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Vida e Crise no Primeiro Reinado

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Aula 4 – Vida Cultural e Social no Primeiro Reinado / Crise Econômica no Primeiro Reinado
A Monarquia Brasileira como uma Exceção à Modernidade Republicana nas Américas
Ao analisar a realidade brasileira, o músico Tom Jobim afirmou que o “Brasil não é um país para principiantes”. Essa máxima se justifica pelo grau de excepcionalidade que marca a história do Brasil. Compreender uma das principais singularidades do nosso passado nacional é o principal objetivo dessa disciplina. Podemos entender melhor isso nos referindo aquele que foi um dos principais pensadores da modernidade, o escritor francês Alexis Tocqueville, que no livro De la démocratie em América analisou a fundação da República dos EUA e disse que esse país era algo inédito da história universal, uma formulação política para a qual não havia referências no passado.
Ao surgir como o primeiro país independente das Américas e como a primeira grande República moderna, os EUA inauguraram uma cultura política no Novo Mundo que se fez presente nas práticas políticas locais durante todo o século XIX. De acordo com essa cultura política, ao continente americano cabia o papel de vanguarda da modernidade e a adaptação dos valores da democracia clássica às sociedades de massa típicas das nações modernas. O Brasil foi uma exceção a essa cultura política; entre nós o regime republicano não foi visto como a garantia das liberdades individuais e coletivas, mas sim como a origem da anarquia e da tirania militar, imagem construída pelas elites político/intelectuais brasileiras através da análise das experiências das repúblicas hispânicas vizinhas.
“O deus da natureza fez a América para ser independente e livre: o Deus da natureza conservou no Brasil o príncipe regente para ser aquele que firmasse a independência deste vasto continente. Que tardamos? A época é esta. Portugal nos insulta... A América nos convida... A Europa nos contempla... o príncipe nos defende... Cidadãos! Soltai o grito festivo... Viva o Imperador Constitucional do Brasil, o senhor D. Pedro Primeiro.”.
Autores, como Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, atribuem essas palavras, que foram publicadas nos jornais do Rio de Janeiro em 21 de setembro de 1822, a Gonçalves Ledo, um dos personagens mais atuantes nos eventos que resultaram na independência do Brasil. Estava claro para determinados setores das elites da América Portuguesa, falamos aqui, principalmente, de paulistas e cariocas, justamente aqueles que mais se beneficiaram com o afrouxamento dos entraves coloniais durante o período joanino, que as cortes portuguesas desejavam recolonizar o Brasil. Podemos então ver a ruptura entre Brasil e Portugal como o resultado da conjugação de três ambições: as ambições recolonizadoras do movimento revolucionário português, a ambição de certos grupos da América Portuguesa em manter a autonomia e o estatuto jurídico conseguidos com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves e a ambição do jovem Pedro, o Príncipe da Beira, em ser protagonista do teatro político do Império Português.
Uma vez formalizada a ruptura definitiva entre Brasil e Portugal, restava muito ainda por se fazer; era necessário que a comunidade internacional reconhecesse a nova nação e, principalmente, era indispensável a construção de uma estrutura político/jurídico de dominação forte o suficiente para se fazer soberana no território nacional. Nenhuma das duas tarefas era fácil; a segunda se mostrou particularmente difícil e o Primeiro Reinado terminou sem que ela fosse concluída.
Os EUA foram o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil e fizeram isso em maio de 1824 como um dos resultados da orientação que o governo do presidente James Monroe deu à política externa daquele país entre 1817 e 1825. Tratava-se do corolário “A América para os Americanos”, que na prática traduzia o interesse dos EUA em diminuir a influência dos países europeus na dinâmica interna do continente americano. Esse tipo de postura diplomática fazia parte de um projeto que tinha o objetivo de definir os EUA como uma potência regional no novo mundo. Esse projeto se mostrou bem-sucedido, sendo complementado pela “Política do Big Stick” na segunda metade do século XIX (De acordo com os preceitos da orientação, cabia aos EUA, enquanto defensor da América, intervir nos assuntos internos das outras nações americanas sempre que os interesses do continente estivessem em jogo. O grande símbolo do “Big Stick”, o grande porrete, foi a construção do canal do Panamá, em 1904.). Já o reconhecimento português, que era fundamental para a legitimidade do Brasil junto à opinião pública internacional, somente veio em agosto de 1825, após uma longa negociação, intermediada pela Inglaterra, entre os governos de ambos os países. O reconhecimento português saiu bem caro para o governo Brasileiro, que pagou uma multa de 2 milhões de libras à Antiga Metrópole.
A movimentação militar do Primeiro Reinado não ficou restrita aos conflitos travados no nordeste brasileiro. D. Pedro I herdou um grande problema diplomático do governo de seu pai: o caso da Cisplatina. O conflito aconteceu entre o Império Brasileiro e as Províncias Unidas do Rio da Prata, atual Argentina. O motivo do litígio era uma região que há muito tempo, desde o período colonial, era a causa de disputas, tratados e conflitos entre Portugal e Espanha. Já emancipados, tanto Brasil como Argentina rapidamente assumiram as posições de principais forças nas relações internacionais sul-americanas; é exatamente essa disputa pelo status quo local a motivação da guerra. O desfecho do conflito aconteceu em 1828, sendo mediado por França e Inglaterra, e apontou para a formação de um Estado independente na região. Nem do Brasil e nem da Argentina, surgiu nesse momento a República Oriental do Uruguai. Esses custos somados à indenização paga ao governo português como requisito para o reconhecimento da independência colocaram as finanças da Monarquia brasileira em maus lençóis; faltava dinheiro e o governo tentava tampar o rombo com mais impostos. A essa altura, o jovem monarca estava começando a conhecer o outro lado do poder. Não deve ser fácil governar um país do tamanho do nosso, ainda mais no momento em que esse gigante era ainda uma criança recém-nascida atabalhoada com suas próprias pernas.
As dificuldades que seriam encontradas pelo Brasil nos seus primeiros anos de vida como nação independente já haviam sido diagnosticadas nos primeiros meses do Primeiro Reinado pelo astuto José Clemente Pereira, na época era o Presidente do Senado, que dirigiu a cerimônia de aclamação de Pedro como Imperador Constitucional do Brasil. O evento aconteceu em 12 de outubro de 1822, em um palacete situado no Campo de Santana. Voltando-se ao Imperador, discursou José Clemente: “O povo brasileiro tem declarado unanimemente a um só tempo que é sua vontade soberana fazer um Império Constitucional Independente, de que V.M.I seja Imperador Constitucional. (...) sendo seu governo regulamentado por uma constituição sábia e justa redigida em breve pelos deputados, os legítimos representantes do povo. Somente assim, com a união entre o trono e os homens virtuosos, o Império que se funda hoje será capaz de enfrentar as turbulências que certamente virão em breve”.
As palavras de José Clemente apontam para um futuro próximo difícil, típico de um país que dava seus primeiros passos como nação independente, e para certo modelo de dominação política considerado por ele e pelos seus pares o ideal para o Brasil: uma Monarquia constitucional fundamentada no princípio da soberania popular representativa, tal como formulada nas páginas da ilustração inglesa, com autores como John Locke e Edmund Burke, duas das principais referências da Monarquia Whig britânica.
Em um primeiro momento, D. Pedro demonstrou aceitar o fato de que a real origem da soberania política não era o seu cetro, mas sim a vontade de um povo, que tal como a própria nação, ainda estava, e talvez ainda esteja, em construção. Às palavras de JoséClemente seguiram as seguintes, do Imperador: “Aceito o título de Imperador Constitucional e Defensor do Brasil, porque tendo ouvido meu Conselho de Estado e de Procuradores Gerais e examinando as representações das Câmaras de diferentes províncias, estou intimamente convencido, que tal é a vontade geral de todas as outras, que, só por falta de tempo, não têm ainda chegado”.
Mesmo que na fala seguinte o Monarca tenha dado vivas à “Deus” e à “Santa Religião”, ele não fundamentou o seu trono com argumentos de natureza teológica, como era comum no discurso filosófico absolutista, que certamente encontrou uma de suas formulações mais explícitas no “Leviatã”, de Thomas Hobbes. Aqui o próprio Imperador reconhece que o poder não é essencialmente seu, sendo-lhe outorgado por algo maior, o “povo”, categoria que foi positivada na modernidade. Esse era o momento da “lua de mel” entre o Imperador e os grupos que, a despeito das suas diferenças, apoiaram com coesão suficiente a rebeldia do então Príncipe herdeiro contra as determinações das cortes portuguesas. A lua de mel foi curta; o divórcio já viria.
Como vimos na última aula, o projeto constitucional de 1823 foi a origem dos conflitos entre o Imperador e os seus antigos aliados; vimos também que a constituição de 1824 acirrou ainda mais esses conflitos. Com o passar dos anos, a esse cenário de hostilidades somou-se a clara intenção do Imperador em lutar pela sucessão do trono português, do qual ele também era o herdeiro legítimo. As pretensões de D. Pedro despertaram em alguns setores da elite brasileira o temor da recolonização. Esses são os conteúdos principais da crise que culminou na abdicação de D. Pedro I em 07 de abril de 1831.
Cultura e Sociedade no Primeiro Reinado: uma Sociedade Escravocrata Temperada com um Catolicismo Dionisíaco
A sociedade e a cultura brasileiras durante o Primeiro Reinado eram marcadas por duas características, que combinadas com o modelo de socialização que Gilberto Freyre chamou de “Patriarcal” davam o tom do cotidiano no período: a escravidão e uma apropriação bem particular do cristianismo católico. O mesmo Gilberto Freyre, no estudo hoje considerado clássico “Casa Grande e Senzala”, chamou essa apropriação de “catolicismo dionisíaco. Desde o período joanino, quando grandes transformações modificaram consideravelmente a vida na América Portuguesa, é possível observar a convivência entre a sociedade rural, patriarcal e escravista com as tradições europeias, que se fizeram mais presentes por aqui após o translado da corte. É exatamente esse ajustamento o tema do livro “Sobrados e Mocambos”, de Gilberto Freyre, que a partir de agora será a nossa principal referência para pensar a sociedade e a cultura no Brasil durante o Primeiro Reinado.
Esse autor afirma que, desde fins do século XVIII, aconteceu lentamente o declínio do patriarcado rural brasileiro, que ele mesmo analisou em “Casa Grande e Senzala”, e a formação de um patriarcado semiurbano, menos severo. Esse declínio ficou ainda mais evidente ao longo do século XIX, quando a casa patriarcal, que no período colonial acomodava as diferenças raciais da sociedade escravocrata, perdeu a capacidade de “amolecer” o antagonismo entre os Brancos e os Pretos. Só aos poucos é que se definem não tanto zonas como momentos de confraternização entre aqueles extremos sociais: a procissão, a festa da igreja, o entrudo o carnaval.
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