Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
BIOÉTICA E FORMAÇÃO EM SAÚDE AULA 6 Prof. João Luiz Coelho Ribas 2 CONVERSA INICIAL A ética, e em sequência, a bioética, é um constante criar e recriar, com momentos e situações históricas distintas, associada ao ser humano e sua adaptação ao longo dos anos. Ela é essencial para que se viva em sociedade. Nós, seres humanos, somos e sempre seremos diferentes uns dos outros, observando nossa própria identidade. Porém, como vivemos em uma sociedade e estamos inseridos em determinados grupos, que têm seus próprios valores, cabe razões para questionar se fatos ou situações que ocorrem dentro desses grupos ou mesmo à parte deles estão de acordo com os preceitos éticos e bioéticos. Assim, a bioética apresenta-se na tentativa de apreender e compreender o verdadeiro significado do novo, capacitando-nos a uma possível adaptação. Isso faz com que possamos desenvolver um raciocínio bioético que pode ser aplicado desde às condições pessoais quanto às profissionais. Nesta aula discutiremos, alguns casos relacionados à bioética com o intuito de desenvolvermos o nosso raciocínio bioético e praticarmos, por meio de casos, as nossas decisões, além de desenvolver discussões a respeito da utilização de células tronco. TEMA 1 – BIOÉTICA E UTILIZAÇÃO DE CÉLULAS-TRONCO: TERAPIA GÊNICA E CÉLULAS GERMINATIVAS As células-tronco são caracterizadas como aquelas células que apresentam uma capacidade preservada de autorrenovação, com a capacidade de se tornarem uma variedade enorme de tipos celulares, dependendo, é claro, do estímulo a que for exposta, ou seja, dependendo do estímulo (pelo menos em teoria) essa célula poderia se tornar uma célula cardíaca ou uma célula pulmonar ou uma célula renal e assim por diante. É um consenso e de grande e ampla divulgação, no meio científico e clínico, que as pesquisas envolvendo a aplicação de células-tronco no tratamento de inúmeras doenças são extremamente promissoras (algumas, inclusive, uma realidade palpável na pesquisa clínica). Todas as áreas da ciência concordam com tal alternativa como sendo um grande salto para a melhoria da qualidade de vida da população mundial. 3 O grande conflito bioético não está necessariamente na utilização de células-tronco para o tratamento de pacientes que necessitem e, claro, que respondam a esse tipo de tratamento, mas onde essas células polipotentes são originadas. Nessa discussão entram também a terapia gênica e células germinativas. Muitos pesquisadores defendem que essas células-tronco podem ser retiradas de alguns tecidos já desenvolvidos e que, com os estímulos corretos, poderiam voltar a ser células pluripotentes e consequentemente diferenciar-se novamente, se necessário, em qualquer outro tecido. Alguns defendem ainda que um bom local para ter essas células é o cordão umbilical humano, o que fez crescer extraordinariamente, nos últimos anos, os bancos de cordão. No entanto, a forma realmente segura para obter células-tronco que têm a capacidade de se diferenciar em qualquer tipo celular ainda é retirando-as de embriões. Essa sim é a grande discussão bioética frente às questões envolvendo terapia gênica e célula-tronco, ou terapia com célula-tronco, independentemente. Essas células são retiradas de embriões congelados, a maioria originados em clínicas de reprodução assistida ou na utilização de técnicas de clonagem terapêutica, na qual é necessária a utilização de óvulos de voluntárias que fizeram a doação de seus gametas à pesquisa. Sendo assim, com base nessas discussões bioéticas formam-se dois grupos distintos: os pesquisadores que são a favor e os pesquisadores que são contra a utilização de embriões ou da clonagem terapêutica na obtenção de células-tronco e na terapia gênica utilizando células germinativas. A grande questão é que a utilização de embriões que são excedentes de clínicas de fertilização ou a obtenção de células-tronco a partir de técnicas de clonagem terapêutica, ao mesmo tempo que devolve a esperança a milhares de pessoas com doenças incapacitantes ou até hoje incuráveis, deixa no ar vários questionamentos para discussão, tais como: Até que ponto é válido produzir e utilizar células-tronco oriundas de embriões humanos? A esperança de milhares de pessoas em busca incessante pela cura e/ou reabilitação está acima da vida dos embriões que obrigatoriamente terão de ser produzidos para gerar as células-tronco a serem utilizadas nesse processo? 4 Em países onde a clonagem terapêutica é permitida haverá comercialização dos órgãos e tecidos produzidos por essa técnica para países onde tal procedimento é proibido? Quem terá direito e acesso a essa tecnologia? O embrião já pode ser considerado um ser vivo? A utilização de embriões seria uma forma de homicídio? Será moralmente aceitável salvar vidas retirando outras? No caso específico da clonagem terapêutica, temos que atentar que o seu grande e específico objetivo é gerar células-tronco e, a partir delas, tecidos e consequentemente órgãos e, para isso, os embriões que essa técnica utilizaria já seriam “produzidos” com esse intuito. Seguindo esse raciocínio, em vez de se tornar uma pessoa completa, esse embrião se tornaria um “pedaço” de um corpo. Aqui, a bioética lança duas questões bastante importantes a serem analisadas sob seu ponto de vista: isso não é uma reprodução? Só que objetivando apenas um órgão? Aqui também temos que pensar nos conflitos bioéticos relacionados às mulheres que, na clonagem terapêutica, doam seus óvulos para a produção de embriões. Até que ponto é ético submeter essas mulheres a técnicas invasivas para obtenção de óvulos que serão utilizados para “fabricação” de órgãos, e não de um ser humano completo? Além do mais, uma constatação-chave é que para a obtenção (hoje) de uma linhagem de células-tronco com potencialidade de tornarem-se um órgão ou tecido são necessários cerca de 30 embriões, que para serem obtidos necessitam de cerca de 250 óvulos, que provêm de aproximadamente 16 mulheres. Até que ponto tudo isso é bioético? Vamos pensar que tudo isso pode estar acontecendo dentro de nossos hospitais (sejam hospitais de pesquisa, hospitais universitários, hospitais que albergam pesquisas clínicas) e, assim sendo, qual a nossa responsabilidade sobre essas questões enquanto gestores? Para fomentar um pouco mais essa questão, devemos pensar no paciente receptor dessa terapia. Apesar da esperança na melhora da qualidade de vida, algumas questões de segurança ainda não foram totalmente resolvidas, como a questão de que essas células têm a capacidade de se tornarem tecidos específicos, mas também de diferenciarem-se em vários tecidos concomitantemente, podendo originar o que chamamos de Teratoma, um tipo de 5 tumor. Ou seja, podemos estar tornando uma esperança de reabilitação, melhora de qualidade de vida ou até mesmo cura em outras doenças, talvez até piores. Essas são discussões bioéticas bastante importantes de serem contempladas e colocadas em pauta. TEMA 2 – DORES FÍSICAS X DESCASO Um caso ilustrado em Hossne (2010, p. 487), “óbito fetal X enterro”, está descrito a seguir: Um jovem casal procurou aconselhamento genético para investigar o motivo do óbito do feto que ocorreu na primeira gestação. O concepto tinha 18 semanas de vida intrauterina e subitamente o coração parou, informou a mãe. O óbito fetal foi confirmado pelo ultrassom. Após a curetagem, o médico responsável encaminhou o material para exame anatomopatológico. A mãe refere que ao retirar o laudodo exame no laboratório de patologia, solicitou ao atendente que pudesse ver o concepto: “Fui procurar ver meu bebê e tê-lo para poder sepultá-lo, mas me disseram que nesta idade seria desprezado como uma peça cirúrgica, conforme orientações internas do laboratório. Não pude ficar com ele e sepultá-lo como gostaria. As questões que surgem frente a esse caso são: “Por que não sepultar um feto de 18 semanas gestacional? Existem restrições médicas e/ou legais nesses casos? A quem pertence a decisão sobre o destino de um feto morto? O que fazer?” (Hossne, 2010, p. 487). Além dos parâmetros legais, o que devemos levar em conta são os princípios bioéticos da Beneficência e Direito à Autonomia. Um dos pareceres sobre o caso mencionado apresenta que Cerca de 98 por cento dos abortos espontâneos acontecem no primeiro trimestre da gravidez, isto é, nas primeiras 13 semanas. Embora seja mais rara, a perda do bebê depois disso também acontece. No Brasil, a perda do bebê é considerada abortamento quando acontece até 20 semanas de gestação, ou mais tarde, se o feto pesar até 500 gramas e menos de 25 cm. Antes da 20a semana de gravidez, o bebê é considerado feto, portanto não será necessário fazer nenhum tipo de registro nem tirar certidão de óbito. O hospital cuidará do corpo. Se a família quiser o corpo para fazer algum tipo de sepultamento ou cerimônia, pode requisitá-lo ao hospital. O hospital então emitirá uma declaração de óbito, e a família precisará ir ao cartório de registro civil tirar uma certidão de natimorto. (Hossne, 2010, p. 488) Ao aborto segue-se um trabalho de luto, que poderá trazer maior ou menor tumulto, conforme a relação da mulher com este bebê que não chegou a nascer. Além da perda física, existe a perda afetiva. Perdemos um filho que não chegamos a conhecer, a embalar, a alimentar, a abraçar e, com ele, perdem-se as ilusões e sonhos que tivemos para o seu futuro. 6 O luto é um direito dos pais, assim como obter o corpo de seu filho abortado. E cabe a nós a orientação de que isso é plenamente viável se for da vontade dos pais. TEMA 3 – AUDITORIA X CONFIDENCIALIDADE X INTERESSES PESSOAIS Um médico auditor de plano de saúde vai ao hospital com o objetivo de analisar a solicitação de autorização do uso de um antibiótico de última geração em paciente com septicemia internado na UTI. Sem autorização da direção do hospital, acessa o prontuário do paciente, retira resultados de exames, visita e examina o paciente sem avisar ao médico infectologista assistente, e faz comentários deletérios a respeito da atuação do colega infectologista, na frente de outros profissionais e da família do atendido, tais como má condução do caso e prescrição inadequada do medicamento. Ao retornar à operadora, sugere que esta faça um acordo com o hospital para uso de medicamento de menor custo. Relata o caso, fundamenta seu procedimento e propõe descredenciamento do infectologista e do hospital depois do atendimento que está sendo prestado àquele paciente. Alega também que, como a recusa da autorização do uso do medicamento resultará em uma economia expressiva à operadora, ele, como auditor, faturará bastante nesse caso, uma vez que é remunerado em um percentual calculado do montante de recusas efetuadas. O paciente evoluiu mal e faleceu. Alguns dias depois, a família encaminha denúncia de mau atendimento à Comissão de Ética do hospital sob sua gestão alegando que, conforme o médico auditor, o tratamento do paciente fora malconduzido pelos médicos da instituição. Adverte que será elaborado boletim de ocorrência e que proporá ação civil, visando obter indenização por perdas e danos. A questão-chave desse caso é: até que ponto um médico auditor pode interferir no tratamento de um paciente? Aqui temos vários pontos a serem analisados, inclusive o fato de que os médicos e profissionais da saúde, no desempenho de suas funções, devem manter sigilo total em relação aos dados contidos nos prontuários dos pacientes, sendo totalmente vedado ao médico desrespeitar ou alterar a prescrição/tratamento de paciente já estabelecido por outro médico, a não ser em caso em que o próprio paciente ou a família com a anuência do paciente 7 solicita uma segunda opinião e questiona sobre o tratamento adotado até então. E, claro, a não ser também que haja indiscutível benefício ao paciente, mas nesse caso deve haver a comunicação imediata ao médico responsável. Também devemos levar em consideração que o médico na função de auditor deverá identificar-se de forma clara, especialmente em todos os seus atos, fazendo constar, sempre, o seu CRM. Da mesma forma, é vedado a ele “autorizar, vetar, bem como modificar, procedimentos propedêuticos e/ou terapêuticos solicitados, salvo em situação de indiscutível conveniência para o paciente, devendo, neste caso, fundamentar e comunicar por escrito o fato ao médico assistente.” (CFM, 2011). Claro que a auditoria é uma ferramenta extremamente importante e eficiente que pode ser utilizada pelos profissionais de saúde de forma a melhorar a atenção aos pacientes, no entanto, nunca como um instrumento de pressão ao paciente ou ao seu colega, nem de submissão. O processo de auditoria deve ser conduzido de forma bioeticamente aceita para que não traga problemas em torno da gestão. TEMA 4 – REPRODUÇÃO ASSISTIDA Uma senhora procura uma clínica de reprodução assistida para realizar seu sonho de ter um filho. No entanto, ela não tem recursos para custear seu tratamento e para tal fato a clínica lhe propõe uma solução: ela se submeteria aos procedimentos corriqueiros de estimulação ovariana e retirada dos óvulos, esses óvulos serviriam para ela e também para outra senhora que necessitava de óvulos para ter filhos e que se dispõe a custear os dois tratamentos. Sobre esse caso, quais os questionamentos bioéticos envolvidos? TEMA 5 – DISCUSSÃO BIOÉTICA Marlise, que tinha um coágulo no pulmão, levou um tombo na cozinha de casa e teve morte cerebral. Ela já tinha deixado instruções claras para a família pedindo que nunca fosse mantida viva com a ajuda de aparelhos. Porém, os médicos descobriram que a paciente estava grávida (na época, estava com 14 semanas de gestação) e optaram por não desligar os equipamentos. Qual a sua decisão, enquanto gestor, levando em consideração os princípios da bioética? 8 O marido de Marlise, Erick, lutou na justiça para que o desejo de sua esposa, de não depender de máquinas para viver, fosse realizado. Segundo Erick, depois da morte trágica do irmão de Marlise, os dois haviam conversado sobre o que fazer se o pior acontecesse. Na ocasião, de acordo com Erick, ela disse que nunca queria ser mantida viva por máquinas. Será que Marlise tomaria a mesma decisão se soubesse que estava grávida? Foram dois meses de uma batalha judicial que chegou ao fim com a decisão de que fosse removido qualquer método artificial que estivesse mantendo a respiração da paciente, o que de fato foi feito. Como gestor, quais as implicações bioéticas? Se tivesse sido recorrido à Comissão de ética do hospital, qual seria sua provável decisão? NA PRÁTICA Em um dado hospital, é comum, para os pacientes internados pelo SUS, quando o médico prescrever Novalgina, ser administrado dipirona similar, ao contrário do que ocorre com os pacientes que são internados via convênio com planos de saúde ou via pagamento particular. Do ponto de vista bioético, isso é correto? Discuta! FINALIZANDO Nesta aula, observamos alguns exemplos de discussões bioéticas, o que nos faz perceber a sua aplicabilidade e de fato identificar que ela está no nosso dia adia. Isso serve essencialmente para que possamos desenvolver o nosso raciocínio bioético e sua aplicação em nosso contexto pessoal e profissional. 9 REFERÊNCIAS BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Conep. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html>. Acesso em: 14 dez. 2017. COHEN, C.; FERRAZ, F. C. Direito humano ou ética das relações? In: Bioética. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. CONSELHO Federal de Medicina. Parecer n. 33, de 15 de julho de 2011. Relator: Cons. Henrique Batista e Silva. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2011/33>. Acesso em: 13 dez. 2017. FERREIRA, A. B. H. Dicionário Eletrônico. Curitiba: Positivo, 2004. GARRAFA, V. Introdução à Bioética. Revista do Hospital Universitário UFMA, São Luís, v. 6, n. 2, p. 9-13, 2005. GUILHEM, D.; DINIZ, D. A ética na pesquisa no Brasil. In: DINIZ, D.; GUILHEM, D.; SCHUKLENK, U. Ética na pesquisa. Brasília: Letras Livres/UNB, 2005. HOSSNE, W. S. (Coord.) Bioética: e agora, o que fazer?. Revista Bioethikos, Centro Universitário São Camilo, v. 4, n. 3, p. 487-491, jul./set. 2010. Disponível em: <https://www.saocamilo- sp.br/novo/publicacoes/publicacoesSumario.php?ID=78&rev=b&sum=1480&idi oma=pt>. Acesso em: 14 dez. 2017. LIMA, W. M. Bioética e comitês de ética. CONEP, 2004. POST, S. T. Introduction. Encyclopedia of Bioethics. 3. ed. Macmillan Reference USA, 2004. POTTER, V. R. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971. RAMOS, D. L. P.; CRIVELLO JÚNIOR, O. Fundamento da odontologia: Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. SIQUEIRA, J. E.; ZOBOLI, E.; KIPPER, D. J. Bioética clínica. São Paulo: Gaia, 2008.
Compartilhar