Buscar

Antonio Candido Notas de crítica literária - Sagarana In Textos de Intervenção

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

a!.:. />/
/?o
--^ ç-(( í,. ----;
Antonio
Candido
Coleção Espírito Crítico
Duas Cidades
Editora 34
15. Notas de Grítica literária -
Sagarana"
O grande êxito de Sagarana,t5 do sr.Joáo Guimarães Rosa,
não deixa de se prender às relações do público ledor com o pro-
blema do regionalismo e do nacionalismo literário. Há cerca de
trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta,
gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo fede-
ralísmo.Na intelligentsia portanto, o pariotismo se afirmou co-
mo reaçáo de unidade nacional. A Pátiia, com pê sempre maiús-
culo, latejou descompassadamen re, e os escrirores regionais eram
procurados como afirmação nativista. Foi o tempo em que todo
jovem promotor ou delegado, despachado para as cidadezinhas
do interior, voltava com um volume de contos ou uma novela
sertaneja, quase sempre lembrança de cenas, fatos e pessoas cujo
pitoresco lhe assanhava a sensibilidade, litorânea de nascimento
ou educação.
A reviravolta econômica nos grandes Estados, subseqüente
à crise de 1929, alterou os termos da equa$o política, e a des-
centralização federalista, depois de alguns protestos nem sempre
platônicos, foi cedendo passo à nova fase centralizadora, exigida
' Diárìo de S. Paulo, ll lT /1946.
It J. Guimarães Rosa, Sagarana,P<io de lar'eito, Universal, 1946.
183
Ìextos de intervenção
quase pelo desenvolvimento da indústria. Processo cuja aberra-
ção foi o Estado Novo, assim como a Constituiçáo castilhisra
tinha sido a aberração do processo anterior.
Para compensar - como às vezes acon tece- a int€lligentsil
se virou pârâ o bairrismo. Antes, quando a palavra de ordem
polírica e o sentimento geral eram provincianos, foi chique ser
nâcionâlista, e o porra-voz mais característico da tendência foi
Olavo Bilac. Agora, que as forças unitárias predominam e já se
vai generalizando um certo sentimento do todo - deste todo cle
repente vivo e existente por meio do rádio e do aeroplano 
- agora
a moda é ser bairrista, e o porta-voz mais aurorizado da tendên-
cia é o sr. Gilberto Freyre, pai da voga atual da palavra "provín-
cia". Todos falam na sua província, nas suas tradiçóes etc. erc.,
embora a maioria prefira fazer como seu Rui da canção, isto é,
ela lá e eu aqui.16 Quando chega ao Rio, o jovem intelectual náo
mais se esforça por mudar a pronúncia e parecer familiarizado
com a cidade; capricha o soraque e escreve imediatamente sobre
a negra velha que (diz ele) o criou, falando dos avós, da pequena
terra em que nasceu, etc. O maior elogio do dia é "sabor de ter-
ra", traduzido do francês, já se vê, e a maior ofensa, dizer a um
escritor que ele "não tem raízes".
Natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr.
Guimaráes Rosa, cujo livro vem cheio de "terra", fazendo arre-
galar os olhos aos intelectuais que não tiveram a sorte de morar
16 "A Bahia é boa r"rra/ Ela lá c cu aqui, iaiá" - sáo versos dc "Qucm sâo
eles?", samba carioca que foi o primeiro grandc succsso dc nosso Sìnhô, c csrou-
rou no carnaval de Ì918. Havia neles uma alusáo vclada às lutas políticas na Ba-
hia, nras é possível quc na relcrência a "Seu Rui" haja confusão com ourro samba
satirico de Sinhô, "Fala meu louro", de 1920, cm que ele rroçava do silêncio da
Águir d" H"i, 
"pós a derrota na eleição presidencial. 
(N. O.)
Argumentos
ou nâscer no interior (digo. na "província") ou aos que. tendo
nela nascido, nunca souberam do nome da áwore grande do largo
da igreja, coisa bem brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guima-
rães Rosa despeja nomes de tudo - plantas, bichos, passarinhos,
lugares, modas - enrolados em locuçóes e construçõ€s de hu-
milhar os citadinos. "lrra, que é talento demais", como o depu-
rado portuguès. mal comparando.l
Mas Sagarana nío vâle apenas nâ medidâ em qle nos traz
um certo saboÍ r€gional, mas na medida em que consffólum certo
sâbor regionâI, isto é, em que transcende ^
 
Íegiáo. A prouíncìa
do sr. Guimarães Rosa, no caso Minas, é menos umâ região do
Brasil do que uma regìáo da arte, com detalhes e locuçóes e vo-
cabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal'
ramanha é a concentrâçáo com que trâbalha o autor. Assim, ve-
remos, numa convetsa, os interlocutores gastârem meia dúzia de
provérbios e outras tantas parábolas como se âlguém falasse no
mundo desre ieito. Ou, de outra vez, paisagens tão cheias de plan-
tes, flores e passaÍinhos cujo nome o autor colecionou' que so-
mos mesmo capâzes de pensar que, na região do sr. Guimarães
Rosa, o sistema fito-zoológico obedece ao critério dafuca de Noé'
Por isso, sustento, e sustentârel, m€smo que prov€m o meu erro,
que Sagarana não é um Ìivro regional como os outros' porque
náo existe regiáo igual à sua, criada livremente pelo autor com
elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na eco-
loeia belíssima das suas hisrórias.
r7 Álusáo à carta sobre o Conselheiro Pachcco em A nnespondêncìa de Fra-
diquc Mendes, d,e F.ça. dc Quciroz Pacheco represenra, com sua fachada de ralen-
to, o medalhão típico de um Portugal atrasado que galgou postos eminentes sem
qualquer gesro arivo ou manrfesta5;o de inrel igéncia É esra nul idrde que provo-
cava a exclamação pelo talento. (N. O.)
184 185
Textos de intervenção
t
tl
t
l
Argumentos
trar â possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de
condiçóes que conduzem, geralmente, ao fracasso. Ou melhor:
todos os fracassos dos seus predecessores se transformeram, €m
suas mãos, noutros tentos fatores de vitória.
Para começar, a própria temática, batida e aparentemente
esgotada. Em matéria de regionalismo, só aceitamos, de uns vinte
anos para cá, o nordestino, transformado por sua vez e por força
do uso em arrabalde pacífico ejá sem surpresas da nossa sensibi-
lidade literária. Em seguida, o exotismo do léxico, recurso geral-
mente fácil, abusado pelos escritores gaúchos. Depois, a tendência
descritiva, quase de composi$o escolar, familiar a quem vive em
contâto com os pequenos jornais do interior e, em literatura,
relegada a segundo plano pelas exigências tanto de ação quanto
de introspecção do romance moderno. Finalmente, o capricho
meio oratório do estilo, que há muito consideramos privativo da
subliteratura.
Pois o sr. Guimarães Rosa partiu de todas escas condiçóes,
algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores do
maior talento, como Monteiro lobato, ou reduzir às devidas pro-
porçóes outros indevidamente valorizados, como o veÌho Afon-
so Arinos; não rejeitou nenhuma delas e chegou a verdadeiras
obras-primas, como são alguns dos contos d,e Sagarana.
Passando a setor de ordem mais pessoal, talvez Possamos
dizer que a qualidade básica do autor escapa à crítica, porque só
pode ser sugerida por meio de imprecisóes como "capacidade de
contar", "vigor narrativo" e outras coisas que, tudo exprimindo,
nada dizem de positivo. O meu mestre e amigo Giuseppe Un-
garetti usariâ expressão mais direta, invocando razóes de ordem
hormonal em calão pitoresco, que eu não me atrevo a trâzer pâra
este bem-comportado rodapé e que, segundo ele, são as únicas
a exprimir a força criadora dos artistas poderosos como é o sr.
Guimaráes Rosa.
Transcendendo o crirério regional por meio de uma con-
densaçáo do material observado (condensação mais forte do que
qualquer ourra em nossa literatura da ..rerra"), o sr. Guimaràes
Rosa como que iluminou, de repente , todo o caminho feito pe_
los seus antecessores. Sagarana significa, entre outras coisas, a
volra rriunfal do regionalismo do Centro. Volta e coroamento.
De Bernardo Guimarães a ele, passando por Afonso Arinos, Val_
domiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de eueirós, Hugo
de Carvalho Ramos, assistimos a um longo movimento de ã-
mada de consciência, através da exploração do meio humano e
geográfico. É a fase do pitoresco e do narrativo, do reeionalis_
mo "enrre aspas", se dão licença de citaruma expressãã minha
em arrigo recente. Fase ultrapassada, cujos produtos envelhece-
ram rapidamente, mlvez à força de copiados e dessorados pelos
menores. Fase, precisamente, em que os escrirores troaxeram a re_
gião até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito
e objeto. O sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo mui-
to mais autêntico e duradouro, porque criou Jma experiência
rotal em que o piroresco e o exótico sâo animados pela graça de
um movimento interior, em que se desfazem as relações de su-jeito a objeto para ficar a obra de ane como inregração total de
experiência.
Sagarana nascet rniversal pelo alcance e pela coesão da fa_
rura. A língua parece finalmenre rer aringido à id."l d".*p,.r-
são literária regionalista. Densa, vigorosa, foi talhada no veio da
linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas.
Mário de Andrade. se fosse vivo, leria, comovido, esre resultado
esplêndido da libertafo lingüística, para que ele contribuiu com
a libertinagem heróica da sua.
ÁJém das convenções literárias, Sagarana se caracteriza por
um soberano desdém das convenções. O sr. Guimarãe, Ro." _
cuja vocação de virtuose é inegável 
- parece rer querido mos-
186 187
T€xtos de inteÍvenção
Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. O autor che-
ga à condescendência excessiva para com ela, a ponto de que-
brar a espinha das suas hisrórias a fim de dar r.l.uo, n"rrrrìuas
secundárias, terciárias, cujo conjunto resulta mais imponanre do
que â narrativa central. Deixa-se ir ao sabor dos casos, não per-
dendo vaza para contá-los, acumulando detaìhes, minuciando
com pachorra, como quem dá a entender que, em arte, o fim
não rem a mínima importância, porque o que importa são os
meios. Todos os meios e até a amplificação retórica sâo bons,
desde que nos arrebatem da vida transportando-nos para a vida
mais inrensa da arre.
Já se vê por aí que o sr. Guimarães Rosa retorna, em grande
estilo, à concepção do conrisra-conrador, para o qual a vãrdade
está na narração e na descriçáo, para o qual as facadas, os casos
de amor, os estouros de boiada e os crepúsculos têm valor eter_
no, acima de quaisquer ourros. por ourro lado, como ficou su-
gerido, a regiâo, deixando de ser, para ele, simples localização da
história, com funções de pitoresco e anedótico, passa a verdadei-
re personagem (se assim me posso exprimir), tanta é a persistên_
cia e a profundidade com que vêm invocados a sua flàra, a sua
fauna, o seu relevo. Há, mesmo, certos contos, como ,,São Mar_
cos", em que só ela redime o anedótico e garanre o toque lite-
rário autêntico. Em "A hora e vez de Augusto Matrag",' há u-"
certa entrada de primavera - verda deiro Sacre du printemos _
em que â naturezâ nos comunica sentimento quase ineiável.
germinal e religioso.
Como padrão de arte objetiva e elaborada, perfeito na sufi_
ciência admirável dos meios, gostaria de indicar o conto ,.Duelo",
das maiores peças de atmosJ?rada nossa arual novelística. Uma
tensão envolvente, quase alucinante, alimentada sorrateiramen-
te pelo auror com um ominoso vaivém cheio de detalhes geográ_
ficos e pequenos casos laterais.
d
ï
Argumentos
Não é aí, todavia, que devemos procuríìr â obra-prima do
livro. mas no citado "Augusro Matraga". onde o autor, deixan-
do de certo modo a obietividade da arte-pela-arte, entra em re-
gião quase épica de humanidade e cria um dos grandes Ìipos da
nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, con-
rado entre os dez ou doze mais perfeitos da Ìíngua.
Não penso que Sagarana sela um bloco unido, nem que o
sr. Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapâr â certo pen-
dor verboso, a certa difusão de escrita e composit'o. Sei, porém,
que. consrruindo em termos brasiÌeiros certas experiências de uma
altura encontrada geralmente aPenas nes grandes literauras es-
trangeiras; criando uma vivência poderosamente nossa e ao mes-
mo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte; escreven-
do contos como "Duelo", "Lalino Salãthiel", "O burrinho pe-
drês" e, sobre todos (muito sobre todos), "Augusto MaÍÍ^g " -
sei que por tudo isso, o sr. Guimaráes Rosa vai reto para a linha
dos nossos grandes esctitoÍes'
r88
&
r89
Este romance é uma das obras mais importantes da litera_
tura brasileira 
- lato de força e beleza numa novelísrica also
perplexa como é arualmente a nossa. Não segue modelor, nao t.'-
precedentes; nem mesmo, talvez, nos livros anteriores do autor.
que. embora de alra qualidade, não apresenram a sua caracrerís_
tica fundamental: rranscendência do regional (cuja riqueza pe_
16. No Êrande sertão*
'Texro originalmente publicado sob a rubrica ,,Grande sertâo: aeredaì,, na
seçáo Resenha Bibliográfica do Suplemento Lirerârio de O Estado de S. paulo, no|, ano l ,6/ lO/1956.
É uma hisrória de jagunços do norte de Minas na forma do
monólogo ininterrupto, sem divisão ou capítulo, de um velho
fazendeiro narrando como se rornou membro e afinal chefe de
bando. As açóes giram em torno da vingança contra companhei_
ros felões que matârem à traição o grande chefe de todo, 
-", 
o
miolo nutritivo é - não sei se diga 
- a expressão ou a persona-
lidade do narrador, cujo amadurecimento presenciamos no cor-
rer do livro. São, em todo caso, a estupend" visão do mundo e a
inquietude interior elaboradas ao longo do seu fluxo de eloqüên_
clâ e Doeslâ.
Argumentos
Há no livro uma esÌrâtificaçáo de interesses, combinados e
organizados a cada passo pelo autoÍ na trama expositiva - do
pitoresco regionel à preocupâçáo moral e metafísica.
Mundo diverso da ficção regionalística, feira quase sempre
"de fora para dentro" e revelando escritor simpático, compreen-
sivo, mas separado da realidade essencial do mundo que descre-
ve; e que enxefta num contexto erudito elementos mais ou me-
nos bem apreendidos da personalidade, costumes, linguâgem do
homem rústico, obtendo montagens, não a integração necessária
ao pleno efeito da obra de arte.
Em Grande sertão: ueredas,lS o aproveitamento literário do
material observado na vida sertaneja se dá "de dentro para fora",
no espírito, mais que na forma. O attor ìnuenta, como se, ha-
vendo descoberto as leis mennis e sociais do mundo que descreve,
fundisse num grande bloco um idioma e situações artificiais,
embora regidos por acontecirnentos e princípios expressionais
potencialmente contidos no que registrou e sentiu. Sob este as-
pecto, ao mesmo ternpo d,e anoação e clnstruçãl,lembra os com-
positores que infundiram o espírito dos ritmos e melodias po-
pulares numa obra da mais requintada fatura, como Bela Bartók.
Comparada a semelhante processo, a literatura regionalista não
ulrrapassa a esfera do programa caipira.
Há motivo para invocar o universo da música ao falarmos
deste livro, não obstante tão acentuadamente plástico nas camadas
externas. Em profundidade é governado, com efeito, por alguns
temas que, ume vez epresentados, são desenvolvidos, recapitula-
dos, variados, formando o verdadeiro fio condutor de tudo o que
se expõe no plano da ação e da descrição, de modo a resulrar a
integridade quase obsessiva das diretrizes essenciais. Tema do
I8 Rio de Janeiro. José Olympio, 1956. 594 pp.
lculiar se manrém rodavia inracra) graças à incorporação em va-t lores universais de humanidade e tensão criadora.
l9 l
Textos de intervenção
Menino que se desdobra, como da predestina$o, no companhei-
ro Diadorim (mulher disfarçada em jagunço, sabemos afinal) e
decide a carreira do narrador, fuobaldo. Tema do âmor como
aspiraçáo e porto de inquietudes, extremamente complexo nas
suas três encarnações de pureza, de sensualidade e impulsos obs-
curos: a bem-amada ("minha Otacília, fina de recanto, em seu
realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença"); a mere-
triz ("era a que era clara, com os oÌhos tão dela mesme"); o amigo
disfarçado ("aquele fino das feições que eu não podia divulgar,
maslembrava, referido, na fantasia da idéia"). Sobretudo, o tema
do mal e da responsabilidade, encarnado na presença negada e
sentida do Demônio - sem dúvida o maior personagem do livro
no plano transcendente, como é, no plano físico, o Sertão, onde
o narrador busca as veredas da verdade: "uma receita, a norma
dum caminho certo, estreito, de cadâ uma pessoa viver". Por estra-
nho que pareça, esta naÍrativa sertaneja de experiências profun-
das com Mundo, Diabo e Carne, é sobretudo um livro absorvido
por certos problemas, sobretudo o da conduta abordado de um
ângulo que os existencialistas chamariam do "ser-no-mundo".
Para conter tanta riqueza plástica e emocional, Guimarães
Rosa uniu pitoresco e essencial numa técnica narrativa admirável,
marcada pelo vaivém, o parêntese, a antecipação, a digressão, a
retomada- que ampliam a nosa percep$o em amplitude e pro-
fundidade - para desembocar na linha reta e palpitante da terça
parte final, quando Riobaldo assume o destino nas mãos, disposto
a aceitar o bem e o mal. Refinamento técnico e força criadora
fundem-se então numa unidade onde percebemos, emocionados,
desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasi-
leira se transforma em substância universal, perdendo a sua expres-
são aquilo que, por exemplo, tinha de voluntariamente ingênuo
na rapsódia dionisíaca de Macunaímt para adquirir a soberana
maturidade das obras que fazem sentir o homem perene.
192

Continue navegando