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Andrea Seixas Magalhães e Terezinha Féres-Carneiro
A conjugalidade na série identificatória:
experiência amorosa e recriação do eu
Trama identificatória
O percurso do processo identificatório,
que ora estamos nomeando “trama” para
nos referir ao entrelaçamento dos “eus”
na conjugalidade, ocupa uma posição
central na abordagem psicanalítica, não
somente pelo fato de a identificação ope-
rar na constituição da subjetividade, des-
tacando os efeitos estruturais do comple-
xo edípico, mas também por abrir possi-
No presente trabalho, buscamos analisar as relações entre conjugalidade, identificação
e o papel dos ideais no processo de produção das subjetividades dos parceiros. Com base
em uma leitura psicanalítica da conjugalidade, consideramos que a trama identificatória
conjugal, originada no momento da escolha amorosa, reatualiza vivências edípicas e pré-
edípicas e, ao mesmo tempo, representa uma oportunidade de recriação do eu.
Enfatizamos que o percurso identificatório se desenvolve por toda a vida e que o estudo
da dimensão da conjugalidade aprofunda a compreensão sobre a constituição do sujeito.
A conjugalidade, alicerçada em aspirações fusionais, mobiliza nos sujeitos-parceiros
reestruturações subjetivas, engendradas nas interpenetrações amorosas.
> Palavras-chave: Psicanálise, conjugalidade, identificação, ideais, subjetividade
In this article we analyze the interrelationship among conjugality, identification, and
the role of ideals in the production of each partner‘s subjectivity. Based on a
psychoanalytic reading of conjugality, we consider that the couple’s identification
scheme, which began at the moment the love choice was made, re-animates Oedipal
and pre-Oedipal experiences and represents an opportunity to re-create the ego. We
emphasize that the course of the identification process is developed throughout life
and that the subject‘s constitution can be better understood through a study of the
dimension of conjugality. Based on the aspiration toward fusion, conjugality
stimulates subjective reconfigurations in the subjects-partners, generated by the
interpenetrations of love.
> Key words Key words Key words Key words Key words: Psychoanalysis, conjugality, identification, ideals, subjectivity
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bilidades para outros desdobramentos e
explorações teóricas. Tais desenvolvimen-
tos abrangem desde a concepção das ins-
tâncias psíquicas até o papel da relação
transferencial e seus desdobramentos
identificatórios. Para O. Mannoni (1987),
a identificação é um modo de pensamen-
to que prescinde de justificação. Dessa
forma, tentaremos desvendar como se dá
esse processo; particularmente, teremos
como objetivo ressaltar o papel da conju-
galidade na série identificatória..
Na conceituação de identificação, Laplan-
che (1967) destaca o processo psicológi-
co no qual ocorrem assimilações de atri-
butos do outro, gerando transformações
totais ou parciais no sujeito que toma
como modelo esse outro. Esse processo
está na base da constituição e da diferen-
ciação da personalidade, que se dá por
meio de uma série de identificações. Con-
siderando a série identificatória contínua
e permanente base da constituição da
subjetividade, a conjugalidade pode ser
considerada uma dimensão privilegiada
no processo de recriação do eu.
Visando reconstituir o percurso teórico
do conceito de identificação e repensar a
identificação amorosa, faremos uma bre-
ve incursão no texto freudiano. Em “Estu-
dos sobre a histeria” (1895), Freud refere-
se à identificação como uma apropriação
relacionada a um elemento comum que
permanece inconsciente sob a forma de
uma fantasia, podendo ocorrer a coexis-
tência de várias identificações. Nessa fase
da teorização, o conceito de identificação
assemelhava-se à idéia de imitação, em-
bora não fosse equivalente à mesma.
A partir de estudos como “Totem e tabu”
(1912), “Luto e melancolia” (1915) e “Sobre
o narcisismo” (1914), a noção de incorpo-
ração vinculada à identificação é ressalta-
da. Na reformulação teórica realizada na
segunda tópica freudiana, em “O ego e o
id” (1923), é acentuada a idéia de que é o
processo de identificação que possibilita
a compreensão das instâncias psíquicas
como sistemas herdeiros das relações de
objeto.
Em “Sobre o narcisismo” (1914) depara-
mo-nos com a discussão da psicodinâmi-
ca da escolha amorosa relacionada dire-
tamente com o fenômeno identificatório.
São apresentadas duas formas de esco-
lha, narcísica e anaclítica. As duas moda-
lidades de escolha operam de acordo
com o modelo dos objetos parentais e com
as identificações ocorridas no período edí-
pico, marcadas pela ambivalência presente
em todo processo identificatório.
Em “Psicologia das massas e análise do
ego” (1921), Freud enuncia três modalida-
des de identificação. A primeira diz res-
peito à forma primeva do laço afetivo
com o objeto, é a identificação primária,
canibalesca, pré-edípica, que coloca em
pauta a noção de incorporação, desen-
volvida posteriormente pelos teóricos das
relações objetais. A segunda refere-se à
identificação como substituto regressivo
da escolha de objeto abandonada. Na ter-
ceira modalidade, mediante a operação
de deslocamento, um elemento comum é
tomado do outro e aparece em outro
ponto, sem que haja investimento sexual
direto. Essas três modalidades podem ser
entrelaçadas no jogo identificatório da
conjugalidade, resultando ora num pro-
cesso enriquecedor das subjetividades
dos parceiros, ora empobrecedor, ou até
patológico, nos casos em que o objeto é
tomado como substituto do eu.
O. Mannoni (1987) discute o processo for-
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mador do eu que deriva de sucessivas
identificações e desidentificações e tece
uma analogia com a assimilação que é
pertinente ao processo de crescimento
corporal. O sujeito cresce porque assimi-
la aquilo de que se pode apropriar e não
porque se entope de alimento.
Esse argumento nos conduz às distinções
de Torok e Abraham (Torok, 1968;
Abraham e Torok, 1972) entre incorpora-
ção e introjeção. Os autores, resgatando
a discussão de Ferenczi, ressaltam que o
movimento de introjeção não é da ordem
da compensação e sim do crescimento,
da expansão. Eles concebem o psiquismo
submetido a dois princípios: o alargamen-
to e o retraimento. O sujeito é exposto e
submetido à novidade, às heranças, aos
traumas, aos prazeres e aos encontros. A
forma como cada um integra esses fato-
res é que resultará na expansão ou no re-
traimento da subjetividade. O sujeito inte-
gra as representações dadas pelos obje-
tos, introjetando-as, e não os objetos em
si, incorporando-os.
A incorporação é considerada como fra-
casso da introjeção. Do nosso ponto de
vista, na conjugalidade, os sujeitos podem
se devorar-aniquilar ou se interpenetrar-
enriquecer. A conjugalidade se estrutura
de acordo com essas duas formas de
identificação com o parceiro, incorporan-
do-o ou introjetando-o. Quando a conju-
galidade se constitui por incorporação, o
componente alteritário é desconsiderado.
Por outro lado, quando a conjugalidade
se forma por meio da introjeção, o par-
ceiro pode ser assimilado e transformado,
num processo criativo, preservando e
enaltecendo a alteridade. A saúde do
vínculo conjugal depende dessa possibi-
lidade.
Embora consideremos que o protótipo
da identificação é a incorporação do ob-
jeto sexual, a estruturaçãoda subjetivida-
de é um processo contínuo e permanen-
te e não há como detectar uma represen-
tação do incorporado primitivo que ori-
ginou o primeiro desejo. Observamos que
a escolha de objeto encarna esse incor-
porado primitivo e o reencena em vários
tempos e segundo diferentes modalida-
des, sendo as modalidades básicas as es-
colhas narcísica e anaclítica. Na conjugali-
dade evidencia-se a revivescência do que
originou o primeiro desejo, viabilizando a
continuidade do processo elaborativo do
material que fora recalcado.
Eiguer (1985) ressalta que a escolha amo-
rosa equivale às formações de compro-
misso inconscientes, como sintomas ou
lapsos, enaltecendo as funções de descar-
ga pulsional, alívio econômico e mecanis-
mo defensivo. O autor valoriza o aspecto
resolutivo, restitutivo e simbólico do en-
contro amoroso, na medida em que pos-
sibilita a elaboração do conflito edípico.
Abraham (1962) discute a questão da ope-
ração simbolizante de identificação, que
ocorre por meio da transformação de
afecções em afetos. O autor acentua que
cada novo desejo consciente remete a
um desejo inconsciente recalcado. Dessa
forma, o objeto do desejo representa, si-
multaneamente, o obstáculo do desejo. E,
no processo de estruturação do eu, diver-
sos objetos-obstáculos são interiorizados
por identificação simbólica. O movimen-
to da série identificatória se enriquece
permanentemente de afecções. O autor
se refere a um aumento do patrimônio
do eu via identificação.
Ao falar de símbolo, Abraham afirma que
sua decifração depende do encontro
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com outra subjetividade. Afinal, os sím-
bolos indicam sempre a falta de uma par-
te complementar que permanece oculta
pelo recalcamento. Consideramos que o
objeto-parceiro, pelo fato de que desem-
penha imaginariamente um papel comple-
mentar, mobiliza o material recalcado e
produz um discurso amoroso com poten-
cial de elaboração e decifração.
Florence (1987) desenvolve uma análise
de diferentes tipos de identificação, pro-
postos na obra freudiana, tecendo outras
considerações elucidativas para a nossa
discussão. O autor afirma que a identifi-
cação narcísica é a mais primitiva e im-
portante, uma vez que produz a constitui-
ção do eu em suas clivagens. Um segun-
do tipo, a identificação melancólica, pro-
duz um retorno aos aspectos mais arcai-
cos da ambivalência, clivando o eu em
uma parte sádica, que se identifica com o
objeto, e em uma parte perseguida pela
fantasia do objeto. A identificação melan-
cólica é considerada uma forma fracassa-
da do que o autor chamou de identifica-
ção totêmica ou simbólica. Esse tipo de
identificação pressupõe uma escolha ob-
jetal de tipo narcísica na inauguração da
relação. Um terceiro tipo, a identificação
histérica, segue a lógica da identificação
onírica, expressando o desejo sexual recal-
cado, representado de forma regressiva
por meio das cenas do sonho e do sintoma.
Contudo, de acordo com o autor, é a
identificação totêmica ou simbólica que
instaura verdadeiramente uma diferen-
ciação no eu, mediante o superposiciona-
mento entre o eu e o ideal do eu. Isso
ocorre como resultante do trabalho de
luto do objeto amado-odiado que foi in-
corporado. Nesse processo, o eu se tor-
na herdeiro dos objetos que foram aban-
donados por imposição da realidade
como objetos sexuais. Essa é a resultante
do trabalho que é imposto ao sujeito no
processo de vir-a-ser.
O totemismo opera por meio da identifi-
cação em vários aspectos. O recalque do
incesto e do canibalismo é uma das con-
dições para que o sujeito adquira uma
identidade e seja incluído no sistema de
trocas. A partir daí, a identificação com o
totem (possuir um nome) garante a indi-
vidualização e a socialização. O totem é o
representante do pai morto, que se insta-
lou retroativamente como autor da lei e
como ideal.
Podemos traçar um paralelo entre o fenô-
meno totêmico e a conjugalidade, consi-
derando que ambos estruturam-se medi-
ante a identificação. Ressaltamos que a
conjugalidade, como vínculo emocional
estável que busca conciliar a corrente
sensual e os impulsos desviados da fina-
lidade sexual propriamente dita, estrutu-
ra-se sob a lei do pai, sob os efeitos do
recalcamento, e opera na aquisição da
identidade. A conjugalidade insere o su-
jeito num sistema de trocas e numa genea-
logia. Por intermédio do nome, o sujeito
se prontifica a constituir e a ser constitu-
ído pela família. O processo identificató-
rio que ocorre na conjugalidade, dessa
forma, também constitui um dos acessos
à individualização e à socialização.
Consideramos que na conjugalidade os
ideais operam também nesse sentido,
fortalecendo o vínculo emocional conju-
gal, projetando os sujeitos numa perspec-
tiva diacrônica e favorecendo a elabo-
ração da relação ambivalente. Esse pro-
cesso provoca a mutação subjetiva, pelo
movimento de ilusão-desilusão-recria-
ção.
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O objeto-parceiro na recriação do eu
No texto freudiano observa-se a valoriza-
ção da identificação no processo forma-
dor do eu e de suas instâncias, assim
como na constituição dos vínculos huma-
nos privados e públicos. Freud (1921) es-
tabeleceu uma relação entre os neuróti-
cos, os homens em grupo e os apaixona-
dos, uma vez que apresentam laços afeti-
vos intensos, embora, em alguns casos,
assexualizados. No percurso de subjetiva-
ção, as primeiras identificações formam o
núcleo do eu, com base no qual são atraí-
das as identificações posteriores. A iden-
tificação surge a partir do investimento
objetal, mantendo inconsciente a relação
abandonada. O eu se transforma segundo
o modelo do objeto abandonado e se
oferece ao isso como substitutivo. A par-
tir daí ocorre uma dessexualização que
conduz à sublimação. A identificação,
como método de sublimação, abre cami-
nho para o narcisismo secundário e, as-
sim, o eu se constitui por incorporações
sucessivas (Freud, 1923).
Florence (1987) acentua a participação da
escolha de objeto atual nesse percurso.
Ressalta que o que permeia e sustenta es-
ses laços de amor e de identificação é o
ideal do eu, que constitui-se, inicialmen-
te, como resultante da identificação pri-
mordial com o pai da “pré-história pes-
soal”, uma identificação que remonta ao
casal parental, anterior ao reconhecimen-
to da diferença sexual. A identificação
edípica segue-se a esse fenômeno da
“pré-história pessoal”, inserindo o sujeito
na historicidade. A partir daí, o sujeito
prossegue num percurso de infindáveis
identificações, uma série identificatória,
marcada pela dupla exigência, da interdi-
ção e do ideal a atingir.
Freud (1921), discutindo o fenômeno amo-
roso, ressalta o papel da supervaloriza-
ção sexual do objeto amado e sua inde-
pendência em relação à critica. O amor
sensual pode ser definido como uma ca-
texia de objeto, por parte das pulsões se-
xuais, que visa à satisfação sexual direta.
Em relações mais duradouras, como
ocorre na conjugalidade, o investimento
amoroso se mantém graças a um eficaz
recalcamento das pulsões sexuais e gra-
ças à idealização, que produz a ilusão de
que o objeto é amado por seus méritos
espirituais. Freud recorre ao conceito de
ideal de eu para elucidar a forma como o
objeto amoroso é tratado – da mesma ma-
neira que o próprio eu do sujeito apaixo-
nado. Nesse processo, grande parte da li-
bido narcisista é transferida para o objeto.
O autor faz uma distinção entre a identi-
ficação e um estado exacerbado do estar
amando, que se iguala às situações pato-
lógicas conjugais com as quais, freqüen-
temente, deparamo-nos na prática clínica.Na identificação normal, o eu fica enri-
quecido com as propriedades do objeto
que introjetou. Nas patologias, o eu fica
empobrecido e opera uma substituição
de seu constituinte mais importante pelo
próprio objeto. Ocorre uma hipercatexia
do objeto e esse é colocado no lugar do
eu ou do ideal do eu. Em vez de o objeto
servir de modelo, ele se transforma num
substituto, uma espécie de tampão. Pode-
mos comparar esses dois modos de fun-
cionamento com os modos introjetivo e
incorporativo, respectivamente, tal como
descritos por Abraham e Torok, aborda-
dos por nós anteriormente.
A identificação bem-sucedida, na qual o
objeto é tomado como modelo pelo ideal
do eu, propicia o processo de reestrutu-
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ração interna. Segundo nosso ponto de
vista, essa operação origina uma recriação
e não uma imitação estéril. Esse processo
identificatório encontra-se na base da
constituição da conjugalidade e é respon-
sável pelos efeitos que ela produz sobre
os sujeitos-parceiros, em contrapartida
(Magalhães, 2000).
M. Mannoni (1987) discute o papel estru-
turante da série identificatória, focalizan-
do sua relação com a função paterna e
com o simbólico. A identificação é estu-
dada como fenômeno que engloba os di-
versos estágios de subjetivação, como:
identificação narcísica, histérica, projeti-
va, primária e ideal do eu. A autora dis-
cute, principalmente, a função alteritária
presente na identificação, ressaltando
que o sujeito se identifica com a falta do
outro e não com um atributo real. Sendo
assim, a identificação refere-se a uma fis-
sura e não a uma unificação do sujeito,
conotando a diferença e não a semelhan-
ça/igualdade.
Kristeva (1987) também ressalta a impor-
tância da compreensão do processo de
estruturação do sujeito para o desenvol-
vimento da teorização sobre a técnica
analítica, pontuando o movimento contí-
nuo e intenso de criação e recriação do eu.
A autora assinala a qualidade instável e
imprecisa desse processo, assim como o
papel do corte e da renúncia a outras
identificações. Nesse sentido, a função da
interpretação analítica é favorecer a dis-
criminação, colocando as identificações
em série, desimbricando-as, na busca de
uma identidade reconquistada. O próprio
sintoma pode ser compreendido como uma
identificação rígida, com perda da mobi-
lidade que caracteriza a saúde mental.
A identificação, entendida como fenôme-
no estruturante e permanente, inaugura
e permeia toda a vida do sujeito, sendo
mais ou menos evidenciada num ou nou-
tro aspecto, lugar ou enquadre. Contudo,
é no estado amoroso que encontramos o
terreno mais apropriado para analisar a
intensidade e a radicalidade do processo
identificatório em todas as suas nuances.
É nesse enquadre que o jogo identificató-
rio se potencializa em virtude, principal-
mente, do investimento pulsional e da re-
ciprocidade que fomentam a produção
de significações (Magalhães, 2000; Féres-
Carneiro e Magalhães, 2001).
O estudo da conjugalidade em sua intrin-
cada faceta identificatória representa, do
nosso ponto de vista, uma oportunidade
para compreender esse movimento ao
mesmo tempo criativo, fluido, aprisionan-
te, ambivalente. Afinal, assim como a con-
jugalidade pode se fazer promotora des-
se movimento dinâmico, ela aprisiona
pela qualidade estável e pela permanên-
cia do objeto amoroso. Ocorre uma du-
pla exigência, uma conciliação entre im-
pulsos amorosos e hostis, entre realidade
e fantasia, ilusão e desilusão. Essa conci-
liação operacionaliza-se mediante a iden-
tificação mútua dos parceiros.
O papel dos ideais
Na obra freudiana, o conceito de ideal do
eu aparece, muitas vezes, indiscriminado
dos conceitos de eu ideal e supereu. Essa
indiscriminação teórica relaciona-se com
a evolução do conceito na abordagem
psicanalítica, com sua função no desen-
volvimento do psiquismo e com a articu-
lação das instâncias psíquicas.
O eu ideal está relacionado ao ideal nar-
císico de onipotência construído de acor-
do com o modelo do narcisismo infantil,
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constitui-se anteriormente ao supereu e
permanece ligado a ele sob a forma de
uma aspiração de retorno narcísico, indi-
ferenciado. O ideal do eu resulta da con-
vergência do narcisismo (idealização do
eu) e das diversas identificações proces-
sadas no decorrer da vida do sujeito, ini-
cialmente com seus pais e, posteriormen-
te, com seus substitutos e com os ideais
coletivos. No processo de subjetivação, o
modelo pelo qual o sujeito procura con-
formar-se constitui-se com base no ideal
do eu (Laplanche, 1967).
O conceito de ideal do eu aparece, ini-
cialmente, como resultado do desloca-
mento da libido narcísica, como substitu-
to do narcisismo perdido na infância,
quando o bebê era seu próprio ideal,
como representante de um período no
qual não havia conflito ou tensão entre as
pulsões do eu e as pulsões sexuais.
No início da teorização freudiana, o as-
pecto narcísico do eu ideal foi ressaltado,
mas já aparece alguma distinção entre
ideal do eu e eu ideal. Ao apresentar os
dois modelos de escolha de objeto, Freud
(1914) ressalta que embora o aspecto nar-
císico esteja sempre presente na escolha
amorosa, na escolha narcísica o sujeito
toma o eu ideal como modelo e na esco-
lha anaclítica é o ideal do eu que serve de
suporte.
Freud, em “Psicologia das massas e análi-
se do ego” (1921), passa a colocar a função
do ideal do eu em primeiro plano, dife-
renciando-a nitidamente do eu. O autor
enfatiza as funções de auto-observação,
consciência moral, censura dos sonhos e
sua influência sobre o recalcamento e
acrescenta o valor da distância entre o
ideal do eu e o eu real. A distância entre
essas duas instâncias é muito variável e
relaciona-se com a capacidade sublima-
tória do sujeito, com a capacidade de en-
contrar satisfação por meio do ideal do
eu, que se diferenciou do eu, de acordo
com o princípio de realidade. É necessá-
rio que o sujeito ultrapasse o limite do
narcisismo e direcione a libido aos obje-
tos para não adoecer. A experiência
amorosa é um dos caminhos para realizar
essa operação.
É, contudo, somente na segunda tópica da
teoria freudiana que o ideal do eu apare-
ce realmente articulado com o conceito
de supereu. A partir daí, a ênfase na con-
ceituação sobre o ideal do eu recai sobre
o papel da lei paterna. De acordo com
Laplanche (1967), o sistema supereu-ideal
do eu realça a íntima ligação dos dois as-
pectos do ideal e da interdição.
Chasseguet-Smirgel (1975,1986) privilegia
a relação pré-edípica e o componente
ideal do eu, enfatizando que a noção do
estado primitivo de fusão com a mãe, li-
gado ao desamparo e à imaturidade hu-
mana, é fundamental na discussão da for-
mação dos ideais. A autora acentua esse
estado inicial que propicia a emergência
do sujeito e ao qual ele deseja retornar.
Dessa forma, ela relaciona os ideais à or-
dem da ilusão.
Dentro dessa perspectiva, o ideal do eu é
o herdeiro do narcisismo, o representan-
te do desejo de reinstalar a ordem ilusó-
ria, e o supereu é uma instância que ope-
ra propiciando a formação do ideal. Des-
de a perda da onipotência infantil, que
resulta das inevitáveis falhas maternas no
cuidado do bebê, da experiência de desi-
lusão, os ideais representam, simult\ânea
e paradoxalmente, o desejo de retorno
ilusório e uma defesa contra esse retorno,
uma tentativa de substitui-lo simbolica-
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mente. Com base nessa perspectiva,enfa-
tizamos que a relação amorosa é repre-
sentativa dessa tentativa substitutiva.
Da experiência ilusória à busca
de integração
No texto freudiano, a distância entre o
ideal do eu e o eu foi valorizada e relaci-
onada com a capacidade sublimatória do
sujeito (Freud, 1921). Chasseguet-Smirgel
(1975) ressalta que na experiência amoro-
sa, desde a escolha do parceiro, sujeito e
objeto representam a objetivação da re-
lação entre o eu e o ideal do eu, respec-
tivamente, como se o parceiro fosse ca-
paz de encarnar seu ideal.
Durante todo o processo de subjetivação,
que se perpetua por toda a existência, o
sujeito busca preencher o intervalo que
se instaura entre o eu e seu ideal. É a per-
da do estado narcísico inicial que propi-
cia o reconhecimento do objeto e o mo-
vimento de criação dos ideais. Esse movi-
mento visa à integração do eu e a relação
amorosa participa desse esforço integra-
dor. A conjugalidade depende do reco-
nhecimento do objeto como discrimina-
do do eu e da criação de ideais compar-
tilhados. Os ideais, por sua vez, impulsio-
nam o desenvolvimento psicológico gra-
ças à promessa ilusória que incorporam
de retorno ao estado de completude.
Chasseguet-Smirgel (1975), ressalta que os
ideais operam na articulação de experiên-
cias prazerosas precoces do passado, do
tempo mítico da completude fusional,
com substitutos possíveis do tempo pre-
sente, de acordo com o princípio da rea-
lidade, projetando-os num tempo futuro,
de acordo com um modelo a ser seguido.
Isto ocorre por intermédio da fantasia. Os
ideais são, então, comparados às criações
poéticas, representando um tipo especí-
fico de fantasia que torna-se pública e
configura-se no mundo exterior.
Os ideais derivam da primeira experiência
de satisfação que constitui a origem do
desejo de completude, são relacionados
ao domínio da fantasia e da ilusão. Em
Freud, a ilusão relaciona-se, inicialmente,
com a recuperação do narcisismo perdi-
do e, ao longo da obra, passa a represen-
tar uma defesa contra o reconhecimento
da inevitabilidade da destrutividade hu-
mana. A ilusão pode ser vista como fon-
te de alienação ou como elemento estru-
turante.
Consideramos que, na conjugalidade, re-
velam-se o papel estruturante da ilusão e
dos ideais a ela relacionados, responsá-
veis pela manutenção da relação amoro-
sa. Na trama identificatória, esses são os
componentes básicos e estruturantes que
produzem transformações nas subjetivi-
dades dos parceiros.
O papel da ilusão na dialética dos proces-
sos de identificação e de individuação, foi
desenvolvido por Winnicott (1951). O au-
tor enfatiza que o sujeito constitui-se
dentro do terreno ilusório da relação fu-
sional mãe-bebê, em que a solidão rela-
ciona-se com a presença e não com a au-
sência. A presença da mãe suficientemen-
te boa permite ao bebê desenvolver a ca-
pacidade de ficar só, sentindo-se interna-
mente acompanhado. Assim, ele poderá
suportar as desilusões que a realidade
impõe, as falhas que apontam para a in-
completude.
Discutindo a importância dos ideais para
o desenvolvimento do eu, Chasseguet-
Smirgel (1975) ressalta que a prematura-
ção e a incompletude humana impelem
o sujeito a se reestruturar permanente-
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mente. O desenvolvimento humano impli-
ca integração e elaboração sucessivas nos
diversos estágios da vida.
As relações entre o ideal do eu e o prin-
cípio de realidade fundamentam o com-
ponente estruturante e integrador dos
ideais. A formação do ideal do eu envol-
ve adiamento, desvios e inscrição tempo-
ral, características do modo de funciona-
mento do princípio de realidade. Qual-
quer falha na integração das etapas evolu-
tivas resultará numa tensão entre eu e
ideal do eu. Essa tensão, do nosso ponto
de vista, tende a manifestar-se na estrutu-
ração da conjugalidade, pela reformula-
ção compartilhada dos ideais que é colo-
cada em pauta na relação conjugal.
Chasseguet-Smirgel (1975), discutindo as
relações entre ideal do eu, estado amoro-
so e genitalidade, assinala esse movimen-
to contínuo de estruturação do sujeito,
que é sempre impelido a realizar substi-
tuições, reelaborações, diante das desilu-
sões que sofre desde os primórdios de sua
existência e ressalta como esse movimen-
to pode ser analisado mediante suas re-
edições, como no caso do estado amoroso.
Considerando que o desejo edípico
apóia-se no desejo de reencontrar o ob-
jeto primário, a dissolução do Édipo tor-
na-se ameaçada. Chasseguet-Smirgel res-
salta que o conflito edípico permanece
latente e será reativado em outros perío-
dos do ciclo evolutivo. A renúncia defini-
tiva resultaria numa dissolução do ideal
do eu, por outro lado, se a ferida narcí-
sica permanecesse sempre aberta, resul-
taria no aumento excessivo do ideal, au-
mentando a distância entre o eu e seu ideal.
Na maior parte das vezes, o ideal coloca-
se eqüidistante em relação a esses extre-
mos. Isso resulta da influência de três fa-
tores: a proteção que o supereu confere
mediante a instauração da proibição do
incesto, protegendo o narcisismo; a alter-
nativa de deslocamento do ideal do eu
sobre novos modelos, mediante ativida-
des sublimatórias; e a possibilidade de
buscar a fusão perdida no amor. A con-
jugalidade, uma vez que representa uma
das formas de buscar o preenchimento
deste intervalo, mobiliza alterações na
constituição das subjetividades dos par-
ceiros.
Tendo em vista o movimento dinâmico e
contínuo de estruturação do eu e o cará-
ter maturativo do ideal do eu, enfatizamos
o valor da dimensão da conjugalidade
nesse processo elaborativo. Chasseguet-
Smirgel (1975) afirma que os principais
elementos do processo de desenvolvi-
mento da imagem do ideal do eu através
do amor são: a esperança de reencontrar
a completude perdida mais de acordo
com o princípio de realidade; a atividade
sublimatória e as satisfações obtidas por
meio das relações sexuais, que propiciam
o reinvestimento no eu; o investimento
positivo da realidade, sendo o parceiro
amado integralmente, considerando-se
suas imperfeições; e os resíduos da bus-
ca do amor fusional manifesto na ligação
com o objeto.
Consideramos que na conjugalidade,
quando a estabilidade da relação corres-
ponde à manutenção do estado amoroso,
em razão do investimento realizado pelos
parceiros por ocasião do engajamento
conjugal, é possível observar o desenvol-
vimento da imagem do ideal do eu, medi-
ante o laço conjugal, e suas influências na
constituição das subjetividades em jogo,
de acordo com os elementos postulados
acima.
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Assim, buscamos evidenciar o valor es-
truturante da dimensão da conjugalidade
e a forma como os parceiros se transfor-
mam, uma vez que utilizam o “outro”
como instrumento de recriação do eu. O
estudo da experiência amorosa e da vi-
vência da conjugalidade na clínica do ca-
sal tem-nos instigado a desenvolver tais
articulações e provocado novos questio-
namentos sobre o lugar e o efeito da di-
mensão da conjugalidade na série identi-
ficatória, na constituição dos sujeitos-par-
ceiros.
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Artigo recebido em junho de 2003.
Aprovado para publicação em novembro de 2003.

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