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7 INTRODUÇÃO O sistema prisional brasileiro encontra-se em situação caótica, compondo um dos mais graves problemas sociais da atualidade: rebeliões de proporções alarmantes, crescente poder do crime organizado, violência, morte e insegurança generalizada. Um olhar sobre este cenário punitivo nos remete a uma reflexão a respeito do modelo carcerário brasileiro e da efetividade dos princípios constitucionais na execução das penas privativas de liberdade. A dignidade da pessoa humana foi consagrada pela Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III, como alicerce do Estado brasileiro. Em consonância com o valor expresso neste dispositivo, o inciso XLIX do artigo 5º eleva a integridade física e moral dos apenados à categoria de cláusula pétrea e o artigo 1º da Lei de Execuções Penais dispõe que a finalidade da execução penal é a integração social do apenado. Estabelecendo-se um estudo sobre as teorias da pena, a pesquisa visa a apurar se o modelo de execução penal praticado no Brasil contempla o mandamento constitucional da dignidade da pessoa humana e se a teoria adotada pelo ordenamento penal permite a reintegração social do apenado e a prevenção da criminalidade. Para tal análise, partiu-se do pressuposto de que garantir segurança à sociedade não pode ser sinônimo de restringir a dignidade humana dos presos. A inobservância deste princípio tornaria inviável a consecução das finalidades sociais da pena. Como parâmetro, adotou-se a estrutura penitenciária do Estado de São Paulo, em razão de que o sistema prisional paulista, segundo dados oficiais, abriga mais da metade da população carcerária brasileira, o que representa uma amostragem satisfatória para efeitos do trabalho ora proposto. 8 Para consecução da pesquisa, foram utilizados dados estatísticos oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e de pesquisa empírica iniciada na Penitenciária de Assis no ano de 2004, com o objetivo de concretizar o tratamento estatístico previsto pelo projeto. Quanto aos procedimentos metodológicos, realizou-se, num primeiro momento, uma revisão bibliográfica dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal em face do apenado e uma leitura das teorias que informam o sistema penal, visando a apurar se o Direito positivado brasileiro tem como foco a reintegração do egresso à sociedade ou se assume caráter meramente retributivo, identificando diagnósticos e perspectivas que envolvem o sistema prisional brasileiro. Numa segunda etapa, buscando seguir os passos de Foucault, partiu-se de uma macro-estrutura, onde foi analisado o sistema penitenciário paulista, para uma micro- estrutura, apresentando-se os resultados de pesquisa empírica realizada na Penitenciária de Assis, envolvendo membros da população carcerária e funcionários da Instituição, guardando- se uma mesma proporção entre os dois grupos. Com a adoção deste procedimento procurou-se comprovar as hipóteses levantadas e apurar o olhar do preso e o olhar do agente público acerca do sistema prisional, viabilizando a reprodução das relações de saberes e poderes que se desenvolvem no espaço carcerário e a forma pela qual esta complexa rede reflete-se em nossa sociedade. A fundamentação teórica que serviu de modelo a este projeto percorreu três etapas: Beccaria, Foucault e Luigi Ferrajoli. De Beccaria, salientou-se a questão da humanização do sistema punitivo, os fundamentos do direito de punir e os meios necessários para prevenir os delitos. De Foucault, explorou-se a idéia de que tudo se estabelece em torno das relações entre saber e poder e de que a finalidade ressocializadora do sistema prisional não passa de utopia, nos remetendo ao 9 pensamento de que não há um sistema punitivo que possa extinguir as práticas criminosas, porque o problema da prisão está em seu próprio fundamento, que é a segregação. De Beccaria a Foucault, há deslocamento do eixo interpretativo. A metodologia beccariana está assentada no idealismo humanista em voga no século XIX, na Europa, enquanto Foucault, século XX, assenta-se na desconstrução dos sujeitos (anti-humanismo), ou seja, a abordagem adotada por ele é depuradora dos elementos humanistas. Quanto a Luigi Ferrajoli, utilizou-se a obra “Direito e razão – teoria do garantismo penal”, em que o autor analisa a teoria e a prática penal, seus fundamentos e princípios, tomando como paradigma a teoria geral do garantismo. A utilização desta obra foi de fundamental importância, especialmente para a compreensão do ordenamento infra-constitucional e das teorias que informam o sistema criminal, cuja leitura forneceu os subsídios necessários para se definir qual doutrina orienta a execução penal no Brasil. A pesquisa realizada, sem a pretensão de esgotar o assunto, dada sua complexidade e extensão, buscou uma discussão acadêmica sobre o tema, questionando os fundamentos do direito de punir do Estado, as condições em que tal poder tem sido exercido, as disposições legais acerca da pena de prisão, diagnósticos e perspectivas relacionadas à execução penal no Brasil. 10 I- DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITO PENAL A Constituição Federal de 1988 previu a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro e, dentre suas disposições, assegurou princípios que instruem o Direito Penal. Para se constatar a efetividade deste princípio, iremos abordar a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal pela legislação infra-constitucional em face do apenado. 1- Considerações preliminares sobre a dignidade da pessoa humana 1.1- Antecedentes históricos Para a compreensão do conceito e do significado de dignidade da pessoa humana, faremos uma breve retrospectiva histórica acerca de sua evolução, partindo do pensamento clássico e do ideal cristão na Idade Média até os contornos que assumiu no mundo ocidental em tempos atuais. Na Antiguidade Clássica, a dignidade da pessoa humana não era reconhecida de forma igualitária a todos os membros da comunidade, sendo diretamente proporcional à posição que o indivíduo ocupava no grupo social a que pertencia, conforme afirma Ingo Wolfgang Sarlet: No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas (2007, P.30). 11 Segundo o relato de Michel Renaud (1999, p.137), pensadores como Platão, Cícero e Aristóteles defendiam a idéia de que o ser humano ocupa uma posição superior em relação aos demais seres viventes, assim como o modelo agostiniano que também distinguia o ser humano das coisas e dos animais, tempos depois na filosofia medieval. De acordo com o autor, a partir destes pensadores, a dignidade passou a ser vista como a característica que distinguia o homem dos outros seres viventes, atribuída a todos os indivíduos de forma igualitária, independentemente da posição que ocupasse no grupo social. No que se refere à filosofia estóica, Comparato (2001, p.19) afirma que os valores morais e a dignidade do homem eram fatores indissociáveis para aquele povo. O homem era considerado filho de Zeus e portador de direitos de maneira igualitária, da mesma forma que, para a tradição bíblica, fora feito à imagem e semelhança de Deus, idéia arraigada no pensamento medieval de São Tomás de Aquino.Segundo Starlet, foi no contexto do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII que se iniciou o processo de secularização do conhecimento elementar de dignidade humana, destacando o pensamento de Samuel Pufendorf, para quem a dignidade da pessoa humana era considerada como “a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e de agir conforme o seu entendimento e sua opção” (2007, p.32). Conforme o relato do autor, este processo de laicização da dignidade da pessoa humana atingiu o seu ponto mais alto com o pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant, para quem o homem era um ser dotado de racionalidade. Na concepção kantiana, a racionalidade estaria intimamente ligada à idéia de liberdade, no sentido de que somos livres para realizar escolhas e tomar decisões em detrimento de nossos próprios interesses, o que nos diferencia dos animais. Nesta linha de raciocínio, tratar um homem com dignidade seria considerá-lo como um fim em si mesmo e não como meio de satisfação de interesses outros. 12 Em Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant estabelece tal formulação: “age de tal forma que trates a humanidade tanto em sua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro sempre como um fim e jamais simplesmente como um meio” (1980, p.18). Segundo Oscar Vieira Vilhena, esta noção impõe um tratamento recíproco entre as pessoas, na medida em que um homem deve atribuir ao outro o mesmo valor que atribui a si mesmo, porque todos são merecedores do mesmo respeito. Como as pessoas são dotadas de razão, todas merecem ser tratadas com dignidade de maneira igualitária (2006, p.38). Ao longo do tempo, uma série de contrapontos ao pensamento Kantiano foi redigida por outros pensadores, mas suas idéias representam, até hoje, um marco para os estudos da dignidade da pessoa humana. 1.2- Perspectiva constitucional Para Oscar Vilhena, a dignidade assume diferentes dimensões, sempre relacionada a uma enorme gama de condições ligadas à própria vida humana, como integridade física e psíquica, moral, condições de liberdade e materiais de bem-estar. Por isso, não constitui um valor intrínseco ao ser humano, mas uma “construção de natureza moral”, em processo permanente de desenvolvimento, sempre relacionada à proteção de condições indispensáveis a uma existência também digna (2007, p.36). De qualquer maneira, após seu reconhecimento como valor moral, a dignidade humana foi erigida à condição de valor fundamental da ordem jurídica dos Estados chamados “Democráticos de Direito” constituindo o alicerce, as bases de suas constituições. 13 Após a Declaração da Organização das Nações Unidas em 1948, que a reconheceu como “valor jurídico universal, a maioria dos países ocidentais a adotou expressamente em suas constituições (KRIELE, 1983, p. 47-54). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 positivou a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito que ora se constituía (art.1º, inciso III). A partir daí, a proteção da dignidade humana foi expressa na nossa ordem jurídica como princípio constitucional do mais alto grau de relevância, ocupando o cume da pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico (HESSE, 1991, p.35). Da leitura do texto constitucional brasileiro, afere-se que a dignidade da pessoa humana está prevista logo no primeiro título que trata dos princípios fundamentais, sugerindo, segundo Starlet (2007, p.63), que o legislador instituiu a eles a função de fundamentar toda a ordem constitucional, especialmente no que diz respeito às normas que definem os direitos e garantias fundamentais, previstos no título II. Explícito em outras palavras, isto significa que a dignidade humana constitui não apenas o fim a que se dirige o ordenamento jurídico, mas, antes, o seu próprio fundamento, o que está expresso no inciso III do artigo 1º, ao tratar a dignidade da pessoa humana como alicerce do próprio Estado. No dizer de Comparato (1999, p.30), "a dignidade do ser humano, fonte e medida de todos os valores, está sempre acima da lei, vale dizer, de todo direito positivo". Na perspectiva dos direitos humanos fundamentais, observa-se, da apreciação do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a presença implícita do princípio da dignidade da pessoa humana tanto nas vedações a determinados tipos de pena, à tortura e a tratamentos desumanos e degradantes, como na proteção ao direito à vida e à integridade física e psíquica, que constituem o centro pétreo da Constituição Federal Brasileira. 14 Embora não prevista explicitamente no rol dos direitos e garantias fundamentais, a dignidade da pessoa humana se faz inerente a todo o texto da Constituição e, por via de conseqüência, a toda a ordem infra-constitucional, representando limite intransponível tanto na esfera de atuação do Estado, quanto na do cidadão. Afirmar que a dignidade constitui um direito fundamental, é dizer apenas parte de seu significado, uma vez que ela é o próprio fundamento da instituição de direitos e de deveres estabelecidos pelo ordenamento jurídico. 2- Constituição Federal e sistema penal A Constituição Federal representa fundamento de validade para todo o ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito. Existe para conduzir a existência do próprio Estado que nela se funda. As disposições de uma Constituição vinculam todos os atos normativos de um sistema jurídico, inclusive, os de âmbito penal, conferindo legitimidade ao ordenamento assim chamado infraconstitucional. Deste modo, é possível afirmar que o Direito Penal, para ter validade, deve ser estruturado a partir dos valores expressos ou implícitos na Carta Magna, entre eles, o mandamento da dignidade humana. Fernando Capez salienta que o tipo incriminador deve descrever como infração somente aquelas condutas que representam uma real lesividade aos bens jurídicos considerados mais importantes para a sociedade e. somente assim, é possível se falar em um Direito Penal “Democrático” (2002, p.10). 15 2.1- Princípios constitucionais penais Como já mencionado, todas as normas infraconstitucionais, entre elas, as normas penais, têm sua validade vinculada à observância dos princípios constitucionais. É a Constituição Federal quem determina que nenhum homem livre pode ser punido por fato que a lei anteriormente o tenha previsto como crime, nem receber uma punição legal se não previamente cominada (Princípio da reserva legal). Também é a Carta Constitucional que determina que a privação da liberdade e dos bens do indivíduo somente pode se dar através de um processo judicial (Princípio do devido processo legal), em que o réu tenha pleno e amplo direito à defesa contra a acusação que lhe é imposta (Princípio do contraditório e ampla defesa), sendo-lhe ainda assegurado o direito de não ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (Princípio da presunção de inocência). Dentre os valores preconizados pela Constituição Federal e que têm no Direito Penal seu campo de projeção, o princípio da dignidade da pessoa humana, surge como diretriz fundamental do sistema, conforme esclarece Capez: Do Estado Democrático de Direito partem princípios regradores dos mais diversos campos da atuação humana. No que diz respeito ao âmbito penal, há um gigantesco princípio a regular e orientar todo o sistema, transformando-o em um direito penal democrático. Trata-se de um braço genérico e abrangente, que deriva direta e imediatamente deste moderno perfil político do Estado brasileiro, a partir do qual partem inúmeros outros princípios próprios afetos à esfera criminal, que nele encontramguarida e orientam o legislador na definição das condutas delituosas. Estamos falando do princípio da dignidade humana (2002, p.10). Sendo a dignidade da pessoa humana o fundamento do Estado e, conseqüentemente, de sua ordem constitucional, todas as demais normas jurídicas, inclusive a penal, têm sua validade vinculada à observância deste princípio, que, segundo o mesmo autor, deve orientar 16 tanto o legislador no momento da criação das figuras típicas, quanto do intérprete no momento em que estabelecer a relação do caso concreto com o tipo penal. É com alicerce na dignidade que o sistema deve funcionar. Isto dito em outras palavras: a dignidade da pessoa humana deve ser o vértice do sistema penal. A partir deste princípio orientador, derivam outros princípios que regem e servem de limite ao Direito Penal (Capez, 2002, p. 13-25). Assim, segundo o princípio da insignificância ou bagatela, o Direito Penal deve ocupar-se somente de tipos incriminadores que descrevam condutas realmente lesivas a bens jurídicos de grande interesse à sociedade. Aplicar uma pena a quem praticou um fato insignificante na esfera da lesividade penal é contrário aos ideais de um Estado Democrático de Direito. Importante observar, entretanto, que delito insignificante ou de bagatela não se confunde com os crimes de menor potencial ofensivo assim definidos pelo artigo 61 da Lei 9099/95 e que possuem um certo nível de gravidade. Trata-se de um princípio a ser observado no plano concreto, não abstrato, conforme escreve Capez: Tal princípio deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. Em outras palavras, nem toda conduta subsumível ao artigo 155 do Código Penal é alcançada por este princípio, algumas sim, outras não (2002, p.15). Do princípio da dignidade humana decorre também a idéia de que só pode ser punido aquele que lesiona bem jurídico de terceiros, ou seja, aquele cujo comportamento transcenda sua esfera individual e alcance a esfera do outro, na medida em que não se pode punir aquele que causou um mal apenas a si mesmo, salvo a hipótese em que houver comprovada intenção de prejudicar terceiros. Basta imaginar-se a situação daquele que atentou contra a própria vida. Não consumada a morte, impor uma pena a quem tentou o suicídio seria um desrespeito a sua faculdade de se auto-determinar, o que implicaria em ferir a sua dignidade. Trata-se aqui do princípio da alteridade ou transcendentalidade. 17 Também alinhado com o princípio da dignidade humana, o princípio da intervenção mínima fundamenta-se no artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (Capez, 2002 p.18), segundo o qual seria defeso ao sistema legislativo e jurídico prever ou aplicar punições desnecessárias. Seguindo a lógica constitucional, a imputação de uma pena só pode ocorrer naqueles casos em que a lei descreve um fato como crime, limitando a atuação do Estado no sentido de privar ou restringir a liberdade do indivíduo somente nos casos em que tal privação ou restrição seja realmente indispensável. Também decorrente da dignidade, o princípio da proporcionalidade estabelece a necessidade de se avaliar a relação custo-benefício ao se criar tipos incriminadores, porque estes limitam a liberdade das pessoas ao mesmo tempo em que protegem determinados bens jurídicos. Para Capez (2002, p.22), um Direito Penal Democrático não pode prever uma incriminação que represente mais ônus do que benefício coletivo. O interesse tutelado pela norma incriminadora deve ser relevante do ponto de vista social, sob pena de inconstitucionalidade. No âmbito preventivo, o princípio dispõe a necessidade de que a pena seja proporcional ao delito praticado. Beccaria, no século XVIII, já defendia a idéia de que uma pena, para ser eficaz, deve ter tão-somente o rigor necessário para prevenir a criminalidade, conforme afirma em sua clássica obra Dos delitos e das penas: “Para que a pena não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, deverá ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre as possíveis, nas dadas circunstâncias ocorridas, proporcional ao delito e ditada pela lei.” (2001, p.107). O artigo 5º, inciso XLVII da Constituição Federal de 1988 traz implícito este princípio ao preceituar a abolição de determinados tipos de pena, bem como ao estabelecer a exigência da individualização da pena (inciso XLVI). 18 Tais preceitos, assim como a vedação constitucional da tortura e do tratamento desumano ou degradante também estão relacionados a outro princípio decorrente da dignidade da pessoa humana: o princípio da humanidade que impede a cominação de penas que atentem contra a incolumidade física ou moral de qualquer pessoa. Este princípio deve orientar todas as relações que envolvem o direito penal e consiste no reconhecimento de que o condenado deve ser tratado como pessoa humana. O princípio da humanidade é decorrente das idéias iluministas em voga na Europa dos séculos XVII e XVIII. Partindo da idéia da elaboração jurídica de um Estado constitucional, os direitos humanos surgem como limite intransponível da execução penal, dos quais emergem diversos princípios constitucionais penais, visando à proteção do condenado contra os arbítrios do poder estatal. A doutrina define ainda vários outros princípios deduzidos do mandamento constitucional da dignidade. Entretanto, para efeitos do presente trabalho, os princípios acima mencionados são suficientes para demonstrar que o Direito Penal encontra seu fundamento de validade nos princípios constitucionais e, dentre eles, a dignidade da pessoa humana representa a pedra angular do sistema. 2.2- Direitos fundamentais em face do apenado na Constituição Federal Inicialmente, far-se-á um breve levantamento a respeito dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e pela ordem infraconstitucional em face do apenado para, em momento oportuno, analisar se a execução penal contempla o princípio da dignidade humana viabilizando a reintegração social do egresso e a prevenção da criminalidade. 19 Conforme já analisado anteriormente, a validade de todo e qualquer ordenamento infraconstitucional está diretamente relacionada à observância dos princípios e valores expressos pela Constituição Federal. Assim, o sistema penal tem sua validade vinculada a sua fidelidade com relação aos mandamentos constitucionais, em especial, ao da dignidade da pessoa humana. O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 elenca, em seus setenta e oito incisos, um rol de direitos e deveres individuais e coletivos, dentre os quais, alguns asseguram aos apenados direitos fundamentais invioláveis em razão de seu perfil constitucional. Isto significa que os agentes do poder público são chamados obrigados a observar estes direitos, os quais se colocam como limites ao jus puniendi. Da leitura do inciso III do artigo 5º, afere-se a relevância que o constituinte pretendeu atribuir à afirmação da dignidade da pessoa humana, ao estabelecer que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (CF, art.5º, inciso III). Tal dispositivo, ao sugerir como indeterminado o sujeito “ninguém”, inclui, portanto, os apenados, que, conservam todos os seus direitos não atingidos pela privação ou restrição da liberdade. A inobservância deste mandamento é punível e, uma vez configurada a prática de tortura, classifica-se como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia, conforme dispõe o inciso XLIII do mesmo artigo, punível nos termos da Lei9455/97 que define os chamados crimes de tortura. O artigo 5º traz um rol taxativo de penas aplicáveis e a vedação expressa de outras.Também a separação classificatória dos presos encontra na Constituição Federal o seu fundamento, visando à individualização do tratamento penal e o controle da criminalidade, na medida em que se evita o contato de infratores ocasionais com os chamados “profissionais” do crime. Portanto, tem perfil constitucional a regra de que os presos devem cumprir suas 20 penas em estabelecimentos distintos segundo o sexo, idade e natureza do delito (CF, artigo 5º, inciso XLIX). No aspecto processual, a Constituição Federal também estabelece uma série de direitos e garantias ao apenado, como, em título exemplificativo, a de que só é possível a privação de sua liberdade através de processo judicial (CF, artigo 5º, inciso LIV), de que só será considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, artigo 5º, inciso LVII), de só ser preso em flagrante delito ou mediante ordem fundamentada de autoridade judiciária (CF, artigo 5º, inciso LXI), de assistência familiar e de advogado, além de poder permanecer calado durante o seu interrogatório (CF, artigo 5º, inciso LXIII). No mesmo artigo, inciso LXXV, a Carta Magna estabelece ao Estado o dever de indenizar o apenado naqueles casos em que ele ficar preso além do tempo definido na sentença condenatória, situação que ocorre freqüentemente no cenário da execução penal no Brasil, raríssimas vezes, devidamente indenizada. 2.2.1- Direitos fundamentais e execução penal Em matéria penal, é a Constituição Federal quem estabelece as regras e princípios a partir dos quais se efetivarão a legislação, o processo e a execução penal. Qualquer lei que contrarie as disposições constitucionais não tem validade e deve ser retirada do ordenamento jurídico, da mesma forma que a investigação, o processo e a execução penal devem ser praticados de acordo com o que está constitucionalmente previsto, especialmente no que diz respeito ao mandamento constitucional da dignidade, pedra angular do sistema penal. 21 O cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil é disciplinado pela Constituição Federal, pelo Código Penal e regulamentado pela Lei 7210/84, Lei de Execuções Penais (LEP). Todas as normas que instruem a execução penal encontram como limite as previsões constitucionais relativas aos direitos fundamentais do apenado. O legislador infraconstitucional, ao estipular qualquer regra referente ao cumprimento da pena de prisão, deve considerar tais pressupostos, sob pena de que a produção legislativa já tenha um nascimento eivado de inconstitucionalidade. Far-se-á, então, uma breve exposição a respeito das regras disciplinadas pela legislação infraconstitucional no tocante à execução penal para, em ocasião oportuna, analisar se a construção teórica do sistema penal contempla o mandamento constitucional da dignidade humana e se o mesmo tem sido observado no cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil. 2.2.1.1- Regimes penitenciários Conforme o disposto § 1º do artigo 33 do Código Penal, são três os tipos de regimes penitenciários a serem aplicados ao condenado: fechado, semi-aberto e aberto. Esta pesquisa tem como objeto o regime fechado, mas, somente em título de ilustração, registram-se algumas diferenças entre os três regimes. No regime fechado, a pena é cumprida em estabelecimento penal de segurança máxima ou média. No período diurno é previsto o trabalho coletivo e, no período noturno, o recolhimento individual, ficando restrita, em regra, a saída do interior da penitenciária. 22 No regime semi-aberto, o infrator cumpre a pena em colônia penal agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Este tipo de regime caracteriza-se pelo trabalho diurno, com vigilância moderada e recolhimento coletivo durante o repouso noturno. A saída do estabelecimento para freqüentar cursos profissionalizantes é permitida. No regime aberto, o apenado trabalha ou freqüenta cursos em liberdade durante o dia e se recolhe em Casa do Albergado ou estabelecimento adequado à noite, sábados, domingos e feriados. Como há poucas casas especializadas, na prática, o apenado cumpre sua pena em regime de prisão domiciliar. Para os condenados femininos e para os maiores de 60 anos a pena deve ser cumprida em regime especial e em estabelecimento próprio. Às mulheres presas é garantido o direito de permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (CF, artigo 5º, inciso L) em celas especiais. Trata-se de direito fundamental assegurado pela Constituição Federal no tocante aos cidadãos com mais de 60 anos e às mulheres que respondem a uma condenação penal. 2.2.1.2- Espécies de penas O artigo 32 do Código Penal prevê como espécies de pena as privativas de liberdade, objeto de estudo deste trabalho, as restritivas de direitos e a de multa. O artigo 5º da Carta Constitucional, em seu inciso XLVIII, estabelece que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. 23 A diversificação do sistema carcerário tem previsão constitucional, com finalidade de proporcionar ao apenado tratamento particularizado, não aplicável a outro cidadão que responde a processo crime em situação semelhante, seguindo o princípio da individualização da pena prevista no inciso XLVI do mesmo dispositivo. Trata-se de direito indisponível do apenado. Pelas razões expostas, a legislação penal considera como espécies de penas privativas de liberdade a reclusão e a detenção, conforme dispõe o artigo 33 do Código Penal. São comuns as dúvidas quanto às diferenças entre as penas de reclusão e detenção. Na essência, são equivalentes e suas diferenças se destacam no plano de seus efeitos, sendo a reclusão destinada a crimes mais graves e a detenção para os de resultados menos gravosos. Segundo o disposto no artigo 33 do Código Penal, a pena de reclusão admite seu cumprimento tanto no regime fechado, quanto no semi-aberto e aberto, enquanto que a pena de detenção é prevista para infrações menos graves, sendo vedado o regime fechado para tal espécie, salvo em caso de regressão. Ou seja, a pena de reclusão admite a possibilidade de o cumprimento da pena iniciar-se no regime fechado, o que não ocorre na detenção. O regime fechado só é aplicável aos crimes apenados com detenção em caso de regressão de regime, a ser oportunamente conceituado. No âmbito de seus efeitos, as diferenças entre as penas de reclusão e de detenção são mais visualizáveis. No caso de o fato criminoso ser praticado por inimputável, punível com reclusão, a medida de segurança aplicada consiste na internação do agente em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Se o fato for apenado com detenção, a medida de segurança será o tratamento ambulatorial. O efeito civil da perda de pátrio poder, curatela, tutela e poder familiar, decorre somente de crimes apenados com reclusão, não sendo previsto nos casos de aplicação da pena de detenção (Jesus, 2002 p.207). 24 Importante considerar que é direito do apenado, decorrente do princípio constitucional da proporcionalidade, derivado da dignidade humana, que a punição a ser por ele cumprida tenha um rigor proporcional à gravidade da infração praticada. Considerando tais pressupostos, assim foram definidas as espécies de pena adotadas pelo ordenamento penal no Brasil. 2.2.1.3- Regras do regime fechado No § 2º do artigo 33 do Código Penal, é possível identificar as hipóteses em que oapenado inicia o cumprimento da pena em regime fechado: condenados à reclusão reincidentes, qualquer que seja a quantidade de pena imposta e condenados por prática de crime cuja pena seja superior a oito anos, reincidentes ou não. Caso a pena não seja superior a 4 anos e as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal sejam favoráveis ao condenado, em sendo ele reincidente, o regime inicial será o semi-aberto e não o fechado. Neste caso, o regime inicial será fechado somente se o réu for reincidente e as circunstâncias judiciais não lhe forem favoráveis. Conforme já examinado, o cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil foi regulamentado pela Lei 7210/84, a Lei de Execuções Penais (LEP), que posteriormente sofreu algumas modificações. As principais regras dispostas nesta lei sobre o regime fechado estabelecem que a pena deve ser cumprida em estabelecimento penitenciário (artigo 87), de segurança máxima ou média, onde o condenado deve trabalhar no período diurno e ficar isolado durante o repouso noturno, em cela individual com dormitório, aparelho sanitário e lavatório (artigo 88). 25 Segundo o parágrafo único de referido artigo, a unidade celular deve ter por requisitos a salubridade do ambiente e área mínima de seis metros quadrados. Aqui, inicia-se a inevitável verificação do enorme distanciamento que existe entre as previsões legais e a realidade do sistema carcerário brasileiro. No início do cumprimento da pena, o condenado deve ser submetido a exame criminológico para individualização da execução da pena (artigo 8º), seguindo o princípio constitucional estabelecido no artigo 5º, inciso XLVI. Este exame tem por finalidade classificar os presos, no sentido de aferir as características singulares de cada um, particularizando a execução no sentido de torná-la mais eficaz no que diz respeito à reeducação do apenado. Segundo as disposições legais, que posteriormente sofreu reformas, este exame deveria ser realizado por uma Comissão Técnica de Classificação existente em cada estabelecimento prisional, composta por psicólogos e assistentes sociais, no início do cumprimento da pena e também nos casos de progressão e regressão de regime. Isto porque a sentença penal condenatória estabelece o regime inicial de cumprimento da pena. Entretanto, observados alguns critérios, é possível ao preso progredir de um regime mais gravoso para um outro regime mais suave, sendo vedada a progressão “por salto”, ou seja, do regime fechado, não se pode progredir diretamente para o aberto, mas inicialmente para o semi-aberto. A chamada progressão de regime pode ser aplicada, desde que obedecidos os requisitos legais estabelecidos pela LEP, conforme disposto no artigo.112: “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão”. 26 Segundo a LEP, a progressão deveria ser precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e de Exame Criminológico, mas, como será examinado, a Lei sofreu modificações. O Ministério Público, obrigatoriamente, deve manifestar-se acerca da progressão do sentenciado, uma vez que atua como fiscal da lei. O artigo 118 da LEP estabelece a obrigatoriedade da regressão de regime para qualquer regime mais gravoso, quando o condenado pratica falta grave ou crime doloso, ou, ainda, quando sofre condenação por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da que está cumprindo, torna incabível o regime aberto ou semi-aberto. Estas são as disposições da Lei de Execuções Penais que sofreram algumas modificações com a Lei 10.792/03 que deu nova redação aos artigos 6º e 112. A nova Lei dispensou o o exame criminológico, para as progressões e regressões de regime, para as concessões de benefícios e para as conversões de pena. Portanto, de acordo com a lei vigente, o exame criminológico é exigido apenas para individualização do tratamento penal, embora, na prática, tal exame não venha sendo realizado ou, quando realizado, tem sido aplicado de maneira não satisfatória. O requisito objetivo para a progressão da pena também foi mantido, ou seja, o condenado deverá ter cumprido ao menos 1/6 da condenação. O requisito subjetivo, o mérito do apenado, deve ser atestado pelo diretor da penitenciária. Entretanto, mais uma vez, a Lei foi omissa, não definindo o que seria o “bom comportamento” do apenado. Polêmica tem sido a discussão em torno da progressão do regime para os crimes previstos na Lei 8072/90. O artigo 2º desta Lei prevê o cumprimento da pena em regime integralmente fechado para crimes hediondos, tortura, terrorismo e tráfico ilícito de entorpecentes. O artigo 1º, § 7º da Lei 9455/97, que trata dos crimes de tortura, dispõe que o condenado por este crime deve apenas iniciar a pena em regime fechado, permitindo, portanto, a progressão do regime, o que não ocorre nos demais crimes acima mencionados. Há 27 entendimento de que conferir tratamento diferenciado para crimes de igual gravidade incide em violação ao princípio da proporcionalidade. O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei 8072/90 que estabelece o cumprimento integral em regime fechado para os crimes previstos nesta Lei. Os fundamentos da decisão sustentavam-se no fato de que a vedação da progressão afronta o direito fundamental da individualização da pena e a derrogação tácita de tal dispositivo pelo § 7º do artigo 1º da Lei 9455/97, que permite a progressão para os crimes de tortura, equiparado, pela Constituição Federal a crime hediondo, no artigo 5º inciso XLIII. Entretanto, tal decisão foi proferida em Hábeas Corpus, produzindo efeitos “entre as partes” o que não impede que outros juízes e tribunais possam decidir em contrário, até porque o Supremo Tribunal Federal sumulou que a progressão de regime admitida no crime de tortura não se aplica aos demais crimes hediondos (Súmula 698). Quando o assunto está relacionado aos direitos dos presos, é de suma importância lembrar o artigo 38 do Código Penal que dispõe que o apenado, ao ser preso, conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, devendo ser preservadas sua integridade física e moral, em observância ao princípio da dignidade humana. A integridade física e moral dos detentos também é prevista como cláusula pétrea na Constituição Federal, por tratar-se de direito e garantia fundamental, previstos no artigo 5º, inciso XLIX da Carta Magna. Em fidelidade à disciplina constitucional, a Lei de Execuções Penais regulamentou, em seu artigo 41, diversos direitos dos detentos como alimentação e vestuário, atribuição de trabalho remunerado, previdência social, descanso e recreação, assistência à saúde, jurídica e de educação, proteção contra sensacionalismo, entrevista pessoal e reservada com o advogado, audiência especial com o diretor do estabelecimento, entre outros direitos. 28 A mesma Lei, artigo 183, e o Código Penal, artigo 41, garantem o direito ao condenado de ser transferido para hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, nos casos em que a pena for convertida em medida de segurança, por superveniência de doença mental. Manter um condenado, nestas condições, preso em estabelecimento carcerário, constituiria flagrante afronta aos princípios constitucionais, em especial, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Um benefício importante, o benefício da detração, está previsto no artigo 42 do Código Penal, que consiste em computar-se tanto na pena privativa de liberdadequanto na medida de segurança o tempo de prisão provisória e administrativa, no Brasil ou em país estrangeiro, e o de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (LEP, art.66, III, c). Segundo André Estefam (2006, p.190), existe uma lacuna na lei que se omite com relação à admissibilidade da detração para penas alternativas. Para o autor, deve-se suprir referida omissão com a aplicação da analogia in bonam partem, porque não haveria razão em admitir a detração para pena mais grave, no caso, a prisão, e vedá-la para as penas alternativas, o que violaria princípios constitucionais. Quanto ao trabalho do preso, segundo dispõe a Lei de Execuções Penais, as atividades devem ser pautadas em alguns critérios como, por exemplo, ter finalidade educativa e produtiva, ser remunerado, jornada normal de trabalho de 6 a 8 horas diárias com descanso nos domingos e feriados, desconto de um dia de pena para cada três dias de trabalho (remição da pena). Embora o trabalho seja obrigatório ao preso, a Constituição Federal vigente veda, como cláusula pétrea, o trabalho forçado, em seu artigo 5º inciso XLVII. O trabalho do preso é obrigatório, conforme a regra do inciso V do artigo 39 da LEP, que dispõe sobre os deveres 29 do preso. Se ele não trabalha, perde os benefícios da remição. Ficam isentos da obrigação somente o preso provisório e o preso político, para os quais o trabalho não é obrigatório. Mas a atribuição de trabalho, sua remuneração, previdência social, proporcionalidade entre o tempo de trabalho, descanso e recreação também estão previstos entre os direitos estabelecidos aos presos pela mesma Lei em seu artigo 41. O artigo 39 do Código Penal brasileiro dispõe sobre o trabalho do preso que deve ser sempre remunerado e sobre o direito de usufruir dos benefícios da Previdência Social. No mesmo sentido, a Lei de Execuções Penais em seu artigo 41, inciso II, estabelece que constitui um direito do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração. Portanto, o trabalho é um dever do Estado e um direito/dever do preso. Direito no que diz respeito à remuneração e remição, e dever na medida em que, recusando-se a executá-lo, comete falta grave, segundo o estabelecido nos artigos 39, inciso V e 50, inciso VI da LEP. Segundo as disposições legais, àqueles que trabalham, os valores recebidos devem ser utilizados na seguinte ordem: primeiro, para indenizar a vítima; segundo, o Estado; terceiro, sua família; quarto, para seu uso pessoal. Do que restar de seu salário, em regra, não inferior a ¾ do salário-mínimo, fica como pecúlio. Mas, na realidade, o que efetivamente motiva o preso a trabalhar é a possibilidade de remição. Os artigos 31 a 37 da Lei de Execuções Penais disciplinam de que maneira deve ser realizado este trabalho. O artigo 32 dispõe que, ao se atribuir à atividade laboral ao apenado, devem ser consideradas suas habilidades pessoais, suas condições físicas, as necessidades futuras do preso, ao deixar o sistema e as oportunidades oferecidas pelo mercado. No entanto, esta é a teoria. Na prática, é muito diferente. Em tese, o trabalho deveria ser um aliado importante no processo de recuperação do infrator, preparando-o para sua reintegração no mercado de trabalho quando recuperar a 30 liberdade. O trabalho deveria ter como intuito maior desenvolver no preso a idéia de resgatar sua dignidade. Quanto ao trabalho externo, a Lei de Execuções Penais, artigo 36, considera-o admissível somente em serviço e obras públicas, ficando a remuneração por conta da entidade ou empreiteira a remuneração do preso. O artigo 37 estabelece como requisito para a concessão deste direito que o preso tenha cumprido no mínimo 1/6 de sua pena. Importante observar a súmula 40 do STJ, que considera como tempo de cumprimento de pena aquele cumprido em regime fechado. No que se refere à prestação de trabalho a entidades privadas, a lei também estabelece como requisito o consentimento expresso do preso (LEP, artigo 36, § 3º). No que diz respeito aos limites temporais da pena de prisão. O ordenamento jurídico- penal brasileiro não reconhece a prisão perpétua. Trata-se de vedação constitucional, prevista como cláusula pétrea, no artigo 5º inciso XLVII. Caso o preso tenha mais de uma condenação, suas penas serão “unificadas”, utilizando terminologia corrente da doutrina, desde que observados alguns critérios específicos. No Brasil, a pena máxima é de trinta anos, trata-se de regra prática, ainda que o condenado tenha mais do que este tempo de pena para cumprir. A previsão legal deste limite encontra-se no artigo 75 do Código Penal que dispõe que “o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos”. Além disso, é preciso observar a regra do § 2º do artigo 75 do Código Penal: “Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se para esse fim, o período de pena já cumprido”. Assim, se o condenado a trinta anos, que já tenha cumprido vinte anos, sofrer nova condenação de trinta anos por fato posterior, deverá cumprir mais trinta anos de pena 31 unificada. Não cumprirá os quarenta anos que resultariam da soma de dez que faltavam com os trinta anos da nova condenação. Para a concessão de benefícios legais, como o livramento condicional, a jurisprudência majoritária considera a pena aplicada e não os 30 anos. Por exemplo, um réu que tenha sido condenado a cem anos de prisão, para adquirir o direito ao livramento condicional não lhe bastará cumprir 1/3 de trinta anos, mas de cem anos, que foi a pena aplicada. (art. 83,I CP). No que diz respeito ao livramento condicional, trata-se também de direito assegurado ao apenado pela legislação infraconstitucional. O artigo 83 do Código Penal admite esta possibilidade para as penas privativas de liberdade iguais ou superiores a dois anos. O dispositivo estabelece que, se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes, basta que tenha cumprido mais de 1/3 da pena. Caso contrário, para a concessão do benefício, deve ter cumprido mais da metade da pena. No caso de condenação por crime hediondo, tortura, terrorismo e tráfico de entorpecentes, é exigência legal o cumprimento de mais de 2/3 da pena, conforme estabelece o inciso V de citado artigo. A legislação penal também prevê como direito do apenado a possibilidade de substituição da privação da liberdade por uma das penas restritivas de direitos classificadas no artigo 43 do Código Penal, com a redação da Lei 9714/98, também chamadas de penas alternativas. Assim como o livramento condicional, o sursis, o regime aberto, a anistia, o indulto e a graça, as penas restritivas de direito são medidas alternativas que visam ao desafogamento das prisões. Trata-se de um rol taxativo, expressamente disposto pelo Código Penal: a. prestação pecuniária: consiste no pagamento à vítima, seus dependentes ou entidade pública ou privada de destinação social de um valor em dinheiro a ser fixado pelo 32 juiz, não inferior a um salário mínimo, nem superior a trezentos e sessenta salários (ESTEFAM, 2006, p.199); b. perda de bens e valores: esses valores são equivalentes ao prejuízo causado ou ao proveito obtido pelo infrator com a prática do crime; c. prestação de serviços à comunidade: para substituir a pena de prisão superior a seis meses. Foi prevista para não prejudicar a jornada normal de trabalho do apenado, portanto, é estabelecida na proporção de uma hora de trabalho em hospitais, creches, escolas, estabelecimentos públicos, por um dia de condenação; d. interdição temporária de direitos: são substituiçõesespecíficas previstas no artigo 47 do Código Penal, compreendendo a proibição de exercer cargos ou funções públicas e mandatos eletivos, bem como exercer profissões que dependem de habilitação especial, proibição de freqüentar determinados lugares e suspensão da habilitação para condução de veículos automotores; e. limitação de fim-de-semana: prevista no artigo 48 do Código Penal, o apenado deverá permanecer em casa de albergado aos sábados e domingos por cinco horas diárias. Ao sentenciar, o Juiz aplica uma pena de prisão prevista na lei e, se observados os requisitos legais, o cárcere pode ser substituído por uma pena alternativa. Tais requisitos são estabelecidos pelo próprio Código Penal em seu artigo 44. A conversão da pena privativa de liberdade em uma pena alternativa, segundo referido dispositivo legal, é possível quando o condenado não é reincidente no mesmo crime doloso, quando a pena aplicada não é superior a quatro anos, quando o crime não é praticado com violência ou grave ameaça a pessoa e quando, qualquer que seja a pena aplicada, a condenação seja por crime culposo. Além destes requisitos, o juiz deve considerar ainda os elementos subjetivos para a substituição, ou seja, o mérito do apenado, devendo ser observado se as condições pessoais do 33 condenado indicam a substituição, devendo ele demonstrar que está apto a cumprir a pena substitutiva. De acordo com o § 2º do mesmo artigo, a pena de prisão igual ou inferior a um ano pode ser substituída por multa ou por restritiva de direitos; se superior a um ano, a prisão pode ser convertida em uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas penas alternativas. Se as restrições impostas, ou seja, se as penas alternativas não são cumpridas pelo apenado sem razão justificável, conforme prescritas, a medida se converte em prisão, nos temos do § 4º de referido artigo. O mesmo ocorre se houver outra condenação por outro crime, ressalvada a hipótese em que seja possível a aplicação de outra pena alternativa. Além das penas restritivas de direito, a Lei 9099/95 e a Lei 10259/01 estabelecem medidas processuais alternativas, como a transação penal e a suspensão condicional do processo para os crimes de menor potencial ofensivo e para as contravenções penais. Tais medidas representam uma alternativa para aqueles infratores que têm condições de cumprirem suas penas em liberdade, o que representa uma contribuição ímpar no sentido de diminuir a superlotação carcerária. 2.2.1.4.- Sanções disciplinares - Regime disciplinar diferenciado A Constituição Federal brasileira, conforme já exposto anteriormente, elencou uma série de diretrizes ao legislador infraconstitucional no tocante à execução penal. Os princípios que emanam da constituição federal devem ser observados pelos agentes públicos durante todo o período em que o apenado fica sob a custódia estatal. Assim, as sanções e obrigações impostas aos presos durante o período de encarceramento devem estar alinhadas aos valores 34 constitucionais, principalmente àqueles que dizem respeito à dignidade da pessoa humana. Qualquer sanção que represente ofensa à integridade física ou moral dos presos é incompatível com tal princípio e, por via de conseqüência, inconstitucional à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Cumpre observar que a legislação penal atribui não apenas direitos aos presos, mas também deveres. De acordo com o artigo 39 da Lei de Execuções Penais, constituem-se deveres do condenado: comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença; obediência aos servidores públicos da instituição e respeito a qualquer pessoa com quem deverá relacionar-se; respeito no trato com os demais condenados; conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; submissão à sanção disciplinar imposta; indenização à vítima ou a seus sucessores; indenização ao Estado quando possível, das despesas realizadas com sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho; higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento; conservação dos seus objetos de uso pessoal. Assim, o descumprimento de tais deveres pode implicar na aplicação de sanções disciplinares consistentes, conforme disposição do artigo 53 da LEP, em advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos, isolamento e inclusão no regime disciplinar diferenciado. Segundo dispõe o artigo 50 da LEP, o condenado à pena privativa de liberdade que participar de movimentos de subversão da ordem interna, fugir, portar instrumentos com potencial para ofender a integridade física de alguém, provocar acidente de trabalho ou descumprir seus deveres, comete falta grave, punível com sanções de suspensão ou restrição de direitos (banho de sol, visitas), isolamento ou inclusão no regime disciplinar diferenciado, conforme estabelece o artigo 57 da mesma Lei. 35 Este regime, conforme se afere da leitura do artigo 53 da LEP, alterado pela Lei 10792/03, constitui sanção disciplinar destinada àqueles presos que cometerem falta grave por crime doloso ou por perturbação da ordem interna, àqueles que representam alto risco para a sociedade ou para o estabelecimento carcerário ou sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas, podendo ser aplicado tanto ao preso provisório, quanto ao condenado (art.52, § 1º e 2º). Segundo o mesmo dispositivo, o regime disciplinar diferenciado caracteriza-se pelo recolhimento do preso em cela individual, com direito a duas horas diárias de banho de sol, duas horas semanais de visita de duas pessoas e duração máxima de trezentos e sessenta dias, podendo ser reiterado por nova falta grave da mesma espécie até o limite de um sexto da pena aplicada (art.52, incisos I a IV). A inclusão do preso em regime disciplinar depende de requerimento do diretor do estabelecimento prisional e a autorização judicial deve sempre ser precedida de manifestação do Ministério Público, conforme estabelecem os parágrafos 1º e 2º do artigo 54. A instituição do regime gerou muita discussão em torno da sua constitucionalidade, havendo entendimento no sentido de que o regime é muito gravoso e de que configura verdadeira afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ao tempo de sua criação, acreditava-se que um endurecimento da disciplina carcerária seria a melhor forma de conter a violência e as rebeliões que se alastravam nos estabelecimentos prisionais. Entretanto, segundo os dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, o índice de reincidência no Regime Disciplinar Diferenciado é de 48%, mais alto do que os percentuais relativos aos outros regimes, o que parece demonstrar que tornar o regime mais gravoso não tem assegurado maior eficácia social ao sistema penitenciário paulista, assunto que será discutido oportunamente. 36 II- CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO DIREITO PENAL Expostos os fundamentos constitucionais e os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional em face do apenado, far-se-á uma leitura das teorias que informam este sistema, visando à sua compreensão e à identificação da teoria adotada pelo legislador penal no Brasil. A doutrina convencional divide as teorias em absolutas, relativas e mistas. Em linhas gerais, as teorias absolutas atribuem à pena a função de retribuição do mal injusto praticado pelo infrator por meio de um mal justo (a pena) que se impõe ao condenado. Assim, todas as doutrinas que concebem a pena como um fim em si mesmas, ou seja, as teoriasretribucionistas são, por conseguinte, absolutas. Por outro lado, as teorias relativas concebem a pena por seu caráter utilitário, qual seja, o de prevenir a prática de futuras infrações às normas penais, divididindo-se em duas versões: prevenção geral e prevenção especial. Embora esta divisão seja a mais adotada pela maioria dos manuais de Direito Penal estudados no Brasil, optou-se por seguir o caminho percorrido por Ferrajoli, que trata as teorias absolutas e relativas como doutrinas de justificação, distinguindo-as das tendências contemporâneas que oscilam do minimalismo ao abolicionismo penal. 37 1- Doutrinas de justificação O Direito Penal adotado pela maior parte dos ordenamentos jurídicos da atualidade é produto da Modernidade, definida pelos historiadores como o período que vai do renascimento cultural até a Revolução Francesa e os princípios da industrialização inglesa. Após o grande sono intelectual pelo qual passou a humanidade, no período medieval, o homem passou a ser observado de forma racional e humanista. Constituiu-se um modelo de racionalidade que evoluiu para uma série de transformações sociais, políticas, institucionais e tecnológicas desenvolvidas no mundo ocidental no século XVIII. Kant definiu este processo como aquele em que a humanidade atinge seu estágio de maioridade, ou seja, quando o homem faz uso de sua razão sem se submeter a nenhuma autoridade. Com a valorização do homem, instalou-se um conjunto de concepções e novas formas de pensar o mundo e seus fenômenos, enfim, um longo processo que culminou no Iluminismo e na Modernidade. Entretanto, a ideologia moderna dominou também no plano econômico e não apenas na esfera das idéias com a filosofia das luzes. A Europa tornava-se capitalista e o crescimento das capacidades e das diversas tecnologias intensificava as relações de poder, frustrando boa parte das promessas iluministas, fundamentadas em princípios de liberdade, igualdade, fraternidade. No âmbito do Direito, o positivismo jurídico passou a ser o porta-voz das classes economicamente favorecidas, constituindo um dos pilares do “garantismo”, fundamentado, por um lado, no princípio da legalidade, mas abrindo espaço, por outro, a práticas absolutistas, conforme se aferirá oportunamente. 38 Segundo Ferrajoli (2002, p.29), muitas são as doutrinas e teorias que integram esta tradição, as quais não são homogêneas entre si, nem tampouco traduzem os ideais iluministas, informando, paradoxalmente, tendências penais autoritárias e antigarantistas, justificadas pela legalidade que encerram. Segundo o autor, a questão central que envolve o garantismo reside na esfera de validade e de efetividade das normas, na medida em que os modelos normativos são tendentemente garantistas, enquanto que as práticas operacionais são flagrantemente antigarantistas, revelando um Direito que, embora válido pela legalidade que encerra, pode não ser efetivo do ponto de vista fático (2002, p.685). No caso do Brasil, observando os valores penais expressos pela Constituição Federal vigente, de acordo com a escala gradativa sugerida por Ferrajoli, constata-se um elevado grau de garantismo, enquanto que, em se considerando sua prática efetiva, os patamares são baixíssimos. Um dos significados de garantismo trazido por Ferrajoli diz respeito à sua perspectiva filosófico-jurídica, que exige do Estado a justificação de sua atuação com base na finalidade de garantia dos interesses que tutela (2002,p.685). No plano penal, uma das questões mais debatidas pelos doutrinadores é exatamente a que diz respeito à justificação do direito/dever de punir do Estado, dos fundamentos e finalidades do jus puniendi. Visando a um esclarecimento de tais questões, apresentar-se-ão, a seguir, as teorias mais discutidas entre os penalistas. 39 1.1 Teorias absolutas - justificação retributiva A pena sempre traduziu a idéia de vingança, o caráter de retribuição e de expiação, desde as vinganças (vindictas) praticadas pelos povos primitivos, passando pela justiça do Talião, pelas ordálias do Direito Germânico até as práticas inquisitivas do Direito Canônico. Na perspectiva de Ferrajoli, conforme já informado, são teorias absolutas todas aquelas que possuem uma justificação retributiva (2002, p. 204). Trata-se de uma cultura muito antiga, que foi se desenvolvendo em diferentes momentos históricos e que ainda persiste em nossos dias. Alguns doutrinadores, entre eles Bitencourt (2001, p.106), afirmam que as funções da pena, historicamente, estão relacionadas ao Estado Absolutista e ao Estado Burguês. No absolutismo, a pena tinha um caráter de expiação de pecados.Concebia-se que o infrator, ao desobedecer ao monarca, desobedecia ao próprio Deus. A partir do Iluminismo, o crime passou a ser visto como uma infração ao pacto social e a pena tinha por finalidade evitar esta violação. (BITENCOURT, 2001, p.106). Em linhas gerais, os adeptos das teorias absolutas concebem a pena como “castigo”, “restauração”, “reparação”, “retribuição”, “vingança”. Pune-se porque a pena é um castigo merecido pelo infrator pelo mal que praticou. A pena é analisada como um fim em si própria, de caráter aflitivo, opondo-se a qualquer finalidade utilitária. O caráter da punição é retribuir um mal injusto praticado pelo infrator com um “mal justo” previsto no ordenamento jurídico (MIRABETE, 2003, p.244). Ferrajoli (2002, p.205) informa que a justificação retributiva circunda idéias de caráter religioso, quais sejam, vingança, expiação e proporcionalidade entre pena e delito. O caráter laico nasceu com os estudos de Kant e Hegel. 40 Segundo o autor, as teorias absolutas encontraram seu caráter secularizado nos estudos de Kant e Hegel. Kant concebia a pena como um castigo imposto por uma exigência ética, sem qualquer conteúdo ideológico, devendo ser aplicada como uma conseqüência natural do delito. Segundo a concepção kantiana, somente com a aplicação do “mal da pena” imposto ao “mal do crime” seria possível reestabelecer uma igualdade que reparasse a moral. Para tanto, Kant adotava os princípios taliônicos em sua tese para determinar a qualidade e a quantidade da pena (1980, p.50). Conforme já verificado, quando se discutiu o conceito de dignidade humana, Kant concebia o homem como um fim em si mesmo, não como instrumento dos desígnios de seus semelhantes. Assim, a pena deve ser imposta ao culpado pela única razão de ele haver cometido um crime, porque, na sua concepção, a pena fundamenta-se na infração praticada, sem qualquer finalidade preventiva. A gravidade do crime é que determina o castigo a ser imposto ao infrator e por isso a retribuição kantiana tem natureza ética (1980, p.50). Enquanto a tese kantiana atribuía ao ato de punir uma justificativa ética, para Hegel, a pena era uma retribuição jurídica. Na concepção hegeliana, ao cometer um crime, o infrator violava o Direito. A pena, portanto, seria um instrumento para restabelecer o ordenamento violado (1980, p.50). De acordo com o que Corrêa Junior e Shecaira (2002, p.130), Hegel adotou o método dialético em seus estudos sobre a pena. A vontade geral expressa na lei seria a tese; o crime praticado pelo infrator seria uma negação desta lei, uma antítese; e a pena seria a síntese, ou seja, a negação da negação do Direito. Para Ferrajoli, as distinções entre as duas teorias são apenas aparentes porque a idéia da “retribuição jurídica”, em Hegel, também se baseia no valor moral ligado ao ordenamento jurídico violado. Para o autor, ambas as concepções são insustentáveis: 41 Trata-se da sobrevivênciade antigas crenças mágicas que derivam de uma confusão entre direito e natureza, vale dizer, a idéia da pena como restauração ou remédio ou reafirmação de uma ordem natural violada, ou ainda daquela religiosa do contrapasso e da purificação do delito por meio do castigo, ou aquelas igualmente não razoáveis da negação do direito por parte do erro e da simétrica reparação deste pelo direito (2002, p. 206). Zaffaroni, em sua obra Em busca das penas perdidas, trata da “deslegitimação” da pena retributiva. Para o autor, a indenização material e moral do ofendido é uma forma mais efetiva de se reparar o prejuízo causado pelo crime do que a opção pelo “castigo”, pela retribuição. Defende a idéia de que a retribuição do mal causado pelo crime por um “mal justo”, que seria a pena, envolve os mesmos problemas do contratualismo, ou seja, poderia funcionar em uma sociedade igualitária, em que a pena não atingisse apenas as parcelas menos favorecidas da sociedade, mas a todas as classes sociais. Para o autor, não é o que ocorre numa sociedade real. As penas retributivas alcançam apenas a porção marginal da sociedade, restando impunes aqueles que ocupam o ápice da pirâmide social (2001, p.82). Ferrajoli, em seus estudos sobre o garantismo penal, estabeleceu uma escala graduada que oscila entre dois extremos que denomina “direito penal mínimo e direito penal máximo”. O modelo minimalista assegura uma gama maior de garantias ao cidadão contra o arbítrio estatal, representação própria dos Estados Democráticos de Direito. Por outro lado, os modelos que se aproximam do direito penal máximo configuram sistemas próprios dos Estados absolutistas, autoritários. O autor afirma que as doutrinas absolutas e as penas retributivistas revelam-se legítimas apenas para fundamentar modelos não liberais de direito penal máximo, uma espécie de “talião”, tendo como único objetivo a “troca do mal com o mal” (FERRAJOLI, 2002, p.208). 42 A maior parte dos autores contemporâneos, entre eles Corrêa Junior e Shecaira, não são partidários do retributivismo, embora alguns entendam que a teoria contribuiu para se estabelecer regras para a dosimetria penal e a concepção de proporcionalidade. De qualquer maneira, retribuir “o mal com o mal”, “expiar” o crime, “castigar” o infrator, são modelos incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito. 1.2 Teorias relativas - justificação utilitarista Em contrapartida às teorias absolutas que justificam a pena por seu caráter retributivo, as teorias relativas defendem uma fundamentação utilitarista, segundo a qual a finalidade do ato de punir seria a de prevenir a prática criminosa. A doutrina tradicional identifica esta tendência com a Escola Clássica. Segundo Ferrajoli (2002, p.205), as teorias absolutas são quia peccatum, ou seja, relacionam-se a um tempo passado, na medida em que a pena é voltada a retribuir um mal já praticado; enquanto que as teorias relativas são ne peccetur, ou seja, dirigem-se a um tempo futuro, uma vez que a aplicação da pena é orientada a prevenir a possibilidade fática de acontecer um crime que ainda não aconteceu . As doutrinas relativas são estudadas em duas perspectivas: prevenção geral e prevenção especial, concebidas em um sentido negativo e em um sentido positivo. De qualquer forma, para as justificações utilitaristas, ao contrário das retributivas, as penas não são consideradas como um fim em si mesmas. Embora os seus adeptos entendam a pena como um mal necessário, assim como nas doutrinas absolutas, os utilitaristas defendem a idéia de 43 que o ato de punir não esteja orientado a retribuir o crime praticado, mas a prevenir a prática de novos crimes. Os manuais de Direito Penal brasileiro informam que, de acordo com a teoria da prevenção geral, ao se aplicar a pena, promove-se a prevenção de novas práticas ilícitas e esta finalidade preventiva é dirigida a todos os membros do meio social, enquanto que, segundo a teoria da prevenção especial, o intuito da prevenção é voltado à pessoa do infrator. Para os manualistas, a prevenção, analisada sob seu aspecto negativo, tem a finalidade de “intimidar” a prática de novos delitos, quer em sua versão geral, quando dirigida a todos os membros da sociedade, quer em sua versão especial, quando dirigida ao infrator, cujo instrumento, por excelência, é a prisão. Por outro lado, quando observada sob seu aspecto positivo, relaciona-se à consciência da vigência da norma. No dizer de Corrêa Junior e Shecaira, em seu sentido positivo, dirige-se à finalidade de estimular o cumprimento das normas jurídicas, à formação do conhecimento e necessidade de sua vigência (2002, p.132). No que diz respeito à prevenção especial, o sentido positivo está relacionado à finalidade educativa e ressocializadora, alvo de muitas polêmicas, o que será discutido oportunamente. Em síntese, as correntes utilitaristas sempre atribuíram à pena um propósito comum: a prevenção de futuros delitos. Entretanto, em breve olhar sobre as teorias defendidas por aqueles autores que se identificam como “utilitaristas”, é possível reconhecer algumas nuances que os diferenciam uns dos outros. Ferrajoli (2002, p.212) observa que, até o final do século XVIII, não havia vertentes diferenciadas do utilitarismo penal. Somente a partir daí os doutrinadores passaram defini-las segundo a finalidade preventiva constituir ou não o objeto único da pena. Desde então, foram definidos os critérios de prevenção geral, prevenção especial, bem como os sentidos positivo e negativo que, combinados, deram origem a quatro tipos de doutrinas utilitaristas: prevenção 44 especial positiva, prevenção especial negativa, prevenção geral positiva e prevenção geral negativa. 1.2.1- Prevenção geral positiva Na maioria dos trabalhos de Criminologia, encontra-se uma divisão da teoria da prevenção geral positiva em duas vertentes: a fundamentadora, cujos expoentes são Welzel e Jakobs, e a limitadora, defendida por Hassemer e Roxin. Convergem os autores no sentido de que a prevenção geral positiva limitadora vislumbra na pena o caráter de limitar o poder punitivo estatal paralelamente à difusão e confirmação dos valores contidos na norma penal. O Estado que, ao exercer o jus puniendi, extrapolar tais limites estará exercendo um poder arbitrário. Corrêa Júnior e Shecaira, ao explorarem o trabalho de Hassemer, sintetizam-no na idéia de que a pena pode ser entendida como uma reação estatal voltada à difusão da consciência social da norma e ao auxílio ao infrator para sua reinserção social, obedecendo aos critérios de proporcionalidade (2002, p.132). Segundo os mesmos autores, Roxin, outro expoente da versão limitadora da prevenção geral positiva, acrescenta à finalidade preventiva da pena a idéia da subsidiariedade do Direito Penal, questionando a sua legitimação e eficácia no que diz respeito à reintegração social do apenado, o que aproxima as suas idéias ao minimalismo penal. A prevenção geral positiva fundamentadora tem como principais defensores Welzel e Jakobs. 45 Segundo Bitencourt, Welzel vislumbrava uma função social ao Direito Penal, enquanto que Jakobs repetiu a teoria de Hegel, segundo a qual a pena é a “negação da negação do Direito”. Desta forma, suas idéias assumiram contornos retribucionistas, pois concebia a idéia de que após a prática do crime, é necessária a intervenção do Estando, visando à reforçar para a sociedade que a norma continua vigente (2002, p.86). Ferrajoli afirma que Jakobs nada mais fez do que repetir a teoria sistêmica de Niklas Luhmann que justificava a penacomo fator de equilíbrio do ordenamento e de fidelidade dos cidadãos nas instituições, devolvendo à coletividade a confiança abalada pelas infrações. No plano sociológico, Jakobs em nada inovou a teoria de Emile Durkheim que havia concebido a pena como instrumento para reafirmar os sentimentos coletivos de solidariedade contra os agressores, constituindo-se, portanto, como um fator de estabilização social (2002, p.222). 1.2.2- Prevenção geral negativa Conforme Bitencourt, a teoria da prevenção geral, em sua concepção negativa, prevê como finalidade da pena a intimidação da coletividade no sentido de atemorizar possíveis infratores, coibindo-os da prática de quaisquer delitos (1993, p. 115). Tal concepção coloca o infrator na posição do “bode expiatório”, quando não do hommo saccer, o “matável não sacrificável”, citado por Aganben, na medida em que o princípio orientador desta tendência parece ser no sentido de que “os fins justificam os meios”, o que contraria a concepção kantiana de que cada pessoa constitui um fim em si mesma. 46 Beccaria e Bentham foram os principais nomes desta doutrina, dentre os reformadores e pensadores jusnaturalistas do século XVIII. Segundo os historiadores, foi inspirado pelo contratualismo de Rousseau que Beccaria escreveu Dei deltiti e delle Penne, obra em que estabeleceu diretrizes para a reforma penal fundada no princípio utilitarista, defendendo a humanização das penas e o fundamento do direito de punir. A tendência prevencionista manifesta-se em seu conhecido posicionamento de que é preferível a prevenção à punição dos delitos (2002, p.101). Jeremias Bentham adotou, como Beccaria, o utilitarismo da pena, com a finalidade principal de prevenção dos delitos pela intimidação da coletividade por meio da imposição de uma pena. Idealizou o Panoptismo, “o olhar que tudo vê”, como a estrutura ideal para o sistema carcerário, consistente em uma estrutura periférica anelar, dividida em células, tendo, no centro, uma torre, do interior da qual um vigia, que materializa o olhar do poder estatal, tudo pode ver no interior das celas, sem nunca ser visto por quem as ocupava. (FOUCAULT, 2003, p.166). O cárater intimidatório pode ser facilmente vislumbrado. Segundo Michel Foucault (2003, p.79), o verdadeiro objetivo da reforma visava tornar o poder de punir mais eficaz, diminuindo seu custo econômico e político. A questão não era punir menos, ao se tentar excluir os suplícios, mas punir melhor e mais eficazmente. Para tanto, foram idealizadas algumas novas técnicas de punir, baseadas em algumas regras: Regra da quantidade mínima: deve existir uma proximidade entre a pena e o crime, uma "quase-equivalência". Regra da idealidade suficiente: o corpo do condenado não é o sujeito do sofrimento, mas objeto de uma representação. O que deve ficar na memória é o que representa a pena e não a realidade corpórea: "não mais o corpo, a alma". 47 Regra dos efeitos laterais: os efeitos da pena devem ser mínimos para o condenado e mais intensos para os que a imaginam Regra da certeza perfeita: devem ser claras as leis que definem os crimes e prescrevem as penas. Nenhum crime deve ficar impune. Regra da verdade comum: a verdade do crime será equiparada a uma verdade matemática e só será admitida após inteiramente comprovada. Regra da especificação ideal: as infrações devem ser claramente qualificadas e especificadas, classificadas em um código explícito que defina os crimes e fixe uma pena (2003, p. 79). Ocorre que tal concepção utilitarista da pena pode legitimar tendências penais orientadas à intervenção máxima (“pena proporcional ao delito”), que atendem, antes de mais nada, aos interesses das classes economicamente favorecidas, punindo com rigor os setores marginais de nossa sociedade, assunto a ser oportunamente discutido. Para a teoria da prevenção geral negativa, a pena seria nada mais do que um meio para garantir a eficácia da lei penal, ou seja, para justificar o Direito Penal. Ela não tem por finalidade o infrator como indivíduo. Em uma linha paralela, Feurbach, Romagnosi e Schopenhauer concebiam a pena não por sua perspectiva paradigmática, como Bentham e Beccaria, mas por um caráter de “ameaça” contida na Lei Penal. As idéias defendidas por estes autores também têm uma nuance de “Direito Penal do terror”, na medida em que essa ameaça, ou intimidação, será mais eficaz, quanto mais severas forem as punições estabelecidas pelo legislador. É o que informa Ferrajoli (2002, p.225). Feuerbach, criou uma teoria, a que chamou teoria da coação psicológica, segundo a qual só é possível a extinção da criminalidade se a pena representar uma ameaça capaz de coibir a prática criminosa: 48 Entre todas as imagináveis medidas de segurança das ofensas em geral, nenhuma é tão geralmente eficaz como a ameaça de males físicos, com as quais a ação ofensiva vem condicionada. Essa age diretamente de modo contrário ao fundamento último dos desejos antijurídicos e elimina, causando o medo, o mesmo princípio interno do qual aqueles provêm (FERRAJOLI apud FEURBACH, 2002, p. 255). O autor prenuncia a idéia de que as pessoas deixam de cometer infrações na medida em que existir uma previsão da aplicação de uma pena para todos os que praticarem condutas criminosas. Eis a idéia da coação psicológica. A obra de Giandomenico Romagnosi tem alguns pontos em comum com o pensamento de Beccaria, entre eles, a idéia de que a pena tem como uma de suas finalidades a defesa social. Entretanto, Romagnosi contestava a hipótese utilitarista do pacto social. Mas a idéia principal de Romagnosi é a de que a pena não constitui o únido meio de defesa social. Entendia que, antes de sua aplicação, deveria ser feito um trabalho preventivo das infrações, através da melhoria das condições sociais (BARATTA, 1982, p. 34). Schopenhauer defendia a idéia de que o direito de punir é fundado na lei positiva, que fixa uma pena, que representa uma ameaça destinada a impedir a sua violação, visando à segurança da sociedade. Assim, todas as infrações devem ser previstas em lei, positivadas, encerrando uma ameaça que tem por finalidade a prevenção da criminalidade através de uma intimidação (FERRAJOLI, 2002, p.256). Estabelecidas tais considerações, fica latente a idéia de que a prevenção geral em seu caráter intimidatório até pode justificar a aplicação da pena e, num sentido mais amplo, o próprio Direito Penal. Entretanto, num Estado Democrático de Direito, o homem deve ser considerado “como um fim em si mesmo”, conforme a concepção kantiana. Então, o critério utilitarista, tal e qual o retributivista, parece incompatível com o valor da dignidade da pessoa humana, na medida em que aquele que infringiu a lei penal receberá uma punição que servirá como meio de intimidar os demais membros da sociedade a fim de não cometerem infrações. 49 1.2.3- Prevenção especial Aqui deitam as raízes daquilo que se configurou como “ressocialização”. Conforme informado anteriormente, a prevenção especial centraliza a finalidade da pena na pessoa do infrator. A doutrina convencional a concebe em dois sentidos: um sentido positivo e um sentido negativo, que não necessariamente se excluem entre si. Claus Roxin, em sua obra Problemas fundamentais de Direito Penal, comentando a prevenção especial, afirma que a pena atua sobre o infrator “corrigindo o corrigível”, “intimidando o intimidável”, e “neutralizando o incorrigível e aquele que não é intimidável”, através da prisão (1993, p.20). No mesmo sentido, Ferrajoli (2002, p.213) subdivide a prevenção especial em duas finalidades: uma positiva, ligada à reeducação
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