. Acesso em: 28 out. 2017 as 11:00 horas.]
“Se a utopia é o paraíso, a distopia é o paraíso perdido.” O fracasso do Estado de Exceção é resultado de uma busca que não possui fim. O estabelecimento de uma utopia é impossível, de modo que sempre que um governo concentrar seus esforços neste objetivo, invariavelmente cairá em algo comparável a uma ficção distópica, tão surreal quanto o primeiro objetivo pretendido.[43: LEPORE, Jill. A Golden Age for Dystopian Fiction: What to make of our new literature of radical pessimism. The New Yorker. New York, jun. 2017. Disponível em: <https://www.newyorker.com/magazine/2017/06/05/a-golden-age-for-dystopian-fiction>. Acesso em: 13 out. 2017 as 10:00 horas.]
Como última lição das distopias, ressalta Lepore que para atingir a perfeição como sociedade paga-se o alto preço da liberdade, tópico este fundamental para a compreensão deste trabalho.[44: Ibdem. Acesso em 13 out. 2017 as 15:00 horas. ]
1.3 Prisão e Literatura
	A Literatura, como já exposto, abrange assuntos que o Direito pode não atingir, com sua técnica. A leitura e a interpretação literária produzem um efeito de ampliação do horizonte de compreensão, criando um entendimento mais humano, em particular no âmbito penal e daqueles que dele fazem parte como juízes, testemunhas e, obviamente, prisioneiros. [45: TRINDADE, André Karam; KARAM, Henriete. Apresentação. Anais III CIDIL: Crime, Processo e (in)Justiça, Passo Fundo, v. 3, n. 1, p.1-4, jul. 2015. Disponível em: <http://seer.rdl.org.br/index.php/anacidil/article/view/198/269>. Acesso em: 10 nov. 2017 as 15:00 horas.]
A prisão é, paradoxalmente, um destes ambientes em que, por mais que seja um território por excelência da seara das Leis, estas não são capazes de fazer uma análise tangível para a população do que ali dentro ocorre e do seu funcionamento. Dessa maneira, a Literatura é uma forma alternativa e mais acessível de averiguar as engrenagens internas do cárcere, como pontua Peixoto:
Apesar dos estudos realizados, a percepção de como é viver numa prisão, contada através de uma narrativa de vida, fornece-nos outro tipo de informação, além de que esse conhecimento, essas experiências de vida, chegam com muito mais facilidade às pessoas. Pessoas essas que podem não ter acesso a estudos científicos, mas que leem, instruem-se através de outro tipo de literatura que lhe suscita mais curiosidade.[46: PEIXOTO, Ana Filipa de Sousa. Retratos da prisão na literatura: um olhar sobre testemunhos. 2014. 79 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Minho, 2014. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/34263/1/Dissertação Ana Peixoto.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 as 7:00 horas.]
	A produção literária selecionada para este trabalho tem o carácter testemunhal. São relatos biográficos dos internos e daqueles que com eles estavam no período de reclusão, servindo então como uma forma, em tese verossímil, de conhecer a rotina intramuros. 
	Mesmo que os relatos não sejam a representação fiel da realidade, eles compuseram a impressão que os autores tiveram da experiência, sendo, portanto, uma fonte fidedigna dos efeitos da prisão sobre quem ali está.
Hans Toch, através de Peixoto:
Only inmates have the experience of imprisonment, and inmates who write about prison are neither dispassionate nor representative. They are persons who have deal with their experience by drawing meaning from it. This is specialized adaptation, and it makes inmate-authors unique in thesame sense in which Bruno Bettelheim and Viktor Frank were unique as concentration camps inmates.[47: TOCH, Hans, apud PEIXOTO, Ana Filipa de Sousa. Retratos da prisão na literatura: um olhar sobre testemunhos. 2014. 79 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Instituto de Ciências Sociais, Universidade doMinho,Minho, 2014. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/34263/1/Dissertação Ana Peixoto.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 as 8:00 horas.]
[Apenas os encarcerados têm a experiência da prisão, e encarcerados que escrevem sobre a prisão não são nem desapaixonados ou representativos. São pessoas que lidaram com a experiência dando significado a ela. Isto é adaptação especializada, e torna os presos-autores únicos no mesmo sentido que Bruno Bettelheim e Viktor Frank eram únicos como internos de um campo de concentração][48: Tradução do autor]
	
	O registro prisional tem, portanto, um carácter único, pela sua concepção em um local totalmente atípico e não familiar para a vasta maioria dos leitores.
A vantagem da literatura em representar o interior prisional sobre os outros meios, como por exemplo um filme, reside na sua profundidade e grau de imersão do leitor/expectador. O leitor está totalmente mergulhado na história, acompanhando a lenta rotina do prisioneiro e todos os pensamentos que este teve durante o período de reclusão. O leitor acompanha os olhos do prisioneiro, naquilo que ele observou e chamou-lhe a atenção enquanto estava detido.[49: PEIXOTO, Ana Filipa de Sousa. Retratos da prisão na literatura: um olhar sobre testemunhos. 2014. 79 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Minho, 2014. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/34263/1/Dissertação Ana Peixoto.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 15:00 horas.]
	Alcançando os espaços fora dos muros prisionais, as narrativas carcerárias reverberam na percepção do público sobre o que ali ocorre, adquirindo aí grande relevância. Levando-se em consideração que poucos veículos de notícias passam tanto tempo em uma cela como os internos, as narrativas prisionais produzidas por eles tornam-se relatos muito mais profundos do que qualquer reportagem feita em poucos dias.[50: Ibdem. Acessado em 30 out. 2017 as 12:00 horas.]
	Alber, citado por Peixoto, afirma:
Since most people lack first-hand experience of the prison and gain their “knowledge” through indirect means, it is primary importance to deal with fictional representations of the prison to get an understanding of how the prison has entered the cultural subconscious. For good or ill, prison narratives influence the cognitive categories of their recipients and thus the popular understanding of the prison.[51: ALBER, Jan, apud PEIXOTO, Ana Filipa de Sousa. Retratos da prisão na literatura: um olhar sobre testemunhos. 2014. 79 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Instituto de Ciências Sociais, Universidade doMinho,Minho, 2014. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/34263/1/Dissertação Ana Peixoto.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 as 17:00 horas.]
[Como a maioria das pessoas não possui acesso de primeira mão à experiência prisional e ganha o seu “conhecimento” através de meios indiretos, é de importância primária trabalhar com as representações ficcionais da prisão para compreender a maneira como as prisões entraram no subconsciente cultural. Para bem ou para mal, as narrativas prisionais influenciaram as categorias cognitivas de seus destinatários e, portanto, a compreensão popular da prisão.][52: Tradução do autor]
	Mostra-se evidente então que descreditar a força de uma narrativa prisional não possui fundamento plausível. Compreendê-las é também compreender as noções e as referências que a população livre possui da vida prisional.
Não obstante o gerenciamento prisional ser distinto, a depender da nação e do soberano empossado, algumas características pontuais repetem-se com bastante nitidez. Estes aspectos em comum serão a base do último capítulo, bem como sua relação com o Estado de Exceção.[53: PEIXOTO, Ana Filipa de Sousa. Retratos da prisão na literatura: um olhar sobre testemunhos. 2014. 79 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Minho, 2014. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/34263/1/Dissertação Ana Peixoto.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017 as 10:00 horas.]
	A Literatura detém a mais preciosa mensagem, pois ela é capaz de oferecer o testemunho da realidade. Graças a ela, o leitor pode penetrar locais inacessíveis, provar sentimentos desconhecidos e observar, como se aí estivesse, a vida em uma prisão.[54: SEEGER, Luana da Silva; ANDRADE, Edenise. A Relação entre Direito e Literatura e suas contribuições para a superação da crise do ensino jurídico e refundação da jurisdição. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 13., 2016, Santa Cruz do Sul: 2016. p. 1 - 14. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15841>. Acesso em: 30 out. 2017 as 13:00 horas.]
2.0 A TEORIA DO ESTADO DE EXCEÇÃO
If voting made any difference they wouldn't let us do it.
- Mark Twain
Neste capítulo serão analisadas as ideias de Carl Schmitt, jurista alemão e figura de destaque na teoria do Estado de Exceção, Donoso Cortés, político do movimento reacionário espanhol da primeira metade do século XIX e de Francisco Campos, firme apoiador do Estado Novo de Getúlio Vargas de 1937. Em menor grau, o capítulo apresentará comentários de Hannah Arendt, filósofa judia que dissecou minuciosamente os movimentos totalitários do início do século XX e de Giorgio Agamben, filósofo italiano e crítico da teoria de Schmitt. 
O instante que separa a transição de um Estado de Direito para um Estado de Exceção é um momento sem uma definição clara. Naturalmente, ele não pode ser previsto em lei, pois se houvesse uma definição clara, rigorosa e completa, o estado não seria de exceção, mas apenas uma perturbação da ordem comum. 
Dito isso, aquele que proclama com propriedade e baseado na situação casuística o início de um Estado de Exceção seria o soberano, uma vez que soube enxergar, através da realidade um momento oportuno para as tomadas de medidas que objetivam a reorganização do Estado. [55: SCHMITT, Carl, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty. Chicago: University of Chicago Press, 2006. Pag. 05.]
Não se limita apenas proclamar o fim do ordenamento anterior e o início de outro. Trata-se também de tomar para si as rédeas do país e, com vigor, arrogar-se todas as medidas impopulares e populares necessárias para que o Estado de Exceção dure o menor tempo possível. 
Todavia, o fim último do Estado de Exceção não é a sua longevidade, mas o seu próprio abreviamento para volver ao estado original o mais breve possível.
Em sua gênese, o jurista alemão Carl Schmitt defende que o poder de decisão é superior à própria norma, já que a norma, por si só, nada faz. É o ato de decidir (que uma norma entrará em vigor, por exemplo) que estabelece a ordem dentro do Estado, conforme se vê:
After all, every legal order is based on a decision, and also the concept of the legal order, which is applied as something self-evident, contains within it the contrast of the two distinct elements of the juristic - norm and decision. Like every other order, the legal order rests on a decision and not on a norm.[56: Ibdem, p. 10. ]
[Afinal, toda ordem legal é baseada em uma decisão, e também o conceito de “ordem legal”, que é aplicado como algo autoexplicativo, contém em si o contraste dos dois elementos distintos do jurídico - norma e decisão. Como qualquer outra ordem, a ordem legal repousa em uma decisão, e não em uma norma][57: Tradução do autor]
A ordem dentro do Estado tem sua base, portanto, na decisão. Atribuir à norma a função de lastreadora da estabilidadeestatal não é conveniente, uma vez que toda norma está sujeita a interpretações conforme o momento corrente. A decisão, por outro lado, é um ato instantâneo que se consuma no momento em que é proferida. Por isso torna-se uma forma mais segura e mais efetiva de servir como alicerce para a ordem legal.
O Estado de Exceção é um conceito que indica a suspensão das garantias constitucionais na intenção de agilizar a tomada de medidas para controlar uma emergência social, ambiental ou econômica.
É conveniente aqui apontar o artigo 48, § 2º, da Constituição de Weimar de 1919, uma vez que ilustra com clareza a possibilidade de suspensão de garantias individuais tendo em vista um bem coletivo. Schmitt atribuía à este artigo a característica de introdutor, de legalizador de um Estado de Exceção, vez que este rege: 
Caso a segurança e a ordem públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o Presidente do Reich (Reichspräsident) pode tomar as medidas necessárias a seu restabelecimento, com auxílio, se necessário, de força armada. Para esse fim, pode ele suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais (Grundrechte) fixados nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.    [58: OLIVEIRA, Carlos Augusto; FREITAS Márcio. Revista dos Estudantes de Direito da UnB. 2004. Disponível em <http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-dos-estudantes-de-direito-da-unb/6a-edicao/artigo-48->. Acesso em 22 set. de 2017 as 20:00 horas.]
Os artigos 114 e 153 tratam respectivamente da liberdade pessoal e da propriedade, sendo, portanto, o cerne do Estado burguês de Direito. Estes dois elementos simplesmente desaparecem, aos olhos do legislador extraordinário, em um Estado de Exceção.[59: SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p 77]
Os demais artigos se ocupam do direito à inviolabilidade da moradia (115), ao segredo de correspondência (117), direito à livre expressão de opinião (118), a livre reunião (123) e à livre associação sem fins criminosos (124). Não é difícil deduzir o trilho que um Estado tomará, suprimidas as garantias citadas.
Sem o conteúdo destes artigos, inicia-se o inchaço do poderio do Executivo, visando a retomar a ordem nacional. Essa possibilidade no Brasil está prevista pela Constituição Federal, em seu artigo 138, § 1°, ainda que não cite explicitamente a revogação que citava a Constituição de Weimar. A Carta Magna brasileira reza que após a decretação inicial de estado de sítio, este pode durar até 30 dias, prorrogáveis sempre na mesma duração, com aprovação do Congresso. [60: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.]
Nas situações em que a duração é estendida sem a devida aprovação, chama-se em sentido geral de ditadura.
Dentro da ditadura, pode-se distinguir 2 tipos diferentes do fenômeno, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben:
A ditadura comissária mostra que o momento da aplicação é autônomo em relação à norma enquanto tal e que a norma “pode ser suspensa sem, no entanto, deixar de estar em vigor” (Schmitt, 1921, p. 137). Representa, pois, um estado de lei em que esta não se aplica, mas permanece em vigor. Em contrapartida, a ditadura soberana, em que a velha Constituição não existe mais e a nova está sob a forma “mínima” do poder constituinte, representa um estado da lei em que esta se aplica, mas não está formalmente em vigor [61: SCHMITT, Carl, apud AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2014. p 58.]
A ditadura soberana é, como se pode deduzir, mais profunda, com mudanças no cerne da organização jurídica na própria Constituição de um país. Grosso modo, a ditadura comissária existe até o ponto em que o Parlamento ainda atua de maneira razoavelmente independente.
Contudo, a ditadura soberana começa depois do fechamento da Câmara Legislativa e será, portanto, a que receberá mais atenção neste trabalho. 
O que se observará mais adiante é que, via de regra, uma ditadura só pode ser assim denominada se adotar os conceitos anteriores a sua instauração. Depois de estabelecido, o Estado de Exceção modifica o seu próprio ordenamento interno, auto legitimando-se, criando para si uma nova Constituição.
Dessa forma, não é possível afirmar, juridicamente, dentro de uma ditadura, que se vive uma ditadura, por mais paradoxal que isso seja. Sendo um governo constituído, com uma Constituição vigente, o Estado de Exceção torna-se legítimo, e a partir deste ponto, age dentro da legalidade.
Acerca desta supremacia do Estado sobre as regras que o compõem, prescreve Schmitt, jurista alemão e influenciador do regime jurídico do nazismo: “the existence of the state is undoubted proof of its superiority over the validity of the legal norm” [a existência do Estado é a prova indubitável da sua superioridade sobre a validade da norma legal]. [62: SCHMITT, Carl. Political Theology. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 12][63: Tradução do autor]
Logo, a Lei, estando abaixo do Estado, deverá submeter-se a este, em toda e qualquer situação, especialmente durante os Estados de Exceção. Nesses, qualquer rumo que o Estado tome deverá ser seguido pela norma adaptada ao novo ordenamento, e não o contrário, em que a norma guia as direções do Estado. Thomas Hobbes sustenta essa tese com o elegante axioma: autoritas, non veritas, facit legem. A autoridade está acima da verdade.[64: HOBBES, Thomas apud SCHMITT, Carl. Political Theology. p. XXXIX. Chicago: University of Chicago Press, 2006][65: A autoridade, e não a verdade, é que cria leis.]
2.1 Decisão e Estado de Exceção
Uma lei só será válida quando estiver de acordo com o Estado, ou seja, quando for conforme a vontade do soberano, é o que Schmitt quis dizer com: “all law is ‘situational law’”[toda lei é lei situacional]. De acordo com a ocasião, da situação geral da nação, uma lei pode ser válida ou inválida se em desacordo com as decisões do soberano. [66: SCHMITT, Carl. Political Theology.. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 13][67: Tradução do autor]
Quando em desacordo, o soberano terá o potestas de revogá-la, simplesmente por não julgar a sua existência coerente com o ordenamento vigente e com a situação política que a nação por ventura possa estar atravessando. 
Ao contrário do Estado Legiferante, em que a revogação de uma lei deve passar pelo mesmo processo moroso de fabricação de legislação, o Estado de Exceção salta por cima de tudo isso, justificando-se na necessidade de celeridade decisória. Schmitt faz apontamentos sobre a revogação de uma lei, nos países de tradição parlamentar:
Se o número total de deputados for 600, então 400 bastarão para firmarem uma resolução que tenha efeito de norma constitucional, por exemplo decretar uma lei seca. Se mais tarde o número de defensores da lei seca cair para abaixo de 301, portanto para um número inferior à maioria simples, de modo que eles, conforme seu número de votos, não possam decretar a lei seca nem como lei simples, assim mesmo a lei seca permanecerá existindo como uma recompensa de efeito permanente por uma maioria de dois terços anteriormente obtida, ainda que mais de 300 votos da ala oposicionista venham a clamar sua revogação. Aos oposicionistas, de nada servirá disporem agora de maioria simples, enquanto eles próprios não alcançarem a maioria de dois terços com 400 votos. Enquanto isso, para os defensores da lei seca, não será nenhum prejuízo não disporem agora nem mesmo da maioria simples. O número destes poderá cair para até 201, aos quais se poderão contrapor 399 votos contrários. A matéria vontade de 201 agora domina sobre a da vontade de 399, na verdade, apenas porque com a violação do critério funcionalista da respectividade e da momentaneidade, instaurou-se uma espécie de recompensa - democraticamente absurda e até mesmo imoral - para beneficiar uma maioria qualificada outrora obtida.[68: SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p 55]Aqui se tem um ponto de salutar importância, no qual o soberano possui poder totalmente discricionário quando governa em estado de sítio. Para a decisão surtir efeito, basta que o soberano a profira, uma vez que não há uma necessidade de aprovação do órgão legislador. 
Ele é o que Schmitt chamou de legislador extraordinário ratione temporis ac situationis .[69: Do tempo e da situação.][70: SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p 73]
Continuando o raciocínio, disserta o jurista:
Nesse tipo de legislador extraordinário, vem à tona, por intermédio de todas as ficções e camuflagens normativistas, a verdade jurisprudencial simples, segundo a qual normas somente valem para situações normais, e a normalidade pressuposta da situação é um elemento jurídico-positivo de sua ‘validade’. Todavia o legislador da situação normal é diferente do ‘comissário da ação’ da situação anormal que restabelece a situação normal (a ‘segurança e a ordem’). Se olharmos para este como um ‘legislador’ e para suas medidas como ‘leis’, então, apesar de todas essas equiparações, permanece na substância uma distinção que faz com que as ‘medidas legislativas’ do comissário de ação destruam o sistema de legalidade do Estado legiferante parlamentar justamente por estas serem equiparadas a ‘leis’. [71: Ibdem, p. 73.]
Não se trata de um Estado Absolutista, embora seja essa a primeira impressão, pois o Estado de Exceção, ao contrário do Absolutista, tem ao menos em tese um “prazo de validade”, como já explicitado, que terminaria quando as circunstâncias político-econômicas do país retornassem a um estágio mais pacífico, durante o qual o funcionamento das instituições pudesse ser delegado outra vez, não sendo necessária a concentração de poder nas mãos do Executivo.
Schmitt acreditava que a exceção era a única forma de provar a validade e a eficácia da norma, uma vez que o Estado “de paz”, comum, não podia ser justificado por si mesmo, preso na normalidade. Descreve o autor: 
Therein resides the essence of the state's sovereignty, which must be juristically defined correctly, not as the monopoly to coerce or to rule, but as the monopoly to decide. The exception reveals most dearly the essence of the state's authority. The decision parts here from the legal norm, and (to formulate it paradoxically) authority proves that to produce law it need not be based on law. [72: SCHMITT, Carl, Political Theology. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 13.]
[Aqui reside a essência da soberania do Estado, que deve ser corretamente definida juridicamente, não como o monopólio de coagir ou de governar, mas como o monopólio de decidir. A exceção revela de maneira mais precisa a essência da autoridade do Estado. A decisão parte aqui da norma legal e, (para formular de maneira paradoxal) a autoridade prova que para se produzir lei esta não necessita se basear em lei]   [73: Tradução do autor.]
A autoridade sobre o Estado bastaria para a formulação das leis, sendo ela mesma o elemento de concretização da norma: “because the legal idea cannot realize itself, it needs a particular organization and form before it can be translated into reality”, [como a ideia legal não consegue realizar-se por si própria, ela necessita uma organização e forma particular antes de poder ser transladada à realidade]  ou seja, sem um local de atuação, um espaço para vir ao mundo, a norma não significa absolutamente nada, ela apoia-se no Estado, na decisão de constituir um Estado e, portanto, na decisão do soberano, ao contrário do Estado Legiferante, no qual a realização organizacional sempre conduz à separação entre lei e aplicação da lei, entre Legislativo e Executivo.[74: SCHMITT, Carl, Political Theology. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 28.][75: Tradução do autor.][76: SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade. p. 02. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p 02.]
Quando o soberano atua como um legislador extraordinário, a distinção entre lei e aplicação da lei, entre os dois poderes, não é um obstáculo nem do ponto de vista jurídico nem do fático. Ambas as coisas são por ele encarnadas em uma única pessoa. [77: Idbem, p. 75]
O poder de decisão é determinante no Estado de Exceção para a teoria de Schmitt, uma vez que não se trata apenas de decidir “o” Estado de Exceção, mas também, decidir “no” Estado de Exceção. 
O primeiro trata da decisão do ponto de início do novo Estado, a decretação do fim do ordenamento anterior e um começo de outro sistema, sendo o instante entre a extinção da Constituição anterior e o início da vigência da nova Carta Magna. Neste meio tempo, a nova Constituição existe sob uma forma mínima, quase ilustrativa, não possuindo poder normativo sobre todos os aspectos da nação, cobrindo apenas o básico de organização estatal e dando ao soberano a legitimação necessária por ter decidido extinguir a Constituição anterior. 
O segundo refere-se a uma decisão dentro do novo Estado. Nesse momento, a nova Constituição já possui uma forma mais definida, podendo-se afirmar que o Estado de Exceção aos olhos do princípio da legalidade estrita, foi legitimado, pois agora detém um documento que lhe dá razão de existência.  
Na língua inglesa, por conta da partícula “on”, a frase de Schmitt “the decision on the exception is a decision in the true sense of the word” pode ser traduzida das duas formas.[78: SCHMITT, Carl, Political Theology. p. 06. Chicago: University of Chicago Press, 2006.]
No Estado Democrático, o Poder Legislativo não detém nenhuma das duas decisões, ambas recaem sobre o Executivo, que é o único que pode tomar a iniciativa de decretar o estado de sítio.
Sobre as longas discussões travadas e a ineficiência do Legislativo em decidir, Donoso Cortés, político espanhol do século XIX e ícone do pensamento reacionário de sua época, afirmou em um de seus discursos que “[...]si los gobiernos representativos viven de discusiones sabias, mueren por discusiones interminables. [se os governos representativos vivem de discussões sábias, morrem por discussões intermináveis]. Desde muito antes de Schmitt, portanto, a morosidade do Parlamento já era questão que preocupava os teóricos do direito. [79: CORTES, Donoso, Discursos políticos. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. p 54][80: Tradução do autor.]
O Estado Legiferante, baseado nas discussões parlamentares para a tomada de decisões, peca por sua lentidão, pelo vício em imaginar que toda situação possível deve estar prevista em norma. Tal Estado tenta trabalhar dentro da abstratividade, sempre, ao passo que os Estados Administrativos ou Gerenciais estão focados mais na concretude, e, por isso, suas decisões têm um efeito imediato e não meramente potencial, como no Estado Legiferante, cujas normas devem aguardar a situação apropriada para produzirem efeito. [81: SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade. p. 08. Belo Horizonte: Del Rey, 2007]
No Brasil, Francisco Campos, idealizador da “polaca”, Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937, segue as linhas de Schmitt e Cortés, sintetizando os dois pensamentos anteriores:
Para as decisões políticas uma sala de parlamento tem hoje a mesma importância que uma sala de museu. [...] porque um parlamento é, precisamente, o lugar onde nada acontece e nada se decide. A política vive, porém, de acontecimentos e de decisões. Se o centro a que a decisão é juridicamente imputada nada decide, forma- se imediatamente ao seu lado um centro de decisões de fato.[82: CAMPOS, Francisco, O Estado Nacional. p. 53-55. Ridendo Castigat Mores, 2002 – grifo do autor.]
Logo adiante, complementa que: 
A administração tem por chefe o Presidente: a ele cabe a responsabilidade pela ação administrativa do governo. Da eficiência do instrumento destinado à ação executiva, ninguém pode ser melhor juiz do que o chefe do Executivo. Atribuir-lhe a responsabilidade pelo rendimento da máquina que ele não possa remodelar de acordo com as exigências da ação é, evidentemente, um contra-senso. O vício do regimeliberal consistia em dar o poder a quem não tinha a responsabilidade.[83: Ibdem, p. 175. ]
A linha de raciocínio de Francisco Campos sobre o Executivo recai na obrigação de bem gerir o Estado, mas este estará de mãos atadas se o Legislativo não o apoiar. 
No caso brasileiro, Getúlio Vargas, percebendo esta limitação ao seu poder de governo, fecha o Congresso e transpõe todas as suas funções para o Executivo, de modo a concentrar em sua pessoa a responsabilidade pelo Estado e o poder de legislar.
2.2 Crise e Estado de Exceção
O Parlamento é na maioria das vezes o responsável pelo início da crise e o seu posterior agravamento, obstando as medidas de salvação nacional que são propostas pelo Executivo em momentos graves, até o ponto em que este não vislumbra outra alternativa, a não ser governar sozinho, atropelando a legalidade e decidindo efetivamente e continuamente os rumos que guiarão o caminho para fora da crise. 
Donoso Cortés afirma em sua obra “Discursos Políticos” que “cuando la legalidad basta para salvar la sociedad, la legalidad; cuando no basta, la dictadura”[quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura], ou seja, não deve haver limites para sustentar uma sociedade, e na intenção de manter o país pacificado, qualquer regime seria válido, inclusive aqueles que poderiam gerar tendências autoritárias. [84: CORTES, Donoso, Discursos políticos. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. p 06.]
Assim como Schmitt, Cortés não acredita que a legalidade seja um valor absoluto, inconteste. É na visão de ambos um mero fator positivo. Se a observação deste elemento gera obstáculos na gerência do Estado, não veem qualquer tipo de entrave para rechaça-lo.  
Da mesma forma, assim como os dois citados anteriormente, Francisco Campos combatia ideais liberais e pregava a supremacia do poder estatal: “não pode haver garantias contra o interesse público”, uma vez que a ordem estatal é o que há de mais importante, deve ser protegida a todo custo. [85: CAMPOS, Francisco, O Estado Nacional. Ridendo Castigat Mores, 2002. p 109.]
O pensamento liberal então seria uma forma de rebelião sem fundamento e que deveria ser fortemente reprimida, por oferecer risco à própria constituição da nação.
Donoso Cortés observa o direito de existência do Estado estabelecido como absoluto, sendo vedado ao cidadão atentar contra a ordem estatal, pela não cooperação ou qualquer outra atitude “antipatriótica”:
Yo creo que el Congreso de los señores diputados tiene el derecho de matar o contribuir a que muera un Ministerio por un voto de censura; pero no tiene el derecho de negarle las contribuciones por la razón que no tiene el derecho de matar al Estado.[86: CORTES, Donoso, Discursos políticos. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. p 60.]
[Eu creio que o Congresso dos senhores deputados tem o direito de matar ou contribuir para que morra um Ministério por um voto de censura; mas não tem o direito de negar-lhe as contribuições pela razão que não existe o direito de matar o Estado][87: Tradução do autor.]
	
Atentar contra o Estado é compreendido pelo jurista espanhol como um crime altamente reprovável, contra a pátria, cujo respeito e submissão devem ser a marca de todos os cidadãos, pois somente assim um povo poderia atingir a homogeneidade de pensamento desejável para uma estabilidade nacional inabalável.
Respeitando e reconhecendo o poder de decisão do soberano, o povo auxilia a sedimentar o status do decisor como chefe, enquanto as decisões que este tome, sejam realizadas, tornadas concretas pela força bruta ou pela boa vontade popular, será sempre este monopólio de determinar o rumo futuro que sustentará o poder. 
Aqui se estabelece um ponto de vital importância na teoria do Estado Dirigente: a decisão, uma vez tomada, caracteriza o soberano, pelo que será exposto adiante.
A grande razão pela qual Schmitt acredita que o Estado de Exceção é um momento crucial para a caracterização da soberania é pela sua unicidade, sua singularidade, pois sendo o Estado de Exceção muito mais do que um mero estado de sítio ou calamidade pública é um estado essencialmente de crise do Estado Democrático e, paradoxalmente, é um instante de definição, de reafirmação do estado de normalidade que não está mais presente mas percebe-se que existe pela sua ausência.
Descreve o jurista:
Contrary to the imprecise terminology that is found in popular literature, a borderline concept is not a vague concept, but one pertaining to the outermost sphere. This definition of sovereignty must therefore be associated with a borderline case and not with routine. It will soon become clear that the exception is to be understood to refer to a general concept in the theory of the state, and not merely to a construct applied to any emergency decree or state of siege.[88: SCHMITT, Carl, Political Theology. p 05. Chicago: University of Chicago Press, 2006]
[Ao contrário da terminologia imprecisa encontrada na literatura popular, um conceito limítrofe não é um conceito vago, mas pertencente à uma esfera externa. Essa definição de soberania deve então ser associada com o caso limítrofe e não com a rotina. Logo restará claro que a exceção deve ser compreendida como referente ao conceito geral na teoria do estado e não simplesmente à construção aplicada ao decreto de emergência ou estado de sítio]. [89: Tradução do autor]
	
Não é possível avaliar o Estado de normalidade estando dentro dele, cercado por ele. Para entender o ordenamento comum e analisá-lo, compreender seus limites e estudar seu comportamento é preciso observá-lo a alguma distância. 
É a exceção que confirma a regra, é a negação que cria a afirmação já que a normalidade não prova nada, a exceção, por outro lado, prova as duas situações, regra e exceção.
	Schmitt descreve este pensamento com clareza:
The exception can be more important to it than the rule, not because of the romantic irony for the paradox, but because the seriousness of an insight goes deeper than the clear generalizations inferred from what ordinarily repeats itself. The exception is more interesting than the rule. The rule proves nothing; the exception proves everything: it confirms not only the rule but also its existence, which derives only from the exception. In the exception the power of real life breaks through the crust of a mechanism that has become torpid by repetition. [90: SCHMITT, Carl, Political Theology. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 15.]
[A exceção pode ser mais importante para isso do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque o discernimento da gravidade vai mais fundo do que claras generalizações inferidas a partir do que ordinariamente se repete. A exceção é mais interessante do que a regra. A regra não prova nada; a exceção prova tudo: ela confirma não apenas a regra, mas também a própria existência desta, que deriva apenas da exceção. Na exceção o poder da vida real rompe a crosta de um mecanismo que se tornou torpe por sua repetição.]  [91: Tradução do autor.]
O ponto de Schmitt é que uma vez que o Estado de Exceção permite estar “de fora”, não imbuído pelo hábito da rotina e normalidade, vê-se mais facilmente qual é o ponto singular que determina a soberania. Neste raciocínio, alcança-se o já citado axioma, “sovereign is he who decides on the exception” [soberano é quem decide no estado de Exceção] durante o qual o poder de decisão em situações atípicas é o que determina a soberania de uma figura em situações ordinárias. [92: SCHMITT, Carl, Political Theology. Chicago: University of Chicago Press, 2006. p 05.][93: Tradução do autor.]
Naturalmente, “estar de fora” do Estado Democrático não tem um significado único, e como o “fora” não pode ser previsto, a tarefa de determinar o ponto de rompimento torna-se quase impossível. 
Mesmo Giorgio Agamben, crítico da teoria de Schmitt, concede que “entre os elementos que tornam difícil uma definição do estado de exceção, encontra-se, certamente,

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