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pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >41 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 Andrea Seixas Magalhães e Terezinha Féres-Carneiro A conjugalidade na série identificatória: experiência amorosa e recriação do eu Trama identificatória O percurso do processo identificatório, que ora estamos nomeando “trama” para nos referir ao entrelaçamento dos “eus” na conjugalidade, ocupa uma posição central na abordagem psicanalítica, não somente pelo fato de a identificação ope- rar na constituição da subjetividade, des- tacando os efeitos estruturais do comple- xo edípico, mas também por abrir possi- No presente trabalho, buscamos analisar as relações entre conjugalidade, identificação e o papel dos ideais no processo de produção das subjetividades dos parceiros. Com base em uma leitura psicanalítica da conjugalidade, consideramos que a trama identificatória conjugal, originada no momento da escolha amorosa, reatualiza vivências edípicas e pré- edípicas e, ao mesmo tempo, representa uma oportunidade de recriação do eu. Enfatizamos que o percurso identificatório se desenvolve por toda a vida e que o estudo da dimensão da conjugalidade aprofunda a compreensão sobre a constituição do sujeito. A conjugalidade, alicerçada em aspirações fusionais, mobiliza nos sujeitos-parceiros reestruturações subjetivas, engendradas nas interpenetrações amorosas. > Palavras-chave: Psicanálise, conjugalidade, identificação, ideais, subjetividade In this article we analyze the interrelationship among conjugality, identification, and the role of ideals in the production of each partner‘s subjectivity. Based on a psychoanalytic reading of conjugality, we consider that the couple’s identification scheme, which began at the moment the love choice was made, re-animates Oedipal and pre-Oedipal experiences and represents an opportunity to re-create the ego. We emphasize that the course of the identification process is developed throughout life and that the subject‘s constitution can be better understood through a study of the dimension of conjugality. Based on the aspiration toward fusion, conjugality stimulates subjective reconfigurations in the subjects-partners, generated by the interpenetrations of love. > Key words Key words Key words Key words Key words: Psychoanalysis, conjugality, identification, ideals, subjectivity ar tig os > p. 41 -5 0 pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >42 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 bilidades para outros desdobramentos e explorações teóricas. Tais desenvolvimen- tos abrangem desde a concepção das ins- tâncias psíquicas até o papel da relação transferencial e seus desdobramentos identificatórios. Para O. Mannoni (1987), a identificação é um modo de pensamen- to que prescinde de justificação. Dessa forma, tentaremos desvendar como se dá esse processo; particularmente, teremos como objetivo ressaltar o papel da conju- galidade na série identificatória.. Na conceituação de identificação, Laplan- che (1967) destaca o processo psicológi- co no qual ocorrem assimilações de atri- butos do outro, gerando transformações totais ou parciais no sujeito que toma como modelo esse outro. Esse processo está na base da constituição e da diferen- ciação da personalidade, que se dá por meio de uma série de identificações. Con- siderando a série identificatória contínua e permanente base da constituição da subjetividade, a conjugalidade pode ser considerada uma dimensão privilegiada no processo de recriação do eu. Visando reconstituir o percurso teórico do conceito de identificação e repensar a identificação amorosa, faremos uma bre- ve incursão no texto freudiano. Em “Estu- dos sobre a histeria” (1895), Freud refere- se à identificação como uma apropriação relacionada a um elemento comum que permanece inconsciente sob a forma de uma fantasia, podendo ocorrer a coexis- tência de várias identificações. Nessa fase da teorização, o conceito de identificação assemelhava-se à idéia de imitação, em- bora não fosse equivalente à mesma. A partir de estudos como “Totem e tabu” (1912), “Luto e melancolia” (1915) e “Sobre o narcisismo” (1914), a noção de incorpo- ração vinculada à identificação é ressalta- da. Na reformulação teórica realizada na segunda tópica freudiana, em “O ego e o id” (1923), é acentuada a idéia de que é o processo de identificação que possibilita a compreensão das instâncias psíquicas como sistemas herdeiros das relações de objeto. Em “Sobre o narcisismo” (1914) depara- mo-nos com a discussão da psicodinâmi- ca da escolha amorosa relacionada dire- tamente com o fenômeno identificatório. São apresentadas duas formas de esco- lha, narcísica e anaclítica. As duas moda- lidades de escolha operam de acordo com o modelo dos objetos parentais e com as identificações ocorridas no período edí- pico, marcadas pela ambivalência presente em todo processo identificatório. Em “Psicologia das massas e análise do ego” (1921), Freud enuncia três modalida- des de identificação. A primeira diz res- peito à forma primeva do laço afetivo com o objeto, é a identificação primária, canibalesca, pré-edípica, que coloca em pauta a noção de incorporação, desen- volvida posteriormente pelos teóricos das relações objetais. A segunda refere-se à identificação como substituto regressivo da escolha de objeto abandonada. Na ter- ceira modalidade, mediante a operação de deslocamento, um elemento comum é tomado do outro e aparece em outro ponto, sem que haja investimento sexual direto. Essas três modalidades podem ser entrelaçadas no jogo identificatório da conjugalidade, resultando ora num pro- cesso enriquecedor das subjetividades dos parceiros, ora empobrecedor, ou até patológico, nos casos em que o objeto é tomado como substituto do eu. O. Mannoni (1987) discute o processo for- ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >43 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 mador do eu que deriva de sucessivas identificações e desidentificações e tece uma analogia com a assimilação que é pertinente ao processo de crescimento corporal. O sujeito cresce porque assimi- la aquilo de que se pode apropriar e não porque se entope de alimento. Esse argumento nos conduz às distinções de Torok e Abraham (Torok, 1968; Abraham e Torok, 1972) entre incorpora- ção e introjeção. Os autores, resgatando a discussão de Ferenczi, ressaltam que o movimento de introjeção não é da ordem da compensação e sim do crescimento, da expansão. Eles concebem o psiquismo submetido a dois princípios: o alargamen- to e o retraimento. O sujeito é exposto e submetido à novidade, às heranças, aos traumas, aos prazeres e aos encontros. A forma como cada um integra esses fato- res é que resultará na expansão ou no re- traimento da subjetividade. O sujeito inte- gra as representações dadas pelos obje- tos, introjetando-as, e não os objetos em si, incorporando-os. A incorporação é considerada como fra- casso da introjeção. Do nosso ponto de vista, na conjugalidade, os sujeitos podem se devorar-aniquilar ou se interpenetrar- enriquecer. A conjugalidade se estrutura de acordo com essas duas formas de identificação com o parceiro, incorporan- do-o ou introjetando-o. Quando a conju- galidade se constitui por incorporação, o componente alteritário é desconsiderado. Por outro lado, quando a conjugalidade se forma por meio da introjeção, o par- ceiro pode ser assimilado e transformado, num processo criativo, preservando e enaltecendo a alteridade. A saúde do vínculo conjugal depende dessa possibi- lidade. Embora consideremos que o protótipo da identificação é a incorporação do ob- jeto sexual, a estruturaçãoda subjetivida- de é um processo contínuo e permanen- te e não há como detectar uma represen- tação do incorporado primitivo que ori- ginou o primeiro desejo. Observamos que a escolha de objeto encarna esse incor- porado primitivo e o reencena em vários tempos e segundo diferentes modalida- des, sendo as modalidades básicas as es- colhas narcísica e anaclítica. Na conjugali- dade evidencia-se a revivescência do que originou o primeiro desejo, viabilizando a continuidade do processo elaborativo do material que fora recalcado. Eiguer (1985) ressalta que a escolha amo- rosa equivale às formações de compro- misso inconscientes, como sintomas ou lapsos, enaltecendo as funções de descar- ga pulsional, alívio econômico e mecanis- mo defensivo. O autor valoriza o aspecto resolutivo, restitutivo e simbólico do en- contro amoroso, na medida em que pos- sibilita a elaboração do conflito edípico. Abraham (1962) discute a questão da ope- ração simbolizante de identificação, que ocorre por meio da transformação de afecções em afetos. O autor acentua que cada novo desejo consciente remete a um desejo inconsciente recalcado. Dessa forma, o objeto do desejo representa, si- multaneamente, o obstáculo do desejo. E, no processo de estruturação do eu, diver- sos objetos-obstáculos são interiorizados por identificação simbólica. O movimen- to da série identificatória se enriquece permanentemente de afecções. O autor se refere a um aumento do patrimônio do eu via identificação. Ao falar de símbolo, Abraham afirma que sua decifração depende do encontro ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >44 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 com outra subjetividade. Afinal, os sím- bolos indicam sempre a falta de uma par- te complementar que permanece oculta pelo recalcamento. Consideramos que o objeto-parceiro, pelo fato de que desem- penha imaginariamente um papel comple- mentar, mobiliza o material recalcado e produz um discurso amoroso com poten- cial de elaboração e decifração. Florence (1987) desenvolve uma análise de diferentes tipos de identificação, pro- postos na obra freudiana, tecendo outras considerações elucidativas para a nossa discussão. O autor afirma que a identifi- cação narcísica é a mais primitiva e im- portante, uma vez que produz a constitui- ção do eu em suas clivagens. Um segun- do tipo, a identificação melancólica, pro- duz um retorno aos aspectos mais arcai- cos da ambivalência, clivando o eu em uma parte sádica, que se identifica com o objeto, e em uma parte perseguida pela fantasia do objeto. A identificação melan- cólica é considerada uma forma fracassa- da do que o autor chamou de identifica- ção totêmica ou simbólica. Esse tipo de identificação pressupõe uma escolha ob- jetal de tipo narcísica na inauguração da relação. Um terceiro tipo, a identificação histérica, segue a lógica da identificação onírica, expressando o desejo sexual recal- cado, representado de forma regressiva por meio das cenas do sonho e do sintoma. Contudo, de acordo com o autor, é a identificação totêmica ou simbólica que instaura verdadeiramente uma diferen- ciação no eu, mediante o superposiciona- mento entre o eu e o ideal do eu. Isso ocorre como resultante do trabalho de luto do objeto amado-odiado que foi in- corporado. Nesse processo, o eu se tor- na herdeiro dos objetos que foram aban- donados por imposição da realidade como objetos sexuais. Essa é a resultante do trabalho que é imposto ao sujeito no processo de vir-a-ser. O totemismo opera por meio da identifi- cação em vários aspectos. O recalque do incesto e do canibalismo é uma das con- dições para que o sujeito adquira uma identidade e seja incluído no sistema de trocas. A partir daí, a identificação com o totem (possuir um nome) garante a indi- vidualização e a socialização. O totem é o representante do pai morto, que se insta- lou retroativamente como autor da lei e como ideal. Podemos traçar um paralelo entre o fenô- meno totêmico e a conjugalidade, consi- derando que ambos estruturam-se medi- ante a identificação. Ressaltamos que a conjugalidade, como vínculo emocional estável que busca conciliar a corrente sensual e os impulsos desviados da fina- lidade sexual propriamente dita, estrutu- ra-se sob a lei do pai, sob os efeitos do recalcamento, e opera na aquisição da identidade. A conjugalidade insere o su- jeito num sistema de trocas e numa genea- logia. Por intermédio do nome, o sujeito se prontifica a constituir e a ser constitu- ído pela família. O processo identificató- rio que ocorre na conjugalidade, dessa forma, também constitui um dos acessos à individualização e à socialização. Consideramos que na conjugalidade os ideais operam também nesse sentido, fortalecendo o vínculo emocional conju- gal, projetando os sujeitos numa perspec- tiva diacrônica e favorecendo a elabo- ração da relação ambivalente. Esse pro- cesso provoca a mutação subjetiva, pelo movimento de ilusão-desilusão-recria- ção. ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >45 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 O objeto-parceiro na recriação do eu No texto freudiano observa-se a valoriza- ção da identificação no processo forma- dor do eu e de suas instâncias, assim como na constituição dos vínculos huma- nos privados e públicos. Freud (1921) es- tabeleceu uma relação entre os neuróti- cos, os homens em grupo e os apaixona- dos, uma vez que apresentam laços afeti- vos intensos, embora, em alguns casos, assexualizados. No percurso de subjetiva- ção, as primeiras identificações formam o núcleo do eu, com base no qual são atraí- das as identificações posteriores. A iden- tificação surge a partir do investimento objetal, mantendo inconsciente a relação abandonada. O eu se transforma segundo o modelo do objeto abandonado e se oferece ao isso como substitutivo. A par- tir daí ocorre uma dessexualização que conduz à sublimação. A identificação, como método de sublimação, abre cami- nho para o narcisismo secundário e, as- sim, o eu se constitui por incorporações sucessivas (Freud, 1923). Florence (1987) acentua a participação da escolha de objeto atual nesse percurso. Ressalta que o que permeia e sustenta es- ses laços de amor e de identificação é o ideal do eu, que constitui-se, inicialmen- te, como resultante da identificação pri- mordial com o pai da “pré-história pes- soal”, uma identificação que remonta ao casal parental, anterior ao reconhecimen- to da diferença sexual. A identificação edípica segue-se a esse fenômeno da “pré-história pessoal”, inserindo o sujeito na historicidade. A partir daí, o sujeito prossegue num percurso de infindáveis identificações, uma série identificatória, marcada pela dupla exigência, da interdi- ção e do ideal a atingir. Freud (1921), discutindo o fenômeno amo- roso, ressalta o papel da supervaloriza- ção sexual do objeto amado e sua inde- pendência em relação à critica. O amor sensual pode ser definido como uma ca- texia de objeto, por parte das pulsões se- xuais, que visa à satisfação sexual direta. Em relações mais duradouras, como ocorre na conjugalidade, o investimento amoroso se mantém graças a um eficaz recalcamento das pulsões sexuais e gra- ças à idealização, que produz a ilusão de que o objeto é amado por seus méritos espirituais. Freud recorre ao conceito de ideal de eu para elucidar a forma como o objeto amoroso é tratado – da mesma ma- neira que o próprio eu do sujeito apaixo- nado. Nesse processo, grande parte da li- bido narcisista é transferida para o objeto. O autor faz uma distinção entre a identi- ficação e um estado exacerbado do estar amando, que se iguala às situações pato- lógicas conjugais com as quais, freqüen- temente, deparamo-nos na prática clínica.Na identificação normal, o eu fica enri- quecido com as propriedades do objeto que introjetou. Nas patologias, o eu fica empobrecido e opera uma substituição de seu constituinte mais importante pelo próprio objeto. Ocorre uma hipercatexia do objeto e esse é colocado no lugar do eu ou do ideal do eu. Em vez de o objeto servir de modelo, ele se transforma num substituto, uma espécie de tampão. Pode- mos comparar esses dois modos de fun- cionamento com os modos introjetivo e incorporativo, respectivamente, tal como descritos por Abraham e Torok, aborda- dos por nós anteriormente. A identificação bem-sucedida, na qual o objeto é tomado como modelo pelo ideal do eu, propicia o processo de reestrutu- ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >46 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 ração interna. Segundo nosso ponto de vista, essa operação origina uma recriação e não uma imitação estéril. Esse processo identificatório encontra-se na base da constituição da conjugalidade e é respon- sável pelos efeitos que ela produz sobre os sujeitos-parceiros, em contrapartida (Magalhães, 2000). M. Mannoni (1987) discute o papel estru- turante da série identificatória, focalizan- do sua relação com a função paterna e com o simbólico. A identificação é estu- dada como fenômeno que engloba os di- versos estágios de subjetivação, como: identificação narcísica, histérica, projeti- va, primária e ideal do eu. A autora dis- cute, principalmente, a função alteritária presente na identificação, ressaltando que o sujeito se identifica com a falta do outro e não com um atributo real. Sendo assim, a identificação refere-se a uma fis- sura e não a uma unificação do sujeito, conotando a diferença e não a semelhan- ça/igualdade. Kristeva (1987) também ressalta a impor- tância da compreensão do processo de estruturação do sujeito para o desenvol- vimento da teorização sobre a técnica analítica, pontuando o movimento contí- nuo e intenso de criação e recriação do eu. A autora assinala a qualidade instável e imprecisa desse processo, assim como o papel do corte e da renúncia a outras identificações. Nesse sentido, a função da interpretação analítica é favorecer a dis- criminação, colocando as identificações em série, desimbricando-as, na busca de uma identidade reconquistada. O próprio sintoma pode ser compreendido como uma identificação rígida, com perda da mobi- lidade que caracteriza a saúde mental. A identificação, entendida como fenôme- no estruturante e permanente, inaugura e permeia toda a vida do sujeito, sendo mais ou menos evidenciada num ou nou- tro aspecto, lugar ou enquadre. Contudo, é no estado amoroso que encontramos o terreno mais apropriado para analisar a intensidade e a radicalidade do processo identificatório em todas as suas nuances. É nesse enquadre que o jogo identificató- rio se potencializa em virtude, principal- mente, do investimento pulsional e da re- ciprocidade que fomentam a produção de significações (Magalhães, 2000; Féres- Carneiro e Magalhães, 2001). O estudo da conjugalidade em sua intrin- cada faceta identificatória representa, do nosso ponto de vista, uma oportunidade para compreender esse movimento ao mesmo tempo criativo, fluido, aprisionan- te, ambivalente. Afinal, assim como a con- jugalidade pode se fazer promotora des- se movimento dinâmico, ela aprisiona pela qualidade estável e pela permanên- cia do objeto amoroso. Ocorre uma du- pla exigência, uma conciliação entre im- pulsos amorosos e hostis, entre realidade e fantasia, ilusão e desilusão. Essa conci- liação operacionaliza-se mediante a iden- tificação mútua dos parceiros. O papel dos ideais Na obra freudiana, o conceito de ideal do eu aparece, muitas vezes, indiscriminado dos conceitos de eu ideal e supereu. Essa indiscriminação teórica relaciona-se com a evolução do conceito na abordagem psicanalítica, com sua função no desen- volvimento do psiquismo e com a articu- lação das instâncias psíquicas. O eu ideal está relacionado ao ideal nar- císico de onipotência construído de acor- do com o modelo do narcisismo infantil, ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >47 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 constitui-se anteriormente ao supereu e permanece ligado a ele sob a forma de uma aspiração de retorno narcísico, indi- ferenciado. O ideal do eu resulta da con- vergência do narcisismo (idealização do eu) e das diversas identificações proces- sadas no decorrer da vida do sujeito, ini- cialmente com seus pais e, posteriormen- te, com seus substitutos e com os ideais coletivos. No processo de subjetivação, o modelo pelo qual o sujeito procura con- formar-se constitui-se com base no ideal do eu (Laplanche, 1967). O conceito de ideal do eu aparece, ini- cialmente, como resultado do desloca- mento da libido narcísica, como substitu- to do narcisismo perdido na infância, quando o bebê era seu próprio ideal, como representante de um período no qual não havia conflito ou tensão entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais. No início da teorização freudiana, o as- pecto narcísico do eu ideal foi ressaltado, mas já aparece alguma distinção entre ideal do eu e eu ideal. Ao apresentar os dois modelos de escolha de objeto, Freud (1914) ressalta que embora o aspecto nar- císico esteja sempre presente na escolha amorosa, na escolha narcísica o sujeito toma o eu ideal como modelo e na esco- lha anaclítica é o ideal do eu que serve de suporte. Freud, em “Psicologia das massas e análi- se do ego” (1921), passa a colocar a função do ideal do eu em primeiro plano, dife- renciando-a nitidamente do eu. O autor enfatiza as funções de auto-observação, consciência moral, censura dos sonhos e sua influência sobre o recalcamento e acrescenta o valor da distância entre o ideal do eu e o eu real. A distância entre essas duas instâncias é muito variável e relaciona-se com a capacidade sublima- tória do sujeito, com a capacidade de en- contrar satisfação por meio do ideal do eu, que se diferenciou do eu, de acordo com o princípio de realidade. É necessá- rio que o sujeito ultrapasse o limite do narcisismo e direcione a libido aos obje- tos para não adoecer. A experiência amorosa é um dos caminhos para realizar essa operação. É, contudo, somente na segunda tópica da teoria freudiana que o ideal do eu apare- ce realmente articulado com o conceito de supereu. A partir daí, a ênfase na con- ceituação sobre o ideal do eu recai sobre o papel da lei paterna. De acordo com Laplanche (1967), o sistema supereu-ideal do eu realça a íntima ligação dos dois as- pectos do ideal e da interdição. Chasseguet-Smirgel (1975,1986) privilegia a relação pré-edípica e o componente ideal do eu, enfatizando que a noção do estado primitivo de fusão com a mãe, li- gado ao desamparo e à imaturidade hu- mana, é fundamental na discussão da for- mação dos ideais. A autora acentua esse estado inicial que propicia a emergência do sujeito e ao qual ele deseja retornar. Dessa forma, ela relaciona os ideais à or- dem da ilusão. Dentro dessa perspectiva, o ideal do eu é o herdeiro do narcisismo, o representan- te do desejo de reinstalar a ordem ilusó- ria, e o supereu é uma instância que ope- ra propiciando a formação do ideal. Des- de a perda da onipotência infantil, que resulta das inevitáveis falhas maternas no cuidado do bebê, da experiência de desi- lusão, os ideais representam, simult\ânea e paradoxalmente, o desejo de retorno ilusório e uma defesa contra esse retorno, uma tentativa de substitui-lo simbolica- ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >48 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 mente. Com base nessa perspectiva,enfa- tizamos que a relação amorosa é repre- sentativa dessa tentativa substitutiva. Da experiência ilusória à busca de integração No texto freudiano, a distância entre o ideal do eu e o eu foi valorizada e relaci- onada com a capacidade sublimatória do sujeito (Freud, 1921). Chasseguet-Smirgel (1975) ressalta que na experiência amoro- sa, desde a escolha do parceiro, sujeito e objeto representam a objetivação da re- lação entre o eu e o ideal do eu, respec- tivamente, como se o parceiro fosse ca- paz de encarnar seu ideal. Durante todo o processo de subjetivação, que se perpetua por toda a existência, o sujeito busca preencher o intervalo que se instaura entre o eu e seu ideal. É a per- da do estado narcísico inicial que propi- cia o reconhecimento do objeto e o mo- vimento de criação dos ideais. Esse movi- mento visa à integração do eu e a relação amorosa participa desse esforço integra- dor. A conjugalidade depende do reco- nhecimento do objeto como discrimina- do do eu e da criação de ideais compar- tilhados. Os ideais, por sua vez, impulsio- nam o desenvolvimento psicológico gra- ças à promessa ilusória que incorporam de retorno ao estado de completude. Chasseguet-Smirgel (1975), ressalta que os ideais operam na articulação de experiên- cias prazerosas precoces do passado, do tempo mítico da completude fusional, com substitutos possíveis do tempo pre- sente, de acordo com o princípio da rea- lidade, projetando-os num tempo futuro, de acordo com um modelo a ser seguido. Isto ocorre por intermédio da fantasia. Os ideais são, então, comparados às criações poéticas, representando um tipo especí- fico de fantasia que torna-se pública e configura-se no mundo exterior. Os ideais derivam da primeira experiência de satisfação que constitui a origem do desejo de completude, são relacionados ao domínio da fantasia e da ilusão. Em Freud, a ilusão relaciona-se, inicialmente, com a recuperação do narcisismo perdi- do e, ao longo da obra, passa a represen- tar uma defesa contra o reconhecimento da inevitabilidade da destrutividade hu- mana. A ilusão pode ser vista como fon- te de alienação ou como elemento estru- turante. Consideramos que, na conjugalidade, re- velam-se o papel estruturante da ilusão e dos ideais a ela relacionados, responsá- veis pela manutenção da relação amoro- sa. Na trama identificatória, esses são os componentes básicos e estruturantes que produzem transformações nas subjetivi- dades dos parceiros. O papel da ilusão na dialética dos proces- sos de identificação e de individuação, foi desenvolvido por Winnicott (1951). O au- tor enfatiza que o sujeito constitui-se dentro do terreno ilusório da relação fu- sional mãe-bebê, em que a solidão rela- ciona-se com a presença e não com a au- sência. A presença da mãe suficientemen- te boa permite ao bebê desenvolver a ca- pacidade de ficar só, sentindo-se interna- mente acompanhado. Assim, ele poderá suportar as desilusões que a realidade impõe, as falhas que apontam para a in- completude. Discutindo a importância dos ideais para o desenvolvimento do eu, Chasseguet- Smirgel (1975) ressalta que a prematura- ção e a incompletude humana impelem o sujeito a se reestruturar permanente- ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >49 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 mente. O desenvolvimento humano impli- ca integração e elaboração sucessivas nos diversos estágios da vida. As relações entre o ideal do eu e o prin- cípio de realidade fundamentam o com- ponente estruturante e integrador dos ideais. A formação do ideal do eu envol- ve adiamento, desvios e inscrição tempo- ral, características do modo de funciona- mento do princípio de realidade. Qual- quer falha na integração das etapas evolu- tivas resultará numa tensão entre eu e ideal do eu. Essa tensão, do nosso ponto de vista, tende a manifestar-se na estrutu- ração da conjugalidade, pela reformula- ção compartilhada dos ideais que é colo- cada em pauta na relação conjugal. Chasseguet-Smirgel (1975), discutindo as relações entre ideal do eu, estado amoro- so e genitalidade, assinala esse movimen- to contínuo de estruturação do sujeito, que é sempre impelido a realizar substi- tuições, reelaborações, diante das desilu- sões que sofre desde os primórdios de sua existência e ressalta como esse movimen- to pode ser analisado mediante suas re- edições, como no caso do estado amoroso. Considerando que o desejo edípico apóia-se no desejo de reencontrar o ob- jeto primário, a dissolução do Édipo tor- na-se ameaçada. Chasseguet-Smirgel res- salta que o conflito edípico permanece latente e será reativado em outros perío- dos do ciclo evolutivo. A renúncia defini- tiva resultaria numa dissolução do ideal do eu, por outro lado, se a ferida narcí- sica permanecesse sempre aberta, resul- taria no aumento excessivo do ideal, au- mentando a distância entre o eu e seu ideal. Na maior parte das vezes, o ideal coloca- se eqüidistante em relação a esses extre- mos. Isso resulta da influência de três fa- tores: a proteção que o supereu confere mediante a instauração da proibição do incesto, protegendo o narcisismo; a alter- nativa de deslocamento do ideal do eu sobre novos modelos, mediante ativida- des sublimatórias; e a possibilidade de buscar a fusão perdida no amor. A con- jugalidade, uma vez que representa uma das formas de buscar o preenchimento deste intervalo, mobiliza alterações na constituição das subjetividades dos par- ceiros. Tendo em vista o movimento dinâmico e contínuo de estruturação do eu e o cará- ter maturativo do ideal do eu, enfatizamos o valor da dimensão da conjugalidade nesse processo elaborativo. Chasseguet- Smirgel (1975) afirma que os principais elementos do processo de desenvolvi- mento da imagem do ideal do eu através do amor são: a esperança de reencontrar a completude perdida mais de acordo com o princípio de realidade; a atividade sublimatória e as satisfações obtidas por meio das relações sexuais, que propiciam o reinvestimento no eu; o investimento positivo da realidade, sendo o parceiro amado integralmente, considerando-se suas imperfeições; e os resíduos da bus- ca do amor fusional manifesto na ligação com o objeto. Consideramos que na conjugalidade, quando a estabilidade da relação corres- ponde à manutenção do estado amoroso, em razão do investimento realizado pelos parceiros por ocasião do engajamento conjugal, é possível observar o desenvol- vimento da imagem do ideal do eu, medi- ante o laço conjugal, e suas influências na constituição das subjetividades em jogo, de acordo com os elementos postulados acima. ar tig os pu ls io na l > re vi st a de ps ica ná lis e > >50 an o XV I, n . 1 76 , d ez em br o/ 20 03 Assim, buscamos evidenciar o valor es- truturante da dimensão da conjugalidade e a forma como os parceiros se transfor- mam, uma vez que utilizam o “outro” como instrumento de recriação do eu. O estudo da experiência amorosa e da vi- vência da conjugalidade na clínica do ca- sal tem-nos instigado a desenvolver tais articulações e provocado novos questio- namentos sobre o lugar e o efeito da di- mensão da conjugalidade na série identi- ficatória, na constituição dos sujeitos-par- ceiros. 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