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A Intervenção do Estado em Questões Privadas A questão da legitimidade estatal em intervir em assuntos de orientação sexual e de gênero César Macêdo Giovana Porto Lays Caceres Vitor Oliveira Pinto1 “Não há caminho fácil para a liberdade.” Nelson Mandela 1 Os autores gostariam de agradecer à colaboradora Fernanda Ferreira Mota, pela atenta revisão e pelas sugestões providas a nosso artigo. #02 63 Justiça Enquanto Responsabilidade 1. Introdução “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direi- tos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (ONU, 1948). Este artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos1 está intrinsecamente relacionado à temática deste artigo, afinal, ao mesmo tempo em que garante a liberdade, estabelece preceitos que, a princípio, só podem ser garantidos com certa restrição à autonomia individual. O limite da intervenção estatal nas liberdades individuais ge- rou debate entre diversos teóricos ao longo da história (BONA- VIDES, 1972). Pensadores do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático envolvidos nessa temática são inúmeros (ABRÃO, 2008). Os contratualistas, ao buscarem explicar o surgi- mento da sociedade ou do Estado e encontrar um fundamento de legitimidade para os mesmos, também contribuíram para a com- preensão da função do Estado na sociedade (ABRÃO, 2008). A intervenção nas liberdades individuais pode ocorrer de di- versas formas, e vir em diferentes intensidades e de várias dire- ções, moldando o indivíduo e criando padrões de comportamento (SUZI, 2006). Ela pode vir através da legislação, da força policial, do poder midiático, com o apoio do Estado ou, até mesmo, através dos discursos morais reproduzidos na sociedade, como será visto em seções posteriores (SUZI, 2006). Para entender melhor essa questão é preciso analisar, inicial- mente, qual o conceito e o contexto do surgimento dos direitos e das garantias individuais. Esse será o objeto da primeira seção, que abordará, principalmente, os principais ordenamentos que 1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi documento assinado em 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU, 1948). 64 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 inovaram ao prever tais direitos. Tal seção analisará ainda de que maneira esses direitos interferem no processo legislativo atual. Em um segundo momento, será estudado como o Estado se insere nessa tendência interventora; será analisado a partir de que momento, por exemplo, o Estado passa a ser visto como atuante ati- vamente na regulação das atividades individuais, com um discurso de garantia do bem-estar. Finalmente, na terceira seção, será reali- zada uma abordagem mais prática do assunto. Serão delimitados, em um primeiro momento, a partir da análise das teorias de alguns autores da filosofia do direito, alguns problemas, vantagens e limites da intervenção estatal. Afinal, como se detalhará posteriormente, a garantia da liberdade não pressupõe total ausência de controle, na medida em que o indivíduo não pode fazer tudo aquilo que quiser em nome de sua autonomia (AZEVEDO LOPES, 2006). Existem certas esferas, contudo, que são estritamente indivi- duais e que, portanto, não deveriam ser objeto de regulação pela via legislativa (DWORKIN, 2007). Será objeto deste artigo, mais especificamente, a questão da criação de leis anti-homossexuali- dade e da criminalização do aborto. 2. Os direitos humanos como limites à atuação do Estado. A Declaração Universal de 1948 é, geralmente, o primeiro do- cumento citado ao se pensar na história dos direitos humanos. O surgimento destes, contudo, certamente remonta a um período anterior. No entanto, existem muitas reflexões e indagações no sentido de se eles sempre existiram ou se são construções histó- ricas (DIRCEU; PICCIRILLO, 2013). Tendo isso em vista, serão abordados, a seguir, fatos históricos determinantes para o surgi- mento da concepção de direitos humanos. Com a queda do modelo da democracia ateniense e da re- pública romana, passou a vigorar, a partir do século IV a.C., o modelo de império, com os poderes concentrados nas mãos de um governante (COMPARATO, 2012). Este modelo persistiu no continente europeu até o século V da era cristã, quando se deu a extinção do império romano do Ocidente. Durante a Baixa Idade Média2, volta a tomar corpo a ideia de 2 A Idade Média é o período iniciado no ano 453 da era cristã, com a extinção do império romano do Ocidente, dando início a uma nova civilização, constituída por in- stituições clássicas, valores cristãos e costumes germânicos. Os historiadores costumam dividi-la em dois períodos, a Baixa Idade Média e a Alta Idade Média, cuja linha de separação se situa na passagem do século XI para o século XII, período em que duas “cabeças reinantes, o imperador carolíngio e o papa, passaram a disputar asperamente a hegemonia suprema sobre todo o território europeu” (COMPARATO, 2012, p. 44). 65 Justiça Enquanto Responsabilidade limitação do poder dos governantes, ideia esta que é pressuposto do reconhecimento feito séculos mais tarde da existência de di- reitos comuns a todos os indivíduos (COMPARATO, 2012). A partir do século XI, há novamente um processo de concentração de poder. Entretanto, na Inglaterra a Magna Carta de 1215, que dá destaque à liberdade3, surge com o intuito de enfraquecer esse processo (COMPARATO, 2012). Em 1688, também na Inglaterra, editou-se a Bill of Rights, documento surgido no âmbito da Re- volução Gloriosa4. Essa Declaração de Direitos foi elaborada pelo Parlamento e limitava os poderes do monarca, mudando a con- cepção de justiça, evitando que o rei atuasse de forma arbitrária (MAER; GAY, 2009). Já no século XVIII, o Iluminismo desencadeou eventos de gran- de repercussão, como a Independência Americana (1776) e a Re- volução Francesa (1789). Esses eventos evidenciavam um desejo de mudança do sistema vigente e inauguravam uma nova ordem polí- tica mundial (VICENTINO, 2006). A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) incorpora a ideia de que os seres huma- nos são livres por natureza e que possuem certos direitos inatos, isto é, direitos que nascem com o indivíduo, como desfrutar da vida e da liberdade, direitos dos quais não podem se dispor ou serem negados (COMPARATO, 2012). A “busca da felicidade”, presente nesta declaração, “é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana. Uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. Uma razão uni- versal, como a própria pessoa humana” (COMPARATO, 2012, p. 49). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada na Revolução Francesa reafirma e reforça a liberdade e a igualdade dos seres humanos (COMPARATO, 2012). O historiador Eric Hobsbawm (2004) considera que o prin- cipal objetivo do surgimento da concepção de direitos humanos era libertar o indivíduo do sistema social dominante na Europa na Idade Média, marcado não por um racionalismo e sim por um tradicionalismo ignorante. A liberdade, a igualdade e, em seguida, a fraternidade de todos os homens eram os slogans usados para combater a superstição das igrejas e a irracionalidade que dividia as pessoas em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas 3 Fábio Konder Comparato (2012) ressalta que não se tratava de uma liberdade geral em benefício de todos, mas sim de uma liberdade específica, em favor dos estamentos supe- riores da sociedade – o clero e a nobreza. A liberdade geral, sem distinção de condição social, só seria declarada ao final do século XVIII. 4 A Revolução Gloriosa ocorreu na Inglaterra em 1688, culminando na destituição do então rei Jaime II e na ascensão ao trono de Guilherme de Orange(VICENTINO, 2006). 66 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante (HOBSBAWM, 2004). A Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945) representa um divisor de águas na história dos direitos humanos (FACCHI, 2011). O regi- me nazista suprimia direitos individuais e negava a própria ideia de humanidade, programando a exterminação completa de parte dela. Em nome da obediência à ordem, a responsabilidade e a autonomia do indivíduo foram ignoradas assim como séculos de lutas políticas e conquistas sociais e jurídicas em nome do poder e da pretensa superioridade de um povo (FACCHI, 2011). Evidenciou-se a fragi- lidade das construções da democracia e dos direitos fundamentais. No pós-guerra, os direitos humanos voltaram a ser o limite da atu- ação do legislativo e o compromisso do governo, tendo a função de proteger as liberdades individuais, inclusive daqueles que não espe- lhavam a maioria (FACCHI, 2011). Os direitos humanos passam a ter como característica princi- pal a universalidade, que postula que eles devem ser reconhecidos e respeitados em todo o mundo, independentemente de particu- laridades culturais (MORAES, 2002). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 após as atrocidades cometidas na Segunda Guer- ra Mundial, caracteriza direitos humanos como: [...] o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da so- ciedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter na- cional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição (ONU, 1949). Enquanto as Declarações de direitos e as Constituições na- cionais podem ser consideradas produtos de sociedades relati- vamente homogêneas culturalmente, a Declaração de 1948 parte de Estados e povos extremamente heterogêneos, e logo surgem as divergências relacionadas à relação entre o universalismo dos direitos e o particularismo das culturas (FACCHI, 2011). A partir do momento em que direitos ligados à história e cultura europeias são estendidos a todas as pessoas do mundo, surgem as dificul- dades de aplicá-los às situações que envolvem relações completa- mente diferentes entre sociedade, famílias e indivíduos (FACCHI, 67 Justiça Enquanto Responsabilidade 2011). A própria ideia de direitos subjetivos individuais, funda- mental à concepção de direitos humanos, não é bem recepcionada em diversas sociedades em que as pessoas não são consideradas como cidadãos autônomos perante o Estado, mas inseridas em famílias, classes, clãs e castas, pensadas com base na socialização da pessoa, em sua participação na coletividade, em deveres mais que em direitos, e tendo direitos variados conforme seu papel e pertencimento ao grupo (FACCHI, 2011). Isso leva à reflexão sobre se os direitos realmente são universais, ou se são fruto de um grupo específico de pessoas e, desta forma, inadequados para representar interesses, valores e necessidades de grupos de pessoas diferentes. Apesar disso, os direitos humanos são cada vez mais difundidos pelo mundo, em documentos nacio- nais e internacionais, em organizações não governamentais e den- tro de cada sociedade. Isso porque invocar os direitos humanos representa um poderoso veículo de reivindicações, de protestos e de legitimação das escolhas políticas (FACCHI, 2011). 3. Da Intervenção Estatal No fim da Idade Média, foi constituído o Estado Moderno, caracterizado, basicamente, pela soberania5 em vez da suserania6, pela criação de leis aplicadas à população, pela unificação do sis- tema de pesos e medidas e pela existência de um idioma nacional (MORAIS, 2011). Esse Estado teve, como primeira fase, a consoli- dação do Estado Absolutista, em que um rei possuía o poder abso- luto e ilimitado para aplicar e criar leis de âmbito socioeconômico, militar, religioso e político (MORAIS, 2011). No entanto, as Revoluções Burguesas do século XVII e do XVIII, como a Revolução Puritana e a Gloriosa, a Independência dos Estados Unidos da América e a Revolução Francesa, contri- buíram para o fim do Estado Absolutista e para a implantação de um modelo de Estado de Direito, consagrado pela ideologia libe- 5 A soberania de um Estado é indivisível, pois o que ocorre no Estado é fato universal, geral, que atinge praticamente toda a sociedade. Além disso, é inalienável, pois sem a soberania, o povo, a nação ou o Estado, detentores dela, desaparecem. O fato de ser imprescindível também constitui uma das características da soberania, já que não pode haver um prazo de validade para existir a soberania (ALVES, 2010). É o poder absoluto e perpétuo de uma República (BODIN, 2010 [1576]). 6 A suserania era uma das relações verticais entre senhores e servos no feudalismo. O suserano poderia conceder a posse de terra produtiva com os trabalhadores correspon- dentes ao vassalo, nas relações de suserania e vassalagem entre os membros da nobreza feudal. Entre o suserano e o vassalo havia uma parcelarização do poder, em que havia uma série de direitos para os senhores feudais em detrimento dos servos (BARROS, 2008). 68 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 ral (SANTOS, 2010). O fim do absolutismo monárquico também estava associado ao desejo da sociedade ao advento de um Estado não interventor e à vontade de que o governante fosse submisso a limites jurídicos em sua atuação (SANTOS, 2010). O Estado de Direito, de acordo com Ferrajoli (1995), consistia em um Estado regulado pela lei e oriundo das Constituições mo- dernas. Além disso, o novo Estado possuía características básicas como o princípio da legalidade, em que o poder legislativo, o ju- diciário e o administrativo estavam subordinados a leis gerais e abstratas7 (FERRAJOLI, 1995). O serviço dos poderes estatais em prol da garantia dos direitos fundamentais e dos direitos à liberda- de e da satisfação aos direitos sociais também constituíam atribu- tos desse Estado (FERRAJOLI, 1995). Rosenfeld também definiu alguns constituintes desse novo Estado: a submissão dos cidadãos somente a leis publicamente promulgadas, a máxima similaridade entre a função do poder Legislativo e do Judiciário e a soberania das leis sobre todos os indivíduos (ROSENFELD, 2003). Além das características apresentadas, a abordagem do que são os direitos fundamentais é necessária para a compreensão do Estado de Direito. Ferrajoli (2001) classifica os direitos fun- damentais de acordo com certas categorias. Os direitos humanos, caracterizados como direitos primários relativos a todas as pesso- as, como o direito à educação e à saúde, correspondem a uma das categorias. A outra diz respeito aos direitos públicos, que também são direitos primários relativos aos cidadãos, sendo exemplos o direito ao trabalho e à residência, de acordo com a legislação de cada país (FERRAJOLI, 2001). Há, ainda, os direitos civis, direitos secundários relativos às pessoas com poder negocial e com liber- dade de iniciativa empresarial, por exemplo; e os direitos políticos, também direitos secundários relativos aos cidadãos com a capaci- dade de votarem e de serem votados (FERRAJOLI, 2001). As Constituições, relativas ao Estado de Direito, primeiramen- te, incorporaram a defesa da garantia dos direitos de liberdade, caracterizando, assim, o Estado Liberal de Direito (CADEMAR- TORI; CADEMARTORI, 2006). No século XX, porém, houve uma ampliação dos direitos fundamentais devido à incorporação das obrigações correspondentesaos direitos sociais que, de acordo com Marshall, são os associados às necessidades individuais como a saúde, a educação e o salário, o que caracterizou o Estado Social de Direito (CADEMARTORI e CADEMARTORI, 2006). O Esta- 7 As normas gerais são aquelas que regulam a conduta de sujeitos indeterminados, ou seja, não individualizados e não especificados; as normas abstratas são aquelas que se referem a um evento descrito pela norma que não foi materializado (CARVALHO, 1999). 69 Justiça Enquanto Responsabilidade do de Direito, portanto, passou a ser visto como um conjunto de direitos liberais e sociais, além de outros direitos que começaram a ser exigidos pela sociedade como os econômicos e os culturais, condizentes com a garantia da igualdade, da dignidade humana e a cidadania (FERREIRA, 2010). Houve a incorporação, também, de princípios da democracia política, que defende que as autorida- des devem ser eleitas pela maioria dos cidadãos, direta ou indire- tamente (CADEMARTORI e CADEMARTORI, 2006). A partir disso, surge o Estado Democrático de Direito, marca- do, principalmente, pela garantia das liberdades civis, dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, por meio de proteção jurí- dica dos cidadãos, como algumas das funções (SANTOS, 2011). Zimmermman (2002) também atribui algumas características a esse Estado, dentre as quais cabe destacar que a sociedade política é fundamentada por meio de uma Constituição escrita e que ma- nifesta a aceitação do princípio da separação dos poderes. Além disso, também são propriedades do Estado Democrático de Di- reito, a limitação das ações estatais e o reconhecimento de que os direitos fundamentais devem ser considerados como inalienáveis à pessoa humana (ZIMMERMMAN, 2002). As modificações durante séculos na estrutura organizacional das sociedades resultaram nas diferentes formas de Estado (SAN- TOS, 2011). Ao mesmo tempo em que houve a exigência social de um Estado Mínimo, em que havia pouca intervenção do Estado na ação individual, especialmente econômica, um Estado inter- ventor também era exigência de alguns, a partir da ampliação do exercício da cidadania nos países. Essa ampliação foi possibilitada pela incorporação de direitos civis, correspondentes às liberdades, como a de ir e vir, a de realizar negócio; de políticos, que se re- ferem à participação política; e de direitos sociais, associados às necessidades do indivíduo, como educação, saúde, trabalho e la- zer (MARSHALL,1967). No entanto, o Estado interventor, mesmo que possua a limitação da ação dos governantes, pode interferir nas liberdades particulares dos cidadãos (BONAVIDES, 1972). O papel do Estado quanto às restrições na escolha da vesti- menta e à intolerância religiosa em alguns países islâmicos, por exemplo, é alvo de discussões (SUZI, 2006). A proibição da prática da eutanásia ativa na França e no Brasil, ou os limites do suposto cuidado corporal com o uso de anabolizantes, também provocam a reflexão dos cidadãos se eles devem se submeter à permissão ou à proibição de seus atos pelo Estado e em que medida essa atuação estatal é legítima ou favorável à sociedade (SUZI, 2006). Além des- sas questões, a resposta do Estado à opção da mulher sobre man- 70 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 ter ou não a gestação e a intervenção estatal na orientação sexual dos indivíduos, permitindo ou proibindo a homossexualidade ou o poliamor8, também são discutíveis (SUZI, 2006). Teóricos do Estado Liberal debateram sobre qual deveria ser o limite da intervenção estatal nas liberdades individuais (ABRAO, 2008). Não só eles, mas também os teóricos do Estado Social e os do Estado Democrático (BONAVIDES, 1972). Afinal, em que contexto ocorreu a transição entre o Estado Liberal, o Social e o Democrático? Como ocorreu a implantação deles? O que os di- ferencia? Como a intervenção do Estado ocorre? A legislação e o uso da violência estatal podem conter as manifestações das li- berdades individuais? A mídia possui algum papel na limitação da ação do Estado na vida privada? As possíveis respostas a essas perguntas serão abordadas nas subseções seguintes. 3.1 Perspectiva histórica do surgimento de um Estado interventor Algumas teorias buscaram explicar a origem do Estado, que, de acordo com Fachin (2000), possui diferentes conceituações. Dal- mo Dallari, por exemplo, afirmou que o Estado é baseado na ideia da força e na noção de sua natureza jurídica, ou seja, na noção de que só se torna componente do Estado aquilo que é integrado à ordem jurídica9 estatal (DALLARI, 2000). A noção de força fez com que Bourdieu definisse o Estado como institucionalização do poder, que Marx Weber conceituasse como monopólio da força, e que Heller afirmasse que a definição de Estado é a unidade de dominação (DALLARI, 2000). Além das definições do que é o Estado, há teorias que descre- vem o surgimento dele, como a teoria da origem familiar, cujo principal defensor foi Aristóteles, que defende que a família é a base para o surgimento do Estado; e a teoria da origem patrimo- nial, defendida por Platão e Engels, que afirmava que a proprieda- de definia a origem estatal (FACHIN, 2000). Há, também, a teoria da força, em que Hobbes e Weber defendiam a supremacia dos vencedores sobre os vencidos como fundamental no nascimen- to do Estado (FACHIN, 2000). A teoria acerca do contrato social também fundamentava o nascimento do Estado e/ou da socieda- de política. Os contratualistas, em geral, afirmavam que os indiví- duos viviam em um estado pré-político e pré-social, o estado de 8 Poliamor é definido como as relações íntimas e duradouras com mais de um parceiro (BEATRIZ, 2013). 9 O termo “ordem jurídica” é definido como a ordem coercitiva da conduta humana (KELSEN, 1998). 71 Justiça Enquanto Responsabilidade natureza, em que eram livres e iguais, e estes indivíduos, mediante um acordo voluntário, firmam um contrato, hipotético, em que as pessoas transferiam a um ente soberano o poder para criar e aplicar as leis (ABRÃO, 2008). Apesar das diversas teorias acerca da origem do Estado, a te- oria contratualista será a abordada nesta seção por meio do pen- samento de Thomas Hobbes e de Jean J. Rousseau. Além disso, o posicionamento de Kant, mesmo não sendo um contratualista, é importante também para a compreensão do surgimento do Esta- do interventor na sociedade, e também será tratado mais adiante (BONAVIDES, 1972). Thomas Hobbes (1979) alegava que a solução racional para o estado de guerra iminente do estado natural era a celebração de um contrato que forçaria os indivíduos, por medo da sanção, a cumprirem os pactos e as leis (MARTINS, 1994). O contrato so- cial de Hobbes não possuía a função de limitar a atuação política, mas de justificar a soberania, considerada absoluta (MARTINS, 1994). O contrato social celebrado resultava na criação de um Es- tado, denominado Leviatã por Hobbes. Esse Estado possuía o di- reito de representar os seus membros e era dotado de demasiado poder e força, suficientes para permitir a direção das vontades dos indivíduos à paz e ao auxílio coletivo contra inimigos externos do Estado pelo Leviatã (HOBBES, 1979). Além disso, ele teria o poder para decretar e executar as leis, delimitar e garantir a pro- priedade privada e reivindicar a obediência incondicional dos que estariam sendo governados por meio das instituições públicas, contanto que fosse mantido o respeito aos dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz (HOBBES, 1979). Rousseau, por sua vez, defendia que os indivíduos eram sú- ditos das leis, o que seria concretizado pela submissão às leis e à autoridade do governante que os representaria (ROUSSEAU, 1965). Diferentemente de Hobbes, o contrato social não era uma mera submissão dos indivíduos em trocade proteção, nem um ato ilimitado de confiança, mas estava associado a uma entidade para a qual o indivíduo fez uma entrega total de sua autonomia, ou seja, da capacidade de promover e seguir vontades próprias (BO- NAVIDES, 1972). Embora a sociedade fosse constituída por uma coletividade de indivíduos, a sociedade política resultante do con- trato celebrado possuía uma vontade geral única, em que todos os cidadãos pudessem ser reconhecidos, caracterizada também pela busca do bem comum (MARTINS, 1994). O posicionamento de Immanuel Kant (2002) também é funda- mental para a compreensão da intervenção estatal. A partir de um 72 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 contrato originário, os indivíduos renunciavam às suas liberdades e, posteriormente, como integrantes da república, as adquiriam nova- mente (KANT, 2002). O contrato originário justificaria o Estado de Direito e as suas leis (MARTINS, 1994). Há, ainda, a afirmação kan- tiana de que a liberdade, a igualdade e a autonomia privada neces- sitam de um Estado baseado na formação democrática da vontade geral para serem concretizados (MARTINS, 1994). Sendo assim, as vontades particulares estariam contidas nas gerais, o que possibili- tava que o poder para a criação de leis pelo soberano, pertencente à vontade geral, fosse ilimitado (BONAVIDES, 1972). No entanto, a liberdade, em Kant, é vista como apenas uma ideia, uma autonomia da vontade, um conflito ético10 possível de solução apenas no cam- po dos valores (BONAVIDES, 1972). 3.1.1 Quanto ao Estado Liberal de Direito A fim de combater o regime político e o poderio sociopolítico da nobreza11 no Estado Absolutista, a burguesia12 recorria a uma teoria com o intuito de fundamentar o combate ao regime político vigente (BONAVIDES, 1972). A teoria era a da propriedade pri- vada como direito natural e a sua formulação foi feita pelo filóso- fo inglês John Locke no livro Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690), no final do século XVII. De acordo com o filósofo, a propriedade foi estabelecida por Deus na criação do mundo e do homem, sendo vista, então, como direito natural de todos os membros da sociedade (LOCKE, 2001 [1690]). O liberalismo, uma ideia concretizada por Locke na obra supracitada, conside- rado em sua vertente política, está associado à intervenção estatal mínima na sociedade, tendo o Estado como função a proteção das liberdades fundamentais do indivíduo (a propriedade privada, a vida e a liberdade em si) (LOCKE, 2001 [1690]). A ascensão da burguesia colaborou para a construção de um ideal de liberdade do homem perante o Estado, baseado nas con- cepções burguesas de política, constituídas pela pretensão da clas- se em ascender politicamente, se fundamentando na técnica se- paratista por aparatos constitucionais (BONAVIDES, 1972). Esse 10 A ética, nesse contexto, deve ser entendida como uma ciência das leis da liberdade (TERRA, 1995). Ou ainda, como a prática da liberdade, por meio da autonomia da von- tade, proposta por Kant (FERNANDES, 2007). 11 A nobreza era composta por senhores de terras, por detentores de títulos de nobres e por herdeiros de famílias com títulos de nobreza (BURNS, 2005). 12 A burguesia era composta pelos proprietários dos meios de produção de bens mate- riais (BURNS, 2005). 73 Justiça Enquanto Responsabilidade ideal de liberdade burguês colaborou para o advento da Revolu- ção Francesa cujo lema pregado era “Liberdade, Fraternidade e Igualdade”, possibilitando, assim o surgimento do Estado Liberal e a queda do Estado Absolutista (BONAVIDES, 1972). A Revo- lução Francesa foi a responsável pela separação dos poderes, que possuía por objetivo a garantia da limitação do poder estatal e o fundamento da proteção dos direitos da liberdade, definidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que afirmava que a liberdade consistia em poder fazer tudo que não prejudicasse a outrem (SUZI, 2006). A liberdade de todos era fundamento do Estado Liberal de Di- reito, ou seja, os indivíduos deveriam ser livres (direito de cada um a não estar submetido a mais do que às leis), proprietários (di- reito dos indivíduos a possuírem algo, que, segundo Locke (1994) era um direito natural de todos os membros da sociedade) e iguais (igual submissão de todos às leis), em um Estado alicerçado no império das leis e na separação de poderes (MAULAZ, 2010; TRINDADE, 2009). No Estado Liberal originado, a exaltação da vida, da liberdade e da propriedade, como valores máximos libe- rais, era função estatal (MAULAZ, 2010). Além disso, constituíam funções do Estado Liberal a garantia da igualdade perante a lei, da segurança jurídica por proteção legal, da tutela jurisdicional13 e da segurança pública (MAULAZ, 2010). O Estado Liberal também assumiu uma função regulatória, propondo que o mercado distri- buísse oportunidades e benefícios de forma igual (CADERMAR- TORI; MORAIS, 1992). No entanto, o Estado Liberal não resolveu problemas essen- ciais no âmbito econômico das camadas não detentoras dos meios de produção14 da sociedade. Ele não solucionou as contradições sociais, como o crescimento das populações, as dificuldades eco- nômicas e sociais e as guerras, por isso, o Estado Liberal entrou em crise (BONAVIDES, 1972). A crise do Estado Liberal foi acompa- nhada por um momento de desenvolvimento do movimento de- mocrático e do surgimento do capitalismo monopolista15, do au- mento das demandas sociais e políticas, além da Primeira Guerra 13 A tutela jurisdicional consiste na função estatal de resolver conflitos no campo de at- uação político-jurídico por meio da aplicação de leis aos casos concretos (SILVA, 2010). 14 Os meios de produção são os objetos de trabalho e os meios de trabalho, como canais, estradas, ferramentas e máquinas (COLMÁN; POLA, 2009). 15 O capitalismo monopolista, originário de mudanças no sistema de produção capital- ista do fim do século XIX, possuía certas características, como: o desenvolvimento de empresas gigantes e a mudança na base de circulação, o desenvolvimento da indústria cultural, da publicidade, do crédito e do capital financeiro, e a incorporação sistemática da ciência pelo processo produtivo (GOLDENSTEIN, 1986). 74 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 Mundial (1914-1918) (BONAVIDES, 1972). Houve, portanto, a necessidade da expansão do intervencionismo do Estado na eco- nomia e em políticas de assistência social (BONAVIDES, 1972). O Estado Mínimo passou, portanto, por uma transição para um maior papel interventor do Estado na sociedade ao longo do século XX. Nas circunstâncias em que a superação do conflito entre igualdade política e desigualdade social foi almejada pelos regimes políticos, surgiu a noção contemporânea do Estado Social (BONAVIDES, 1972). 3.1.2 Quanto ao Estado Social de Direito O Estado Social, naturalmente, é um Estado intervencionista, que necessita da presença do poder político nas esferas sociais, nas quais há o crescimento da dependência do indivíduo em relação ao Estado (BONAVIDES, 1972). A Constituição mexicana de 1917, a partir da qual a ordem econômica assumiu dimensão jurídica, e a alemã de Weimar de 1919, que preservou as garantias dos direitos individuais conquistados pelo liberalismo, foram as primeiras a prever a inter- venção estatal no domínio econômico e social (SILVA, 1996). O Estado Social possui como características a proteção16 e o paternalismo17 (BONAVIDES, 1972). Ele busca, como Estado de coordenação e colaboração, amenizar a luta de classes (oposição de interesses entre diferentes classes sociais) e promover entre os homens a justiça social e a estabilidade econômica (BONAVIDES, 1972). Luhmann afirmou que essas características estão associa- das à função do Estado de promover a compensação, necessária devido às grandesdesigualdades socioeconômicas, e a inclusão de grupos com baixo poder aquisitivo nas redes de proteção jurídicas estatais (LUHMANN, 1983). A velocidade com que ocorreu a expansão dos mecanismos subordinados ao governo na administração da legislação tam- bém foi uma das repercussões da ação do Estado Social de Direito (MAULAZ, 2010). O resultado das medidas estatais foi a reper- cussão da “legislação social” nas diversas áreas da sociedade, não, necessariamente, de modo direto (MAULAZ, 2010). Em 1900, na Europa, por exemplo, propostas estatais relacionadas à responsa- bilidade social por meio do seguro-desemprego, à incapacidade física ou mental, à velhice, ou ao acesso da população aos servi- ços de saúde e de saneamento básico, eram ínfimas se comparadas 16 Intervenção coativa no comportamento de uma pessoa a fim de evitar que provoque danos a si mesma e proibição de condutas consideradas imorais (VALDES, 1993). 17 Tentativa de se controlar e de suprir as necessidades da nação (MARTINELLI, 2013). 75 Justiça Enquanto Responsabilidade à fase do Estado de Bem-Estar Social, em meados da década de 1950 (BONAVIDES, 1972). O modelo social também se mostrou inadequado, tanto pela falta de preparação das políticas assistencialistas, quanto pelos dispendio- sos custos a fim de que as desigualdades na sociedade fossem ameni- zadas (BONAVIDES, 1972). Além disso, os prejuízos econômicos e sociais, como as diversas mortes, advindos da Segunda Guerra Mun- dial, o endividamento do setor público em economias ocidentais e a crise do petróleo contribuíram para que parte das sociedades oci- dentais questionasse o papel e a racionalidade do Estado-interventor, abrindo espaço para o surgimento de um novo paradigma: o Estado Democrático de Direito (BONAVIDES, 1972; PINTO, 2003). 3.1.3 Quanto ao Estado Democrático de Direito Novas reivindicações sociais surgiram com a crise do Estado Social (PINTO, 2003). Entraram na pauta das manifestações as questões relativas à preservação do meio ambiente e à concessão de direitos aos grupos minoritários, como os raciais e os ligados à questão da orientação sexual (PINTO, 2003). A busca de ampla participação política nas eleições, por meio da expansão da cidada- nia, ou seja, a universalização de benefícios políticos, sociais e civis, também compôs a pauta das novas reivindicações (PINTO, 2003). De acordo com José da Silva (1994), o Estado Democrático de Direito possui alguns princípios como a constitucionalidade18, a divisão dos poderes e a correspondência a uma democracia (SILVA, 1994). Bulos já defendeu a existência de outros princí- pios desse Estado, como o surgimento de todo e qualquer poder somente através do povo e a existência da proteção e garantia dos direitos de tal forma que haja a proteção e o respeito ao cidadão (BULOS, 2008). Além disso, a superação das desigualdades sociais e a instauração de um regime democrático que garanta a justiça social, que significa, basicamente, a igualdade de acesso aos di- reitos, constituem funções desse Estado (SILVA, 1994). Alguns Estados Democráticos de Direito também, a partir do século XX, passaram a incorporar princípios e normas jurídicas internacio- nais (CANOTILHO, 2002; CASTRO, 2007). 3.2. As principais consequências da tendência interventora A partir da crise do Estado Liberal, a intervenção do Estado na 18 “O controle de constitucionalidade das leis consiste no exame da adequação das mes- mas à Constituição” (BASTOS, 1986, p. 11). 76 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 sociedade passou a ser uma reivindicação social (CRUZ, 2003). No Estado Social, a intervenção se constituiu, basicamente, pela prestação de serviços públicos e da gerência de empresas públicas que fortalecessem o mercado e o sistema capitalista em alguns pa- íses (CRUZ, 2003). Já no Estado Democrático, os órgãos estatais passaram a intervir diretamente nas questões socioeconômicas e culturais, a fim de que os cidadãos tivessem igualdade de oportu- nidades em alguns países e que houvesse desenvolvimento econô- mico (CRUZ, 2003). Neste Estado, a intervenção acontece, geralmente, no âmbito das legislações, do uso da violência pelo Estado através da força po- licial, por exemplo, do controle das massas pelo discurso midiático, dos debates políticos e do sistema financeiro (SUZI, 2006). Basica- mente, todos os campos da vida em sociedade são regulados por normas estatais. Isso caracteriza um estágio de possível manipula- ção dos contratos que o Estado quer que os indivíduos celebrem e de direcionamento das ações pessoais e coletivas (SUZI, 2006). As normas de intervenção são normas de conduta que direcio- nam direta ou indiretamente as ações dos indivíduos, de acordo com a posição que estes ocupam na sociedade. Elas ordenam, re- gulam, comandam, estabelecem e orientam a forma como devem ser feitos os negócios, os contratos, a realização de condutas e de procedimentos na sociedade (SUZI, 2006). O Estado age nos contratos, por exemplo, não apenas com a aplicação de normas públicas, mas também com a adoção de revi- são judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes con- dições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada. Sendo assim, a intervenção, pelo legislador ou pelo poder judiciário, é necessária nas relações contratuais (SUZI, 2006). Além disso, a Constituição direciona as ações dos governantes, no entanto, eles podem agir de diversas formas, seja pela teleco- municação, pela força, por regulamentos, pela economia, ou pelas manifestações culturais. Sendo assim, a intervenção normativa do Estado orienta a ação pública e privada, por meio da formalização legal de regras e normas sociais que fazem parte da cultura, e que podem tanto ser aceitas por certos grupos quanto rejeitadas por outros, mas que estão presentes no âmbito social (SUZI, 2006). Em vista disso, o Estado intervém da maneira que lhe é mais cabível. A intervenção estatal pode ser por meio do controle da mí- dia, por exemplo, que possui o poder de formar agendas de deba- te político ou público, de controlar as massas com ideologias para amenizar ou mascarar certos conflitos sociais e, até mesmo, agir na formação de vontades e de decisões individuais (MIGUEL, 2003). O 77 Justiça Enquanto Responsabilidade papel da mídia está relacionado, também, ao pensamento de Lukes (1985) quanto à ideia de que a terceira - e mais crucial - dimensão do poder residiria na capacidade de fazer com que os grupos e in- divíduos tivessem desejos contrários a seus verdadeiros interesses, impedindo a eclosão do conflito não apenas na arena pública, em que há debates e até mesmo conflitos de interesses sociais, mas tam- bém na consciência dos agentes sociais (LUKES, 1985). O Estado, muitas vezes, utiliza seus meios legítimos de violên- cia, como as forças policiais e as Forças Armadas, para que haja receio de alguns em agirem na sociedade, seja por medo da re- pressão pelo uso de uma vestimenta ou da manifestação da orien- tação sexual (SUZI, 2006). No entanto, o receio da intervenção estatal nem sempre retém as manifestações em prol da ampliação de direitos nos países - as passeatas em favor da descriminaliza- ção das drogas no Brasil e no Chile representam isso, assim como as manifestações dos movimentos feministas, como a Marcha das Vadias, e as passeatas LGBTs, que visam assegurar aos homosse- xuais os mesmos direitos já assegurados aos heterossexuais, como a constituição de uma família, e que objetivam, principalmente, o respeito às diferenças (SUZI, 2006). 4. A intervenção na prática O apanhado histórico realizado nas seções anteriores serve como base para a compreensão da origem de um Estado inter- ventor e da forma como, ainda assim, a partir dele, foi possível o surgimento do conceito dos direitos e das garantiasindividuais. Esta seção se desenvolverá, inicialmente, de forma a explicitar o problema da intervenção do Estado em questões privadas. Pos- teriormente, a análise das situações de intervenção será restrita a dois exemplos, as leis anti-homossexualidade e as leis antiaborto, de forma a concretizar o debate, trazendo à tona assuntos atuais que convergem ao tema. Em sua obra “Levando os direitos a sério” (1977), Dworkin aponta e, ao mesmo tempo, critica um dos argumentos que po- deria legitimar a criação de leis que interferissem na esfera indivi- dual. Basicamente, o ponto levantado é que as sociedades moder- nas são guiadas por uma série de princípios morais (DWORKIN, 1977). Alguns destes são meramente individuais e não poderiam, portanto, ser impostos aos demais. Outros, por outro lado, são aceitos e adotados pela maioria da população, o que acaba por criar, consequentemente, um sentimento de dependência em rela- ção a tais preceitos (DWORKIN, 1977). 78 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 Considerando a necessidade que a sociedade tem de proteger e garantir a sua existência, emanaria dela o direito de tentar con- servar certos padrões de moralidade. Esses padrões seriam garan- tidos a partir de leis que criassem verdadeiras sanções àqueles que não se enquadrassem aos preceitos ditados (DWORKIN, 1977). Esse argumento é desconstruído pelo próprio Dworkin (1977) ao longo de sua obra. É importante ressaltar que a importância das liberdades individuais já era discutida ainda no século XIX. John Stuart Mill, por exemplo, em seu livro “On Liberty”, [...] apresentou pela primeira vez a ideia de que o direito penal não podia punir certos atos só por serem atos que a sociedade desapro- vava e queria reprimir; e que a fronteira além da qual a força do Estado não tinha direito de avançar era a que separava os atos que “afetam os outros”, isto é, os que prejudicam a terceiros, atos esses que a lei estava de fato autorizada a reprimir, dos atos que “afetam seu autor”, os quais, visto que não diziam respeito a ninguém a não ser seu autor, não interessavam ao Estado ou à sociedade e, portan- to, representavam um território em que o próprio direito penal era um transgressor (KELLY, 2010, p. 447). O que se coloca como ponto central do pensamento de Mill, portanto, é a questão de conciliar liberdades individuais e interes- ses sociais. Ou seja, existem limites ao exercício da liberdade na medida em que seu exercício não pode causar danos aos demais, muito menos impedimento para que os outros exerçam sua pró- pria liberdade, buscando seu bem (AZEVEDO LOPES, 2006). Nesse sentido, reconhece-se que nem todos os assuntos relati- vos à esfera privada devem estar desvinculados de devida regula- mentação (AZEVEDO LOPES, 2006). Afinal, se essa ideia é levada ao extremo, todas as leis constituiriam uma violação à liberdade (DWORKIN, 1977). A propriedade, por exemplo, está atrelada ao cumprimento de sua função social19, não bastando a existência do título de propriedade para garantir a posse (RIZZARDO, 2012). Quando a discussão, contudo, gira em torno de questões re- lativas apenas ao indivíduo enquanto ser, sem atingir, com isso, a esfera coletiva, não seria legítima a criação de leis que condenas- 19 A função social pode ser definida como um princípio atrelado ao direito subjeti- vo que defende que um interesse privado, mais do que beneficiar o indivíduo a que se refere, deve satisfazer os interesses de toda a coletividade, respeitando-se os princípios Constitucionais (DELAITI DE MELO, 2013). A Constituição Brasileira, por exemplo, estabelece em seu artigo 5º, XXIII que “a propriedade atenderá a sua função social”; ain- da, no art. 170, III, estabelece que a ordem econômica observará o princípio da função social (BRASIL, 1988). 79 Justiça Enquanto Responsabilidade sem ações e concepções supostamente minoritárias em nome de justificativas morais ou religiosas (DWORKIN, 1977). As teorias passam a englobar o que se pode chamar de justificativas para a intervenção estatal respeitando, é claro, a ideia de autonomia. Jun- tamente com Dworkin, a temática é incluída no discurso de vários outros autores da segunda metade do século XX (KELLY, 2010). Devlin aborda uma perspectiva mais tradicional na qual o direito penal20 estaria intrinsecamente relacionando à moral, na medida em que a função deste seria preservar a “ordem pública” e preservar os cidadãos que se encontram em situação de vulnera- bilidade (KELLY, 2010). Dessa forma, [...] não é função do direito interferir na vida privada dos cidadãos, ou procurar impor qualquer padrão particular de comportamento, num grau maior do que aquele que é necessário para pôr em prática os propósitos cima resumidos (KELLY, 2010, p. 587). Em contraposição à teoria de Devlin, Hart pontua que as in- tervenções propostas no direito penal adviriam não de princípios morais, mas sim de uma política muito mais racional, destinada a proteger os indivíduos contra si mesmos, quase como que um paternalismo21 (KELLY, 2010). Ao adentrar a esfera privada, é importante, também, que seja feita uma segunda distinção. A sociedade patriarcal22 pode impe- dir a neutralidade da ideia liberal de não intervenção do Estado na vida doméstica (OKIN, 2008). O ambiente doméstico, a partir do momento em que é dominado pela figura masculina, pode se tor- nar, ao invés de um meio de exercício das liberdades individuais, uma estrutura de repressão para a mulher (OKIN, 2008). 20 O Direito Penal pode ser definido, de forma simplificada, como “a parte do orde- namento jurídico que define as infrações penais (crimes e contravenções) e comina as respectivas sanções, penas e medidas de segurança” (QUEIROZ, 2012, p. 29). Ainda, sob um viés sociológico, conforme defendido por García-Pablos, pode ser visto como um mecanismo de controle dos cidadãos realizado pelo estado a partir do ordenamento (QUEIROZ, 2012). 21 O termo “paternalismo” é utilizado, aqui, em seu sentido jurídico, consistindo na tentativa de se controlar e suprir as necessidades da nação assim como um pai faz com seu filho. Tal tentativa envolve intervenção na liberdade de escolha do cidadão, com ou sem coerção, sob a justificativa da prática do “bem comum” (MARTINELLI, 2013). 22 O patriarcado pode ser definido como “o sistema institucionalizado de dominância masculina que é expresso na família e na sociedade como um todo” (AL-MUNGHINI, 2001, p. 17). A sociedade patriarcal pode ser entendida, portanto, como aquela centrada na figura masculina provedora, que controla todos os integrantes daquele determinado núcleo (NARVAZ; KOLLER, 2006). 80 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 Desconstrói-se, dessa forma, a ideia de que a família é um núcleo intransponível a partir do momento em que deixa de ser vista como um organismo único e indissolúvel, e seus componen- tes passam a ser vistos como efetivos sujeitos de direito (OKIN, 2008). Só assim seria possível aplicar a máxima do pensamento liberal explicitada, nos parágrafos anteriores, a partir do pensa- mento de Mill (OKIN, 2008). Partindo dessa perspectiva de gênero, outra autora conside- rada central no que tange à discussão entre o público e o privado relacionados à questão da privacidade é Cohen (1997), apesar se suas conclusões serem um pouco distintas das apresentadas por Okin (LIMA, 2012). Uma das principais críticas apontadas pela autora é, justamente, o fato de serem associados, necessariamente, os conceitos de privacidade com os de propriedade e de família patriarcal (LIMA, 2012). Cohen constrói sua argumentação em torno da defesa do di- reito de aborto nos Estados Unidos e defende a existência de dois níveis de privacidade: [...] um a nível individual, da autonomia das decisões, no caso o direito de as mulheres, enquantoindivíduos (e não enquanto mães, esposas, donas de casa etc.), decidirem ou não ter filhos; e um a ní- vel relacional, que defenda as relações íntimas da intrusão do estado ou de outras pessoas, desde que essas sejam relações nas quais as demandas de justiça não sejam violadas (LIMA, 2012, p. 27). Conforme já visto em seções anteriores, são diversas as restri- ções estatais referentes à esfera individual presentes na legislação. Tais restrições são, conforme perspectiva já explicitada acima, in- devidas e constituem, conforme previsão da Declaração Universal dos Direitos Humanos23, uma violação a esses direitos (ONU, 1948). Tendo em vista a quantidade de exemplos passíveis de análise, serão abordadas, preferencialmente, questões relativas aos seguin- tes temas: a existência de leis anti-homossexualidade e a questão da criminalização do aborto. 4.1 A criminalização do aborto O direito ao aborto24 é uma questão polêmica que envolve di- 23 A liberdade individual é termo bastante recorrente na Declaração como um todo. Podem ser utilizados como exemplos, aqui, os artigos 18 e 19, que estabelecem liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião e expressão (ONU, 1948). 24 O aborto é “um procedimento para finalizar uma gravidez não desejada” (OMS, 2012, p. 18). 81 Justiça Enquanto Responsabilidade versas controvérsias. Sem pretender revisar toda a vasta literatu- ra dedicada ao tema, esta seção observa que a criminalização do aborto é uma expressão clara de interferência do Estado nas liber- dades individuais da mulher25, porque restringe o controle dela sobre seu corpo, sujeitando-a a riscos de saúde desnecessários26 (ONU, 2011). É uma questão que envolve decisões da mulher, en- quanto cidadã, em relação ao seu próprio corpo e à sua própria vida (MIGUEL, 2012). O Estado laico é uma condição fundamental para a discussão sobre a possibilidade da interrupção voluntária da gravidez. A li- berdade de crença impede que determinadas convicções religiosas sejam impostas coercitivamente a todos os cidadãos. Com a lai- cidade do Estado, a liberdade de consciência é inviolável, aque- les que não compartilham da religião dos outros não podem ser submetidos a leis de justificação apenas religiosa. É o princípio de que certas interferências do Estado nas liberdades individuais dos indivíduos não podem ser aceitas (LOPES, 2005). A literatura convencional insere o aborto na questão moral (saber se o feto é ou não uma pessoa) ou em um problema de saú- de pública. Assumindo a laicidade do Estado, a compreensão con- vencional do debate é equívoca: é necessário perceber a questão como um problema político. Mas a teoria política, em geral, não diz nada sobre o aborto (MIGUEL, 2012), uma vez que as ques- tões de gênero tendem a ser desprezadas e vistas como contrárias à concepção real da política (SCOTT, 1999). Ainda assim, a questão do aborto pode ser vinculada aos di- reitos elementares do acesso à cidadania. O direito ao aborto en- contra fundamento no pensamento liberal, em que, para Locke (1690), a propriedade do indivíduo (isto é, do homem) sobre ele mesmo é a base para o acesso à cidadania. A teoria feminista dis- cute a exclusão da mulher na política e conclui que a “socieda- de civil criada através do contrato original é uma ordem social patriarcal” (PATEMAN, 1993, p. 16), ou seja, o contrato original estabelece a subordinação da mulher ao homem. Com as contri- buições do feminismo, a exclusão da mulher não é mais aceita 25 As mulheres (e os homens homossexuais; ver subseção 4.2.), geralmente, são mais propensas a experimentar violações do seu direito à saúde sexual e reprodutiva. Es- tereótipos do papel das mulheres na sociedade estabelecem normas baseadas na crença de que a liberdade da mulher, especialmente no que diz respeito à sua identidade sexual, deve ser reduzida e regulamentada (ONU, 2011). 26 A criminalização do aborto não significa que o procedimento não é realizado, mas sim que é realizado por profissionais não qualificados, em condições insalubres (OMS, 2011). Porém, quando realizado por profissionais de saúde treinados, em condições adequadas, o aborto é um dos procedimentos médicos mais seguros disponíveis (OMS, 2003). 82 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 pelos liberais e a teoria feminista é incorporada ao liberalismo. Apesar disso, ainda existe uma grave desigualdade entre homens e mulheres, uma vez que a mulher foi inserida na política de forma diferente do homem (MIGUEL, 2012). O cidadão, isto é, o homem, ingressa na esfera política dotado de soberania sobre si mesmo, mas para a mulher tal soberania é condi- cional. Sob determinadas circunstâncias, ela deixa de exercer arbítrio sobre seu próprio corpo e se torna o instrumento para um fim alheio. Nesse processo ocorre uma inversão: em vez de a sociedade ficar com a obrigação de garantir as condições para que as mulheres possam le- var a cabo gestações livremente decididas, a gravidez passa a ser uma obrigação perante a sociedade (MIGUEL, 2012, p. 666). Assim, a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez é um direito fundamental da mulher, associado à propriedade dela em relação ao seu próprio corpo. E como apresentado por Ma- cpherson (1962), a soberania sobre si mesmo é a base para o aces- so à cidadania. Dessa forma, as leis antiaborto violam a dignidade da mulher e impedem seu acesso pleno à cidadania. Além disso, geram uma grave assimetria, impondo à mulher limitações sobre seu próprio corpo, que os homens não sofrem (MIGUEL, 2012). Nesse sentido, a legalidade do aborto é uma questão de igualdade e respeito às liberdades individuais. Os defensores da ilegalidade do aborto afirmam que é inco- erente o direito ao aborto ser tratado como um imperativo dos direitos humanos27, pois o Artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, logo, o feto tam- bém deve possuir este direito. Entretanto, Kaplan (2008) desen- volve a tese de que um embrião, embora esteja vivo, não é um ser vivo, portanto não tem os mesmos direitos que pessoas já nasci- das. Além disso, Dworkin (2003) observa que cada exceção aceita ao aborto – como estupro, risco de vida para a mãe, má-formação – deixa claro que mesmo os conservadores não julgam que o feto seja uma pessoa com os mesmo direitos que as outras. Então, tra- ta-se claramente de uma situação de recusa à autonomia da mu- lher (MIGUEL, 2012). Segundo a ONU (2011), a criminalização do aborto é discri- minatória por natureza, uma vez que nega a participação plena 27 O direito ao aborto está relacionado ao direito à vida, direito à saúde, direito à igual- dade, direito à autonomia reprodutiva, direito a não ser submetido a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, e direito a desfrutar dos benefícios do pregresso científico. 83 Justiça Enquanto Responsabilidade da mulher na sociedade e viola a dignidade humana ao restrin- gir liberdades individuais. Além disso, gera efeitos negativos para a saúde, resultando em mortes que poderiam ter sido evitadas28, uma vez que a criminalização do aborto resulta em mulheres procurando abortos clandestinos, e, provavelmente, inseguros29 (ONU, 2011). Ademais, enquanto o impacto psicológico de um aborto ilegal ou de continuar uma gravidez indesejada é bem documentado, não há evidência correspondente à existência de sequelas de saúde mental a longo prazo resultantes do aborto le- gal (CHARLES et al., 2008). Dessa forma, as restrições legais30 in- fluenciam se o aborto é seguro ou não, visto que abortos inseguros são mais susceptíveis a ocorrer em regimes legais que restringem o aborto (MUNDIGO, 2006). Em diversos relatórios, a ONU (2011) recomenda claramente a descriminalização do aborto, “O acessoao aborto seguro e legal é um direito fundamental da mulher, independentemente do local em que ela vive” (OMS, 2006, p. 1, tradução nossa). Entretanto, apenas 42% da população mundial vive em países que permitem o aborto sem restrições (ONU, 2013). Os Estados citam, mais frequentemente, dois motivos para a cri- minalização do aborto: a saúde pública e a moralidade pública. A mo- ralidade pública não pode servir como justificativa para a promulga- ção ou aplicação de leis que podem resultar em violações dos direitos humanos, como leis destinadas a regular a conduta sexual e reprodu- tiva e a tomada de decisão. E apesar de garantir a saúde pública ser um objetivo legítimo do Estado, as medidas tomadas para alcançar 28 Estima-se que os abortos inseguros causam quase 13% de todas as mortes maternas globais (OMS, 2011). 29 Os ativistas antiaborto acreditam que as mulheres farão menos abortos se ele for proibido ou restringido, mas na prática a mulher que quer interromper uma gravidez não desejada encontra uma maneira de fazer isso, se o aborto for legal ou não (CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS, 2005). 30 “A segurança e a acessibilidade do aborto dependem em grande parte das leis e políti- cas que o regulam. Na legislação e regulamentação sobre o aborto, os governos devem fazer dos direitos humanos das mulheres – os seus direitos à autonomia reprodutiva, igualdade e saúde – sua principal consideração. Os governos devem assegurar que o aborto esteja disponível sem restrições, independentemente das razões da mulher. Mas até mesmo leis que permitem o aborto podem comprometer a escolha das mulheres co- locando barreiras processuais ao aborto. Exemplos de barreiras ao aborto incluem acon- selhamento obrigatório, períodos de espera, exigência de consentimento de terceiros, prazos curtos, cláusulas de consciência, limitação do financiamento, restrição de pessoal e instalações médicas, e restrição à publicidade do aborto. Estas barreiras processuais são incompatíveis com os deveres dos governos de respeitar os direitos humanos das mulheres, e eles não devem aparecer na legislação ou regulamentação que afeta o aces- so ao aborto” (CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS, 2004, p. 1, tradução nossa). 84 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014 este objetivo devem ser baseadas em evidências e devem ser propor- cionais para garantir o respeito aos direitos humanos. Quando leis não são nem baseadas em evidências, nem proporcionais, os Estados devem abster-se de usá-las para regular a saúde sexual e reprodutiva, uma vez que não só violam o direito à saúde dos indivíduos afetados, mas também contradizem a sua própria justificação (ONU, 2011). Embora seja um assunto que suscita diversas opiniões, o acesso ao aborto é antes de tudo um direito humano. Onde o aborto é legal e se- guro, ninguém é obrigado a ter um. Onde o aborto é ilegal e inseguro, as mulheres são obrigadas a levar uma gravidez indesejada ou sofrer graves consequências para a saúde, incluindo a morte (HRW, 2009). Há que se considerar, ainda, que no Estado Democrático de Direito não há problema que alguém expresse seus pontos de vista e seja con- trário ao aborto - inclusive muitas pessoas não são a favor do aborto propriamente dito, mas sim a favor de que as mulheres possam de- cidir se querem continuar uma gravidez ou não e de que a mulher tenha controle sobre seu próprio corpo (LEONHARDT, 2013). Portanto, a criminalização do aborto é uma coerção específica do Estado sobre as mulheres, pois as leis antiaborto impedem o acesso pleno das mulheres ao seu próprio corpo e, por consequência, à ci- dadania (MIGUEL, 2012). O Estado viola as liberdades individuais ao ditar como a mulher deve lidar com o aborto, visto que esta de- veria ter o direito fundamental de decidir por si mesma. A opinião das pessoas sobre suas próprias vidas deve ser valorizadas, elas devem estar livres da interferência do Estado, especialmente em questões tão íntimas quanto a decisão de interromper uma gravidez. Em suma, os cidadãos devem ter o direito de tomar decisões de acordo com suas próprias convicções, independentemente de suas motivações. 4.2. A criminalização da homossexualidade31 Todos os dias os homossexuais32, em grande parte do mundo, têm seus direitos humanos violados – incluindo o direito à vida, à li- berdade, à segurança, ao reconhecimento como pessoa e à igualda- de. Os Estados estão em diferentes fases em relação à legislação so- bre a homossexualidade, no entanto, a maior parte continua a violar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Segundo a 31 Mesmo que os argumentos desta subseção possam abranger toda a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), será tratado apenas de homossexuais, pois o intuito dela é exemplificar a intervenção do Estado em questões privadas e não explorar a fundo a orientação sexual ou a identidade de gênero. 32 Homossexual é um homem ou uma mulher “que descobriu na sua vida que é atraído ou atraída, emocional e sexualmente, pelo mesmo sexo; alguém que, do ponto de vista prático, não teve uma opção, de fato, a esse respeito” (SULLIVAN, 1996, p. 23). 85 Justiça Enquanto Responsabilidade ILGA (2013) – Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bisse- xuais, Trans e Intersex – as relações com pessoas do mesmo sexo são criminalizadas em pelo menos 76 países e puníveis com morte em sete (Mauritânia, Sudão, Nigéria, Somália, Irã, Arábia Saudita e Iêmen). Em contraste, apenas 14 países possuem leis que protegem os homossexuais da discriminação (ILGA, 2013). As possíveis soluções para os abusos dos direitos humanos contra os homossexuais esbarram, frequentemente, em barreiras religiosas. Em países em que a religião tem forte influência políti- ca, a homossexualidade é severamente condenada. Alguns países adotam, inclusive, para as relações entre pessoas do mesmo sexo, penalidades que violam as leis internacionais. Nas palavras do se- cretário-geral da Organização das Nações Unidas Ban Ki-moon: Quando indivíduos são atacados, abusados ou aprisionados por causa de sua orientação sexual, devemos nos pronunciar. Onde há tensão entre atitudes culturais e direitos humanos universais, os di- reitos humanos universais devem vir em primeiro lugar. Desapro- vação pessoal, até mesmo a desaprovação da sociedade, não é des- culpa para prender, deter, aprisionar, perseguir ou torturar alguém (EACDH, 2010, tradução nossa). O Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) estabelece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”33, incluindo a liberdade de fa- zer tudo aquilo que não causa dano aos outros. Dworkin (2007) esclarece que o dano não pode ser apenas um mal-estar fundado na tradição e no preconceito. Então, em respeito aos direitos hu- manos, não cabe ao Estado intervir em uma questão tão indivi- dual quanto a orientação sexual de uma pessoa. Assim, a questão central não é a criação de novos direitos para os homossexuais, mas sim que eles tenham seus direitos humanos garantidos. Contudo, um dos maiores obstáculos para alcançar a igualda- de plena de direitos para os homossexuais é, sobretudo, a ordem heteronormativa, que toma a heterossexualidade como natural e toda outra expressão de sexualidade como antinatural. Nesse sen- tido, a homofobia surge como consequência da heteronormativi- dade. Isto é, ela é a própria manifestação do preconceito contra o dito antinatural (BORRILLO, 2010). Então, a ordem dita natural é uma ordem sexista, pois privilegia determinado gênero ou orientação sexual em detrimento de ou- 33 Todos os seres humanos deveriam desfrutar dos seus direitos humanos independen- temente da sua orientação sexual ou identidade de gênero (ONU, 1948). 86 Simulação das Nações Unidas para Secundaristas– 2014 tro gênero ou orientação sexual, perpetuando, assim, estereótipos (YOUNG, 1990). Consequentemente, estes estereótipos estabele- cem e alimentam as normas da sociedade, como a própria crimina- lização da homossexualidade e do aborto, como abordado na subse- ção anterior, e acabam violando os direitos humanos (ONU, 2011). Dessa forma, o sexismo é condenado não por ditar que outro estatuto é superior “mas por negar a validade de todos os estatutos particulares e por considerar que esses estatutos são quase sempre criações imaginárias, destinadas a privar os indivíduos empíricos de suas prerrogativas como titulares de direitos universais” (ROU- ANET, 2001, p. 89). Assim, é necessário que todas as identidades e formas de experiência de vida sejam tratadas como equivalentes. Portanto, a luta homossexual não é a luta pelo convencimen- to da maioria quanto ao valor de uma minoria, mas a luta pelo pluralismo e pelo reconhecimento da diversidade (LOPES, 2005). As pessoas têm o direito de desaprovar a homossexualidade, e de expressarem sua desaprovação, mas não têm o direito de usar a lei para violar os direitos dos demais seres humanos apenas por desaprovarem seus comportamentos. A criminalização da homos- sexualidade é uma grave violação às liberdades individuais e cabe ao Estado garantir e valorizar a pluralidade e garantir a diversi- dade. Por isso, o Estado deve garantir a liberdade das pessoas de buscarem seu próprio bem, da sua própria maneira, desde que não impeçam ninguém de fazer o mesmo (MILL, 1974). 5. Considerações finais Conforme observado, a concepção de direitos humanos sur- ge na Idade Média para libertar o indivíduo de um sistema so- cial opressor (HOBSBAWM, 2004). No contexto do pós-Segunda Guerra Mundial surge a Organização das Nações Unidas, que ela- bora a Declaração Universal dos Direitos Humanos para proteger as liberdades individuais, inclusive daqueles que não espelham a maioria (FACCHI, 2011). A universalidade desses direitos é ques- tionada, uma vez que a própria ideia de direitos subjetivos indi- viduais não é bem aceita em sociedades onde as pessoas tem sua autonomia relativizada em prol da família, da classe ou do clã nos quais estão inseridas. No entanto, os direitos humanos são cada vez mais difundidos pelo mundo dentro de cada sociedade, uma vez que representam um poderoso veículo de reivindicações e de legitimação das escolhas políticas (FACHI, 2011). A comunidade internacional objetiva, também, estabelecer limites à atuação dos Estados e buscar fundamentos para tais li- 87 Justiça Enquanto Responsabilidade mites, para que não se observe outra vez na história a acenção de regimes que, em nome da obediência à lei e à ordem, negam direi- tos fundamentais a uma parcela da humanidade (FACCHI, 2011). O Estado deve conciliar liberdades individuais e interesses sociais, estabelecendo limites a serem observados por ele e seus agentes, de forma que não haja danos aos demais, tampouco im- pedimento para que as pessoas exerçam sua própria liberdade (AZEVEDO LOPES, 2006). O direito penal, por exemplo, não deve intervir na vida privada ou impor um padrão de compor- tamento, devendo se restringir a preservar a ordem pública e a preservar aqueles que se encontram em situação de vulnerabili- dade (DEVLIN apud KELLY, 2010). Desta forma, apesar de repre- sentantes do povo e expressão de sua vontade, o legislador não é soberano absoluto, também ele deve observar limites. Conforme abordado na última sessão, o Estado, ao criminalizar o aborto, intervém nas liberdades individuais da mulher, uma vez que restringe sua autonomia sobre seu corpo e a sujeita a riscos de saúde desnecessários, provocados pelas complicações dos abortos realizados de forma precária (ONU, 2011). Ao contrário do homem, a mulher é proibida de exercer o arbítrio sobre seu corpo e é obri- gada a ser um instrumento para um fim alheio (MIGUEL, 2012). Tampouco cabe ao Estado intervir em uma questão intrinsi- camente individual como a orientação sexual da pessoa. Deve-se respeitar a liberdade de fazer tudo aquilo que não causa dano aos outros, como relacionar-se afetivamente com uma pessoa do mes- mo sexo. O dano que se queira evitar não pode ser apenas um mal -estar fundado na tradição e no preconceito (DWORKING, 2007). 6. Referências Bibliográficas ABRÃO, R. M. Z. B. Justiça como Ordem: O Contrato Social e a análise crítica da realização da justiça e da igualdade na modernidade. 2008. Disponível em: <http:// revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fadir/article/download/2917/2206>. Acesso em: 16 nov. 2013. AL-MUGHNI, H. Women in Kuwait: The Politics of Gender. 2ª edição. Londres, Reino Unido: Saqi Books, 2001. ALVES, F. D. 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